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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.12 no.1 Lisboa maio 2022  Epub 29-Mar-2022

https://doi.org/10.25757/invep.v12i1.310 

Artigos

Sala de aula ou redação do jornal? Uma experiência curricular cidadã

Classroom or newspaper office? A citizen curriculum experience

Aula o sala de prensa? Experiencia curricular de un ciudadano

Expérience en salle de classe ou en salle de rédaction ? Un curriculum citoyen

Ana Isabel Moreira1 
http://orcid.org/0000-0002-6757-8005

Pedro Duarte1 

i Escola Superior de Educação do Porto, Instituto Politécnico do Porto


Resumo

No século subsequente aos seminais trabalhos de Kilpatrick (1918) e Freinet (1976), mantêm-se fundamentais ações pedagógicas dialogantes com as conceções de ‘trabalho por projeto’ e ‘jornal escolar’, referenciais estruturantes para se equacionar uma real formação cidadã.

Decorrente dessa perspetiva, este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que assentou na seguinte questão: Que opiniões constroem os alunos do 2.º ciclo do Ensino Básico sobre a experiência de criarem um jornal escolar?. Uma experiência que envolveu duas turmas do 5.º ano e uma do 6.º ano, no ano letivo 2020/21, numa instituição escolar privada portuguesa.

Como principais resultados destacam-se, por um lado, o reconhecimento consensual do ‘ensino por projeto’ como uma prática relevante para a aprendizagem dos estudantes e, ainda, para o desenvolvimento de competências de interação social; e, por outro, a constatação justificada das potencialidades de tal opção curricular na promoção da autonomia e autodeterminação das crianças e jovens.

Palavras-chave: jornal escolar; trabalho por projeto; cidadania

Abstract

In the century following the seminal works of Kilpatrick (1918) and Freinet (1976), pedagogical actions in dialogue with the concepts of 'project work' and 'school newspaper' remain fundamental.

From this perspective, this paper presents the results of a research based on the following question: What opinions do 2nd cycle of basic education students have about the experience of creating a school newspaper? An experience that involved two classes of 5th grade and one of 6th grade, in the school year 2020/21, in a private Portuguese school.

As main results we highlight, on the one hand, the consensual recognition of 'project-based teaching' as a relevant practice for students' learning and, also, for the development of social interaction skills; and, on the other hand, the justified acknowledgment of the potential of such curricular option in the promotion of children and young people's autonomy and self-determination.

Keywords: school newspaper; project work; citizenship

Resumen

En el siglo siguiente a los trabajos seminales de Kilpatrick (1918) y Freinet (1976), las acciones pedagógicas que dialogan con los conceptos de ‘trabajo por proyectos’ y ‘periódico escolar’ siguen siendo fundamentales.

Desde esta perspectiva, este artículo presenta los resultados de una investigación basada en la siguiente pregunta: ¿Qué opiniones tienen los alumnos de 2º ciclo de enseñanza básica sobre la experiencia de crear un periódico escolar? Una experiencia que implicó a dos clases de 5º y una de 6º, en el curso escolar 2020/21, en un colegio privado portugués.

Como principales resultados destacamos, por un lado, el reconocimiento consensuado de la "enseñanza por proyectos" como una práctica relevante para el aprendizaje de los alumnos y, también, para el desarrollo de las competencias de interacción social; y, por otro lado, el reconocimiento justificado del potencial de dicha opción curricular en la promoción de la autonomía y autodeterminación de los niños y jóvenes.

Palabras clave: periódico escolar; proyecto de trabajo; ciudadanía.

Résumé

Dans le siècle qui suit les travaux précurseurs de Kilpatrick (1918) et Freinet (1976), les actions pédagogiques qui dialoguent avec les concepts de ‘travail sur projet’ et de ‘journal scolaire’ restent fondamentales.

Dans cette perspective, cet article présente les résultats d'une recherche basée sur la question suivante: quelles sont les opinions des élèves du 2e cycle de l'école primaire sur l'expérience de la création d'un journal scolaire ? Une expérience qui a concerné deux classes de 5e et une de 6e, au cours de l'année scolaire 2020/21, dans une école privée portugaise.

Comme principaux résultats, nous soulignons, d'une part, la reconnaissance consensuelle de "l'enseignement par projet" comme une pratique pertinente pour l'apprentissage des élèves et, également, pour le développement des compétences d'interaction sociale ; et, d'autre part, la reconnaissance justifiée du potentiel de cette option curriculaire dans la promotion de l'autonomie et de l'autodétermination des enfants et des jeunes.

Mots clés: journal scolaire; travail de projet; citoyenneté

Introdução

Na escola são várias as experiências pedagógico-curriculares que as crianças e os jovens podem vivenciar. Das tarefazinhas (Duarte, 2021) rotineiras e sem real propósito educativo aos trabalhos por projeto com princípio, meio e fim, diferentes opções emergem como passíveis de seleção, também de acordo com as finalidades que os agentes envolvidos querem conferir ao ato educativo.

Naturalmente, haverá escolhas que mais contribuem para a formação de cidadãos do presente, questionadores e críticos, enquanto outras mais favorecem a apreensão de procedimentos técnicos ou a memorização de informações.

Neste trabalho, propomo-nos a apresentar as perspetivas dos alunos sobre uma experiência de ‘ensino por projeto’ realizada ao longo do ano letivo 2020/21, com três turmas do 2.º ciclo do Ensino Básico. Numa instituição privada do distrito do Porto, cerca de 50 alunos dos 5.º e 6.º anos de escolaridade, nos três períodos de aulas, deram forma a um jornal escolar. Inicialmente, afixado na parede, depois em formato digital, o mesmo teve de se adaptar às mudanças ocorridas - ensino a distância - devido à pandemia declarada em março de 2020.

Nas próximas páginas, clarificamos o enquadramento conceptual que emoldurou a análise dos dados posteriormente explicitada, além de apontarmos as opções metodológicas consideradas. E, desde logo, citamos a pergunta que foi ponto de partida para a investigação concretizada: Que opiniões constroem os alunos do 2.º ciclo do Ensino Básico sobre a experiência de criarem um jornal escolar?.

