SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número9Modelagem conceitual para identificação de áreas com potencial para geração de energia por fonte renovávelAldeias de montanha: os problemas, as perspetivas e as propostas, vistos desde as serras da Aboboreira, Marão e Montemuro, no Noroeste de Portugal índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.9 Porto jun. 2016

https://doi.org/10.17127/got/2016.9.005 

ARTIGO ORIGINAL

 

O espaço público na construção da cidade portuguesa recente: três décadas em balanço

The public space in the construction of recent portuguese city: three decades in perspective

 

 

Coelho, Rodrigo1

1Centro de Estudos da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto / CEAU-FAUP; Via Panorâmica S/N, 4150-564, Porto, Portugal; rodrigo.coelho@arq.up.pt

 

 

RESUMO

Devido ao alastramento fragmentado e descontínuo da mancha urbanizada, as cidades portuguesas viram nas últimas três décadas a sua condição urbana profundamente alterada, conduzindo à desconfiguração e alteração da paisagem urbana e do território em redor dos principais centros urbanos. Neste texto pretende-se enquadrar, em particular, o projeto do espaço público nesta dinâmica de transformação, e compreender de que forma as mais recentes intervenções de espaço público foram ou não capazes de interpretar a realidade urbana portuguesa atual, no sentido de restituir alguma estrutura e legibilidade aos sectores urbanos em questão. Por fim procuraremos explicitar algumas hipóteses para pensar o projeto do espaço público num possível e desejável processo de reconstrução da cidade portuguesa contemporânea.

 

Palavras-Chave: Cidade Portuguesa contemporânea, projeto urbano, espaço público, recomposição urbana.

 

ABSTRACT

Due to the fragmented and discontinuous spread of urbanization, Portuguese cities have seen in the last three decades their urban condition dramatically changed, leading to the disfiguring of the urban landscape and the territory around the main urban centers. In this paper we intend to frame the urban project and, in particular, the project of public space in this transformation dynamics, and understand how the recent interventions in public space tackle the current Portuguese urban reality, in order to provide consistency, structure and readability to the less consolidated and fragmented urban sectors. Finally we seek to assess the role of public space in a possible and desirable process of redesigning the Portuguese city, suggesting hypotheses to “think the project of public space”.

 

Keywords: Portuguese Contemporary city, urban design, public space, urban recomposition.

 

 

1. Introdução – A cidade portuguesa contemporânea: antecedentes

Desaparece o passeio, quebram-se as continuidades e a fluidez da mobilidade pedonal, perde-se a percepção da cidade vista como um todo; (...) Na cidade-estrada amontoam-se os conflitos entre usos e tráfegos, sucedem-se contínuos construídos, aberturas, aproximações e distanciamentos dos edifícios, afunilamentos, cruzamentos com vias que, lateralmente, dão acesso a outros conjuntos edificados que se encerram na sua morfologia ou se vão dissolvendo em gradientes de maior ou menor densidade, variedade tipológica, usos e funções. Na urbanização difusa, a “poeira urbana” espalha-se sem sentido aparente, quebrando as velhas dicotomias entre cidade e campo, entre urbano e rural“ (Domingues, Álvaro[1]).

 

Devido ao alastramento fragmentado e descontínuo da mancha urbanizada (sob diferentes formas e graus de intensidade distintos), as cidades portuguesas viram nas últimas três décadas a sua condição urbana profundamente alterada, revelando-nos lógicas e modelos de desenvolvimento e urbanização muito diferentes daquelas que estão na base de urbanização do nosso território, tendo como resultado mais visível a desconfiguração e alteração da paisagem urbana e do território em redor dos principais centros urbanos[2].

A forte pulsão urbanizadora a que assistimos nas últimas três décadas (protagonizada particularmente pelo sector imobiliário privado, com ou sem base especulativa - e sem um controlo eficaz e efetivo por parte das administrações locais) coincide, como se sabe, com um período de vigor económico no nosso país, que beneficia da entrada massiva de fundos da Comunidade Europeia, que permitem a realização de obras públicas e equipamentos, designadamente, de infraestruturas rodoviárias, cujo impacto se faz sentir de forma evidente na morfologia urbana e no tamanho dos nossos centros urbanos mais importantes.

Este processo está, como sabemos, simultaneamente marcado pela especialização funcional e mobilidade geográfica, pela terciarização e internacionalização da economia e pelo aparecimento de redes de fluxos diversificados que também detectamos na maioria das cidades europeias, com a consequente reconfiguração dos sistemas urbanos e das suas morfologias.

Considerando o caso português, a construção de infraestruturas e o desenvolvimento de sistemas e tecnologias da mobilidade (colmatando, de facto, deficiências existentes na articulação intra-territorial[3]), constituem, justamente, o principal elemento de ruptura com a lógica de crescimento e da formação dos padrões de aglomeração da cidade histórica. A este facto vemos associado não apenas um aumento de escala da cidade, mas também a fragilização do papel dos núcleos urbanos originais, dissolvidos pelo crescimento ilimitado e extensivo da cidade – que se vai urbanizando ao longo dos grandes eixos estruturadores definidos pelas principais infraestruturas de tráfego - com todas as consequências que daqui decorrem, ao nível da articulação com as realidades físicas locais[4]  (topografia, morfologia, escala urbana e a memória dos lugares) e com os antigos traçados[5].

