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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.42  Lisboa jun. 2021  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.15847/cct.20940 

ENSAIO

A Pintura nas Colagens de Mies Van der Rohe

The Paintings on Mies Van der Rohe’ Collages

1ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Email: dcgsa@iscte-iul.pt


Resumo

Muito se tem escrito sobre a produção arquitetónica de Ludwig Mies van der Rohe, arquiteto alemão naturalizado americano, autor de algumas das mais relevantes obras de arquitetura do século XX. Mies produziu um extenso conjunto de colagens, hoje arquivadas no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, que revelam uma apurada estética de representação arquitetónica. A principal investigação sobre este conjunto de colagens de Mies encontra-se explanada no livro Montage Collage, de Andreas F. Beitin, Wolf Eiermann e Brigitte Franzen, que constituiu o catálogo da mostra “Mies van der Rohe: As colagens do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque”, apresentada a 28 de outubro de 2016, no Fórum Ludwig em Aachen na Alemanha. Esta investigação ofereceu, a seu tempo, um inegável contributo para inaugurar a reflexão sobre este tema. No entanto, neste artigo centramo-nos num elemento essencial da composição, que não tem sido suficientemente estudado: as obras de arte.

Palavras-chave: arquitetura; arte; Mies; colagem; pintura; escultura

Abstract

A lot has been written about the architectural production of Ludwig Mies van der Rohe, German architect naturalized American who built some of the most relevant pieces of architecture of the 20th century. Mies produced an extensive amount of collages, archived today in the MoMA - Museum of Modern Art in New York, that unveil an accurate aesthetic of architectural representation. The principal investigation about this set of collages of Mies can be found in the book Montage Collage of Andreas F. Beitin, Wolf Eiermann e Brigitte Franzen, that constituted the catalogue of the exhibition Mies van der Rohe: The collages of the Museum of Modern Art in New York, presented on October 28 of 2016, in the Ludwig Fórum in Aachen, Germany. In time, they all made an undeniable contribution to start a debate on this subject. However, in this article we focus on a crucial element of the composition that has not been sufficiently studied: the works of Art.

Keywords: architecture; art; Mies; collage; painting; sculpture

Ludwig Mies Van der Rohe utilizou pela primeira vez a técnica da colagem no contexto do projeto para o Monumento Bismarck (1910, Bingen am Rhein, Alemanha) (Figura 1). Numa fotografia do terreno onde seria implantado o projeto, sobrepôs e colou uma fotografia da maqueta do projeto. Anos mais tarde, voltou a utilizar esta técnica a propósito do seu projeto teórico, Courts House (1931/1938). Numa colagem que ilustrava este projeto (Figura 2), realizada em 1934, Mies desenhou uma perspetiva que abarcava um espaço interior e um pátio, adicionando ainda um recorte de uma imagem de uma superfície de madeira - representando um elemento que organizava o espaço. A partir de então, começou a utilizar a técnica da colagem de modo recorrente, produzindo mais de trinta, entre 1910 a 1965, para os mais diversos projetos - que vão de simples programas de habitação unifamiliar (como a Hubbe House), a museus (como a Neue Nationalgalerie).

Figura 1: Mies - Colagem Monumento Bismarck (1910) 

Rohe (1934), Court House, MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/168032?locale=en.

Figura 2: Mies - Colagem Court House (1934) 

Ao observarmos as colagens produzidas por Mies a partir de então, verificamos que sobre desenhos realizados a grafite e tinta, são sobrepostos recortes com texturas e cores. Representam elementos de madeira, de pedra - como por exemplo o travertino - ou simplesmente planos homogéneos de uma só cor. No entanto, encontramos também certos elementos que não retratam uma textura associável a uma materialidade. Observando com atenção esses elementos, sobretudo das colagens elaboradas após a emigração de Mies para os Estados Unidos da América, percebemos que se tratam de fragmentos ou, em alguns casos, de reproduções integrais de obras de arte realizadas por artistas da época.

Na verdade, a técnica da colagem surgiu e esteve presente no meio artístico desde as origens da técnica fotográfica (1826). A partir de 1850, com o intuito de valorizar a arte da fotografia no ambiente artístico, a sobreposição combinada de diferentes elementos intensificou-se, desenvolvendo-se a técnica da fotomontagem. No início do século XX, Georges Braque e Pablo Picasso, pintores e escultores franceses, sentiram necessidade de questionar a representação pictórica tradicional e fundaram o movimento artístico cubista. Os dois pintores levantaram desde logo a questão da bidimensionalidade na pintura, e foi por volta de 1912 que começaram a sobrepor-lhe elementos. A colagem apareceu como uma novidade, como uma ousadia e como uma rutura em relação às técnicas do passado, ficando conhecida como papier collé . Entre 1912 e 1913, a experimentação desta nova técnica foi muito significativa e os trabalhos fluíram em grande número. Em Violin et Pipe (Le Quotidien) (1913) (Figura 3), de Braque, e em Pipe, verre, bouteille de rhum (1914) (Figura 4), de Picasso, podemos apreciar como, partindo de pedaços de papel de jornal que frequentemente se referiam a assuntos polémicos, os artistas ofereciam uma visão crítica e paródica da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo que desmontavam e organizavam formas, tornando mais abstratos e imperceptíveis objetos que, através da sobreposição, davam origem a pequenos relevos e tridimensionalidades.

Braque (1913), Violin and Pipe, consultado em: https://www.wikiart.org/en/georges-braque/violin-and-pipe-le-quotidien-1913.

Figura 3: Braque - Violin and Pipe (Le Quotidien) (1913) 

Picasso (1914), Pipe, Glass, Bottle of Rum, MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/36008?sov_referrer=artist&artist_id=0&page=2.

Figura 4: Picasso - Pipe, verre, bouteille de rhum (1914) 

No entanto, já em 1910 Mies tinha começado a utilizar esta nova forma de manifestação artística do século XX. Contemporâneo de Picasso, Mies estava já nessa altura completamente consciente do potencial desta poderosa ferramenta criativa.