Lá mais adiante, elencamos as constatações finais alcançadas com base na interpretação das informações recolhidas, assim como na sua interação com os contrutos teóricos mobilizados.

Cremos que, se não de outra forma, esta pesquisa poderá notar-se como um exemplo, no geral bem-sucedido, de um trabalho por projeto. Porque a escola é, de facto, o espaço/tempo privilegiado para tais experiências pedagógico-curriculares. Isto se assim o quisermos.

A centralidade das experiências pedagógico-curriculares: que (possíveis) sentidos?

É possível, hoje, assumirmos as experiências pedagógico-curriculares como um eixo estruturante para a reflexão sobre a educação, as suas finalidades intrínsecas, os seus modos de funcionamento ou a sua implicação na vida de cada um dos agentes (Duarte, 2021). A contemporaneidade tem evidenciado que para melhor se compreenderem os sistemas e práticas de ensino não basta uma análise centrada nas opções político-normativas ou, então, nas decisões de cariz mais ou menos burocrático de cada uma das instituições. De facto, é fundamental uma discussão séria sobre o currículo como vida experienciada (Aoki, 2005), isto é, o que realmente se vivencia nos distintos contextos escolares.

Em linha com este posicionamento conceptual, os debates sobre a educação tornaram-se profundamente mais complexos, reconhecendo-se a insuficiência de perspetivas decorrentes de uma abordagem meramente formal dos fenómenos educativos e, ainda, a inadequação de trabalhos nomotéticos (Amado, 2014). Por outras palavras, atualmente, e contrariando, por exemplo, correntes do pensamento curricular e/ou didático do início do século XX, constata-se que a realidade educativa é efetivamente intrincada (Morin, 2005), o que, desde logo, pressupõe um entendimento mais interativo da sua imprevisibilidade, dos seus distintos constituintes e daqueles que com ela dialogam. Tal postura, rigorosa e cientificamente enquadrada, tende a revelar posições que visam simplificar, fragmentar ou descontextualizar as dinâmicas e os agentes educativos (Kemmis & Edwards-Groves, 2018).

Na verdade, as realidades e os fenómenos escolares são, hoje, possíveis de serem debatidos de acordo com um olhar caleidoscópico sobre as experiências humanas que lhes estão subjacentes. Por conseguinte, parte da reflexão desenvolvida neste campo de estudo estabelece-se, acima de tudo, com o propósito de iluminar (Gimeno Sacristán, 2015) o concretizado em cada contexto e, de certa forma, contribuir para opções didático-curriculares mais conscientes e/ou sustentadas.

Dada a pluralidade de eixos de análise ou de referenciais conceptuais não é possível, num texto desta dimensão, considerar-se a totalidade das atuais tendências no domínio da deliberação pedagógico-curricular. Ainda assim, identificamos alguns posicionamentos que, não sendo universais, nos permitem reconhecer sentidos que, de algum modo, vão ganhando destaque neste âmbito: (i) as experiências educativas são, por definição, experiências sociais; (ii) a importância da dimensão pública dos fenómenos educativos; (iii) a centralidade das experiências pedagógico-curriculares para a formação democrática e integral de cada estudante; (iv) a oportunidade de se flexibilizarem estruturas de organização curricular e de deliberação pedagógica. Adiante, abordamos cada um de forma mais pormenorizada.

No que concerne ao reconhecimento da dimensão social dos fenómenos educativos, podemos assumir que «toda a experiência (escolar) estabelece-se como uma experiência eminentemente social» (Duarte, 2021, p. 75). Tal perspetiva afasta-se, por exemplo, das tendências internacionais criticadas por Biesta (2017; 2020), porquanto reduzem o ensino e a educação à aprendizagem. De acordo com o autor britânico, nota-se - também através de políticas educativas preocupadas, essencialmente, com resultados métricos - a centralidade da aprendizagem individual como o elemento primordial na escola. Essa particularidade, na linha de pensamento do investigador, faz sobressair a dimensão individual das experiências educativas, assim como, em parte, a responsabilidade, também individual, do sucesso e insucesso. O mesmo argumento, sob formatos vários, vai sendo igualmente apresentado por outros autores (e.g. Apple, 2019; Giroux, 2021; Torres Santomé, 2017), esclarecendo-se como a cultura escolar - à escala internacional - parece privilegiar experiências que, pelo menos de forma implícita, enaltecem lógicas associadas ao individualismo e à responsabilização isolada.

Contudo, parece-nos importante sublinhar a dimensão social, talvez comunitária, subjacente às dinâmicas educativas. A mesma pode ser compreendida quando se constata a sua dimensão pública, particularmente bem explicitada por Arendt (2019, p. 49), a propósito do pensamento de Cícero:

quem quer que se dedicasse ao «conhecimento e à ciência» acabaria por renunciar à sua «solidão e procurar um companheiro nos seus estudos, fosse para ensinar ou para aprender, para ouvir ou para falar».

Assim se assume que o conhecimento, e daí o próprio processo educativo, não devem ser entendidos como processos solitários, ou individualistas, antes como vivências de intersubjetividade, de interação com outros, com outras perspetivas, com experiências que permitem, a cada um dos agentes, formas de entendimento comuns, como a linguagem, a construção de referenciais partilhados, a cultura - cada vez mais híbrida -, entre outros (Kemmis & Edwards-Groves, 2018). Este ponto de vista relaciona-se, de forma muito próxima, com o segundo elemento que consideramos importante discutir: a dimensão pública da educação.

A esse propósito, o recente relatório da UNESCO (2021, p. 2, tradução própria) é extremamente transparente ao identificar a necessidade de «destacar a educação como um esforço público e um bem comum». Esta síntese esclarece, desde logo, a importância de não subscrevermos a ideia de um ensino submisso aos (potenciais) proveitos individuais, isto é, aos possíveis benefícios - culturais, simbólicos, económicos, etc. - que cada estudante pode obter através da escolarização ou de outros processos formativos.