 

 

Perante estas tendências gerais de transformação, constatamos, no entanto, que os fenómenos de expansão e de fragmentação dos aglomerados urbanos têm consequências distintas no contexto erritorial português, assistindo-se ao reforço de uma urbanização mais difusa, de carácter extensivo, ao longo da faixa litoral entre Viana do Castelo e Setúbal, de onde se destacam as áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e do Porto (AMP), onde se evidenciam e se amplificam muitas das consequências que a referida pulsão urbanizadora gerou[6].

Como observa Manuel Fernandes de Sá, como resultado da interação destes factores “(...) a cidade centrifuga-se e estilhaça-se num território vasto, desigualmente ocupado em termos de quantidade, diversidade de usos e qualidade da ocupação urbana (…)”, o que se traduz no surgimento de inúmeras frentes de urbanização e infraestruturação do território, cujos traçados e formas, frequentemente desligados de qualquer política urbanística, criaram novos embriões de polaridade[7].

Provavelmente, um dos mais visíveis e importantes efeitos que se processa no âmbito destas transformações, está ligado ao surgimento de novas centralidades e de grandes áreas não construídas que, de forma mais ou menos espontânea, se foram formando em torno dos principais aglomerados urbanos. Estas últimas constituem sem dúvida uma nova categoria de espaços abertos, que se diferencia claramente dos “vazios tradicionais” - traduzidos em espaços públicos como a praça, a rua e o jardim - e que, pela sua dimensão, configuração e carácter indefinido, se assumem, em muitos casos, como as sobras que retiram a leitura de continuidade ou de conjunto à cidade (ao não permitirem a leitura dos seus limites e da sua unidade formal)[8].

 

 

2. A debilidade do desenho urbano e o défice de regulação urbanística

Se as recentes e profundas transformações que podemos observar na cidade portuguesa podem ser enquadradas à luz de uma nova condição urbana comum à maioria dos países europeus, temos de reconhecer que, no caso português, outros factores ligados aos instrumentos de planeamento urbanístico foram decisivos para o rumo que estas transformações acabaram por assumir.

Entre os múltiplos factores que estão na base da transformação profunda do território e das cidades portuguesas verificada nas últimas três décadas, um dos mais decisivos terá sido a ausência ou deficiência de regulação urbanística, acompanhada de uma alteração do papel do estado central e local na construção da cidade.

Esta circunstância pode ser observada na progressiva “demissão” do papel do Estado enquanto promotor, regulador e licenciador que, no caso português, a maioria dos autores associa à entrada em vigor do primeiro diploma regulamentador das operações de loteamento em 1965 – Decreto-Lei nº 46 673 de 29 de Novembro de 1965 (que conduziu, genericamente, à “privatização do planeamento” que, na maioria dos casos, retiram coerência e credibilidade às funções reguladoras que o Estado passou a assumir).

A “privatização dos loteamentos”, além da conhecida e nefasta possibilidade que abriu de especular sobre os solos periurbanos[9], reduziu de forma drástica a coerência e articulação entre as diferentes partes da cidade, cingindo-se, na maioria dos casos de forma burocrática e sem uma perspectiva de conjunto, à criação de novos sectores urbanos onde o desenho da rede viária, dos espaços livres e arborizados (assim como das zonas de estacionamento e de cedência de terreno para equipamento urbano) se submetem inevitavelmente à maximização das volumetrias, concentrando os seus esforços na obtenção de mais valias[10].

 

 

 

Ou seja, num cenário onde os interesses privados se sobrepõem ao interesse público, e onde a ocupação do território se realiza visando o seu maior rendimento (privilegiando portanto as áreas destinadas à edificação privada e desconsiderando na maioria dos casos a qualidade dos espaços colectivos, bem como o dimensionamento das redes de infraestruturas e equipamentos), em geral, ao desenho urbano e ao tratamento do espaço público é conferido um tratamento secundário, concebido numa óptica do curto prazo, desprovido de uma visão de conjunto da cidade.

Por outro lado, é unanimemente reconhecido que, mesmo a partir da década de 90, momento em que passámos a ter a um enquadramento mais rigoroso e efetivo de intervenção e gestão urbanística (designadamente quando foi adoptado o PDM como instrumento generalizado e obrigatório de planeamento), em muitos casos, assistiu-se por parte da administração local à deslegitimação ou enfraquecimento de alguns instrumentos de planeamento em virtude do grau de determinação que alguns destes instrumentos impõem relativamente ao desenho da cidade[11].

Preferiu-se assim, em muitas situações, a utilização de uma regulamentação abstracta e genérica, em detrimento de planos desenhados como o Plano de Pormenor que, como se sabe, se considera o instrumento privilegiado para estabelecer regras sobre a forma da edificação privada, o traçado das vias e das infraestruturas, o desenho dos espaços públicos e a localização ou inserção urbanística dos equipamentos de utilização colectiva[12].

A estas dúvidas levantadas relativamente à adopção de figuras de plano mais desenhadas e vinculativas do ponto de vista do seu desenho urbano, soma-se a “escassez” de objectivos políticos e a reduzida descoordenação na gestão urbanística entre as diferentes entidades e os serviços públicos envolvidos no desenho da cidade e do território.

Estes factores, conjuntamente com a ausência de uma cultura e de uma prática consistente do planeamento urbanístico e do desenho urbano, ajudam a explicar o alastramento disperso, desconexo e avassalador da mancha urbanizada, a escassez ou mesmo ausência de espaços públicos qualificados e estruturadores nas novas expansões urbanas, o rompimento dos equilíbrios ecológicos, etc.[13].