Por outro lado, a seguir à Primeira Guerra Mundial, tanto Mies Van der Rohe como Walter Gropius ambicionaram unir e criar sinergias entre as disciplinas da Arquitetura e da Arte. Com esse objetivo, Walter Gropius fundou, em 1918 - juntamente com outros arquitetos, como Bruno Taut, César Klein e Adolf Behne -, o movimento Arbeitsrat für Kunst , e organizou, em abril de 1919, a exposição Ausstellung für unbekannte Architekten . A intenção desta mostra, que decorria lado a lado com uma exposição de artistas visuais, era a de se constituir como um fórum de discussão sobre os conceitos predominantes na arquitetura e de fundamentar uma nova perspetiva. Este grupo trabalhou com uma grande proximidade à Deutscher Werkbund (Associação Alemã de Artesãos), fundada em 1907 - a que pertencia o arquiteto Peter Behrens, com quem trabalhou Mies Van der Rohe entre 1908 e 1912. Mies concorreu para integrar essa exposição com o seu projeto, não construído, da casa Kröller-Müller (Holanda, 1912). Walter Gropius rejeitou o projeto, afirmando: “não o podemos mostrar; estamos à procura de algo completamente diferente” . Esta rejeição provocou em Mies a necessidade de criar relações com artistas avant-garde de Arte e Arquitetura, de modo a integrar-se nestes novos princípios modernos. Em 1925, aderiu ao grupo Deutscher Werkbund e, durante o período de 1926 a 1932, assumiu a função de vice-presidente. No primeiro ano a desempenhar o cargo, foi diretor artístico da exposição Die Wohnung , que incluía a colónia moderna Weissenhofsiedlung . O convívio com esses artistas terá sido muito gratificante, e esta relação rapidamente terá começado a ter expressão no seu trabalho.

Neste mesmo período, Mies começou a ter relações próximas com artistas. Conheceu Paul Klee e Wassily Kandinsky, que já se conheciam . Desde que Mies teve contacto com estes artistas, adquiriu bastante apreço pela arte, inspirando-se nas obras destes artistas e nos diferentes movimentos e grupos artísticos, como por exemplo o movimento DADA. George Braque, Pablo Picasso e Kurt Schwitters, juntamente com Paul Klee e Wassily Kandinsky, foram alguns dos artistas que mais influenciaram e inspiraram a produção de colagens de Mies a partir de então.

Mies van der Rohe tinha uma grande consideração pelo pintor Paul Klee (Figura 5). O estudante do IIT, Paul Pippin, assim recordou uma visita ao apartamento de Mies: “Chegámos a um quarto com uma pintura de Klee e Mies disse: «Comprei-o porque qualquer pessoa corajosa o suficiente para chamá-lo de pintura merece tê-la comprado»” . Este, no final dos anos 30, comentou com George Danforth, intitulando-o de «pintor visionário» e acrescentando que, com Braque e Picasso, este era “possivelmente (um dos) três maiores pintores do momento” .

MVDR (1939) Mies admiring Klee. Consultado em: https://mostlymies.tumblr.com/post/52365891234.

Figura 5: Mies observando um quadro de Klee - Relapse of a Converted Woman (1939)  

Mies, para além de ser um grande apreciador de arte, era colecionador (Figuras 6 e 7). Por volta da mesma época, em que começou a utilizar a colagem de pinturas nas suas representações, começou a sua coleção de arte (1937). Durante cerca de vinte anos colecionou mais de quarenta pinturas - vinte e dois trabalhos de Klee - dos quais identificados Island (1932), Quarrel Duet (1938), Soulful Expression (1938), Relapse of a Converted Woman (1939) (Figuras 10, 11, 12, 13) -, quatorze colagens de Schwitters - das quais identificadas Mz "er." (1922), The A book (1942), Cottage (1946), E Rates (1946), Two Yellow Spots (1947) (Figuras 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22) - e também algumas colagens de Braque, bem como obras de Kandinsky - como por exemplo Winter II (1911) (Figura 14) - e de Picasso - Femme Debout (1930) (Figura 8 e 9). Mies estava interessado nas características formais das obras criadas por artistas contemporâneos. Esse era, sem dúvida, um aspeto fundamental da sua coleção de arte e da produção das suas colagens. A sua coleção de pintura e escultura estava relacionada com o seu trabalho arquitetónico.

Berliner Bildbericht

Hermann Lange

Fotografias: Figura 6: Ludwig Mies van der Rohe, colecionador de obras de arte. Lange House reception hall, 1927-30 

Berliner Bildbericht

Hermann Lange

Fotografias: Figura 7: Ludwig Mies van der Rohe, colecionador de obras de arte. Lange House woman’s room 

Algumas fotografias de Frank Scherschel de 1956 (Figura 8 e 9, 21 e 22) revelam Mies no seu apartamento em Chicago, onde se estabeleceu entre 1938 e 1969 , e permitem verificar que aí se encontravam várias obras de arte da sua coleção, entre as quais uma escultura de Pablo Picasso - Femme Debout (1930) - e um quadro de Paul Klee - Quarrel Duet (1938).

Frank Scherschel, Time & Life Pictures/ Getty Images.

Fotografias: Figura 8: Mies no seu apartamento 200 East Pearson Street em Chicago, Illinois (1956) com as obras de Paul Klee - quadro Quarrel Duet (1938) e Pablo Picasso - escultura Femme Debout (1930) 

Klee

Fotografias: Figura 9: Mies no seu apartamento 200 East Pearson Street em Chicago, Illinois (1956) com as obras de Paul Klee - quadro Quarrel Duet (1938) e Pablo Picasso - escultura Femme Debout (1930) 

Frank Scherschel, Time & Life Pictures/ Getty Images.

Figura 10: Quatro quadros de Klee pertencentes à coleção de Mies - Island (1932) 

Klee (1938), Quarrel Duet, consultado em: https://www.facebook.com/MiesvanderRohe.Architecture/photos/paul-klee-quarrel-duet-1938/464298445378/.

