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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.23 Porto jun. 2022  Epub 30-Jul-2022

https://doi.org/10.17127/got/2022.23.001 

Articles

SOLIDARIEDADE FRENTE À DESIGUALDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA: UM OLHAR A PARTIR DE CURITIBA (BRASIL)

SOLIDARITY IN FACE OF SOCIAL INEQUALITY IN TIMES OF PANDEMIC: A PERSPECTIVE FROM CURITIBA (BRAZIL)

CAROLINA GAMA1 

MARIANA SACOMAN KSZAN1 

SIMONE APARECIDA POLLI1 

ALESSANDRO LUNELLI2 

ALINE SANCHES3 

1UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ; Departamento Acadêmico de Arquitetura e Urbanismo (DEAAU) Laboratório de Urbanismo e Paisagismo (LUPA); R. Dep. Heitor Alencar Furtado, 5000 - Campina do Siqueira, Curitiba - PR, 81020-490, Brasil. CAROLINA_GAMA1607@HOTMAIL.COM; MARIANAKSZAN@GMAIL.COM; SIMONEP@UTFPR.EDU.BR

2UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAUUSP Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo; Rua do Lago, 876 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-080, Brasil. LUUNELLI@GMAIL.COM

3UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ. Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Governança Pública (PPGPGP) Laboratório de Urbanismo e Paisagismo (LUPA); R. Dep. Heitor Alencar Furtado, 5000 - Campina do Siqueira, Curitiba - PR, 81020-490, Brasil. ARQ.ASANCHES@GMAIL.COM


RESUMO

O artigo tem como objetivo apontar as ações de solidariedade originadas devido ao Covid-19, voltadas a territórios vulneráveis em Curitiba. Baseia-se na experiência de elaboração do “Mapa da Solidariedade”, uma ação de extensão universitária, que conecta territórios vulneráveis com possíveis doações, identificando grupos sociais impactados pela crise. Considerando que a população em situação de precariedade habitacional sofre mais significativamente o impacto da doença, o artigo explicita a desigualdade social e a sua distribuição espacial, priorizando iniciativas de movimentos e pequenos grupos organizados. Por meio da combinação de dados técnicos, trabalhos acadêmicos e das novas territorialidades originárias das práticas insurgentes, as ações foram cadastradas e espacializadas por meio de Sistema de Informação Geográfica. Nota-se a existência de redes locais de solidariedade existentes antes do início da pandemia, que conseguem articular ações em situação de emergência. Aponta-se a necessidade de elaboração de planos emergenciais municipais que oferecerão suporte para atender a esses grupos de maneira preventiva.

Palavras-chave: Solidariedade; Mapeamento; Covid-19; Vulnerabilidade Social; Territorialidade; Curitiba

ABSTRACT

The objective of the article is to point out solidarity actions aimed at vulnerable territories in Curitiba, which were originated due to the Covid-19 crisis. It is based on the experience of a university extension project, the “Solidarity Map”. The project connects vulnerable territories to possible donations while identifying social groups most impacted by the crisis. Considering that the disease impacts more significantly those in a situation of housing precariousness, the article exhibits social inequality and its spatial distribution as it prioritizes initiatives by social movements and small organized groups. Combining technical data and academic papers with new territorialities originated from insurgent practices, the actions were registered and spatialized through Geographic Information System. It was noted that local solidarity networks existed even before the beginning of the pandemic, and that they can easily articulate actions in situations of emergency. Therefore, this article indicates the need to elaborate municipal emergency plans in order to provide support to these groups in a preventive manner.

Keywords: Solidarity; Mapping; Covid-19; Social Vulnerability; Territoriality; Curitiba

Introdução

Pressupõe-se que as populações em situação de precariedade habitacional e de saneamento, com baixa renda, sofrem de maneira mais significativa o impacto da pandemia de COVID-19. Desse modo, o objetivo do “Mapa da Solidariedade” é a conexão de possíveis doadores com territórios em situação de vulnerabilidade em Curitiba durante a crise da doença. Foram mapeadas ações organizadas pela sociedade civil, tendo em vista que esta sente diretamente os impactos da crise causada pelo desemprego ou pela redução da renda familiar.