Este diagnóstico crítico (que resulta, como vimos, de acumulação de défices vários ao longo de décadas) leva-nos a reconhecer, com alguma nostalgia, que os exemplos mais consistentes do urbanismo português do século XX remontem à primeira metade do século XX e que os bairros mais equilibrados e mais qualificados do ponto de vista dos seus espaços públicos sejam os que resultam da iniciativa pública. Contudo, devemos reconhecer que, com maior ou menor sucesso, a partir da década de 90, coincidindo com a implementação de diversas políticas urbanas apoiadas financeiramente pela União Europeia[14], a maioria das administrações locais procurou estancar e atenuar o impacto dos processos urbanizadores anteriormente referidos.

 

 

3. O espaço público na (re)construção da cidade portuguesa recente

A progressiva resolução de problemas básicos e a consciencialização, por parte dos cidadãos e das autoridades, dos problemas causados à cidade e ao território português, abriu no entanto espaço (por vezes apenas mediático) para o reconhecimento dos problemas da qualidade urbana e arquitectónica na cidade, ligados à valorização do espaço público[15].

Com efeito, foi apenas na última década, após a realização da Exposição Mundial de 1998 (Expo 98) em Lisboa e com a criação do Programa Polis em 1999[16], que ganharam visibilidade a requalificação urbana e a valorização ambiental das cidades, fortemente ancoradas na requalificação do espaço público[17].

A visibilidade e o sucesso que experiências como a da Expo 98 alcançaram, estabelece um standard de qualidade que, de forma clara e irreversível, marca muitos dos projetos de requalificação urbana subsequentes, que se desenvolveram em território português, constituindo-se como a referência (de qualidade e de gestão) para os projetos e programas de requalificação urbana que se seguiram, como se sabe, em grande parte ao abrigo do Programa Polis.

 

 

Com efeito, na área correspondente ao recinto Expo 98, podemos reconhecer um momento de inflexão importante, que se traduz na importância que a partir deste momento (sobretudo em termos da opinião pública) passa a ser dedicada ao desenho e à qualidade dos espaços abertos. O exemplo da Expo 98 vem, por outro lado, colocar em evidência a possibilidade de compatibilizar um projeto imobiliário com um projeto de um recinto de grandes dimensões para uma exposição, onde se reconhece uma estrutura ao espaço público, capaz de condicionar a implantação e o desenho do edificado e de constituir simultaneamente um espaço legível, hierarquizado e qualificado do ponto de vista dos componentes que o desenham[18].

É com base nesta vocação estruturadora e qualificadora que o espaço público assume no projeto do recinto da Expo 98 que devem ser compreendidos os projetos que consubstanciaram o Programa Polis numa primeira fase. Considerados como 18 “intervenções exemplares”, estes projetos remetem-nos claramente para um modelo de intervenção próximo ao da Expo 98, que havia, por sua vez, resultado de uma consideração próxima daquela utilizada em Barcelona nas décadas de 80 e 90. Ou seja, trata-se de um conjunto de projetos que afirma a importância da participação do Estado Central enquanto promotor de ações sectoriais a partir de um entendimento mais global da cidade (mas também como coordenador dos agentes que aí intervêm), visando a criação e/ou requalificação intensiva de infraestruturas e espaço público, bem como na construção de equipamentos colectivos.

Mas não podemos ignorar que programas ou projetos urbanos como a Expo 98, o Polis ou outros ligados à organização de grandes eventos internacionais (como foi o caso do Plano das Antas realizado no âmbito da organização do Euro 2004 em Portugal ou mesmo da requalificação da Baixa do Porto ao abrigo da Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura), constituíram um mecanismo de intervenção de carácter intensivo e excepcional em zonas mais ou menos consolidadas, cujos resultados, embora sob alguns pontos de vista possam ser objecto de crítica, na maioria dos casos se traduziram num factor de valorização e estruturação dos sectores das cidades em causa[19].

Já no que diz respeito à intervenção mais corrente no espaço público da cidade portuguesa, do nosso ponto de vista, a apreciação não será tão optimista. O aspecto que julgamos importante reter é que, num ambiente de aceleradas mudanças, o espaço público produzido ou requalificado na última década em Portugal em zonas de transição ou expansão, tal como sucedeu um pouco por toda a Europa, espelha toda uma série de sintomas e de consequências, próprias de um processo em geral levado a cabo demasiado rápido e sem a devida ponderação quanto às consequências futuras de tais decisões.

As explicações para o relativo insucesso podem encontrar-se tanto dentro como fora do nosso âmbito disciplinar. Como já atrás observámos, alguns dos factores, de ordem mais geral, residem na relativa ineficácia, ausência ou utilização incorreta dos instrumentos de planeamento. A visão parcial e a escassa cultura urbana de muitos técnicos, decisores e outros intervenientes no desenho do espaço público, a pressão dos calendários eleitorais (associada, por exemplo, ao cumprimento de prazos impostos para a utilização de fundos estruturais e de outros programas de financiamento europeu para a requalificação urbana), constituíram, em muitas situações, obstáculos ao desenvolvimento consistente e equilibrado dos projetos, colocando consequentemente em causa os próprios resultados finais.

Por outro lado, no que diz respeito mais especificamente ao campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo, o projeto e desenho do espaço público passaram a ser assumidos em muitas situações (quer no panorama nacional, quer no internacional), como uma prática de experimentação autónoma[20]; nesta prática, em muitos casos, a arbitrariedade, a incoerência e a ausência de critérios urbanísticos, morfológicos, formais e funcionais, têm sido a regra e não a exceção na construção da cidade recente, constituindo-se como um dos factores para a fragilização da estrutura e do desenho da cidade e dos seus espaços públicos.