Portanto, importa apartar aquela dimensão individual da educação que, à luz da análise de Bauman (2009), emergiu como resultado de um processo de colonização do privado em relação ao «espaço público, espremendo e caçando tudo que não pode ser inteiramente traduzido, sem resíduos, para o vocabulário das actividades e interesses privados» (p. 139).

Trazemos para a presente reflexão, uma outra vez, o pensamento de Arendt (2019), em particular quando a filósofa diferencia direitos privados e direitos públicos. Relativamente ao primeiro conceito, associa-os aos direitos individuais, entendidos - e preservados - como direitos de assuntos privados, aos quais podemos associar ideias como a proteção, a privacidade e a intimidade. Os direitos públicos, por sua vez, são vinculados à esfera pública, àquilo que ultrapassa os interesses privados e se implica no pensamento comum, na cidadania, na intervenção política. Serão, então, aqueles que ajudam os cidadãos a «tornarem[-se] aptos a usufruir da vida pública» (p. 373) ou, de uma outra forma, que concorrem para um «tipo de “felicidade” que os homens só podem experienciar no domínio público» (p. 372).

Contudo, não ignoramos as potenciais repercussões privadas associadas à educação. Efetivamente, há um conjunto variado de aspetos da esfera privada que são condicionados pelas distintas experiências pedagógico-curriculares, seja o modo como cada um gere o seu tempo pessoal ou a remuneração profissional que pode, ou não, estar dependente do percurso escolar.

Optamos antes por enfatizar a inadequação de reduzir a reflexão educativa aos interesses ou propósitos privados. Isto porque, desde logo, as experiências pedagógicas, como condição necessária para garantir o direito à educação, são um elemento estruturante para facilitar a consciencialização e apropriação dos restantes direitos. Por conseguinte, as experiências educativas evidenciam uma relação inevitável com a esfera pública, estabelecendo-se não só como eixos indispensáveis para a plena vivência do direito à educação, e, consequentemente, dos restantes direitos, mas também como elementos indispensáveis para a valorização da dignidade humana de cada pessoa, para a democraticidade das distintas sociedades (Giroux, 2018; Onuora-Oguno, 2019) e, ainda, para a edificação de uma cidadania mais plena e cosmopolita (Osler, 2011; Verma, 2017). Depois, há a relação entre os fenómenos educativos e os contextos sociais mais abrangentes. Não será sensato ignorar o profundo impacto das decisões políticas e das interações comunitárias em cada experiência formativa, uma vez que, de forma implícita, condicionam grande parte dos aspetos que as marcam, como a formação de professores, os currículos oficiais, as particularidades culturais, entre outros (Gimeno Sacristán, 2015; Torres Santomé, 2017). Mais ainda, destaca-se o significativo impacto que as experiências curriculares poderão ter na esfera pública. Se recuperarmos a ideia de Giroux (2021), percebemos que as distintas dinâmicas escolares contribuem - ou não - para imbuir a sociedade de um sentido de agência social, ou seja, de uma reflexão mais cuidada sobre a ideia de bem comum e o modo como é possível, política e coletivamente, promover a sua concretização.

Nas palavras de Nussbaum (2012), é preciso entender as experiências educacionais como «cruciais para a preservação de uma sociedade saudável» (p. 141, tradução própria).

As ideias acima avançadas são, pois, incompatíveis com a conceptualização da educação como um bem privado, surgindo, antes, como um bem público. De facto, as suas repercussões, princípios e finalidades não se circunscrevem às aprendizagens, individuais, de cada estudante, mas evidenciam-se em domínios mais amplos, como a comunidade, o país e, num olhar esperançoso, a totalidade do mundo. Na sequência desta afirmação fará sentido clarificar o terceiro ponto acima mencionado: a centralidade de uma formação democrática e integral.

Assinalamos, à partida, a visão de Bauman (2009), segundo a qual as organizações democráticas necessitam de «recuperar a coragem perdida e reassumir as obrigações da cidadania responsável» (p. 76). Tal entendimento, na perspetiva do autor, pressupõe uma educação que facilite, a cada estudante, a possibilidade de melhor conviver com os paradoxos, as incertezas e a diferença, e que promova olhares críticos e autocríticos que fortaleçam, em cada aprendente, o sentido de uma liberdade efetiva porquanto a indecisão é uma característica própria da sociedade contemporânea, da sociedade líquida.

Portanto, urge permitir à escola uma educação assente no desenvolvimento pleno e integral das crianças e jovens. Para isso, não será adequado privar os estudantes de saberes tidos como social ou economicamente menos relevantes (Nussbaum, 2012). É fundamental, antes, que as opções educativas se estabeleçam de acordo com um compromisso real com experiências pedagógico-curriculares «através das quais estudantes podem ser (tornar-se) sujeitos de seu próprio direito e não permanecer, apenas, como objetos de desejos ou direções de outros» (Biesta, 2017, p. 23, tradução própria). Nesta lógica, a escola emerge como um espaço que favorece a humanização dos seus agentes e, através dela, também se permite o reconhecimento da humanidade dos outros, como condição necessária, ainda que insuficiente, para a afirmação de uma cidadania efetiva e condicente com os propósitos democratizantes das organizações escolares (Duarte, 2021). Por outras palavras, a escola tem de ser um espaço de consciencialização e vivência democrática.

Explicitamos, nesta sequência de apontamentos teóricos, o último aspeto atrás elencado: a potencial flexibilidade das estruturas de organização curricular e de deliberação pedagógica. Entre outros autores, Torres Santomé (2017) explica que a cultura escolar contemporânea está marcada por lógicas de cristalização e fragmentação pedagógico-curricular. Conseguimos notar essas características quando, por exemplo, atentamos nos modos de organização curricular que, sistematicamente, privilegiam estruturas que mimetizam as divisões científicas provenientes do pensamento moderno. Ou quando detetamos a perpetuação de lógicas de replicação, mais ou menos acrítica, de opções didáticas, de modelos de pensamento estratégico, de estruturação do ambiente escolar. Se, uma vez mais, lembrarmos Morin (2005), percebemos que essas características decorrem de uma maior legitimação do paradigma simplificador que, pelo menos em parte, ignora - ou reduz de forma abusiva - a realidade do conhecimento e dos fenómenos (neste caso, educativos).