A elaboração do mapa surgiu de uma preocupação do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (CEFURIA) com as Associações de Catadores de Materiais Recicláveis, consolidando-se como uma ação interdisciplinar de extensão universitária. A ação foi coordenada pelo Laboratório de Urbanismo e Paisagismo (LUPA) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), formada por graduandos do curso de Arquitetura e Urbanismo da instituição, pesquisadores do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba, profissionais e pesquisadores da área do Planejamento Urbano, Assistência Social e Direito, além de entidades que atuam na defesa e promoção de direitos, como o CEFURIA, Mobiliza Curitiba e Terra de Direitos. O projeto integra a plataforma colaborativa PRContraCovid (2020), que reúne produções técnicas, mapas e análises para monitorar o COVID-19 no Paraná, e parte dos princípios de combate à pandemia na periferia, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis conforme previsto pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU et al., 2020).

Para sua elaboração, combinou-se dois tipos de informações: (i) dados técnicos de órgãos públicos e trabalhos acadêmicos sobre espaços informais de moradia 1 e (ii) as novas territorialidades originárias das práticas insurgentes, relacionadas às iniciativas locais de luta e sobrevivência, expressas nas ações solidárias. Joliveau (2008) aponta que o confronto dessas duas abordagens pode fornecer uma compreensão dos fenômenos que transformam o território. Sua potencialidade reforça a necessidade de trabalhos futuros que combinem: (i) objetivos de pesquisa, relacionados à compreensão do direito à cidade e aos impactos da desigualdade social pós pandemia; (ii) aos complexos arranjos sociais, políticos e legais presentes no território.

Assim, o conceito de território considerado extrapola os aspectos físicos e se concentra em seu uso, constituindo uma ‘topografia social” (Sposati, 2008, p. 9), com “(...) espaços de vida, de relações, de trocas, de construção e desconstrução de vínculos cotidianos, de disputas, contradições e conflitos, de expectativas e de sonhos (...)” (Brasil, 2008, p. 53).

A perspectiva territorial é fundamental para a efetividade da proteção social no país, visto que, na medida em que demonstra as desigualdades sociais presentes na sociedade, também indica diferentes prioridades políticas para seu enfrentamento (Alves e Koga, 2010; Becker, 2007). Colabora ainda, para a distribuição adequada de equipamentos e serviços por parte do poder público, quando ofertados próximos à essa população, melhorando suas condições de vida (Couto et al., 2010).

Ao destacar a distribuição no território dos espaços informais de moradia em municípios da metrópole de Curitiba, tem-se uma visão conjunta dos espaços intraurbanos que sofrem de modo desproporcional os efeitos da pandemia, pois estão inseridos majoritariamente em porções da cidade que combinam também os maiores índices de vulnerabilidade social. Cabe ressaltar que a condição de vulnerabilidade social não está limitada à situação de baixa renda, pois compreende um conjunto de características sociais, econômicas e demográficas, como arranjos familiares fragmentados e diversos, falta de acesso a serviços públicos, exposição a situações de violência e pertencimento a grupos marcados por discriminação (Jaccoud et al., 2017).

Por este motivo, foi priorizado o mapeamento de ações no território, isto é, ações locais, próximas de onde as pessoas moram. Acredita-se que é na escala local que as pessoas terão condições de recorrer em caso de necessidade, principalmente se relacionado à sobrevivência diária. Sem a pretensão de tomar o lugar das políticas públicas de assistência social, o mapa mostra uma periferia muitas vezes invisibilizada, onde geralmente as políticas públicas não chegam e as pessoas são obrigadas a se virar por sua própria conta.

Assim, o trabalho parte do princípio que esta população deveria ser o público prioritário do planejamento e organização da assistência social em termos de políticas públicas. E evidencia que a compreensão dos vínculos sociais e redes de solidariedade que se constituem nesses territórios é um passo importante de futuras pesquisas científicas que podem contribuir na formulação de estratégias de ação governamental.