De entre este conjunto de projetos correntes, temos no entanto de estabelecer uma distinção entre as realizações de espaço público que resultam de uma visão mais integrada (ou seja, planeada) da cidade, e aquelas que resultam de intervenções pontuais sem uma visão estratégica e articulada.

Num primeiro grupo, podemos incluir algumas intervenções desenvolvidas pelas autarquias que, reconhecendo a importância estruturadora do espaço público e colectivo na cidade, implementaram projetos urbanos coerentes e articulados, pensados a médio e longo prazo (como ocorreu, por exemplo, em cidades como a Maia).

Num segundo grupo, podemos englobar toda uma série de intervenções de pequena e média escala, onde de um modo geral, se exceptuarmos os projetos de requalificação de espaços públicos em zonas históricas, as intervenções em sectores menos consolidados - de transição ou de expansão – se resumem ao tratamento de rotundas, ao embelezamento do espaço urbano e à criação de “espaços verdes”, deixando a estruturação e caracterização do espaço público, nestas partes da cidade, dependente da maior ou menor atenção que é atribuída ao espaço público por parte dos loteamentos privados.

 

 

Neste conjunto de intervenções menos consistentes, não pode deixar de ser referido um número significativo de projetos ligados à construção de novas infraestruturas rodoviárias, que,  “escapando” em geral ao controlo dos arquitetos, tem tido um impacto maioritariamente negativo na qualidade urbana e paisagística de novos sectores de cidade e consequentemente dos espaços públicos a eles associados.

É sobretudo a partir da análise destes últimos exemplos, que continuamos a associar as cidades portuguesas, no seu conjunto, a uma certa ideia de desordem e ausência de qualidade urbanística, onde a intervenção na cidade a partir do espaço público se tem traduzido, na prática, pela sobreposição violenta e indiferenciada de modelos, escalas e propósitos muito diferentes (para não dizer antagónicos), criando e acumulando outro tipo de tensões e desequilíbrios.

Nesta perspectiva, podemos apontar exemplos recentes, que têm vindo a revelar-se oportunidades perdidas de regenerar alguns sectores de cidade, de estruturar novas expansões, de criar centralidades, de construir verdadeiros lugares públicos, ou seja, de redesenhar cidade. Referimo-nos a planos, projetos ou intervenções urbanas que se desenvolveram de forma isolada, sem uma perspectiva mais global de redesenho da cidade e do espaço público, como por exemplo, a urbanização do Vale de Chelas em Lisboa, a urbanização da zona envolvente ao recinto da Expo 98, a inserção urbana do Metro de superfície em Almada ou a urbanização do Nó da Arrábida em Vila Nova de Gaia. Poderíamos também referir intervenções de menor dimensão levadas a cabo em sectores “nobres e vitais” (como são o caso das frentes de mar e de rio) de cidades como Vila Nova de Gaia (no Cais de Gaia), Póvoa do Varzim (arranjo do espaço público na frente marítima) ou Angra do Heroísmo (Baía de Angra) , cujos resultados, não só não constituíram melhorias para as cidades em causa, como desqualificaram urbanisticamente os sectores em causa.

Em qualquer dos exemplos apontados, julgamos que a maior dificuldade, ou debilidade, na materialização do espaço público parece residir na incapacidade de sustentar decisões ao nível do desenho da cidade no longo prazo. Como refere Nuno Portas, num tempo em que, ao contrário do que sucedia no passado, vemos ampliadas as opções técnicas e os padrões culturais, parece estar em causa a ausência de consensos culturais e técnicos ou disciplinares relativamente aos modelos de edificação e do espaço público que devem sustentar a construção ou reconstrução da cidade (com reflexos, por exemplo, ao nível da relação entre traçado e edificação, decisiva, como sabemos, para a consistência do desenho urbano)[21].

 

 

4. Um contributo para pensar o projeto do espaço público na (re)construção da cidade portuguesa contemporânea

Perante o cenário traçado anteriormente, de constante urbanização extensiva e desestruturada (sobretudo da franja litoral do nosso território), perante o défice de urbanidade das partes de cidade que vimos crescer ao longo das últimas décadas e perante a ausência de coerência, de beleza dos (novos) espaços urbanos, não podemos deixar de reconhecer como necessário e urgente, sobretudo questionar os objectivos, as metodologias e as práticas de projeto e de desenho urbano, capazes de restituir alguma coerência, estrutura e legibilidade aos sectores urbanos que resultaram das transformações urbanas ocorridas nas últimas décadas.

Ou seja, perante uma realidade urbana como aquela que apresenta a maioria das cidades portuguesas, a principal questão que julgamos importante colocar será: ainda é possível conferir uma forma ou um desenho à cidade? Qual o papel do espaço público num possível e desejável processo de redesenho da cidade portuguesa[22] ?

De um modo geral, o enquadramento desta problemática, que de resto extravasa a realidade portuguesa, tem colocado desde logo uma questão importante, que se prende com a dificuldade que constitui o confronto com uma realidade tão diversa e incaracterística como a da cidade contemporânea.[23]

A este propósito julgamos especialmente lúcida a observação de Bernardo Secchi, quando afirma que “(...) a imagem da cidade contemporânea é a de uma cidade que já existe, mas que está à espera de um projeto.”[24] Desenvolvendo esta ideia, Carlos Martí sugere que, deste ponto de vista, o projeto constitui não apenas uma forma de indagação sobre o sentido das coisas, mas também um procedimento intelectual que nos permite operar sobre o mundo e ao mesmo tempo de o compreender”[25].