Figura 11: Quatro quadros de Klee pertencentes à coleção de Mies - Quarrel Duet (1938) 

Klee (1938), Soulful Expression, consultado em: https://thelyingtruthofarchitecture.wordpress.com/2011/02/01/empty-vessels-for-soulful-expression-fine-art-and-mies-van-der-rohe/

Figura 12: Quatro quadros de Klee pertencentes à coleção de Mies - Soulful Expression (1938) 

Klee (1939), Relapse of a Converted Woman, consultado em: https://thelyingtruthofarchitecture.wordpress.com/2011/02/01/empty-vessels-for-soulful-expression-fine-art-and-mies-van-der-rohe/.

Figura 13: Quatro quadros de Klee pertencentes à coleção de Mies - Relapse of a Converted Woman (1939) 

Kandinsky (1911), Winter II, consultado em: https://thelyingtruthofarchitecture.wordpress.com/2011/02/01/empty-vessels-for-soulful-expression-fine-art-and-mies-van-der-rohe/.

Figura 14: Quadro de Kandinsky que pertencia à coleção de obras de Mies - Winter II (1911) 

Contudo, Mies tinha uma especial admiração pelos trabalhos de Kurt Schwitters (Figura 21 e 22). Certo dia, em resposta à pergunta de Paul Schweikher, sobre o que mais gostaria na vida, terá respondido: “Oh, isso é fácil: os meus Schwitters, os meus martinis e os meus charutos”. A coleção de catorze colagens de Schwitters adquiridas por Mies durante a segunda metade da década de 1950 (Figura 15, 17 a 20), terão constituído a fonte de inspiração para a montagem de planos e texturas na produção das suas colagens (Figura 16).

Scherschel (1947), Zwei Gelbe Flecken (Two Yellow Spots), consultado em: http://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/2009/impressionist-and-modern-art-day-sale-l09607/lot.183.html.

Figura 15: Schwitters - Zwei Gelbe Flecken (Two Yellow Spots) (1947) uma das obras da coleção de Mies 

Rohe (1910), Theater project (Combined elevation and section), MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/107299.

Figura 16: Mies - Colagem Theater project (1947) 

Schwitters Mz"er.", consultado em: https://www.christies.com/lotfinder/Lot/kurt-schwitters-1887-1948-mz-er-4052926-details.aspx.

Figura 17: Quatro colagens de Schwitters que pertenciam à coleção de arte de Mies - Mz "er." (1922) 

Schwitters (1942), The A book, consultado em: https://www.flickr.com/photos/14622504@N08/2113124542/in/gallery-28710988@N04-72157624232281565/.

Figuras 18: Quatro colagens de Schwitters que pertenciam à coleção de arte de Mies - The A book (1942) 

Schwitters (1946), Cottage, consultado em: https://www.artsy.net/artwork/kurt-schwitters-cottage.

Figura 19: Quatro colagens de Schwitters que pertenciam à coleção de arte de Mies - Cottage (1946) 

Schwitters (1946), E Rates, consultado em: https://art.famsf.org/kurt-schwitters/e-rates-200718.

Figura 20: Quatro colagens de Schwitters que pertenciam à coleção de arte de Mies - E Rates (1946) 

Frank Scherschel, Time & Life Pictures/ Getty Images.

Fotografia: Figura 21: Mies no seu apartamento em Chicago (1956) com as obras de Schwitters, das quais identificadas - Mz "er." (1922) - The A book (1942) - Cottage (1946) - E Rates (1946) 

Werner Blaser.

Fotografia: Figura 22: Mies van der Rohe no seu apartamento em Chicago (1964) com as obras de Schwitters, das quais identificadas - Cottage (1946) 

Observando as colagens produzidas por Mies que integram quadros, percebemos que em alguns casos o quadro não é identificável de imediato, visto que apenas uma parte se encontra ilustrada. Ainda que Mies esteja a fazer uso de obras figurativas, recorta-as e gira-as, numa operação de transformação do figurativo em abstrato. Através deste artifício, Mies retarda o processo de reconhecimento da obra pelo observador, transformando a pintura num simples jogo entre manchas e formas de cor que desempenham um papel especial dentro do espaço arquitetónico.

Rohe (1938), House with Three Courts project (Interior perspective), MoMA consultado em: https://www.moma.org/collection/works/716.

Figura 23: Mies - Colagens Courts House (1938) 

Rohe (1938), Court House Project (Interior perspective), MoMA consultado em: https://www.moma.org/collection/works/724.

Figura 24: Mies - Colagens Courts House (1938) 

Duas colagens de 1938 (Figura 23 e 24) representam o projeto Courts House (1931-1938), que nunca chegou a ser construído. É neste projeto que Mies produz um modelo de habitação mais adequado à escala de um modelo urbano. Sustentando o plano da cobertura sobre uma estrutura de aço, à semelhança de obras anteriores, inaugura pátios de absoluta privacidade, desenhando entre paredes espaços totalmente voltados para o interior da habitação. É ainda singular a flexibilidade deste projeto, capaz de se adaptar à disposição, tamanho e orientação do local.

Nestas duas colagens encontramos, em cada uma, a representação de um plano colorido. Observando com atenção ambos os planos, percebemos que, apesar de diferentes, partilham uma mesma linguagem, representando, afinal, distintos recortes de uma única imagem maior. Trata-se do quadro Nature Morte (1926) de George Braque. Esta obra pertence a um estudo de Natureza Morta, desenvolvido pelo pintor entre 1928 e 1945. Os planos representados por Mies são formados por recortes e manipulações desta obra - um artifício de abstração, que afasta uma vez mais o observador da simbologia do quadro (Figura 25 e 26).

Elaboração dos autores.

Figura 25: Montagem a partir do quadro Nature Morte, George Braque (1926): quadro rodado no sentido contrário dos ponteiros do relógio e retirado um fragmento do canto superior direito 

Elaboração dos autores.

Figura 26: Montagem a partir do quadro Nature Morte, George Braque (1926): Quadrado rodado e retirado um fragmento do canto inferior direito 

Logo após o encerramento definitivo da Bauhaus em Berlim, em 1933, e antes da sua emigração para os EUA, em 1937, Mies enfrenta um período profissional difícil. Durante este período de cerca de cinco anos, apenas lhe são encomendados quatro projetos - uma fábrica para a indústria de seda, a casa de Ulrich Lange, um edifício de Administração e a Casa Hubbe, dos quais apenas dois foram construídos. Todavia, Mies centra-se na ideia de pátio. Na Casa Hubbe, por exemplo, justifica o pátio, dizendo: “Ampliei a área da sala de estar da casa em direção a sul, através de um pátio cercado por muros, obstruindo assim essa vista e, ao mesmo tempo, preservando a luz do sol. A jusante, por outro lado, a casa está completamente aberta, fluindo livremente em direção ao jardim. Ao fazê-lo, não só agi de acordo com as condições do sítio, como também consegui um bom contraste entre um tranquilo isolamento e uma extensão aberta”.