Destaca-se, por fim, que em Curitiba, dentre algumas ações isoladas em relação ao combate à pandemia, a prefeitura propôs um Plano de Recuperação apenas no início de agosto (Curitiba, 2020). Além disso, apesar de conter certa variedade de propostas, ele foca mais na recuperação econômica pós pandemia do que em políticas de assistência social, o que o afasta das demandas da população. As propostas incluem o adiamento do pagamento de taxas, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS), e Taxa de Coleta de Lixo (TCL) até o final do ano e prorrogação das parcelas mensais de financiamentos da Companhia de Habitação de Curitiba (COHAB-CT), além de outras iniciativas voltadas ao facilitamento de financiamentos e o fornecimento de marmitas.

Tendo em vista que o final da pandemia de COVID-19 ainda é incerto, a prorrogação do pagamento dessas taxas pode ser insuficiente para impedir o endividamento. Esperava-se neste momento pandêmico que a Fundação de Ação Social de Curitiba coordenasse um plano emergencial para atender de maneira preventiva e territorialmente distribuída os grupos sociais que mais sofrem os impactos dessa doença.

Metodologia

A metodologia do Mapa da Solidariedade foi construída coletivamente e em processo entre as entidades participantes. Os saberes são múltiplos e essa integração permite maior cognição do território e a percepção de suas complexas relações. Destacam-se algumas escolhas metodológicas: 1) o papel da territorialidade; 2) a identificação dos espaços informais de moradia e locais de ação da COHAB-CT, para evidenciar o local da moradia popular do município; e, 3) o foco nas situações relacionadas a sobrevivência diária - não foram levantadas ações como disponibilidade de ajuda psicológica e doações a hospitais, por exemplo.

Inspirados em ações de redes como Urbanistas contra o Corona (2020), foram exploradas opções de plataformas, e a interface do Google MyMaps se mostrou satisfatória com as demandas apresentadas relativas à divulgação online. Para atualizar os dados, foi criada uma tabela compatível com a utilização em Softwares de Sistemas de Informações Geográficas para posterior análise. Cada ação passou a ser cadastrada com o endereço e coordenada geográfica, a fim de que fosse utilizada em ambas plataformas.

Verificou-se a necessidade de delimitar a área de atuação, utilizando os municípios do primeiro anel metropolitano do Núcleo Urbano Central (Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba [COMEC], 2012), composto por: Almirante Tamandaré, Araucária, Campina Grande do Sul, Campo Largo, Campo Magro, Colombo, Fazenda Rio Grande, Pinhais, Piraquara, Quatro Barras e São José dos Pinhais.

Para testar a metodologia, optou-se por iniciar pelo município de Colombo, por ser menor que a capital, já ter entidades cadastradas e ter elaborado o Plano de Ação Emergencial de Enfrentamento à Pandemia do Coronavírus (Colombo, 2020). A limitação é que este é o único município onde não se tem os dados dos espaços informais de moradia. O grupo responsável pelo cadastramento entrou em contato com as entidades disponíveis no Plano para entender se existiam ações destinadas aos territórios com famílias em situação de vulnerabilidade e se tinham campanhas públicas de combate ao COVID. Constatou-se que algumas ainda estavam em processo de estruturação, e outras já possuíam ações consolidadas.

Foram cadastradas as iniciativas que: (i) possuem campanha pública de arrecadação em funcionamento (em site ou mídia social); (ii) são pequenas iniciativas da sociedade civil, como explicitado; (iii) trabalham na perspectiva da educação popular; e, (iv) destinam a sua ação a indivíduos em situação de vulnerabilidade social (público alvo das campanhas). A verificação ainda passa pela análise de assistentes sociais que em caso de dúvida podem entrar em contato com a entidade. O mapa tem como objetivo principal servir de ponte entre possíveis doadores e pessoas em situação de vulnerabilidade, não se responsabilizando especificamente pelas doações.