Seguindo esta linha de pensamento julgamos que, também no caso português, o avanço no estudo e no conhecimento da realidade urbana atual será tanto mais rico e operativo se formos capazes de, criteriosamente, selecionar os espaços, os lugares e os projetos que possam sintetizar ou condensar os desígnios ou problemas urbanos que interessem ao desenho da cidade no seu conjunto.

Consideramos assim como hipótese de partida para a análise e intervenção no espaço público na cidade portuguesa contemporânea, a necessidade de investigar e aprofundar seletivamente determinados sectores de cidade que, porventura assumindo entre si diferentes escalas, formas e usos, nos permitam pensar estarmos em presença de componentes (re)fundadores ou estruturadores da cidade atual, sobretudo enquanto espaços potencialmente significativos para experiência colectiva da cidade e potencialmente transformadores e ordenadores da forma urbana.

A hipótese que colocamos para estudar e aprofundar a problemática do espaço público na cidade atual deverá em primeiro lugar considerar uma matriz de análise abrangente, mas seletiva ou multi-focalizada, que nos permita identificar os problemas ou desígnios que julgamos relevantes para a revalorização da vocação urbanística do projeto do espaço público, orientando-o para um projeto mais global e integrado de cidade[26].

Ao partir desta matriz de análise, estamos por um lado a reconhecer a existência de temas invariantes - cronicamente prementes - reconhecendo, por outro, a cidade contemporânea e as diferentes partes que a constituem como projetos em si mesmos, passíveis de serem tratados como problemas específicos[27] e concretos no interior de uma realidade diversa (tal como Bernardo Secchi e Carlos Martí nos sugerem). Nesta perspectiva julgamos fundamental, desde logo, uma distinção clara entre quatro desígnios principais para o espaço público:

  • o espaço público como elemento ordenador das expansões urbanas,
  • o espaço público como elemento de reconstrução da cidade sem plano,
  • o espaço público como elemento de reestruturação da cidade metropolitana
  • e o espaço público como elemento de exceção de escala geográfica.

Estes desígnios ou tópicos de reflexão (ligados a temas de análise mais operativa e a problemas de projeto específicos e individualizáveis) constituem-se assim não apenas como afirmações de princípio quanto à importância urbanística que reconhecemos ao espaço público no contexto da cidade atual, como nos permitem ainda, do ponto de vista da análise e do projeto, individualizar e tornar mais claro os diferentes papéis que o espaço público pode ou deve cumprir.[28]

Tendo sido sucintamente delimitados os principais temas e os desígnios que consideramos prioritários de atuação da cidade a partir do projeto do espaço público, podemos, por fim, questionarmo-nos sobre quais os critérios morfológicos ou as referências tipológicas que poderão ou deverão materializar os espaços públicos na Cidade Portuguesa contemporânea.

Muito embora reconheçamos a necessidade de conferir ao espaço público atributos formais e funcionais, que permitam recuperar a sua dimensão estruturadora e o seu estatuto de lugar significativo na cidade, julgamos que os diferentes papéis, hierarquias e significados que o espaço público deve assumir, podem justificar algumas diferenças na definição dos princípios de construção da sua forma e da sua caracterização.

Assim, no que diz respeito aos espaços públicos de estruturação e de expansão - os que devem, fundamentalmente, criar e consolidar os novos itinerários significativos da vida urbana em sectores menos consolidados - julgamos que estes se devem concretizar, tanto quanto possível, como espaços definidos a partir de uma arquitetura do espaço público que permita uma definição inequívoca da sua forma (isto é, da escala e dos volumes dos componentes que a constituem e dos sistemas que os suportam), remetendo-nos para a sua consideração sobretudo como marcos urbanos e referências perenes para o espaço urbano presente e futuro.

 

 

A principal questão ou dificuldade que se coloca nestes casos é que, ao contrário das ruas, das praças e dos monumentos que conformam na cidade canónica (espaços contidos por um tecido residencial relativamente denso e homogéneo), os componentes da nova realidade urbana emergente são agora mais diversificados e descontínuos.

Esta circunstância, associada ao facto das grandes infraestruturas e das arquiteturas dos equipamentos colectivos se materializarem tendencialmente como elementos desligados do continuum urbano, obrigam-nos a ter de considerar, tal como Secchi e Portas defendem, o desenho do chão como o elemento que, complementarmente, em muitos casos, pode ajudar a conformar os novos espaços públicos de estruturação e de expansão. Nestes casos, o desenho do chão pode ser assim entendido como um componente potencialmente ativo na modelação de um espaço urbano tendencialmente mais aberto e menos articulado, tal como Bernardo Secchi defende.

 

 

Relativamente aos espaços públicos de exceção, mais do que reivindicar a sua vocação ordenadora, o que na maioria das vezes será igualmente necessário e desejável, julgamos fundamental criar verdadeiros lugares públicos que se definam pela presença de formas e de tipos significantes, pensados no sentido de proporcionar experiências qualificadas e significativas dos lugares.

Este entendimento poderá significar, em certos casos, colocar o indivíduo no centro das preocupações, remetendo-nos para uma ideia expressa por Carlos Martí, quando nos fala da intimidade e recolhimento que alguns lugares públicos suscitam, fazendo prevalecer a relação individual com o sítio (presente, por exemplo, no jardim ou no parque), em detrimento da dimensão colectiva presente na praça[29].

Nesta medida, em muitas circunstâncias, como faz igualmente notar este autor, os lugares públicos de exceção da cidade contemporânea poderão não ser pensados como pontos de condensação da cidade tão característicos da cidade densa (mas inviáveis em muitos dos fragmentos de uma cidade mais dispersa e especializada), mas sim como recintos ou cenários dispostos na natureza “(...) que se abrem aos âmbitos que nos transportam à contemplação (...)”[30].