Mas o conceito formal de pátio surge na arquitetura de Mies ainda antes deste projeto não realizado. A ideia de Court House vem da Bauhaus, e Mies leva-a consigo para o IIT - Illinois Institute of Technology, onde o estuda com os seus alunos, utilizando sempre a técnica da colagem.

A definição formal de pátio para Mies pode ser analisada a partir de três fatores . O primeiro diz respeito ao facto de Mies tratar o pátio como uma extensão do espaço interior. O segundo, diz respeito às paredes à sua volta servirem para obstruir a vista. E, finalmente, o terceiro fator diz respeito à ideia de dois elementos contraditórios de “afastamento silencioso e extensão aberta”.

A propósito deste projeto teórico, Mies estuda intensamente a ideia de pátio como elemento de espaço exterior fundamental numa habitação. Durante este período realiza estudos sobre bairros com este tipo de habitação - estudos estes que se vêm a revelar fundamentais para obras posteriores, onde Mies concebe uma tipologia que congrega espaços interiores e exteriores de carácter igualmente basilar para a vivência do espaço privado, enfatizando ainda mais essa paridade quando bloqueia a vista de fora do terreno e abre com fachadas cortinas de vidro para o interior, transcrevendo uma forte relação entre os espaços interiores fechados e os exteriores voltados para o interior da habitação.

O estudo sobre o pátio justifica, afinal, as colagens. Nestas composições (Figura 23 e 24), Mies estava interessado em compreender visualmente os conceitos envolvidos na definição do pátio, utilizando fragmentos manipulados do quadro de George Braque - afastando o observador da simbologia da obra, tornando o quadro um simples materializador do espaço e intensificando a profundidade e a relação interior-exterior.

Rohe (1938), Row House Court project (Interior perspective), MoMA consultado em: https://www.moma.org/collection/works/725.

Figura 27: Mies - Colagem Row House (1931) 

Braque (1949), Nature Morte still life fruit abstract, consultado em: https://www.periodpaper.com/products/1949-photolithograph-georges-braque-nature-morte-still-life-fruit-abstract-gbl1-239353-gbl1-009.

Figura 28: Braque - Nature Morte (1926) 

Numa colagem (1931) (Figura 27) realizada a propósito do projeto de habitação Row House - uma tipologia de casa produzida por parte do estudo de Courts Houses (1931-1938), podemos observar, dentro de um espaço ortogonal, um par de colunas e dois planos centrais, que se destacam. O que se encontra atrás, mais alto e homogéneo, representa a textura e a cor da madeira. A partir das cores, texturas e formas do que se encontra à frente podemos deduzir que se trata, uma vez mais, de mais uma pintura, e ainda que se trata uma vez mais de um fragmento pertencente à obra de Braque, Nature Morte (1926) (Figura 28). Mies rodou a pintura e selecionou uma fração, alterou a sua escala, uma vez mais dificultando a ligação à obra original (Figura 29).

Elaboração dos autores.

Figura 29: Montagem a partir do quadro Nature Morte, George Braque (1926): Quadro rodado e retirado um fragmento do canto superior direito 

Numa outra colagem de 1938 (Figura 30) do projeto Row House (1931-1938), Mies apresenta uma outra perspetiva, esta vez integrando outras duas obras de arte.

Rohe (1938), Row House Court project (Interior perspective), MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/723.

Figura 30: Colagem Row House (1931) 

Klee (1931) Rainy Day, Rynekisztuka, consulta em: https://rynekisztuka.pl/2014/09/11/10-inspirujacych-deszczowych-pejzazy-w-sztuce/paul-klee-rainy-day-1931-308763/.

Figura 31: Rainy Day (1931) 

Mies apresenta-nos não só uma escultura, Standing Woman, produzida em 1910 pelo escultor e grafista alemão Wilhelm Lehmbruck, mas também um painel. Ao concentrarmos a nossa atenção neste painel, podemos perceber que se trata uma vez mais de uma obra do seu grande amigo Paul Klee. Trata-se, neste caso, de Rainy Day (Figura 31), que data do mesmo ano do projeto, 1931.

A partir de linhas e cores azuladas, Klee representa de uma forma abstrata: a chuva como refere o nome da obra. Mas a pintura pode também ser entendida como um estado de sonho, uma representação abstrata do que pode ser, ou não, real.

Elaboração dos autores.

Figura 32: Montagem a partir do quadro Rainy day, Paul Klee (1931): Quadro rodado -90º e retirado um fragmento do lado superior 

Por que razão terá Mies inserido um fragmento da pintura de Klee, sem as suas fascinantes tonalidades de cor azulada?

Mies roda a pintura de Klee noventa graus no sentido dos ponteiros do relógio, selecionando e colocando em perspetiva e a preto e branco apenas uma fração (Figura 32). Através destas operações, Mies mais uma vez afasta a possibilidade de identificação da obra. A estratégia de retirar a cor do fragmento enfatiza ainda mais o distanciamento, dissipando a simbologia das cores que Klee atribuíra para evidenciar a representação da chuva ao mesmo tempo que ganha menos destaque na colagem. Mies abstratiza a obra de arte, inserindo-a nas linhas do desenho em perspectiva, como se de um simples painel se tratasse.

Rohe (1939), Resor House project, Jackson Hole, Wyoming (Interior perspective of living room and south glass wall), MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/749.

Figura 33: Colagem Resor House (1939), Mies van der Rohe (George Danforth e William Priestly) 

Klee (1928), Bunte Mahlzeit consultado em: http://maryfagan.net/Klee.html.

Figura 34: Paul Klee - Bunte Mahlzeit (Colorful Meal), 1928.  