O cadastro das entidades parte da metodologia “bola de neve”, de caráter exploratório, e é utilizada para amostragens não probabilísticas, conforme descrito por Vinuto (2014). A autora coloca que a pesquisa em campo inicia com informantes-chave para localizar uma pequena amostra com perfil desejado dentro de uma população. Em seguida, solicita-se que indiquem novos contatos de sua própria rede. E assim se segue sucessivamente para aumentar o quadro de amostragem. A finalização ocorre quando há saturação, isto é, não há novos nomes, ou estes não trazem informações novas ao quadro de análise.

Esta metodologia foi utilizada por ser indicada para quando não há precisão sobre a quantidade total da população, entre outras situações. É um processo permanente de coleta de informações, que visa aproveitar as redes sociais da amostragem, e ainda, que contribui para o desenvolvimento de métodos para estudos futuros (Vinuto, 2014). Devido à pandemia, novas ações solidárias são criadas dependendo das demandas locais. A metodologia empregada, portanto, permite ampliar constantemente uma amostragem, e também de construir um método de coleta e análise dos dados levantados.

Visando a diferenciação de perfis e reforçando a importância da territorialidade, as ações foram divididas em rede comunitária e rede apoiadora. A primeira parte de iniciativas locais, próximas aos assentamentos precários, e a segunda, de entidades que não atuam diretamente nos locais de maior vulnerabilidade, prestando um papel de suporte indireto a essas áreas. Visando auxiliar em doações, os pontos cadastrados são referentes ao ponto de coleta - se uma ação possui mais de um, todos são cadastrados.

Após o desenvolvimento da metodologia com base em Colombo, partiu-se para os demais municípios. Em Curitiba, a coleta iniciou-se com a listagem da rede socioassistencial do Conselho Municipal de Assistência Social (Curitiba, 2019) e com as iniciativas levantadas in loco pelas entidades participantes do mapa. Com a base de dados mais ampla, as ações foram cadastradas no MyMaps, em conjunto com dados de espaços informais de moradia (Silva, 2012) e áreas de ação habitacional (Albuquerque, 2007), para observar a proximidade de áreas que apresentem famílias em situação de vulnerabilidade.

Após estruturado, o Mapa da Solidariedade foi publicado na plataforma online PRcontraCOVID, sendo permanentemente atualizado. No site está disponível um formulário para que mais pessoas e/ou entidades cadastrem suas próprias ações. A informação não é atualizada instantaneamente. A equipe entra em contato com a entidade para saber mais detalhes da campanha e se atende aos critérios estipulados.

Na seção seguinte, é apresentada uma análise com foco no município de Curitiba, visando explicitar as potencialidades que esta iniciativa aponta em termos de análise de dados e pesquisas científicas futuras. Os dados foram coletados em 01 de setembro de 2020 -portanto, correspondem às ações cadastradas entre março e agosto - e analisados por meio de mapas produzidos no software QGIS.

Desenvolvimento do trabalho

3.1. Quanto à Interface com o Usuário

Apresenta-se na Figura 01 a interface do site PRcontraCovid (https://sites.google.com/view/prcontracovid) na aba dedicada ao Mapa da Solidariedade. Ao clicar nos pontos, o usuário pode verificar as seguintes informações: campanha; entidade promotora; público-alvo; demanda; dados de contato/mídias sociais; e dados bancários para possíveis doações. Também é possível consultar, para o caso de Curitiba, o número de famílias e de habitantes dos espaços informais de moradia, ou seja, os potenciais beneficiários das doações. Ainda, pode-se cadastrar uma nova ação solidária através do formulário disponível no site.

Figura 1 Página web do PRcontraCovid. Em destaque, o Mapa da Solidariedade. Fonte: Adaptadoda plataforma PRContraCovid (2020).  

3.2.Cruzamento entre Moradia e as Ações de Solidariedade

A Figura 02 apresenta os pontos das ações de solidariedade cadastradas junto das informações da localização dos espaços informais de moradia e áreas de atuação da COHAB.