 

 

Seguindo Martí, também julgamos que os espaços públicos de exceção devem começar por ser pensados, justamente, a partir desta noção de cenário, de suporte excepcional, onde se coloca a ênfase na qualidade da experiência, através das relações que se podem estabelecer com a cidade, com a natureza e com a geografia em sentido lato. A natureza entendida não como parâmetro quantitativo ou como suporte indiferenciado ou exclusivo para o desporto, para o ócio e para o descanso, mas sim como valor escasso e excepcional, que nos remete para uma relação estreita e inseparável entre natureza e cultura[31].

A este propósito, o exemplo do oásis a que Carlos Martí alude, é particularmente sugestivo e revelador da relação estreita, que, desde sempre, existiu entre natureza e cultura, e que na perspectiva etimológica - como Martí nos lembra - têm a mesma raiz - colere (ação de cuidar de algo de cultivar)[32]. Esta metáfora do oásis parece-nos especialmente adequada para podermos pensar o espaço público na cidade menos consolidada ou na cidade sem forma e sem estrutura. Também aqui, tal como no oásis a que Martí se refere, o espaço público pode surgir como artifício, como o espaço “fértil” ou “fecundante” que surge no meio de uma terra “assolada” e “estéril”. Um lugar de referência, capaz de integrar natureza e cultura e capaz de permitir o estabelecimento de uma vivência qualificada em partes do território, onde condições desfavoráveis parecem impedir qualquer assentamento “estável” e “significativo”.

 

 

5. Referências

ÁBALOS, I. (2005). Atlas pintoresco. Vol. 1: el observatorio. Barcelona, Gustavo Gili,         [ Links ].

BINGRE, P. (2008). “1965: O ano da morte do Urbanismo Português”. JA - Jornal Arquitectos 232: 18-21.

BUSQUETS, J. (2004). “Presente y perspectivas del urbanismo”. Sociedade e Territorio 37-38: 46-60.

BUSQUETS, J.(2005). “Entrevistas: 20 visiones”. Papers. Regió Metropolitana de Barcelona 43:  26-29.

CABRAL, J. (2002). “Para uma política de Cidades – Os imperativos, as novas políticas urbanas, as questões éticas”. Sociedade e Território 33: 24-35.

CORBOZ, André (2004). “El territorio como palimpsesto”. Lo urbano en 20 autores contemporáneos (Ángel Martin Ramos ed.). Barcelona: Edicions UPC: 25-34.

DOMINGUES, A. (2005). “Novas paisagens urbanas”. JA - Jornal Arquitectos 218-219: 267-272.

DOMINGUES, A. (2006). Cidade e democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal. Lisboa: Argumentum.         [ Links ]

GONÇALVES, F.; BENTO, J. (2008). “Politica sem arquitectura, território sem memória”. JA - Jornal Arquitectos 232 : 22-25.

MARTÌ ARIS, C. (2005). “Lugares Públicos en la Naturaleza”. La Cimbra y el Arco. Fundación Caja de Arquitectos (eds). Barcelona:  55-72.

MARTÌ ARIS, C. (2001). “Lugares Públicos”. Conferência no Colegio de Arquitectos de Madrid em 26-04-01, Edição policopiada do autor.

MARTÌ ARIS, C. “Lugares Públicos en la Naturaleza”. Conferência na Faculdade de Arquitectura do Porto em 18-11-02, Edição policopiada do autor.

PORTAS, N. (2005). “Planeamento Urbano: Morte e Transfiguração”. Arquitecturas: teoria e desenho, investigação e projecto. Faup Publicações (eds). Porto: 54.

PORTAS, N. (2005). Arquitecturas: teoria e desenho, investigação e projecto. Porto: FAUP publicações.         [ Links ]

SÁ, M. F. De (2002). “Planos operativos de escala intermédia – caracterização técnica e arquitectónica”.  Sociedade e Território 33: 46-56.

SÁ, M. F. De (2001). “Da Cidade ao Sistema Urbano” (Comunicação apresentada ao congresso CIALP Maputo, Julho de 2001). Planos operativos de escala intermédia: caracterização técnica e arquitectónica, Porto: FAUP, 2004, Documento expressamente elaborado para instruir o processo de professor agregado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Provas de Agregação (Vol. 5 - publicações).

SALGUEIRO, T. B. (1992). A cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Porto: Edições Afrontamento.         [ Links ]

SECCHI, B. (2000). Prima lezioni di urbanistica. Roma: Laterza.         [ Links ]

SOLÀ-MORALES, M. (1987). “La segunda historia del proyecto urbano”. UR 5 : 21-27.

SOLÀ-MORALES, M. (2010). “The Impossible Project of Public Space”. In favour of public space: ten years of the european prize (Magda Anglès ed.). Barcelona: Actar: 24-32.

TÁVORA, F. (1982- 2ª ed). Da organização do espaço. Porto: ESBAP.         [ Links ]

 

 

[1] Álvaro Domingues, “Cidade e Democracia. Os anos da Mudança”, in Cidade e democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, (Álvaro Domingues, coord.), Lisboa: Argumentum, 2006, p. 37.

