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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.11 Porto jun. 2017

https://doi.org/10.17127/got/2017.11.002 

ARTIGO

 

Globalização e o seu impacto no mercado residencial

Globalization and its impact on the residential market

 

Araújo, Luísa1

1Câmara Municipal de Lisboa/Departamento de Planeamento/ Divisão de Plano Diretor Municipal; Curso de Doutoramento da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa; Campo Grande, nº 25, 1749-099 Lisboa, Portugal; luisa.araujo@cm-lisboa.pt

 

 

RESUMO

No debate internacional sobre o processo de globalização domina a vertente económica, a partir da qual é vinculada a integração na economia mundial, a eliminação de barreiras comerciais e a permissão para a liberdade de interação. A legitimidade, destas conceções consolidam o poder capitalista e impulsionam o processo de urbanização. Nas últimas décadas, este processo para além de desempenhar um papel crucial na absorção de excedentes de capitais, conforme argumenta Harvey (2010; 2012), tem contribuído, igualmente, para que a construção do espaço urbano seja parte integrante da dinâmica de acumulação de capital, não apenas em função das mudanças dos movimentos do capital nos territórios, mas fundamentalmente pelas potencialidades urbanísticas e económicas suscitadas por esses fluxos de investimento.

 

Palavras – Chave: Globalização; Construção do Espaço Urbano, Mercado Residencial, Investimento.

 

ABSTRACT

In the international discussion on the globalization process dominates the economical slope, from which the integration is linked in the world-wide economy, the elimination of commercial barriers and the permission for the interaction freedom. The legitimacy of these conceptions consolidate the capitalist power and drives the process of urbanization. In the last decades, this process besides fulfilling a crucial paper in the absorption of excesses of capitals, as advocated by Harvey (2010; 2012), it has been contributing, equally, so that the construction of the urban space is an integrant part of the dynamic of accumulation of capital, not only in function of the changes of the movements of the capital in the territories, but fundamentally for the urban planning and economical potentialities caused by these flows of investment.

 

KeyWords: Globalization; Construction of Urban Space; Market Residential, Investment.

 

 

Enquadrado no projeto de investigação em curso denominado: “O Impacto da Política de Austeridade no Sector Imobiliário e os Seus Efeitos no Território Urbano da Área Metropolitana de Lisboa”, este artigo apresenta alguns resultados e reflexões sobre o trabalho desenvolvido durante as primeiras etapas do projeto. Neste artigo, é dado particular enfoque ao modo como o processo de globalização pode influenciar o comportamento dos mercados imobiliários nacionais e globais, particularmente ao nível da vertente habitacional (ou residencial). O recurso à análise de alguns indicadores estatísticos, procura evidenciar empiricamente o impacto desse processo no território nacional, na AML, e na cidade de Lisboa, em particular.

No âmbito da literatura revista sobre esta temática, destaca-se David Harvey, que tem analisado com particular acuidade as dinâmicas geográficas e temporais do investimento imobiliário e as suas repercussões nos processos de desenvolvimento urbano. Tendo como principal referência as suas obras sobre este assunto, pode-se argumentar que as teorias neoliberais, enquanto modelo económico dominante nas sociedades capitalistas atuais, tiveram necessidade de anular ou reduzir as barreiras espaciais entre diferentes geografias, facilitando e tornando mais rápida a circulação de capitais. Mais especificamente, o processo de urbanização e a produção do espaço tem desempenhado um papel crucial na absorção de excedentes de capitais nas últimas décadas. Contudo, para a concretização desses processos, exigentes em termos financeiros e com retornos a longo prazo, o envolvimento do Estado no apoio a um sistema financeiro forte - «nexo Estado-Finanças[1]» - revelaram-se fundamentais não apenas para alavancar as ações, como também para aguardar ‘pacientemente’ pelo retorno do investimento (Harvey, 2010; 2012). Face a estas condições e à crescente necessidade de existir maior fluxo de liquidez que permita dar continuidade e ampliar o processo de construção do espaço, vão sendo criadas e implementadas diferentes inovações financeiras que concretizam esse modelo.

No entanto, conforme alerta Harvey (2010), a circulação de capital não é contínua, é processada por ciclos, surgindo circunstâncias que retardam ou interrompem a sua continuidade, incitando o surgimento de crises, que se refletem na desvalorização ou perda de capital. O autor imputa estas mudanças à trajetória evolutiva do capitalismo, ao desequilíbrio, às tensões e antagonismos que surgem entre as diferentes esferas de atividade. Ou seja, de acordo com Harvey (2010), a evolução do capitalismo depende da interação dinâmica de sete fatores que constituem as esferas de atividade. Representando cada um deles uma parte da complexidade dos sistemas sociais e económicos que fazem parte do mundo contemporâneo, nomeadamente: i) as tecnologias e formas de organização; ii) as relações sociais; iii) os arranjos institucionais e administrativos; iv) os processos de produção e de trabalho; v) as relações com a natureza; vi) os processos de reprodução social e de reprodução dos indivíduos e vii) as conceções mentais do mundo. Argumentando que nesse processo nenhuma das esferas é dominante e independente das outras, evoluindo cada uma delas autonomamente, mas sempre em interação dinâmica, interligadas pela circulação e acumulação de capital. E com esta perspetiva, defendendo que os períodos de crise surgem quando existe uma alteração nesse equilíbrio, comprometendo a relação entre as diversas esferas.