A partir da primeira proposta de projeto nos Estados Unidos da América - The Resor House, 1939, um projeto de uma linguagem arquitetónica clara - um amplo retângulo, estruturado a aço e paredes de pedra, interrompidas por planos envidraçados - que, não tendo sido construído, deu origem a uma segunda proposta para o mesmo local, ainda que de menor escala, apresentada em 1943 - Mies elabora, em 1939, uma das suas colagens menos pictóricas.

Em 1937, Mies faz a sua primeira viagem aos Estados Unidos da América, a convite de Helen Lansdowne Resor, curadora do MoMA e vice-presidente e diretora da J. Walter Thompson Company de Nova Iorque - à data a maior agência de publicidade do mundo, chefiada pelo seu marido Stanley Resor, ambos apreciadores de arte e arquitetura modernas. O casal havia encomendado ao arquiteto americano Philip Goodwin, no início da década de 30, uma cabana para hóspedes, seguida de uma grande casa de férias, pensadas para o um terreno junto às margens do rio Snake - Snake River Ranch, Wyoming, perto de Jackson Hole. Como consequência de algumas diferenças entre o casal e Goodwin, o projeto acabou por ficar suspenso em 1936, já havendo sido construída uma ala de serviço. Helen Resor, no início de 1937, enquanto membro do conselho de administração do MoMA (1938-1940) , manifesta a a Alfred H. Barr Jr. - primeiro e à época diretor do MoMA - a sua vontade de que fosse Mies a repensar o projeto começado por Goodwin. Barr intercede e coloca-os em contacto. O primeiro encontro entre Mies e o casal Resor dá-se a julho de 1937, no Hotel Meurice, Paris, do qual Helen sai com uma grande estima e respeito por Mies, como relata na carta que escreve a Barr em julho de 1937.

Num terreno que olha para uma paisagem montanhosa, como a de Grand Teton Mountains, são inspiradoras a variação da luz e os desníveis.

A solução arquitetónica que Mies apresenta, entre 1937-38, espelha um entendimento dinâmico de relação entre a arquitetura e a sua envolvente.

Em contraste com esta paisagem irregular, manifesta uma procura pela depuração do interior, explícita na colagem realizada em conjunto com dois ex-alunos da Bauhaus, John Barney Rodgers e William Priestley, representativa de uma vista da sala principal para a paisagem (Figura 23).

Ao contrário do que se verifica na maioria das colagens de Mies, a colagem da The Resor House apresenta elementos que, sendo bastante representativos, detentores de conceitos espaciais e visuais, produzem planos bastante característicos, quando sobrepostos. Todavia, é nesta sobreposição que Mies encontra a dinâmica pretendida para o espaço. O painel de madeira e a obra de Paul Klee - Bunte Mahlzeit (Colourful Meal), 1928 - ambos a cores, representam os dois planos interiores que, juntamente com a representação de pilares e da caixilharia das janelas, se deslocam em relação àquele que é o plano exterior, uma fotografia a preto e branco do local, da vista sobre a paisagem que se alcançava da sala. Estas várias camadas criam nuances que tornam a colagem um elemento tridimensional.

A cor, que Mies utiliza como elemento gráfico de bastante relevância, separa e revela o contraste entre o interior e o exterior. Consequentemente, verificamos que também a pintura de Klee levanta esta questão, uma vez que o autor afirma que a «cor tomou posse de mim; não corro mais atrás dela, (porque) eu sei que ela me acompanha para sempre… Eu e a cor somos um. Eu sou um pintor» .

Bunte Mahlzeit (Figura 34), é uma pintura a óleo que, sendo contemporânea do projeto, permanecia na coleção pessoal de Helen Resor. À semelhança daquilo que Klee criava repetidamente desde 1919, nesta obra o foco criativo está presente na utilização de cores escuras como fundo, que promovem e contrastam com os elementos coloridos sobrepostos.

Rohe (1941), Museum for a Small City project (Interior perspective), MoMA, consultado em: https://architizer.com/blog/inspiration/industry/mies-van-der-rohe-collages/.

Figura 35: Mies - Colagem Museum for a small city (1941) 

Kandinsky (1913) Painting with a Green Center Art Institute of Chicago, consultado em: https://www.wikiart.org/en/wassily-kandinsky/painting-with-green-center-1913.

Figura 36: Kandinsky - Painting with a green center (1913) 

Esta colagem (Figura 35), também do Museum for a small city, pressupõe um conjunto de obras de arte num espaço reticulado, exposto, aberto e organizado pelas famosas colunas. Nesta colagem feita em 1941, encontramos o quadro, Painting with a green center (1913) (Figura 36), do Kandinsky a levitar e a escultura Standing Woman 1910 de Wilhelm Lehmbruck pousada.

O quadro de 1913, revela o abstracionismo de Kandinsky, que começa a nascer em 1911. Para Kandinsky, as cores eram mais que tonalidades: eram vivências e sentimentos. Kandinsky sentia as cores até mesmo através da música. As obras de arte abstracionistas aparentam uma elaboração sem critério, mas, contudo, os elementos eram pensados e estudados com detalhe. Essa sobreposição de elementos cria uma composição artística. O projeto Museum for a small city revela um conceito similar. Todas as colagens e textos revelam que o museu era um espaço aberto onde os quadros são elementos estudados e organizados: “No Museu para a cidade pequena o espaço é exposto, contrastado com o mundo por medir. As paredes, também, estão removidas dentro do perímetro, deixando simplesmente uma quadrícula linear e umas poucas colunas”.

Como já referido, Mies tinha uma forte relação de amizade e admiração por Kandinsky, vinda também de terem trabalhado juntos na Bauhaus. Quando Mies aplica o quadro de Kandinsky como um objeto central, enaltece a qualidade do trabalho de Kandinsky para uma exposição. Revela isso quando escreve: “O Museu para a Cidade Pequena não deve emular as suas contrapartes metropolitanas. O valor de tal museu depende da qualidade das suas obras de arte e da forma como são exibidas.”.

Rohe (1941), Museum for a Small City project (Interior perspective), MoMA, consultado em: https://www.pinterest.pt/pin/35465915797308130/.