O mapa foi produzido através de informações disponibilizadas por pesquisas de Silva (2012) e Albuquerque (2007), além do cadastramento próprio das entidades e ações.

Percebe-se que os espaços informais de moradia, assim como as áreas de habitação popular da COHAB, estão situados majoritariamente próximos da divisa com os municípios limítrofes. Em Curitiba, no ano 2005, de acordo com Silva (2012), existiam 341 espaços informais de moradia e 59.064 domicílios, o que representa 11% do total da cidade.

A Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a oeste, comporta grande parte dos espaços informais de moradia na região, enquanto a Cajuru destaca-se pelo mesmo motivo na região leste. Já nas porções norte e sul da cidade, a partir do Centro, os assentamentos estão presentes de forma mais dispersa, apesar de próximos dos limites com municípios vizinhos.

Figura 2 - Espaços de moradia popular e as ações solidárias. Fonte: osautores, com base em Silva (2012), Albuquerque (2007), e informações do Mapa da Solidariedade desenvolvido na ação. 

Quanto às ações solidárias, percebe-se a presença mais incisiva da rede apoiadora na regional Matriz, pois esta concentra grande parte da população e das instituições do município, como universidades, ONGs e grupos de apoio. A rede comunitária revela-se mais presente nas proximidades das áreas de habitação popular, explicitando o papel de suporte direto a essas áreas.

Na Figura 3 é possível relacionar os dados de densidade domiciliar e renda com os espaços informais de moradia, demonstrando que nos locais em que se encontra a população de baixa renda, a densidade domiciliar é maior. Nota-se ainda, que as maiores rendas coincidem com as porções mais centrais da cidade, evidenciando que a doença não atinge a todos igualmente, pois as condições de enfrentamento são distintas. Assim, a realização do isolamento domiciliar recomendado pela Organização Mundial da Saúde ou mesmo a tomada de outras medidas de prevenção é mais prejudicada nestas áreas, intensificando o risco de contaminação.

Figura 3 Densidade Domiciliar e Renda em Curitiba Fonte: os autores, com base em IBGE (2010). 

Nestas porções da cidade, traduzidas pela alta densidade domiciliar e baixa renda, também se observa a limitação do alcance das redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A Figura 4 apresenta a espacialização do número de domicílios com esgoto a céu aberto e dos domicílios sem banheiro para uso exclusivo dos moradores, na cidade de Curitiba. Num contexto de pandemia, o acesso ao saneamento básico não corresponde somente à perpetuação de um direito, mas à garantia da saúde coletiva de toda uma cidade. Fortalece-se a ideia de que os riscos de contaminação se intensifiquem, pois a tomada de medidas de prevenção é mais prejudicada nestas áreas.

Figura 4 Número de Domicílios com esgoto a céu aberto e número de Domicílios sem banheiro para uso exclusivo dos moradores em Curitiba Fonte: os autores, com base em IBGE (2010

A leitura dos mapas aponta para a relação entre as áreas de alta densidade e baixa renda, nas quais se sobrepõe a precariedade habitacional, com grande parte das ações da rede comunitária local. Fortalece-se, assim, o papel da perspectiva territorial no mapeamento das ações, já que esta população deveria ser o público prioritário das campanhas e do atendimento social pelas políticas públicas. No entanto, não é o que acontece e esses grupos organizam-se em torno da sua própria sobrevivência.

3.3.Quanto ao Perfil das Ações Solidárias

A prioridade de mapeamento são pequenas ações locais próximas aos assentamentos vulneráveis, divididas em: (i) entidades comunitárias - caracterizadas por prestar apoio direto às comunidades e (ii) entidades apoiadoras - localizadas fora destes territórios. Até o dia 01 de setembro de 2020, foram cadastradas 86 ações em Curitiba.

As entidades apoiadoras, compreendem 26,7% do total de ações e são constituídas por coletivos; sindicatos (17,4% cada); entidades de proteção social; instituições de ensino (13% cada); institutos; movimentos populares; grupos de famílias ou amigos (8,7% cada), pastorais sociais; associações de moradores e ONGs de caráter nacional (4,3% cada).