[2] Importa salientar que esta percepção de ausência de ordem e coerência na organização do espaço urbano português não resulta exclusivamente das transformações mais recentes que o nosso território sofreu. Como refere Teresa Barata Salgueiro é depois da Segunda Guerra Mundial que o movimento de suburbanização adquire maior vigor em Portugal, invadindo outras áreas: “Grande parte do crescimento suburbano alicerçou-se em núcleos de povoamento pré-existente que, progressivamente, se viram cercados de edifícios novos (...) frutos de iniciativas, de pequena dimensão, a construção progredia e, com ela, ia aumentando continuamente a população. Na segunda metade dos anos sessenta, fazem entrada na região de Lisboa os grandes promotores imobiliários responsáveis por urbanizações de grande dimensão”. Teresa Barata Salgueiro, A cidade em Portugal : uma geografia urbana, Porto: Afrontamento, 1992, p. 201.

O impacto desta urbanização mais disseminada leva a que, já em 1962, Fernando Távora afirmasse: “Todos os que se debruçam sobre o panorama atual português e a uma escala nacional, são concordes em reconhecer a desarmonia e o desequilíbrio que ele apresenta ao verificarem no seu conjunto a existência de zonas em intenso desenvolvimento, mais ou menos ordenado, zonas paralisadas, zonas em decadência contínua.” Fernando Távora, Da organização do espaço, Porto: ESBAP, 1982, p. 61. Fernando Távora é igualmente explícito quanto aos problemas que a disciplina do urbanismo enfrenta à época e quanto à debilidade que a sua prática apresenta face às dinâmicas urbanas: “Um ponto que importa focar é o que se refere aos limites das zonas atingidas pelos planos locais, pois acontece que, em certos sectores do país em maior desenvolvimento, nem sempre o limite administrativo ou estabelecido para o respectivo plano, coincide com o limite da expansão provável e dá-se o caso, muito comum, de não se encontrarem assim planeadas - nem mesmo a uma escala regional, o que já de si, aliás seria insuficiente - zonas de grande potencialidade urbanística, pelo facto de estarem situadas fora dos limites convencionais ou legais do aglomerado”. Fernando Távora, Da organização do espaço, Porto: ESBAP, 1982, p. 65.

[3] Como é sabido, após a adesão Portugal à União Europeia (que ocorreu em 1986) e em particular na década de 90, observou-se em Portugal um surto de infraestruturação do território que a maioria dos países europeus conheceu no período de reconstrução do Segundo Pós-Guerra.

[4] Refira-se que muitas destas obras, desprovidas de uma estratégia urbanística, foram projetadas e realizadas sob a responsabilidade de organismos tutelados pelo Estado Central (designadamente pela Junta Autónoma das Estradas e pelas Estradas de Portugal), sem a devida articulação com as estruturas de âmbito local, facilitando a tomada de muitas decisões de forma menos ponderada.

[5] Como salienta André Corboz, nas circunstâncias atuais (e a realidade portuguesa não constituirá uma exceção),  talvez o dado fundamental a reter  seja o facto do “(...) território, e por muito vaga que possa ser a sua definição, constitui a unidade de medida dos fenómenos urbanos”. André Corboz, “El territorio como palimpsesto” in Lo urbano en 20 autores contemporáneos (Ángel Martin Ramos ed.), Barcelona : Edicions UPC, 2004, p. 27.

[6] Assistimos assim, de forma particular e incisiva, sobretudo nestes dois casos, ao forte crescimento de áreas urbanas dormitório (com o progressivo esvaziamento e perda de população do seu núcleo central), consolidando o desenvolvimento de um modo de vida dependente do transporte privado. Simultaneamente, verificamos o aparecimento dos condomínios fechados, de parques industriais e empresariais e estabelecimentos comerciais de grande dimensão - shopping centers - que se traduzem de forma muito direta na organização e distribuição de bens e serviços, bem como nos hábitos de consumo e na forma como experimentamos a cidade.

[7]A cidade centrifuga-se e estilhaça-se num território vasto, desigualmente ocupado em termos de quantidade, diversidade de usos e qualidade da ocupação urbana. O centro, a forma, os limites, enquanto referenciais urbanos tradicionais perdem a clareza. Os limites diluem-se em sistemas territoriais mais vastos, a forma desdobra-se em composições heterogéneas, dissonantes, descontínuas em permanente mutação”. Manuel Fernandes de Sá, “Da Cidade ao Sistema Urbano” (Comunicação apresentada ao congresso CIALP Maputo, Julho de 2001), in Planos operativos de escala intermédia: caracterização técnica e arquitectónica, Porto: FAUP, 2004, Documento expressamente elaborado para instruir o processo de professor agregado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Provas de Agregação (Vol. 5 - publicações), p. 177.

[8] Como refere Álvaro Domingues, o carácter não definido ou não codificado dos vazios residuais e de outros espaços associados aos novos traçados de infraestruturas rodoviárias arteriais (projetados segundo critérios que decorrem da velocidade, da segurança, e de métricas e hierarquias funcionais rígidas e pré-definidas), determinam uma mudança de paradigma, onde o esquema formal e mental, que associamos à definição e caracterização dos vazios da cidade canónica, perde o sentido. Segundo este autor os “novos vazios” não podem apenas ser definidos por oposição à construção, “(...) já que possuem qualidades e potencialidades próprias (“naturais” e culturais, incluindo a carga simbólica que daí deriva) que devem ser apreendidas no contexto da descontinuidade formal e do estilhaçar do espaço urbano emergente.”. Álvaro Domingues, “Cidade e Democracia. Os anos da Mudança”, in Cidade e democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, (Álvaro Domingues, coord.), Lisboa: Argumentum, 2006, p. 38.

[9] Pedro Bingre, “ 1965: O ano da morte do Urbanismo Português”, JA, nº 232, p. 18.