Figura 37: Mies - Colagem Museum for a small city (1941) 

Kandinsky (1913) Painting with a White Form Kunst Museum, consultado em: https://www.kunstmuseum.nl/nl/tentoonstellingen/kandinsky-en-der-blaue-reiter.

Figura 38: Kandinsky - Painting with a white form (1913) 

Não se trata do único ensaio feito com um quadro de Kandinsky. Noutra colagem (Figura 37), Mies utiliza um outro quadro que faz uso da mesma linguagem, Painting with a white form, de 1913 (Figura 38), no mesmo projeto e exatamente a partir do mesmo ponto perspético, com a mesma escultura, dando com isso a entender que houve um estudo apurado que resultou na escolha dos quadros e na sua forma de apresentação.

Rohe (1941-43), Museum for a Small City project (Interior perspective), MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/756.

Figura 39: Mies - Colagem Museum for a small city (1941 a 1943) 

Braque (1949), Nature Morte still life fruit abstract, consultado em: https://www.periodpaper.com/products/1949-photolithograph-georges-braque-nature-morte-still-life-fruit-abstract-gbl1-239353-gbl1-009.

Figura 40: Braque - Nature Morte do George (1926) 

Numa outra colagem (Figura 39) do Museum for a small city existe um fragmento de um quadro numa posição descentrada. É facilmente percetível que se trata novamente do quadro Nature Morte (1926) do George Braque (Figura 40 e 41).

Elaboração dos autores.

Figura 41: Delineação dos fragmentos do quadro Nature Morte (1926) de Braque utilizados nas duas colagens do projeto, Courts House (1938), na colagem do projeto Row House (1931) e na do projeto Museum for a Small City (1941 a 1943) 

Do lado esquerdo encontra-se a escultura Torso, 1934 de Aristide Maillol e à direita, pousada num pedestal, está a escultura L’Action enchaînée, 1908 de Aristide Maillol. Observando com atenção, percebemos que estes três elementos estão a ser expostos e que o fragmento do quadro está pendente numa coluna (Figura 42). Por que é que se trata de um fragmento e porque é que é exposto numa coluna?

Figura 42: Montagem a partir do quadro Nature Morte, George Braque (1926): Quadrado rodado no sentido contrário dos ponteiros do relógio e retirado um fragmento do canto superior esquerda 

Ao invés das outras colagens, em que o quadro é uma peça simbólica central, nesta colagem o quadro apresenta-se num fragmento descentralizado porque a ambição não é a leitura do quadro como peça simbólica. Esta colagem manifesta o estudo da comunhão entre a forma de expor a pintura e a escultura num espaço arquitetónico. Neste projeto, Mies fez um estudo de várias formas de expor grandes obras de arte. Propõe colocar a obras numa coluna, deixando o espaço sem paredes, havendo uma intensa comunicação com o pátio no plano posterior. Escreve: “O espaço inteiro do edifício estaria aberto para grupos maiores, encorajando um uso mais representativo do museu como o habitual de hoje, e criando uma nova representação da vida cívica e cultural da comunidade inteira” .

Mies escolheu os quadros que aplicou nas colagens do Museum for a small city baseando-se não só na sua admiração pelas próprias obras, mas também na admiração pelos seus artistas, considerando estas obras e os seus respetivos artistas como os melhores da sua época. Projetou as obras como planos organizados num espaço expositivo, refletindo assim o valor do próprio museu e o peso igualitário entre a sua arquitetura e as obras de arte.

Rohe (1942-43), Museum for a Small City project (Interior perspective), MoMA consultado em: https://www.moma.org/collection/works/777.

Figura 43: Mies - Museum for a small city (1941/ 43) 

Mas centremos agora a nossa atenção numa colagem (Figura 43), realizada entre 1941 e 1943. Esta colagem representa um projeto realizado entre 1938 e 1943, jamais construído, o Museum for a small city. Sobre um desenho, Mies aplica, através do método da colagem, imagens de três obras de arte: duas esculturas e uma pintura. A escultura à esquerda corresponde a Study for hommage à Cézanne, realizada entre 1912 e 1925 e a escultura à direita corresponde a Action in chains, realizada em 1906, ambas realizadas pelo escultor Aristide Maillol . A pintura, por sua vez, corresponde à obra que se pode facilmente identificar: Guernica, realizada em 1937 por Pablo Picasso (Figura 44).

Picasso (1937) Guernica, Malaga, Spain. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia consultado em: https://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/guernica.

Figura 44: Pablo Picasso - Guernica (1937) 

Mas esta não é a única colagem de Mies onde podemos encontrar esta obra. Existem mais duas colagens onde a podemos também encontrar.

Figura 45: Mies - Colagem Museum for a small city (1941/ 43) 

Figura 46: Mies - Colagem Neue Nationalgalerie (1962/ 65) 

Uma das colagens igualmente representa o Museum for a small city (Figura 45), onde está presente a escultura Study for hommage à Cézanne, realizada entre 1912 e 1925 por Aristide Maillol, à esquerda, e La Nuit 1909, do mesmo autor, à direita. A outra colagem diz respeito à Neue Nationalgalerie em Berlim (Figura 46) onde se encontra The Washerwoman 1917/18, de Auguste Renoir, à esquerda, e Torso 1913-1914, de Wilhelm Lehmbruck, à direita. A sua utilização em mais do que uma colagem revela a ligação de Mies com o quadro.

Guernica, produzido em 1937, representa o furor da guerra, mais precisamente, da guerra civil espanhola. Na mesma época, a Bauhaus foi fechada pelos nazis, 1933, não por ser uma ameaça, mas porque as suas ideias vanguardistas eram consideradas diferentes. Mies, o seu último diretor, mudou-se para o EUA no mesmo ano de produção do Guernica.

Mas porquê este quadro? E porquê a sua aplicação completa?

Ao aplicar a obra Guernica na sua totalidade, destaca-a. Evidencia o acontecimento presente. Concentra o observador numa obra importante e significativa para a história da arte. Associa à sua colagem uma obra que representa e sintetiza os acontecimentos mundiais da altura. A segunda guerra mundial, o fecho da Bauhaus, a sua fuga da Alemanha, tudo o que decorria entre os anos 30/40. Mies expressa e representa a guerra, evocando “um manifesto contra a violência”, utilizando a pintura de Pablo Picasso.