Apesar da relevância e abrangência da perspetiva teórica de Harvey (2010), com o propósito de elucidar sobre os motivos que podem levar a interrupções na circulação do capital, não pode ser negligenciado o facto do investimento associado a projetos de cariz urbano ser muito vulnerável ao ambiente económico existente, bem como às políticas financeiras e macroeconómicas adotadas[2]. Se atendermos à evolução da construção habitacional nos Estados Unidos da América (EUA) ao longo dos últimos cem anos é evidente o caracter cíclico deste tipo de investimento, sensível a fatores de natureza económica e financeira, como ocorreu na Grande Depressão, em 1930, suscitada pela queda da bolsa de valores e por um ambiente de superprodução[3], ou pelas crises financeiras ocorridas a partir da década de 70, que embora de menor impacto, foram provocadas por excessos no mercado imobiliário. O caracter cíclico deste tipo de investimento, estudado por Brinley Thomas[4] para a realidade dos EUA, entre 1810 e 1950, e relembrado por Harvey (2010), admitia a existência de grandes oscilações nos ciclos de construção residencial com uma periodicidade média de 19,5 anos e um desvio padrão de 5 anos. Neste sentido, e corroborando as conclusões de Brinley Thomas, Bringe (2011), tendo por base estudos efetuados aos ciclos imobiliários ocorridos em alguns países anglo-saxónicos[5], admite existir um período constante, de sensivelmente 18 anos, entre o início da subida de preços do imobiliário e o momento em que, atingido o pico de valorização, este começa a desvalorizar. O ritmo da fase descendente do ciclo imobiliário depende, segundo o autor, do regime fiscal e da natureza do sistema de crédito hipotecário.

Todavia, conforme refere Stiglitz (2014), no rescaldo da Grande Depressão foram implementadas políticas de regulação do sistema económico e financeiro americano, consideradas suficientemente fortes e eficazes para evitar o despoletar de outra grande crise e os seus efeitos negativos na sociedade. Com a eliminação dessas medidas de regulação do sistema financeiro, em 1999, o escudo de proteção deixa de existir, compactuando com uma excessiva financiarização da economia que eclodirá poucos anos mais tarde na crise de 2007/2008.

Importa enfatizar que o impacto destas crises nas sociedades para além de ser desolador, alterar completamente os padrões de vida e acentuar as desigualdades sociais, cria em simultâneo uma superacumulação de investimentos no ambiente construído, de difícil e lenta superação para as economias nacionais. Contudo, para que seja possível suscitar novamente o crescimento é necessário implementar um novo quadro que absorva o capital e crie riqueza. E neste sentido, a globalização vem criar novas perspetivas de desenvolvimento urbano, possibilitando trajetórias diferentes e novos espaços essenciais para o seu investimento (Harvey, 2010).

Richardson (2005), num processo de reflexão sobre o processo de globalização, tendo por base um estudo realizado a algumas cidades e seus sistemas urbanos, de diferentes contextos geográficos e culturais[6], apesar de admitir que as consequências da globalização são benéficas para muitos territórios, podendo gerar novas oportunidades para o desenvolvimento urbano, ‘‘there will be room for some new entrants to the market for global manufactures and services, and some well-located cities in countries that reform their policies, institutions, and infrastructure will surely develop successful clusters” (Richardson, 2005; p. 2), é perentório ao assumir que este processo tem inerente alguns impactos negativos resultantes da reestruturação dos fatores de competitividade e das estruturas económicas e de emprego, gerando desemprego, precaridade, e desigualdades sociais, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Não obstante, conforme ressalva o autor, este processo vem beneficiar o desenvolvimento económico e urbano das cidades de maior dimensão, fundamentalmente porque se encontram melhor dotadas de infraestruturas, de qualificação escolar e profissional, de maiores recursos financeiros e de adequadas políticas públicas de incentivo ao dinamismo económico e urbano. No processo de competição entre os territórios e a necessidade de atrair investimento, o sector público (Estado) assume um papel relevante na criação de condições para que essa atração se torne exequível, e contribua para aumentar a base económica e tributária local (Richardson, 2005; Harvey, 2010).

No seguimento destas reflexões teóricas, importa antes de mais perceber como é que este processo pode dinamizar e condicionar os mercados residenciais nacionais e globais e como podem estes contribuir para a fragmentação do espaço urbano, elitizando o território e conferindo-lhe uma forma arquipelágica.

 

 

1. O Mercado Imobiliário Global na Perspetiva Residencial

O mercado imobiliário representa todo o conjunto de transações efetuadas num determinado país ou região, cuja dinâmica e orientação podem estar subjugadas à atuação de forças globais, sob a perspetiva de serem criadas novas oportunidades para a absorção de excedentes por parte de investidores globais. Sendo este processo mais acutilante para os investidores de regiões com expressivos crescimentos económicos e que necessitam consequentemente de reinvestir os excedentes de capital. Se atendermos à evolução da economia mundial nos últimos anos verifica-se que existe uma nova geografia da produção e do poder económico, passando a hegemonia dos Estados Unidos da América, para outras regiões que na última década registaram ritmos expressivos de crescimento económico, com particular incidência geográfica no Sudeste Asiático e na India. “ …O rápido crescimento da China depois de 1980, mais tarde acompanhados por surtos de industrialização na Indonésia, India, Vietname, Tailândia e Malásia durante a década de 1990, alteraram o centro de gravidade do desenvolvimento capitalista, mesmo que esse não tenha sido um processo suave” (Harvey, 2010; p.37).

Esta rápida mudança que se reflete numa nova geografia do capital, para além de gerar outro quadro geopolítico, vem acentuar a competição entre as regiões e forçar o investimento no desenvolvimento urbano. No caso particular do investimento no mercado imobiliário residencial, para além de estar dependente da relação entre dinâmica demográfica e oferta de habitação, é fortemente condicionado pela avaliação de fatores estruturais que, na ótica de Savills (2015), estão associados a aspetos políticos, a particularidades culturais, a políticas urbanas e de ordenamento do território, ao regime fiscal e jurídico e a custos de financiamento. Fatores que não são apenas determinantes para o investidor, como contribuem também para que o mercado de habitação funcione de forma distinta nos diversos países e regiões.