O descrito no parágrafo anterior acarreta o «risco de isolar o estudante do mundo em vez de apoiar o estudante no seu envolvimento com o mundo» (Biesta, 2017, p. 19, tradução própria). Num outro sentido, distintos autores (Duarte, 2021; Gimeno Sacristán & Pérez Gómez, 2008; Rosales López, 2009) têm privilegiado formas de conceptualizar e desenvolver as experiências educativas mais flexíveis, não olvidando o risco, a imprevisibilidade, a importância de se promoverem espaços de diálogo disciplinar. Esses enquadramentos, com efeito, legitimam outros modos de pensar e agir didaticamente, coincidentes com participações mais sistemáticas e intelectualmente implicadas dos estudantes. Neste âmbito, destacam-se distintas opções, como o trabalho de grupo, a tutoria entre iguais ou, ainda, o trabalho por projeto.

Trabalho por projeto: alguns apontamentos

Como identificamos na secção anterior, o trabalho por projeto está, inevitavelmente, relacionado com a educação para e em cidadania democrática. Tal posicionamento é, desde logo, manifestado pelo próprio Kilpatrick (1918, pp. 7-8, tradução própria), quando o autor indica:

Há anos que nós da América desejamos cada vez mais que a educação seja considerada como a própria vida e não como uma mera preparação para a vida futura. A conceção que temos diante de nós promete um passo definitivo para a consecução deste fim. (...) Nesta base, a educação tornou-se vida. E, se o ato com propósito assim o faz da própria vida da educação, será que poderíamos raciocinar com antecedência e esperar encontrar uma melhor preparação para a vida futura do que a prática de viver agora?

De facto, a Metodologia de Projeto, na nomenclatura daquele autor, funde-se na centralidade dos atos pedagógicos, vivenciados pelos estudantes, como atos com propósito - e, acrescentamos nós, com sentido e significado para quem os experiencia -, por isso estruturantes para a aprendizagem democrática. Ou seja, importa tomar em consideração o modo como esta opção pedagógico-curricular emerge como uma experiência assente na interação com o real, concorrendo para a autenticidade da aprendizagem (Laur, 2013).

Recordamos aqui que já numa conferência de 1921, Kilpatrick (1921) esclarecia que essa efetiva implicação com o real e o autêntico tornavam a sua sugestão pedagógica especialmente desafiante para docentes e alunos. Aliás, numa lógica de ensino por projetos, recentemente reconfigurada por Duarte (2021), o autor norte-americano sempre esclareceu que «ensinar por projetos é necessariamente, mais ou menos, uma aventura». Perante tal apontamento, ficamos, pois, com a certeza da complexidade subjacente a este tipo de experiências pedagógicas, porque se afastam de uma pedagogia mecânica, profundamente previsível ou pré-definida, e antes se constroem pela interação dialética entre a orientação docente, a agência dos estudantes e a vida.

A ideia original de ‘método por projeto’ ou ‘metodologia por projeto’ tem adquirido outras formulações que, em nosso entender, melhor refletem a pluralidade e versatilidade de dinâmicas que lhe poderão estar associadas, nomeadamente, a ideia de ‘aprendizagem por projetos’ (Laur, 2013; Pecore, 2015) ou, como mencionamos atrás, o ‘ensino por projetos’ (Duarte, 2021).

Pese embora esta variação vocabular pareça pouco significativa, na realidade, a mesma mostra como essas abordagens não podem reduzir-se a uma estrutura sequencial de ações ou fases especialmente bem delimitadas e pré-determinadas - que o conceito método ou metodologia induz. De outra forma, devem corporizar-se em experiências pedagógicas polimórficas, porque emergentes da interação contextual entre os distintos agentes, dificilmente coincidentes com modelos regulatórios e/ou rígidos. Com efeito, como esclarece Pecore (2015), os alicerces pedagógicos considerados podem ser ligeiramente distintos, privilegiando-se, no caso do ‘ensino por projetos’, uma perspetiva sócio-construtivista que assume a relevância da ação e orientação dos educadores.

A diversidade enunciada acima permite olhar para os projetos desenvolvidos em contexto escolar sob diferentes lentes (Kilpatrcik, 1921; Pecore, 2015). As opções serão várias, como projetos centrados em problemas, no desenvolvimento de um qualquer produto, na consecução de uma experiência ou aprendizagem. Essas múltiplas formas permitem, desde logo, ilustrar que práticas pedagógicas assentes neste trabalho podem adquirir características muito distintas, mediante as finalidades consideradas, os conteúdos a integrar e/ou as próprias ações dos estudantes.

Apesar do mencionado, salientamos três ideias que, em parte, surgem como princípios ontológicos estruturantes para um trabalho educativo centrado em projetos: (i) o envolvimento, ativo e determinante, dos estudantes na definição do projeto, no seu desenvolvimento e na sua avaliação, além da orientação docente (Laur, 2013; Pecore, 2015); (ii) a matriz democrática e democratizante subjacente a todo o projeto, capaz de envolver os estudantes num propósito comum e partilhado (Kilpatrick, 1918; 1921; Laur, 2013), marcado por processos de deliberação e de trabalho cooperativo/colaborativo; (iii) a inclusão do trabalho desenvolvido na autenticidade do real, como condição necessária para a implicação, intelectual e afetiva, dos estudantes, conducente com lógicas de maior inclusão e integração curricular (Pecore, 2015).

Com base neste posicionamento conceptual, é possível considerar a construção de um jornal escolar como o exemplo de uma abordagem decorrente do ‘ensino por projeto’.