O projeto do Museum for a Small City resume uma renovação na conceção da função de um museu e o seu papel na sociedade. O seu exterior em vidro cria a ilusão de um museu sem paredes e os seus painéis, assimetricamente dispostos, não tão elevados como o pé direito do edifício, não delimitam na totalidade o interior, criam somente fundos limitados para a exposição de obras de arte. Obras com dimensões de murais ou painéis, como é o caso de Guernica, apoiar-se-iam sozinhas no espaço, ajudando na sua marcação e criando uma atmosfera onde público se poderia familiarizar e interagir com as obras expostas, de forma a fundir-se com a arquitetura. Estas ideias representam uma mudança no conceito típico de museu que tinha sido desenvolvido entre o século XIX e o início do século XX. Deste modo, o museu tornar-se-ia uma instituição que permitiria diversas funções para o público.

Mies, ao projetar o Museum for a Small City, queria desenhar um espaço onde existisse a possibilidade de expor este quadro dada a dificuldade noutros locais: “A work such as Picasso's Guernica has been difficult to place in the usual museum gallery. Here it can be shown to greatest advantage and become an element in space against a changing background”.

Guernica tem 3,49 m de altura por 7,765 m de comprimento e era suposto ser tomado como um elemento do espaço, como um dos painéis mencionados que integrariam o interior do Museum for a Small City e não possuir as mesmas dimensões do pé direito do edifício. O mesmo acontece quando o quadro é estudado e aplicado numa colagem do Neue Nationalgalerie (Figura 47). Devido à altura dos pisos corresponder a 4,00 metros para a sala de exposições permanente e 8,40 metros para a sala de exposições temporária, ambos os projetos apresentam dimensões para o mural ser exposto.

Assim, Guernica estabelece uma medida base nos projetos e apresenta uma escala nas colagens, mas, sobretudo, revoluciona a forma de disposição das obras de arte e da fusão entre a arte e o espaço arquitetónico nos projetos de Mies.

Rohe (1965), New National Gallery, Berlin, Germany (Sections), MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/162646.

Figura 47: Cortes do Projeto Neue Nationalgalerie, 15 de fevereiro de 1965 

Rohe (1962/ 65), Neue Nationalgalerie, MoMA, consultado em: https://www.archplus.net/home/news/7,1-13902,13,0.html?referer=333.

Figura 48: Mies - Colagem Neue Nationalgalerie (1962/ 65) 

Braque (1911/12), Man with a Guitar, MoMA, consultado em: https://www.moma.org/collection/works/79048.

Figura 49: Braque - Man with a guitar (1911/12) 

Na colagem do Neue Nationalgalerie (Figura 48), 1962 a 1965, para além de Guernica, estão presentes mais dois fragmentos. Estes fragmentos, ao contrário de Guernica, para além de não serem apresentados na sua totalidade, encontram-se discretamente sobrepostos sobre um painel de madeira, assemelhando-se à sua cor. Os fragmentos são bastante semelhantes, pois trata-se de duas frações provenientes do mesmo quadro, Man with a Guitar de Georges Braque (Figura 49).

Braque começou esta obra em 1911, num ponto alto de desenvolvimento do estilo que se acabou por chamar de Cubismo analítico. Mais uma vez juntamente com Picasso, Braque desenvolveu uma nova maneira de representar a forma e o espaço, desafiando o rigor e a perceção, articulando formas e tornando o espaço e seus elementos menos concretos, criando assim abstração e ilusão na representação.

Pelo nome da obra é quase decifrável o assunto tratado nesta pintura, Man with a Guitar, a figura foi dividida em fragmentos individuais (Figura 50), dispersando-se no espaço. Em tons de castanho, verde e cinza, as formas parecem mudar e penetrar umas nas outras, oscilando entre cheios e vazios. No entanto, não é uma imagem abstrata. Braque, de maneira a não tornar a pintura completamente abstrata, inclui vários detalhes identificáveis, como o perfil da figura no topo, um ângulo agudo a representar o braço, um orifício que representa a guitarra…

Elaboração dos autores.

Figura 50: Montagem do quadro de Braque, Man with a Guitar (1911/12) presentes na colagem de Mies, Neue Nationalgalerie (1962/ 65) 

Assim como Braque coloca certos detalhes de modo a que seja possível ser identificado o Man with a Guitar, também pode ser associada a mesma ideia à colagem do Neue Nationalgalerie. Mies expõe somente dois fragmentos da pintura de Braque para que o observador mais atento consiga identificar a obra de um dos seus três pintores prediletos. Também é interessante referir que a partir desta colagem onde Mies representa a Neue Nationalgalerie, uma galeria de arte moderna, escolhe expor duas obras que remetem para dois artistas modernos: Picasso e Braque, fundadores e pioneiros na técnica da colagem.

Figura 51: Mies - Colagem Neue Nationalgalerie (1963) 

Esta colagem de 1963 é do último projeto de Mies, a Neue Nationalgalerie (Figura 51). Foi o seu único projeto, depois da segunda guerra Mundial, na Alemanha. Corresponde à sua última obra.

O Neue Nationalgalerie foi projetado em 1962, e foi construído entre 1965 e 1968. Sincronicamente, o muro de Berlim foi construído no dia 13 agosto de 1961, dividindo a Alemanha em duas partes. O Neue Nationalgalerie encontra-se junto a este muro, símbolo da fragmentação de um país.

A beleza deste edifício transcreve-se numa grande entrada, de plano livre confinada numa caixa de vidro e por uma laje apoiada em 8 pilares. No piso de baixo, numa cave com um pátio, em comunicação por uma fachada de vidro, é exposta a arte permanente.

Nesta colagem, Mies expõe duas esculturas e um quadro, La Riviere (1938) de Aristide Maillol no pátio, novamente Standing Woman (1910) de Wilhelm Lehmbruck e o quadro de Kandinsky, Heavy circles (1927) (Figura 52) com a vista do pátio no plano posterior. Parece estar levitando ou pousado no chão, ao invés de estar exposto numa parede. Pode indicar a ideia de que a arte exposta é um objeto secundário, ao contrário do Museum for a small city.