Na última década, a tendência dos investidores no mercado global tem incidido particularmente nalgumas das principais cidades mundiais, referenciadas em estudo realizado pela Cushman & Wakefield (2015) [7], refletindo a importância que é dada ao processo de planeamento e de gestão das cidades, à notoriedade que é concedida à arquitetura e à requalificação dos espaços urbanos, assim como às condições que oferecem garantias para que o investimento se concretize sem grandes riscos. Face a este contexto, Bourdain (2011) admite que o liberalismo económico impõe-se nas sociedades, traduzindo-se num pensamento (narrativa) urbanístico que se apoia no essencial em: (i) convicções e métodos de fazer cidade suportados por novas tecnologias de informação e comunicação; (ii) realização de grandes operações urbanas e (iii) importância do espaço público como um grande desafio para as cidades, convocando grandes investimentos, «operações farol»[8], como forma de converter as cidades em referências-chave ao nível global. A ideia de cidade como obra de arte, de esplendor arquitetónico e urbanístico, ganha força, fazendo com que as atividades e os equipamentos ligados à cultura atraiam portadores de inovação e as cidades produzam assim a inovação necessária para “…criar os círculos virtuosos de riqueza “ (Bourdain, 2011; p. 49).

As atrações e potencialidades arquitetónicas das cidades, se contribuem, por um lado, para o aumento da autoestima coletiva e individual, dos residentes, dos que trabalham e dirigem a gestão e o ordenamento das cidades, por outro, despertam o interesse de investidores internacionais, cuja atuação se reflete num primeiro momento em alterações na dinâmica do mercado residencial local, e num segundo tempo, na valorização do património imobiliário, em determinadas áreas das cidades, decorrente do acréscimo da procura e do interesse em investir. Neste contexto, tendo por base o mercado residencial global de algumas cidades, referenciado por Savills (2015), verifica-se existir na perspetiva do investidor uma discrepância entre os valores do mercado primário e do secundário[9], considerando que o primeiro é direcionado para um segmento de população de maior nível económico e de escolaridade (segmento alto), e o segundo, ligado a um perfil social com características de nível ligeiramente inferior (segmento médio).

Comparando o mercado residencial primário com o secundário em cada cidade considerada[10], verifica-se que a diferença de preços entre os dois mercados é francamente expressiva nas cidades de Hong Kong, de Paris, do Dubai, de Xangai e de Londres. Representando os preços da habitação no mercado primário de Hong Kong e de Paris, respetivamente 10 e 8 vezes o preço da habitação do mercado secundário, praticado em cada uma das cidades. Tal situação deve-se em grande parte ao facto de nestes últimos anos terem sido alvo de um processo de reestruturação e de reorientação das atividades económicas, tendo em vista o aumento da sua competitividade, e atualmente ocuparem os primeiros lugares na rede das global cities. Surgindo as cidades como motor de desenvolvimento dessas atividades económicas e serviços de apoio, contribuindo não apenas para aumentar a sua importância funcional como exigindo adequadas, e em algumas situações, inovadoras abordagens de planeamento urbano. Resultando, em grande medida, a conjugação destes fatores numa considerável apetência para o investimento estrangeiro, concomitante com os resultados obtidos no estudo da Cushman & Wakefield (2015), e por uma expressiva valorização do mercado imobiliário.

Tendencialmente os valores do mercado primário seriam mais elevados face aos do secundário, mas na realidade esta situação não se aplica à totalidade das situações consideradas e analisadas pela Savills (2015). Identificando-se algumas cidades com mercados secundários mais elevados, como é o caso de Singapura, de Nova Iorque, de Tóquio, de Sidney e as restantes cidades dos Estados Unidos consideradas na análise. Embora atípica, esta situação poderá indiciar alguma alteração na dinâmica dos mercados, possivelmente no sentido de estabilização, ou crescimento mais lento, dos valores praticados no mercado primário, ou poderá eventualmente refletir o impacto do crescimento urbano para outras áreas, periféricas às principais cidades, potenciando e valorizando novas centralidades urbanas, com elevada qualidade urbanística e construtiva, fortemente atrativa para o segmento populacional, alvo do mercado primário. E contribuindo deste modo, para a desaceleração dos preços praticados nessas cidades, ao nível do segmento residencial primário.

Estas tendências de mudança no mercado residencial global se revelam por um lado, um carater dinâmico do investimento, sempre atento a novas oportunidades com potencial de crescimento económico, por outro, refletem os efeitos imediatos que determinadas mudanças urbanísticas ocorridas nos territórios podem suscitar no comportamento do mercado residencial dos sistemas urbanos, valorizando ou diminuindo o valor do património imobiliário de determinadas áreas e desta forma, segmentando o espaço urbano.

 

 

2. O Impulso do Investimento Estrangeiro e de Instrumentos Estatais

Para que o capitalismo neoliberal se possa afirmar nos territórios, é necessário existirem políticas e instrumentos públicos que apoiem as suas intenções, surgindo a Autorização de Residência para Atividade de Investimento, vulgo «Vistos Gold ou Golden Visa» e a criação do estatuto de Residente Não Habitual (RNH) associada à concessão de benefícios fiscais, como um meio eficaz para a sua operacionalidade. O primeiro instrumento, deriva de um programa europeu de investimento que obedece a critérios específicos definidos por cada país que o adotou, embora existam muitas regras análogas, conforme se poderá observar na Figura 1. Objetivamente, este programa facilita a entrada e permanência nos países com dispensa de visto de residência, com possibilidade de aceder posteriormente à nacionalidade, desde que se encontrem salvaguardadas as condições de investimento definidas pelo país requerido. Relativamente ao segundo, representa um regime fiscal [11] concebido para atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado, de carater científico, artístico ou técnico, assim como, beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro. Para a obtenção do estatuto de RNH ser residente de forma habitual e permanente em Portugal, constitui um dos requisitos obrigatórios, e nesse sentido, a aquisição ou o arrendamento imobiliário representa uma das etapas do procedimento. De referir, que para além de estes instrumentos facilitarem o investimento externo em determinados sectores de atividade, como é o caso do imobiliário, e gerar efeitos multiplicadores nas economias nacionais, fundamentalmente ao nível de atividades económicas complementares, tem inerente um grande potencial de atração de outro tipo de investimento e de investidores.