O exemplo do Jornal Escolar

De acordo com Freinet (1964, cit. por Imbernón, 2012), precursor do jornal escolar, “a democracia de amanhã prepara-se pela democracia da escola”, nomeadamente pela experimentação de propostas pedagógicas que envolvem crianças e jovens, de forma autónoma, na construção de novos saberes, na exploração da sua criatividade, no aprofundamento de relações e interações comunicativas com os outros.

Seu contemporâneo, o polaco Korczak (1997, p. 332) sublinhou a ideia daquele como um “documento científico de grande valor”, sobretudo se olharmos para o jornal escolar como o mote para a construção e reconstrução de textos vários, para o debate de opiniões distintas, para a troca de experiências mais ou menos interligadas.

Retomando os princípios ontológicos mencionados na secção anterior, aqueles que se referem ao trabalho educativo centrado em projetos, podemos relacioná-los de forma mais específica com a construção de um jornal em contexto de escola.

Desde logo, a par da orientação do professor, a concretização de um documento, afixado na parede ou em formato digital, que contempla a leitura de informações, a redação de notícias ou a realização de entrevistas, só pode implicar a participação ativa e determinante dos estudantes. Mais ainda na própria verificação recorrente do processo em curso e do seu sucesso ou eventual fracasso.

Não terá sido extemporâneo, logo de início, considerar tal atividade pedagógica como um contributo relevante para se “formar seres críticos-reflexivos, que ocupam um lugar na sociedade, sendo sabedores da sua contribuição” (Freinet, 1976, p. 52). De facto, pelos dados variados com os quais contactam, pela seleção dos mesmos que precisam de fazer, pelo diálogo com os colegas sobre temáticas gerais a escolher ou curiosidades específicas sobre determinado assunto, os estudantes encontram-se envolvidos numa experiência formativa que lhes possibilita a mobilização de um modo distinto de pensamento ou a proatividade informada num cenário real e no qual eles são agentes reais (Lee, 2016; Moreira, 2020).

Em pleno século XXI, quando se discutem a proliferação das fake news e de imagens manipuladas ou a necessidade de um sentido crítico sempre presente, o ‘ensino por projeto’ deve contribuir para a formação desses cidadãos reais e comprometidos com o mundo atual. Por outras palavras, deve permitir que cada um consiga “chegar ao seu pleno: desabrochar como um indivíduo autónomo, um ser social responsável, co-detentor e co-edificador de uma cultura” (Freinet, 1991, p. 164).

No que concerne àquela ideia de matriz democrática e democratizante subjacente a todo o projeto, o jornal escolar parece-nos conseguir compatibilizar-se com a mesma. As opções que se tomam, sejam a do título de um artigo ou a imagem a associar a outro, os colegas com quem se trabalha desta vez ou a ‘estória’ que não pode faltar na próxima vez, conferem conteúdo àquilo que podemos tomar como processos deliberativos e colaborativos. Há, pois, a necessidade de se ultrapassar as opiniões numa só direção e de as transformar num saber relevante e consistente com a sua vida de cidadãos conscientes do papel que a sociedade global lhes atribui (Moreira, 2020). Depois, a sua ação dirige-se para um propósito compartilhado por todos: participar de modo refletido na sociedade democrática atual, onde circulam um sem número de interpretações assumidas, mas onde também é fundamental ler e entender essa realidade a partir de múltiplas perspetivas (Barton & Levstik, 2004; Lee, 2016).

Por último, não sendo um fim em si mesmo, o jornal escolar potencia o envolvimento intelectual e afetivo dos estudantes, mais ainda quando não se distancia do presente, real (Laur, 2013). Seja este o mundo idiossincrático e em mudança permanente que nos rodeia, seja o processo de aprendizagem que cada um experiencia na escola e que se faz de uma panóplia ampla de áreas do saber. Com efeito, tal projeto pedagógico, de natureza interdisciplinar, assume-se também como relevante para o desenvolvimento de competências comunicativas basilares em qualquer circunstância.

Por exemplo, podem aprimorar-se as capacidades relacionadas com a escrita, sendo esta uma atividade complexa que se orienta para um fim específico da situação comunicativa (argumentação, narração, descrição, …) e que exige uma consciência metalinguística explícita (Camps, 2003). Quase sem querer, então, a participação na elaboração do jornal contribui para a necessária especialização da escrita individual, pois os alunos têm a oportunidade de utilizá-la com intencionalidade, pragmático-utilitária ou recreativa, além de se tornarem capazes de autorregular o uso que dela fazem (Amor, 2006). No que diz respeito à prática da leitura, os estudantes, perante tarefas com propósitos claros (obter uma informação, perceber um conteúdo em particular, …), tendem a ampliar as suas competências no âmbito da antecipação de significados, da realização de inferências ou da comparação de pontos de vista (Colomer & Teberosky, 2003). De modo articulado com este aspeto, também exploram a sua capacidade de ‘escuta ativa’, na realidade definidora das interações comunicativas, além do uso da palavra e, por inerência, do pensamento divergente (Amor, 2006; Rodari, 2017).

Como derradeiro apontamento, não será demais mencionar as potencialidades de um jornal escolar na ampliação e complexificação dos conhecimentos individuais sobre as diversas áreas do saber - História, Geografia, Biologia, Arte, Culinária, …, bem como no desafio intencional e constante à imaginação de cada um. Até porque, de acordo com Rodari (2017, p. 163), “para mudá-la [à sociedade] são necessários homens criativos que saibam usar a sua imaginação”.

Enquadramento metodológico

Para esta investigação relacionada com certa experiência pedagógico-curricular que pode acontecer em contexto escolar, definimos a seguinte questão de partida: Que opiniões constroem os alunos do 2.º ciclo do Ensino Básico sobre a experiência de criarem um jornal escolar?

Após a construção conjunta de um jornal escolar, durante o ano letivo 2020/21, os estudantes do 2.º ciclo do Ensino Básico participantes na iniciativa - 5.º e 6.º anos de escolaridade -responderam a um breve inquérito por questionário que incluía apenas uma pergunta: Depois da criação do jornal escolar, indica os aspetos positivos e os aspetos negativos associados à atividade e apresenta sugestões para o seu futuro. Durante cerca de 30 minutos, as trinta e nove respostas recolhidas foram redigidas de forma individual, em contexto de sala de aula.