Já as ações locais representam 73,3%, compostas por entidades de proteção social (30%); empreendimentos do antigo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (19%); pastorais sociais (14,3%); associações de catadores de material reciclável (7,9%); associações de moradores (6%); grupos de famílias ou amigos internos ao território; movimentos populares; ONGs locais (4,8% cada); coletivos organizados; fundações (3,2% cada) e instituições de ensino popular (1,6%) .

Considerações Finais

Na conjuntura da pandemia de COVID-19, o cenário da desigualdade social se agrava, e se torna ainda mais evidente. Visto que muitas famílias em Curitiba vivem em situação de precariedade habitacional e coabitação, parte da população é impossibilitada de seguir recomendações dos órgãos de saúde competentes, o que põe em pauta o debate acerca dos direitos básicos a saneamento, moradia, saúde e, alimento, ou de uma forma mais ampla o direito à cidade.

O Mapa da Solidariedade não visa ser uma solução para ocupar a função das políticas de assistência social, mas como um projeto que reforça o papel social da extensão e pesquisa acadêmica em parceria com a articulação popular. Inicia-se dentro de uma universidade pública e possui como premissa a existência da desigualdade nas condições de enfrentamento da doença, se consideradas as especificidades socioespaciais dentro da cidade de Curitiba. Neste aspecto, ter uma visão crítica sobre o território torna-se fator fundamental para pensar estratégias de ação frente à pandemia. As ações tomadas pela prefeitura e a falta de transparência com relação aos dados espaciais de casos da doença e morte por bairro/rua foram divulgados parcialmente, o que dificulta as análises técnicas e acadêmicas, sobretudo os estudos para as regiões periféricas ou a produção de medidas preventivas nestes territórios.

A Prefeitura Municipal de Curitiba não possui um plano que tenha incorporado a dimensão territorial como estratégia de mobilização e enfrentamento da pandemia, fator essencial para organizar o atendimento social e priorizar os territórios mais vulneráveis. Ainda, o plano de recuperação foi apresentado pela prefeitura tardiamente com relação ao início da pandemia no Brasil (Curitiba, 2020), e questões como o acesso à saúde, saneamento básico, itens de higiene e prevenção da doença em geral, por exemplo, não foram contemplados.

Aos grupos que têm trabalho informal, que não tem reservas financeiras ou capacidade de endividamento, que lutam pela sobrevivência diária, como catadores de materiais recicláveis, população em situação de rua e moradores de assentamentos precários, que fazem parte dos 37,64% da população curitibana (659.399 pessoas) com a renda entre 0 a 3 salários mínimos (IBGE, 2010), não foram previstas medidas. Além disso, houve o fechamento de banheiros públicos na área central, o que resultou em uma Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública, solicitando a reabertura dos equipamentos.

Como pensar em possibilidades criativas para integrar as insurgências urbanas, iniciativas de solidariedade com a capacidade técnica e operacional dos órgãos públicos no combate unificado à pandemia? A reflexão despertada ao longo deste projeto destaca, assim, a importância da elaboração dos planos emergenciais a nível municipal ou regional, que levem em consideração além da saúde, as condições sociais de trabalho e renda das famílias de mais baixa renda.

A proposta do Mapa da Solidariedade tem o intuito de compartilhar a iniciativa de combate à pandemia de COVID-19 na periferia, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis (FNRU et al., 2020), e evidenciou a importância do estabelecimento de redes solidárias na sobrevivência diária da população em situação de vulnerabilidade. Portanto, essa experiência relatada é uma iniciativa que encontra-se em construção pelas entidades envolvidas e carrega consigo uma potência, com possibilidades de reverberações em ações coletivas e pesquisas voltadas à compreensão da desigualdade no direito à cidade.

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Recebido: 12 de Julho de 2020; Aceito: 30 de Dezembro de 2021

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