 

 

Efetivamente, apesar da relevância e do impacto económico do regime de RNH, no território nacional, admite-se que a abrangência dos Vistos Gold é notoriamente maior. Conforme argumenta Quintela (2014), os Vistos Gold expressam uma vontade política em atrair investimento estrangeiro com o objetivo de estimular a atividade económica e o desenvolvimento dos territórios através da transferência de capitais para o país de acolhimento, em troca de concessão de residência ou de direitos de cidadania. Com efeito, este processo está associado a um programa de cidadania essencialmente económico, vinculado ao capital de potenciais investidores ou de imigrantes (económicos) que o querem transferir para outro país. A recente utilização deste tipo de programa, por parte de alguns países periféricos da Europa, particularmente os mais atingidos pela crise económica e financeira, onde se inclui Portugal, para além da possibilidade de atrair talentos e de criar emprego mais qualificado, surge como catalisador de dinâmicas económicas e urbanas, e contribuindo para atenuar o impacto da crise nesses territórios.

É inegável que a implementação deste programa em diversos países não só contribui para redirecionar os fluxos de investimento globais, como possibilita alavancar o sector da construção, e com isso estimular e proporcionar novas dinâmicas aos mercados residenciais dos países de acolhimento. No caso particular de Portugal, a implementação do programa, desde Outubro de 2012 [12], para além da forte adesão registada, particularmente em 2014, ano que regista 58% do total de autorizações concedidas até à data (Fonte: SEF[13], 2015), confirma existir uma hegemonia da nacionalidade chinesa na concessão dos vistos (87% face ao total; Fonte: SEF, 2015).

A grande aderência a este programa e ao regime de RNH[14] manifestada nos últimos anos poderá levar-nos a questionar sobre as reais motivações dos investidores na eleição do território nacional para a aplicação dos seus capitais. Efetivamente, para além das motivações económicas inerentes a este «modelo de imigração de negócios» [15] e de obtenção de direitos de cidadania, que possibilitem o acesso a novos mercados e a outras oportunidades de negócio, existem, contudo outros desígnios essencialmente de natureza social e pessoal. No estudo de Quintela (2014), são enfatizados fatores que se relacionam com a facilidade em viajar e circular em espaço Schengen, com a possibilidade de possuir património fora do país de origem, com as vantagens fiscais e económicas do investimento imobiliário, e com o interesse sobre as características endógenas do país de acolhimento (clima e ordenamento do território). Neste âmbito, é de referir ainda, que na perspetiva do investidor a estabilidade económica e fiscal dos países é determinante para que o investimento se concretize com segurança e transparência.

Com efeito, estes instrumentos estatais para além de terem auxiliado a economia nacional, durante o período em que foi aplicado o programa de assistência financeira, representando, no caso do programa Vistos Gold, um investimento até finais de 2015, de aproximadamente 1,6 mil milhões de euros[16], e ser apontado como um dos motores da retoma do sector imobiliário nacional, expresso por 1,4 mil milhões de euros relacionados com a transação de bens imóveis em território nacional, não representa a totalidade do investimento direto do exterior em Portugal realizado nos últimos anos, revelando contudo, uma capacidade de atrair fluxos de investimento apesar da crise sentida no país e na Europa.

O total de investimento direto do exterior em Portugal (IDE), entre 2008 e 2015 (Figura 2), foi de 31 mil milhões de euros, dos quais 65% foram realizados nos últimos 4 anos (a partir de 2012). O valor máximo de investimento captado por Portugal ocorreu em 2012 (7 mil milhões de euros), enquanto em 2009 e 2010 foi em termos médios de 1,5 mil milhões de euros, refletindo de forma cáustica o impacto da crise económica e financeira expressa pela desaceleração do investimento. De notar que apesar de em 2013 se observar uma retração no investimento realizado, o comportamento da variável nos anos seguintes indicia uma tendência de crescimento mais consistente, concomitante com a progressiva melhoria dos indicadores económicos nacionais, favorecendo e transmitindo confiança aos investidores estrangeiros.

 

 

Em termos de sectores de atividades, a maior apetência do investimento recai nos serviços, expondo 84% de IDE nos 7 anos considerados (variação de 43% em 2008-2010, contra -79% em 2011-2013, e 13% em 2014-2015). Relativamente aos sectores mais diretamente ligados ao imobiliário, à construção e às atividades imobiliárias, importa referir que a primeira representa 3% do total de IDE realizado em Portugal (896 milhões de euros), entre 2008-2015, evidenciando uma tendência crescente de captação de investimento, a partir de 2012 (variação de -24% em 2008-2010, contra 1,5% em 2011-2013, e 45% em 2014-2015). Não obstante, constata-se que essa tendência de crescimento é mais acentuada a partir de 2014. E as atividades imobiliárias, representando 5,5% de IDE, entre 2008-2015, manifestam uma tendência crescente na captação de investimento exterior, a partir de 2012 (variação de -110%, em 2008-2011, contra 233% em 2012-2015), o que poderá indiciar alguma influência da implementação do programa Vistos Gold e do regime de RNH na orientação do investimento estrangeiro. Reconhecendo que essa tendência de crescimento, em termos absolutos, é maior no sector da construção, e no caso das atividades imobiliárias ainda não tenha atingido os níveis de investimento realizados, entre 2008 e 2010.