De ressalvar que esta atividade foi concretizada numa instituição privada do distrito do Porto, em Portugal, ocupando as aulas de uma componente que integra a oferta curricular específica daquela organização educativa. Envolveu, assim, três turmas do 2.º ciclo - duas de 5.º ano e uma de 6.º ano - que, semanalmente, lhe dedicaram uma hora. Importa ainda referir que, aquando da modalidade de ensino a distância, por razão da pandemia de Covid-19, a concretização das edições mensais do jornal manteve-se, e aquele passou de um formato afixado na parede para um formato digital e acessível a todos os que permaneciam confinados em casa.

Para a análise das opiniões partilhadas pelos alunos, optamos por uma abordagem qualitativa, de sentido interpretativo (Denzin & Lincoln, 2012), sobretudo para uma compreensão mais ampla do fenómeno em estudo, ou seja, o ponto de vista dos participantes neste ‘ensino por projeto’. Cremos que elementos estatísticos ou dados de cariz quantitativo não permitiriam constatações tão completas e detalhadas.

A análise do conteúdo das respostas redigidas individualmente, enquanto «técnica de análise das comunicações» (Bardin, 2011, p. 33), apresentou-se como uma opção viável para a elaboração de sentidos e significados a partir dos elementos textuais. Posteriormente, para uma interpretação mais alargada, não deixamos de os relacionar com a fundamentação conceptual base (Esteves, 2006), além de definirmos categorias e subcategorias de análise após a primeira leitura desses dados recolhidos. Assim, as conjeturas que mais adiante expomos podem ser entendidas como consequência da busca de elementos inéditos e/ou regularidades nas opiniões compiladas (Bardin, 2011).

As categorias estabelecidas foram, então, as seguintes: Aspetos Positivos; Limitações; Sugestões. As subcategorias intitularam-se Dimensão Académica, Dimensão Comunitária, Dimensão Pessoal e Dimensão Social, consideradas sempre que presentes nas opiniões dos alunos referentes a cada uma das três categorias.

Para auxiliar todo o processo de análise, recorremos ao programa MAXQDA 2020, o que facilitou a organização e codificação do corpus empírico.

Na secção que a seguir se apresenta, procuraremos explicitar esses dados que recolhemos para esta pesquisa, naturalmente não perdendo de vista aqueles que são os seus propósitos.

Apresentação e análise dos dados

Analisamos, doravante, as perspetivas dos estudantes a propósito da sua experiência enquanto agentes ativos no desenvolvimento do jornal escolar. Neste caso, as suas opiniões no que concerne aos aspetos positivos, às limitações e eventuais sugestões para uma prática futura similar.

Para, desde logo, se compreenderem, na globalidade, os seus pontos de vista, organizamos a codificação desenvolvida na tabela seguinte:

Tabela 1 Frequência absoluta dos códigos considerados. 

Frequência absoluta (de códigos)
Aspetos positivos 64
Dimensão Académica 22
Desenvolvimento da escrita 5
Novas experiências escolares 3
Promoção de conhecimentos novos/curiosos 12
Uso de tecnologias 2
Dimensão Comunitária 2
Implicação do trabalho na vida do colégio 2
Dimensão Pessoal 12
Desenvolvimento da concentração 1
Desenvolvimento da criatividade 7
Gosto pessoal 4
Dimensão Social 28
Aprendizagem de temas socialmente pertinentes 3
Desenvolvimento da autonomia e da autodeterminação 4
Promoção do trabalho de grupo 21
Limitações 18
Dimensão Académica 7
Limitação horária 5
Limitações decorrentes da pandemia 2
Dimensão Pessoal 4
Pouca diversão 4
Dimensão Social 7
Alguma dificuldade no trabalho de grupo 7
Sugestões 19
Dimensão Académica 9
Maior expressão horária 1
Maior pluralidade de temas/conteúdos 7
Uso mais recorrente da sala de informática 1
Dimensão Comunitária 6
Ampliação da expressão/publicidade do jornal 5
Maior interação entre turmas 1
Dimensão Social 4
Fomento de dinâmicas de autodeterminação 4

A reflexão dos estudantes incidiu num conjunto distinto de domínios que originou as categorias e subcategorias definidas e anteriormente elencadas.

Optamos, pois, por partir das subcategorias, pela sua pertinência e especificidade, analisando-as, sem fronteiras evidentes, em relação às três categorias mais amplas: Aspetos positivos, Limitações e Sugestões.

Dimensão Académica

Tomando como referência as opiniões globais dos estudantes, é possível notar uma prevalência de alguns elementos relacionados com a dimensão académica subjacente ao desenvolvimento de um jornal escolar. Sobre essas aprendizagens - efetivas ou potenciais - assinaladas pelas crianças, destacam-se dois aspetos.

Por um lado, o modo como esta abordagem favorece o aprimoramento de competências de comunicação, em particular a capacidade de escrita [T5b-16] ou o escrever mais [T6-2]. Tais ideias convergem com a perspetiva - já discutida - de Amor (2006), quando a autora identifica a relevância de, também em contexto escolar, a escrita não surgir como uma prática descontextualizada ou afastada das suas funções sociais. Por conseguinte, e partindo dos dados analisados, parece-nos que com o jornal escolar os alunos atribuíram sentido e significado à sua produção escrita o que, implicitamente, contribuiu para uma aprendizagem mais entendida e valorizada.