Kandinsky (1927) Heavy Circles, Norton Simon Museum, consultado em: https://www.nortonsimon.org/art/detail/P.1953.216/.

Figura 52: Kandinsky - Heavy circles (1927) 

Figura 53: Montagem a partir do quadro Heavy Circles, Wassily Kandinsky (1927): Quadro rodado no sentido contrário dos ponteiros do relógio 

Mas qual a razão da escolha deste quadro?

Heavy circles, é uma obra que exigiu a Kandinsky um vasto estudo a respeito da forma geométrica circular. Kandinsky explicou o potencial expressivo do círculo no seu trabalho numa carta que enviou ao historiador Will Grohmann em 1930: “É um elo com o cósmico e eu uso-o acima de tudo formalmente... O círculo é a síntese das maiores oposições. Ele combina o concêntrico com o ex-cêntrico em uma única forma e em equilíbrio. Das três formas primárias, aponta mais claramente para a quarta dimensão”. Kandinsky refere as três formas primárias - o quadrado, o círculo e o triângulo. No entanto nunca se compreendeu bem o que o pretendia dizer com a «quarta dimensão».

O uso do quadro, cujos constituintes individualmente representam o equilíbrio, mas sobrepostos impõem-se uns aos outros, não representa na sua totalidade uma crítica à divisão de um país, assim como a implantação do edifício; mas a procura de restaurar um equilíbrio numa cidade fragmentada.

Rohe (1960), Neue Nationalgalerie, MoMA, consultado em: https://www.atlasofplaces.com/architecture/neue-nationalgalerie/.

Figura 54: Mies - Colagem Neue Nationalgalerie (1960) 

Kandinsky (1927) Large Study, Meisterdrucke, consultado em: https://www.meisterdrucke.com/kunstdrucke/Wassily-Kandinsky/56283/Gro%C3%9Fe-Studie-1914.html.

Figura 55: Kandinsky - Large study (1914) 

Mies criou uma outra colagem no mesmo ponto perspético (Figura 54), mas neste caso, aplicou a escultura The Kneeling One 1911, de Wilhelm Lehmbruck, e o quadro Large study, de Kandinsky (1914) (Figura 55). Como nas colagens do Museum for a small city, neste caso também é revelado um estudo feito a partir da exposição dos quadros. Neste enquadramento, por sua vez, o quadro encontra-se descentrado, parcialmente escondido e cortado (Figura 56). Conjuntamente, as obras de Arte estão a preto-e-branco, camuflando-se no desenho do próprio espaço. Neste caso evidencia-se que as obras de arte são um objeto secundário, não desempenhando um papel principal.

Elaboração dos autores.

Figura 56: Montagem a partir do quadro Large study, Kandinsky (1914): Quadro fragmentado e rodado no sentido dos ponteiros do relógio 

As autoridades de Berlim Ocidental fizeram grandes esforços para reconstituir as coleções de arte que ficaram entregues à Grande Autoridade de Berlim nos anos imediatos à guerra. Procederam com uma ideia de criação de uma galeria do século XX e o recolhimento gradual da coleção de arte do século XIX que foi encontrada na Alemanha Ocidental. Assim, Mies ficou encarregue em 1962 de desenhar a galeria que viria a abrigar as distintas coleções. O facto do museu ser edificado junto ao muro mostra uma tentativa de reintegração da valorização da arte nos novos limites da malha urbana num período pós-guerra, cuja divisão da cidade marcava a separação de uma grande diferença de ideologias relativamente à arte e ao seu papel na sociedade: “A história da Neue Nationalgalerie está inextricavelmente ligada à divisão política da Alemanha e da cidade de Berlim, que resultou como consequência da Segunda Guerra Mundial.” Assim, Mies aplica quadros de Kandinsky porque o museu foi construído com esse propósito, onde o próprio Kandinsky, e outros artistas idolatrados por Mies, têm um papel preponderante.

As treze colagens apresentadas neste artigo, técnica que Mies explorou entre 1910 e 1965 para a produção de perspetivas, destacam-se das restantes e são representativas do apreço que Mies detinha pelas obras de arte, particularmente, de alguns autores, com quem partilhava experiências e conhecimento. Esta exploração assenta e é impulsionada por um período de mudança na arquitetura mundial. Mies tira partido de quadros e esculturas para representar tridimensionalidade nas colagens dos seus projetos.

Esta ideia da aplicação de quadros e esculturas perdura até à sua última obra, revelando a sua ambição em relacionar a Arquitetura com a Pintura e a Escultura. Simultaneamente, tem como princípio primordial relacionar a época das várias obras com o projeto da colagem onde as insere, por estas encerrarem em si uma mensagem associada ao seu contexto histórico e, desta forma, atribuírem peso à arquitetura. A “arquitetura pertence, não ao tempo como nós o entendemos, mas à época, como sendo a sua essência e a única coisa que nós conseguimos realmente representar” .

Este peso é controlado por Mies pela utilização que promove dos quadros. Em algumas colagens, Mies aplica o quadro por inteiro, recorrendo de uma forma mais clara à sua simbologia, transportando-a para dentro da arquitetura, que será lida pela convivência com estas obras. Já noutras colagens, quando são justapostos apenas fragmentos do quadro, por vezes manipulados, o peso que estas obras de arte têm deixa de ser entendido de forma literal e é-lhes atribuído um caráter arquitetónico, que alimenta a colagem e lhe atribui diferentes tonalidades e características espaciais.

As colagens, como elemento de representação, são ferramentas de criação perspética e de materialização dos espaços. Permitem-nos sobrepor camadas de informação, sendo esta uma textura, uma tonalidade ou uma peça desenhada, que transportam características e, em conjunto, enriquecem a arquitetura que se pretende projetar. Nesta forma de representação, Mies é sublime, e o único arquiteto do século XX a utilizar a colagem recorrendo a obras de arte, com o propósito de enaltecer simbolicamente os seus projetos.

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Recebido: 14 de Setembro de 2020; Aceito: 18 de Janeiro de 2021

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