Se atendermos à proveniência do investimento em Portugal (Figuras 3 e 4), constata-se existir uma supremacia do peso do investimento europeu (85,7%), particularmente dos países que fazem parte da União Europeia (81,8%), no total de investimento realizado, entre 2008 e 2015. Fora do contexto europeu, embora com menor expressividade, é de assinalar o investimento procedente de outros continentes, particularmente o dos continentes asiático, africano e da américa do sul, correspondendo respetivamente a 10,2%, 3,2% e 1,8% do total de investimento realizado no território nacional, para o período em análise. Destes, destaca-se o investimento de origem chinesa, brasileira e angolana. Sublinhando o aumento de investimento chinês, a partir de 2013, e do Brasil, entre 2013 e 2014, expondo um montante de investimento da ordem dos 2,6 mil milhões de euros, cujo impacto se reflete em 20% do total de investimento operado no território nacional, entre 2013 e 2015. Relativamente ao investimento angolano, cuja assertividade foi mais intensa, a partir de 2012, representou entre 2012 e 2015, 4% do total de IDE concretizado no território nacional (aproximadamente 841,7 milhões de euros).

 

 

 

Embora a informação disponível no Banco de Portugal, até à data, não permita estabelecer uma relação entre a origem dos investidores e promotores estrangeiros e o objetivo do investimento, não pode ser negligenciado o facto de recentemente existirem sinais que indiciam alguma dinâmica urbanística no território nacional, para a qual a conjuntura económica e financeira interna continua a ser pouco favorável, e neste medida, podendo admitir-se a possibilidade de existir uma relação entre a evolução dos fluxos de IDE, a implementação do programa Vistos Gold e regime de RNH, e as alterações urbanísticas registadas no território.

Neste âmbito, refira-se que a progressiva melhoria dos indicadores económicos e o maior controle da divida pública nacional, fundamentalmente a partir do segundo semestre de 2013, surgem como contributos cruciais para a recuperação do sector e para suscitar o interesse dos investidores estrangeiros no mercado nacional (Quintela, 2014). Por outro lado, a implementação dos programas estatais vem potenciar ainda mais o investimento no sector, quer através do incentivo à atividade construtiva quer no aumento de imóveis transacionados. Porém, admite-se existir uma certa dificuldade em estabelecer uma ligação entre as dinâmicas urbanísticas ocorridas no período pós implementação dos programas que advém, por um lado da obrigatoriedade de sigilo quanto ao requerente da intenção urbanística, e por outro, ao facto de grande parte dos investidores estrangeiros estarem associados a empresas e fundos imobiliários, recorrentemente utilizados para transações e outras operações imobiliárias. Apesar destas limitações, é relevante perceber quais as dinâmicas urbanísticas que ocorreram no território nacional, antes e depois da crise, tendo também em atenção os anos pós 2012 onde se registou uma maior intensidade de investimento estrangeiro (IDE) e a ocorrência de pedidos de concessão de residência ou de direitos de cidadania. Tendo subjacente este propósito, elegeram-se alguns indicadores considerados como representativos da dinâmica urbanística e do mercado residencial nacional, com incidência geográfica ao nível do País, da Área Metropolitana de Lisboa (AML) e do município de Lisboa, cuja leitura e análise permitem destacar os seguintes aspetos:

i) A constatação de que ocorreu uma diminuição acentuada quanto ao número de edifícios licenciados, no território nacional e na Grande Lisboa, entre 2006 e 2015 (Figura 5). Sendo essa tendência de decréscimo bem mais expressiva na Grande Lisboa, entre 2012-2015 (variação de -30% em Portugal, contra -51% na Grande Lisboa). No caso particular do município de Lisboa, o comportamento registado ao nível do processo de licenciamento, é manifestamente diferente, observando-se por um lado, uma tendência de aumento progressivo do número de edifícios licenciados, entre 2006- 2012 (variação de 31%) e por outro, de decréscimo, entre 2012-2015 (-42%).

 

 

Não obstante, se atendermos ao número de processos entrados no município de Lisboa para aprovação de licenciamento para construção nova e obras de reabilitação, verifica-se que a partir de 2012 existe um novo impulso nas intenções urbanísticas a realizar na cidade (variação de -5% em 2009-2011, contra 44%, em 2012-2014), particularmente ao nível de processos de intervenção associados à reabilitação urbana, representando 43% do total de processos entrados a partir desse ano (Figura 6).

 

 

ii) No período pós-crise o licenciamento para habitação familiar associado a processos de reabilitação urbana começa a ter alguma visibilidade, particularmente notória em Lisboa, a partir de 2012-2014, embora esta tendência surja “timidamente” no território nacional e na Grande Lisboa (Figura 7).

 

 

iii) De acordo com a informação do Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de contratos de compra e venda de prédios urbanos, diminuiu significativamente, entre 2004 e 2012, em todo o território nacional, sendo esse decréscimo mais expressivo na AML (variação de -64,3%) do que em Lisboa (-59, 9%) e em Portugal (-58,6%). A partir de 2012, ocorre uma inversão dessa tendência negativa, registando-se as maiores variações positivas em Lisboa (57,1%) e na AML (26,5%) face ao território nacional (8,4%) (Figura 8).

 

 

De facto, o impacto da crise e as consequentes alterações no cenário económico e financeiro que afetou Portugal e outros países europeus contribuiu para reduzir drasticamente a atividade económica nacional, o investimento exterior e o interesse no investimento imobiliário, refletindo-se no decréscimo de contratos de compra e venda celebrados em Portugal, com particular acuidade, entre 2008-2012 (-47,7%). Todavia, a inversão desta situação, registada pelo comportamento ocorrido entre 2012-2014 (+8,5%), se pode expressar por um lado, o impacto do aumento do investimento exterior, do crescente interesse pelo regime de RNH, e da implementação do programa Vistos Gold no território nacional, na dinâmica do sector imobiliário, por outro, poderá refletir um aumento do nível de confiança dos autóctones, quanto à situação económica e financeira do país, incitando o investimento imobiliário.

Relativamente aos valores médios dos prédios urbanos transacionados observa-se que, entre os anos de 2002 a 2008, registou-se um aumento significativo em todo o território nacional. Tendo, contudo, esse acréscimo ocorrido de forma mais acentuada no município de Lisboa (variação de 95%) (Figura 9).