Por outro lado, o reconhecimento de que o jornal pode ser um espaço de articulação com um conjunto amplo de temáticas e áreas do saber como as Artes [T5b-7], a Astronomia [T5a-1], a Gastronomia [T6-5], a Geografia [T6-3], a História [T5a-8], ou, até, as plantas do jardim da escola [T5b-10]. Ou seja, para os estudantes, esta ‘aprendizagem por projeto’ consubstanciou-se numa experiência pedagógico-curricular que contradiz a fragmentação temática que, como abordamos já, tem caracterizado a cultura escolar contemporânea (Duarte, 2021). Numa outra perspetiva, esta experiência tende a ser igualmente entendida, pelas crianças envolvidas, como um alicerce essencial - quase um ‘ponto de partida’ - para, com maior ou menor autonomia, explorarem e implicarem-se intelectualmente na análise de assuntos do seu interesse. Criaram, portanto, uma relação afetiva com o conhecimento e não tiveram de o reduzir a meros saberes escolares. De facto, eles «passa[ra]m a saber mais sobre o mundo» [T5b-11].

Ainda a propósito da dimensão académica, convém salientar que os alunos interpretaram esta estratégia como uma nova maneira de aprender [T5b-8], como uma experiência diferente [T5b-15]. Essa perspetiva surge ainda mais evidente no seguinte excerto: Eu gostei de fazer, e gosto de fazer ainda, porque foi uma coisa que eu nunca tinha feito do 1.º ano até agora e então foi uma coisa nova (…) [T5b-10]. Porém, esta novidade não se circunscreveu aos recursos tecnológicos utilizados. Embora existam três crianças que o mencionam - em particular, o uso do computador [T6-5; T6-12] ou da sala de informática [T5b-14] -, esta utilização inscreve-se numa prática pedagógico-curricular mais abrangente, contrariando aquelas visões que ou privilegiam a autojustificação dos usos da tecnologia ou, então, que a entendem como uma panaceia educativa (UNESCO, 2021).

Aliás, de forma mais sistemática, os estudantes identificaram como importante haver uma duplicação do tempo para se implicarem neste projeto, porque somente um tempo letivo por semana é pouco tempo [T5a-1]. Essa postura parece convergir com as ideias de Laur (2013), quando esta refere que as dinâmicas associadas ao trabalho por projeto requerem dedicação e disponibilidade dos distintos agentes envolvidos. Pelas palavras da autora, os professores podem descobrir que «necessitam de investir quantidades significativas de tempo a suportar os estudantes no desenvolvimento do seu pensamento crítico. É, contudo, tempo bem investido!» (p. 19, tradução própria).

Para finalizar, uma última palavra a propósito das limitações decorrentes das medidas que visaram diminuir a propagação do Covid-19. Sobre este ponto, as crianças esclareceram que não gostaram das aulas online, porque estava[m] sempre no computador [T6-3]. Um posicionamento que mais uma vez nos permite constatar que o seu foco não foi, efetivamente, o uso das tecnologias, mas antes a real participação nas dinâmicas pedagógicas que lhes estavam associadas, como melhor discutiremos adiante na dimensão social.

Dimensão Comunitária

A dimensão comunitária, de acordo com os dados compilados, surge essencialmente associada à forma como os estudantes refletiram sobre a pertinência do jornal em articulação efetiva com a vida e as dinâmicas do colégio:

Além de ser uma experiência diferente e divertida é, também, muito útil. Na minha opinião, o trabalho valeu a pena. Por exemplo, enquanto alguém espera na portaria pode ler o jornal. [T5b-8]

Podemos imprimir os jornais em papel e vender aos familiares, assim espalhamos o nosso jornal e arranjamos dinheiro para a viagem de finalistas. [T5b-15]

Com efeito, compreende-se que aqueles valorizaram a possibilidade de, através do jornal, protagonizarem uma relação mais sistemática com a comunidade. Nesse mesmo sentido, outras ideias foram veiculadas, como analisar sítios do colégio [T5b-9] ou realizar mais entrevistas aos pais [T6-5].

Se recuperarmos, por exemplo, a categorização de Duarte (2021) e Pecore (2015), notamos que, para aqueles alunos, o jornal traduziu-se num trabalho sustentado no contexto real, uma vez que interagiu de forma autêntica com as singularidades da comunidade educativa. Quer isto dizer que a sua criação não foi entendida como um exercício escolarizado ou meramente centrado em cada turma, mas como uma dinâmica que facilitou a partilha e interação entre distintos membros que compõem a comunidade escolar.

Dimensão Pessoal

Os aspetos inerentes à dimensão pessoal vinculam-se, no essencial, a competências que os estudantes entenderam ter desenvolvido, quer a nível cognitivo, quer a nível afetivo.

Relativamente ao primeiro elemento, mencionaram a concentração [T6-8] e a criatividade [e.g. T5a-6; T5b-12; T6-2], sublinhando-as como realmente importantes no seu percurso formativo. Leiam-se, a título de exemplo, os seguintes excertos: Ajudou-me a ter mais imaginação e a ser mais criativa [T6-2]; Aprendemos a trabalhar em conjunto e a ser criativos [T5b-6].

Não será despropositado também discutir a relação afetiva que os estudantes estabeleceram com o projeto no qual participaram ativamente. Pese embora um número incipiente afirme que foi «um pouco aborrecido» [T5b-3] ou que «teve pouca diversão» [T5b-13], dois desses mesmos estudantes qualificaram o processo como muito bom [T5b-13] e gost[aram] de fazer o jornal [T5b-3]. De facto, há um número amplo de crianças que destacaram uma espécie de ligação positiva ao projeto, referindo que está a correr muito bem [T5b-9], que apreciaram muito fazer os jornais [T5b-4], ou que é divertido [e que] adora[ram] [T5a-1]. No final, o trabalho levado a cabo colaborativamente emerge como significativo e prazeroso.

Dimensão Social

Quanto a esta última subcategoria, como uma pequena nota, os alunos apontaram a possibilidade de descobrir informações [T5a-7], o que lhes permitiu discutir opiniões, ideias, entre outras [T5a-5]. A este propósito, a exploração dos temas anteriormente listados foi indicada como relevante para melhor refletirem sobre a realidade e, através disso, construírem os seus pontos de vista em diálogo com os colegas. Por conseguinte, o jornal escolar tornou-se num veículo capaz de proporcionar uma interação sistemática com aqueles conhecimentos autênticos e fundamentais à compreensão do real (Laur, 2013).