 

 

As alterações conjunturais verificadas no período pós crise, não só se refletem na redução da procura imobiliária, e no número de contratos celebrados no território, como também contribuem para que a oferta existente seja alvo de desvalorização, expressando-se naturalmente pela diminuição do valor médio dos imóveis transacionados, processo que se disseminou por todo o território nacional. Porém, a diminuição do valor médio dos prédios urbanos transacionados foi mais acutilante no território nacional e em Lisboa, do que na AML, registando-se uma variação de respetivamente (-8,9%) e (-10%), nos dois primeiros, e de (-3%) na AML. Contudo, admite-se, embora com alguma cautela, que a persistência desta situação no território, possa ser encarada como uma oportunidade de investimento, se atendermos à tendência de crescimento do número de contratos de compra e venda, ocorrida entre 2012-2014 (Figura 8).

iv) Tendo por base a avaliação bancária efetuada sobre os alojamentos constata-se que o valor médio por metro quadrado das habitações em Portugal e na AML, em junho de 2016, eram de respetivamente 1.065 e 1.291 euros por metro quadrado (INE, Julho 2016). No município de Lisboa, esse valor atingia os 1.941 euros por metro quadrado, sendo 45% acima do valor médio nacional. De notar, que a evolução deste indicador em todo o território nacional sofreu oscilações, de janeiro de 2012 a agosto de 2014. Não obstante, a partir de agosto de 2014 observa-se uma tendência de crescimento mais constante dos valores médios de avaliação bancária dos alojamentos da AML e do País, reconhecendo que a variação desses valores, entre agosto de 2014 e junho de 2016, é superior na AML (4,2%) face à do País (3,2%).

Também na cidade de Lisboa a evolução dos valores médios de avaliação bancária sinalizam, a partir de agosto de 2014, um comportamento mais estável, menos oscilante, revelando uma tendência de crescimento progressivo, mas mais expressivo (variação de 12,3% entre agosto de 2014 e junho de 2016), denunciando uma atividade imobiliária mais dinâmica e atrativa, aspetos que na ótica do investidor podem ser encarados como indicadores de confiança e de rentabilização, motivos suficientemente encorajadores ao investimento (Figura 10).

 

 

v) A retoma do investimento estrangeiro no país, sentida a partir de 2012 (embora com uma inflexão em 2013), e a perspetiva de investimento imobiliário associada à necessidade de aquisição de imobiliário no território nacional para a obtenção de visto de residência e de estatuto de RNH, para além de “ressuscitar” o sector imobiliário nacional contribui para aumentar a procura de imóveis e consequentemente, inflacionar o seu valor. Situação que para além de alterar o comportamento do mercado residencial, cria segmentos (ou nichos) orientados para determinadas especificidades da procura.

Neste sentido, atenda-se à evolução dos preços do mercado de compra e venda residencial na cidade de Lisboa, entre o primeiro trimestre de 2009 e o terceiro de 2014, cujo índice de preços residencial sofreu um decréscimo bastante acentuado, fundamentalmente a partir do terceiro trimestre de 2010, resultante em grande medida do impacto da crise e da política de austeridade, invertendo, no entanto, essa tendência a partir do primeiro trimestre de 2013. Se tivermos em consideração o comportamento do percentil 95, que traduz as transações que são significativas em termos de valor, representando na terminologia imobiliária o segmento de habitação de gama média/alta, verifica-se que este detém uma expressão muito significativa, a partir do segundo trimestre de 2013, refletindo uma subida de preço superior a 50%, infletindo contudo ligeiramente, a partir do segundo trimestre de 2014 (Figura 11).

 

 

Estes sinais de variação no comportamento do mercado residencial da cidade de Lisboa evidenciam um repentino investimento no imobiliário, especialmente na vertente residencial de valor mais elevado, circunstância anómala se tivermos em consideração que a sociedade portuguesa ainda se encontrava em plena crise económica e financeira. Apesar de ser consensual nas publicações e artigos das empresas imobiliárias a operar no território nacional, de que esta situação é bastante favorável para a dinamização do sector e do mercado residencial, após um período grande de estagnação (pós crise), porém, conforme admitem os operadores nacionais podem refletir, perversamente, uma valorização artificial do preço dos imóveis, decorrente do aproveitamento desencadeado pelo fortalecimento do investimento estrangeiro realizado em Portugal, em período pós – crise, e pela implementação dos instrumentos estatais, Vistos Gold e RNH, em 2012 e em 2009, respetivamente.

Concomitantemente, admite-se que a natureza e especificidades do processo de planeamento e de ordenamento dos territórios para além de aumentar o nível de atratividade de determinadas áreas, e de “seduzir” o investimento, podem também contribuir para inflacionar os valores praticados pelos mercados imobiliários residenciais locais. Neste âmbito, atenda-se à realidade da cidade de Lisboa, que desde o início da primeira década do séc. XXI definiu uma estratégia de desenvolvimento urbano para o seu território, consubstanciada no Plano Diretor Municipal (2012), elegendo alguns objetivos principais[17] a fim de se converter numa cidade de referência, a nível global. Como forma de operacionalizar esses objetivos é delineada uma Estratégia de Reabilitação Urbana (2011-2024), e são definidas ações programáticas e implementados projetos urbanos orientados para a requalificação do espaço público, valorização patrimonial, promoção da oferta cultural, e preservação das identidades da cidade.

Mas, se por um lado, estes processos de intervenção e de produção do espaço urbano, contribuem para qualificar o território e aumentar a visibilidade da cidade no exterior, por outro, introduzem no processo de planeamento uma nova filosofia de atuação que assenta na necessidade de mercantilizar o desenvolvimento urbano como forma, explicita e deliberada, de atrair capital externo. Todavia, esta forma de encarar a produção do espaço para além de puder suscitar processos especulativos, ou de distorção, nos valores praticados pelos mercados imobiliários residenciais, subverte completamente o discurso retórico de que a cidade deve ser concebida para todos.

Efetivamente, a adoção de processos especulativos no mercado residencial, se por um lado, potencia ainda mais a procura, tendo em vista o aumento da rentabilidade do investimento, criando alguma irracionalidade no comportamento do mercado e do próprio investidor, por outro, contribui para uma excessiva valorização do imobiliário, muito acima do seu valor real, podendo estar a alimentar a criação de uma bolha especulativa, o que face à eventualidade de ocorrer alterações na conjuntura económica e financeira mundial, pode provocar uma grande desvalorização imobiliária, e naturalmente grandes perdas para os investidores.

 

Se esta crescente procura de investimento exterior em Lisboa é benéfica para a recuperação do sector imobiliário da cidade, possibilitando a reabilitação do tecido edificado que se encontra abandonado e envelhecido, pode perversamente, a médio prazo, contribuir para a deslocalização de alguns segmentos de população para outras áreas da cidade, ou mesmo para fora do concelho, contribuindo para a fragmentação do espaço urbano, pela sua incapacidade financeira em suportar os custos inerentes à valorização do património imobiliário e à contingência de uma elevação do custo de vida da cidade. Neste sentido, não deve ser negligenciado, por parte do poder político, que o crescimento económico da cidade deve ser sustentável, orientado, devendo salvaguardar não apenas os interesses dos que vivem na cidade, como também, a dimensão simbólica da cidade [18], que a personaliza, sob pena de se tornar um “ …lugar de consumo e consumo de lugar” (Lefebvre, 2011; p.130).

 

 

3. Conclusão

O impacto da globalização nos territórios urbanos tem contribuído para a construção do espaço urbano através da adoção de novas estratégias e conceções urbanísticas. Efetivamente, a aplicação de capitais no desenvolvimento urbano foi um dos mecanismos adotados pelo sistema capitalista para assegurar a absorção de excedentes de capitais e para permitir a sua circulação. Contudo, este processo para além de alterar as dinâmicas sociais e imobiliárias existentes, suscitam uma organização espacial dos territórios, diferente, segmentada e elitizada.

No processo de ajustamento para a internacionalização (ou globalização), as cidades surgem como catalisadores de processos de reestruturação e de reorganização das atividades económicas, tendo como propósito o aumento da sua competitividade. Perfilhando a convicção de que o sucesso das cidades (e respetivos sistemas urbanos) na economia global deve estar dependente de certos «imperativos culturais e arquitetónicos universais», imprescindíveis para despertar o interesse de investidores internacionais. Os estudos realizados por Savills (2005) e pela Cushman & Wakefield (2015) demonstram que esse modo de atuação se reflete em alterações na dinâmica dos mercados residenciais locais, e na valorização do património imobiliário, resultantes principalmente do acréscimo da procura e da grande motivação quanto ao investimento.

Contudo, a afirmação do capitalismo neoliberal nos territórios exige condições que assegurem a concretização das suas pretensões. Se por um lado, o quadro económico, político e fiscal do país, objeto do investimento, é imprescindível para transmitir confiança e motivação quanto ao investimento a realizar, por outro, a existência de instrumentos estatais, como o programa Vistos Gold e o regime de RNH, permite dar alguma visibilidade dos sectores imobiliários nacionais na captação de investimento estrangeiro. A este propósito, as grandes imobiliárias a operar em Portugal aludem, recentemente num artigo de opinião[19], à reorientação do sector para a captação de investidores [20] nos próximos anos, acompanhando por um lado, a tendência de crescimento de mercados potenciais com interesse em áreas de descanso e de longa estadia, fundamentalmente direcionado para população em situação de reforma. E por outro, a tendência crescente de investimento em imobiliário de rendimento, denunciando a perceção de que existem boas condições para investir no sector.

No território português, o impacto da crise económica e financeira fez-se sentir na desaceleração do investimento estrangeiro, registando-se contudo, a partir de 2012, uma inversão nessa tendência, reforçada pelo impulso concedido pelo programa estatal Vistos Gold que foi particularmente assertivo em 2014. Apesar das dificuldades em estabelecer uma relação clara entre a retoma do investimento exterior, a criação dos programas estatais e a dinâmica urbanística e comportamento do mercado residencial nacional, efetivamente, existem sinais que denunciam alterações rápidas e expressivas, particularmente na cidade de Lisboa, para as quais o ambiente económico e financeiro interno continua a ser pouco favorável. Para além disso, a constatação dessas alterações não pode estar dissociada do facto do município de Lisboa ter sido assertivo ao delinear uma Estratégia de Reabilitação Urbana para o seu território, entre 2011 e 2024, associada a incentivos fiscais, a instrumentos de financiamento específicos e a uma simplificação normativa, cujo impacto seguramente foi determinante para o aumento significativo do licenciamento para habitação familiar ligado a processos de reabilitação urbana, registado na cidade, a partir de 2012.

Por último, a análise de alguns indicadores relacionados com a dinâmica urbanística e o comportamento do residencial nacional permite perceber que pós 2012, ocorreram alterações importantes no País, na AML, e com maior acuidade no município de Lisboa, das quais se destacam: i) uma maior visibilidade de pretensões urbanísticas associadas a processos de reabilitação urbana, particularmente notória na cidade de Lisboa, embora ainda timidamente na AML e no País; ii) o aumento do número de contratos de compra e venda de prédios urbanos, fundamentalmente em Lisboa e na AML; iii) em 2014 mantêm-se a tendência de decréscimo dos valores médios dos prédios transacionados, em todo o território nacional. Contudo, a análise ao indicador referente ao valor médio de avaliação bancária dos alojamentos, entre janeiro de 2012 e junho de 2016, se revela por um lado, um comportamento oscilante nos valores apurados para o território nacional, entre janeiro de 2012 e agosto de 2014. Por outro, a partir de agosto de 2014, verifica-se uma tendência de crescimento mais constante desses valores, que é generalizado em todo o País. Porém, observa-se que a variação entre os valores médios de avaliação bancária, entre agosto de 2014 e junho de 2016, é francamente expressiva nos alojamentos de Lisboa (12,3%) face aos alojamentos da AML (4,2%) e do País (3,2%); e iv) o aumento de transações significativas em termos de valor, registado em Lisboa, a partir do segundo trimestre de 2013, pode ser entendida como uma situação anómala, atendendo à situação económica e financeira que ainda perdura no país (apesar da melhoria de alguns indicadores económicos). Não obstante, esta realidade poderá eventualmente denunciar a existência de situações de empolamento dos valores praticados no mercado residencial, decorrentes das oportunidades de negócio suscitadas pelo aumento dos fluxos de investimento do exterior, e pelo aumento da visibilidade do país incentivada pelo programa  Vistos Gold e pela criação do regime de RNH.