Com particular relevância no trabalho assente em projetos, destaca-se a forma como as crianças salientaram, porventura inconscientemente, processos de autodeterminação ou, então, subjacentes ao desenvolvimento da sua autonomia. Essas conceções parecem evidentes, entre outros, no seguinte excerto: Devíamos continuar com o jornal pois acho que é uma atividade que nos dá liberdade para fazer o que quisermos e da forma em que já nos sentimos mais autónomos [T5b-1] ou, ainda, nas referências à decisão sobre os próprios grupos [T6-13; T5b-14], ao envolvimento na seleção dos temas/trabalhos a desenvolver [T5b-12; T6-6] ou, até, pela proposta de processos eleitorais [T6-15]. E assim se corrobora, novamente, a vivência democrática e cidadã possível em contexto escolar, tendo em conta o defendido por Kilpatrcik (1918; 1921) e por Freinet (1991).

Por fim, com base no maior número de menções, constata-se a preponderância atribuída pelos alunos ao trabalho de grupo. A este propósito, embora alguns deles [T5a-6; T5b-12; T6-6] reconheçam que tal opção se traduziu, por vezes, num menor empenho da sua parte, o trabalho de grupo não deixou de ser assumido como uma forma de trabalho que lhes permitiu melhor aprender e interagir com outros colegas:

Eu gostei de fazer trabalhos em grupo, porque todos tinham ideias diferentes e assim conseguimos recolher mais informações. [T5b-10]

Tem sido muito divertido fazer trabalhos em grupo. [T5a-9]

Aprendi a trabalhar em grupo e a ouvir os outros, pois muitas das vezes ao fazer os trabalhos fazíamos em conjunto. [T6-10]

De algum modo, por via de tal dinâmica, as crianças puderam ampliar o seu nível de tolerância, de aceitação de outras perspetivas, de diálogo fundamentado com os colegas, em particular aqueles que pensam diferente (Biesta, 2017; 2020). Portanto, o trabalho cooperativo ou colaborativo não só ocasionou o desenvolvimento de competências académicas, acima referidas, como favoreceu o aprofundamento de relações empáticas.

Considerações finais

A pergunta que foi mote para esta investigação - Que opiniões constroem os alunos do 2.º ciclo do Ensino Básico sobre a experiência de criarem um jornal escolar? -, permite-nos, já nesta secção final, destacar a pluralidade de pontos de vista evidenciados.

Nesse sentido, torna-se pertinente esclarecer as principais constatações decorrentes dessa observação mais genérica, considerando as categorias e subcategorias mais pormenorizadamente analisadas.

Relativamente à dimensão académica, percebemos que o trabalho inerente à criação e manutenção de um jornal escolar é tomado como um processo que beneficia a apropriação e/ou o desenvolvimento de distintas competências, como o domínio da escrita (numa opinião mais destacada), e de inúmeros saberes, neste caso pela interação com vários conteúdos aquando, por exemplo, das pesquisas de informação ou da realização de entrevistas a sujeitos vários. Esse mesmo processo formativo emerge, então, como uma espécie de enriquecimento da ação pedagógica dinamizada no âmbito das componentes curriculares mais habituais. Mas sem qualquer pretensão de fragmentação da aprendizagem ou (Laur, 2013) de replicação de opções pedagógicas assumidas pelas didáticas específicas de áreas do saber eventualmente mobilizadas para um trabalho que inevitavelmente se faz de interdisciplinaridade(s).

Sobressai, sobre a dimensão comunitária, o modo como esta experiência pedagógico-curricular pode ocasionar a interação das crianças com o meio escolar, nomeadamente os seus espaços e os diferentes agentes que o constituem. Por outras palavras, a comunidade, nesta circunstância, é encarada como alicerce da aprendizagem e, ainda, como espaço de intervenção (Pecore, 2015).

No que concerne à dimensão pessoal, torna-se clarividente que o jornal escolar, enquanto projeto deles, granjeou interesse e motivação junto dos alunos. A par da promoção da criatividade e imaginação (Rodaria, 2017), propiciou momentos de genuíno envolvimento intelectual e afetivo na concretização das tarefas necessárias.

Quanto à dimensão social, feitas as contas a mais referenciada, destaca-se a forma como, pela opinião das próprias crianças, o trabalho de grupo se pode estabelecer como um elemento com efetivo destaque no percurso individual e coletivo. Isto porque, de um modo ou de outro, tal opção considerada permitiu aprendizagens interpessoais significativas, por exemplo pelo diálogo entre pares, e, também através delas, a afirmação da autonomia e a vivência democrática em contexto escolar (Kilpatrick, 1918).

Pelo presente artigo, partindo de uma experiência pedagógico-curricular em concreto, acreditamos que conseguimos ilustrar uma face do trabalho por projeto enquanto estratégia com impacto pedagógico, tanto no domínio das diferentes componentes curriculares, como na possibilidade de a escola ser notada como um real espaço de construção de cidadania (Duarte, 2021).

Assim sendo, talvez com certa audácia, possamos afirmar que a democracia de amanhã, mencionada por Freinet (1964, cit. por Imbernón, 2012), se tornou atualidade naquelas salas de aula transformadas em redação de um jornal. E ali, agora com efetiva convicção, aqueles alunos do 2.º ciclo do Ensino Básico puderam crescer um pouco mais sob o perfil de sujeitos sociais, reflexivos, responsáveis e, também, construtores de cultura (Freinet, 1976).

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Recebido: 29 de Dezembro de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Ana Isabel Moreira Escola Superior de Educação do Porto, Instituto Politécnico do Porto, R. Dr. Roberto Frias 602, 4200-465 Porto, Portugal / ana_m0reira@hotmail.com

Pedro Duarte Escola Superior de Educação do Porto, Instituto Politécnico do Porto, R. Dr. Roberto Frias 602, 4200-465 Porto, Portugal / pedropereira@ese.ipp.pt

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