 

 

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[1] Conceito de Harvey (2010) para designar os acordos estabelecidos e a forte dependência entre o sistema financeiro e o Estado, necessários para a criação de capital e para impulsionar a sua circulação. De acordo com o autor este processo é igualmente vantajoso para o Estado na medida em que os empréstimos e os respetivos impostos são posteriormente recuperados pela entidade pública.

[2] Existe um consenso generalizado na literatura consultada quanto à dependência do imobiliário aos ciclos económicos e a especificidades associadas ao sistema de crédito, tais como: a disponibilidade de crédito, a taxa de juro praticada e o período de amortização concedido aos empréstimos.

[3] De acordo com alguns autores económicos, os excessos de produção registados nos anos 30, foram causados pelo aumento da produtividade industrial, suscitado por Taylor em “Os Princípios da Administração Cientifica” (1911). Segundo Taylor, o aumento da produtividade poderia ser processado através da organização de tarefas, onde cada indivíduo desempenha uma função específica, obedecendo a padrões rigorosos de tempo e de movimento.

[4] Economista e professor universitário, cuja principal área de investigação incidiu nas migrações internacionais da população e do capital. Das suas obras destaca-se “A Study of Great Britain and the Atlantic Economy”, publicada em 1954.

[5] Com particular incidência nos Estados Unidos da América, no Reino Unido, na Austrália e na Nova Zelândia.

[6] Numa primeira fase analisa o efeito da globalização nas cidades e seus sistemas urbanos de cinco países: India; Coreia do Sul; Filipinas, Indonésia e Africa do Sul. Numa fase posterior, avalia o impacto desse processo em cidades individuais espalhadas pelo mundo como Rio; S. Paulo; Cidade do México; Bogotá; Los Angeles; S. Diego; São Petersburgo; Tóquio; Xangai e Karachi.

[7] Estudo que incide sobre o investimento global realizado em 25 cidades: Nova Iorque; Londres; Tóquio; Los Angeles; São Francisco; Paris; Chicago; Washington; Dallas; Atlanta; Miami; Boston; Hong Kong; Sidney; Houston; Berlim; Seattle; Melbourne; Frankfurt; Phoenix; Denver; Austin; Xangai; Amesterdão e Munique.

[8] Designação de Bourdain (2011) atribuída aos grandes projetos urbanos desenvolvidos por arquitetos de referência.

[9] Consideraram-se os segmentos de mercado referenciados na análise efetuada por Savills (2015).

[10] O estudo realizado pela Savills World Research (2015) incide sobre 13 cidades globais – Hong Kong; Paris; Dubai; Xangai; Londres; Singapura; Tóquio; Nova Iorque; Sidney; São Francisco; Los Angeles; Chicago e Miami.

[11] RNH (Residentes Não Habituais) - Regime criado em 2009, pelo DL nº249/2009 de 23 de setembro, aplicável a estrangeiros e a nacionais que transfiram a sua residência para Portugal depois de um longo período fora do país. O estatuto de RNH concede benefícios fiscais, isentando de IRS os pensionistas, e atribuindo uma taxa de 20% (+3,5% de sobretaxa) de IRS aos restantes RNH.

[12] Com a aprovação da Lei nº 29/2012 de 9 de Agosto abre-se a possibilidade dos investidores estrangeiros (fora da UE e do espaço Schengen), requererem autorização de residência em território português para desenvolverem atividades de investimento, mediante a realização de transferência de capitais, criação de emprego ou compra de imóveis. Este regime lançado em Outubro de 2012 e simplificado em Janeiro de 2013 produz efeito a partir de 8 de Outubro de 2012.

[13] SEF – Serviços de Estrangeiros e Fronteiras

[14] De acordo com ACEIP, num artigo de opinião publicado em http://www.portugalglobal.pt, em Março de 2017, até à data, aproximadamente 8 mil indivíduos já tinham aderido ao regime, dos quais 74% foram concretizados, entre 2014 e 2015. Residindo presentemente em Portugal 5.653 indivíduos com este regime, provenientes fundamentalmente da França e do norte da Europa.

[15] Conforme refere Quintela (2014), a emigração de negócio deve ser percecionada como fazendo parte de uma etapa da expansão capitalista, prevalecendo o poder do sistema financeiro e dos mercados de capitais face ao poder político, e suscitando o aumento de fluxos migratórios por motivos de lazer ou de negócios.

[16] Informação do SEF

[17] Proximidade; empreendorismo; inclusão; sustentabilidade e integração global.

[18] Segundo Lefebvre (2011), a dimensão simbólica representa as significações ligadas ao modo de viver e de habitar a cidade. De acordo com o autor, a cidade possui particularidades próprias que são expressas não apenas pelos seus elementos patrimoniais e morfológicos como também pelos gestos, pelas conversas, pelas roupas, dos seus habitantes.

[19] Suplemento Comercial – Imobiliário, Abril 2014, in http://www.imobiliário.publico.pt

[20] Particularmente franceses, belgas e ingleses.

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