[10] Sobre as implicações da política de solos e da economia imobiliária no desenho da cidade portuguesa ver: Pedro Bingre, “ 1965: O ano da morte do Urbanismo Português”, JA, nº 232, p. 18-21.

[11] O argumento invocado assenta, na maioria dos casos, na alegada falta de operatividade demonstrada pelo Plano de Pormenor, que (do ponto de vista de alguns dos atores inquiridos num estudo coordenado por Manuel Fernandes de Sá) só será operativo “(...)se existir ou se permitir criar capacidade de investimento no local a curto prazo. Caso contrário arrisca-se a tornar-se num instrumento de ´congelação da área` por ele abrangida.” Manuel Fernandes de Sá, “Planos operativos de escala intermédia - caracterização técnica e arquitectónica” in Sociedade e Território, nº 33 (Fevereiro de 2002), p. 52.

Esta posição de algum cepticismo relativamente aos Planos de Pormenor, também é expressa por Nuno Portas, que questiona o seu grau de operatividade e a sua utilização generalizada, quando não estão criadas as condições de programação e não existem agentes promotores para a sua efetivação, ou sequer definições quanto à distribuição dos encargos de urbanização. Nuno Portas, “Urbanismo e Ordenamento do Território: Balanço dos Anos 1970-2000” (Entrevista por António Fonseca Ferreira), Arquitectura(s): teoria e desenho, investigação e projecto, Porto: Faup Publicações, 2005, p. 298.

[12] Estamos de acordo com Fernando Gonçalves e João Bento quando reconhecem que, ao contrário de um plano de pormenor (que obriga os cidadãos mas também lhes confere uma maior autonomia face à administração pública), “(...) um regulamento dificilmente ultrapassa o horizonte de normas relativamente gerais e abstractas, (...) constituindo um modo expedito e barato de disciplinar a presença de construções na paisagem (...)”. Fernando Gonçalves, João Bento, “Politica sem arquitectura, território sem memória”, JA, nº 232 (Julho-Setembro 2008), p. 22-25.

[13] Não podemos deixar de referir que, para o diagnóstico que acabamos de traçar para a cidade e território portugueses, muito terão certamente contribuído uma série de opções estratégicas adoptadas a partir dos anos 80, ligadas ao modelo de económico e territorial seguido, com destaque para o "desinvestimento" no sector produtivo (em especial no sector agrícola e industrial), e a aposta na indústria da construção civil como motor de desenvolvimento. A este respeito deve ainda assinalar-se o desequilíbrio entre o investimento realizado no litoral do país em detrimento do interior, designadamente ao nível das infraestruturas rodoviárias, que conduziram a um incremento do transporte rodoviário privado em desfavor da aposta numa política integrada de transporte público.

[14] Foram muitos e variados os programas e as políticas urbanas entretanto implementados, orientados à requalificação e ao planeamento mais sistemático e integrado da cidade e do território portugueses. Um dos primeiros programas diz respeito à recuperação de áreas degradadas (Programa de Recuperação de Áreas Urbanas Degradadas,PRAUD, 1988), a que se segue o Programa Especial de Realojamento (PER, 1993). Correspondendo à implementação do II Quadro Comunitário de apoio da União Europeia, em 1994, é criado o programa PROSIURB, desenvolvido com o objectivo de desenvolver os centros estratégicos na organização do território nacional, a que se segue o programa URBAN (1995), destinado a apoiar a revitalização e a requalificação de áreas urbanas degradadas das áreas metropolitanas, o REHABITA (1996) e o RECRIA (1999) destinados à recuperação e beneficiação de imóveis em zonas urbanas históricas.

[15] É importante salientar o carácter pioneiro de operações como o projeto de requalificação da Zona Histórica de Guimarães (levado a cabo pelo GTL, sob a coordenação de Fernando Távora) e de experiências desenvolvidas em Évora ou em Angra do Heroísmo, ainda na década de 80, que se constituem como exemplos de intervenção urbana onde o espaço público foi objecto de um tratamento de conjunto.

[16] Lançado em 1999 e dotado de uma gestão própria (tutelada à época pelo Ministério das Cidades, do Ordenamento do Território  e do Ambiente), o Programa Polis (Programa Nacional de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental das Cidades), adoptando a parceria com os municípios e com os privados como modelo de intervenção intensiva em sectores estratégicos, de acordo com objectivos urbanísticos bem definidos, constitui o primeiro programa que adopta a requalificação urbana e a valorização ambiental como um objectivo fundamental.

[17] Num âmbito distinto mas igualmente inserido num programa de intervenção urbana de carácter excepcional, devemos também mencionar o projeto de requalificação urbana desenvolvido no âmbito da Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, que em certa medida se constituiu igualmente como uma referência importante para os projetos subsequentes de requalificação de espaço público desenvolvidos em sectores de cidade consolidada, particularmente nas suas zonas históricas.

[18] Ao converter-se no território do peão (beneficiando da relação com o rio Tejo, e de uma quantidade significativa de espaços abertos simultaneamente bem definidos e bem caracterizados), o sector correspondente ao recinto da exposição transformou-se num espaço urbano de referência, usado intensamente, refletindo os benefícios que podem resultar do investimento no espaço público, elevando este projeto urbano à categoria de caso exemplar.

[19] Uma das críticas que vários autores apontam a estes programas de intervenção excecional prende-se com o facto da opção da (re)qualificação e valorização da cidade a partir de projetos de exceção e de carácter intensivo implicar sempre, ou quase sempre, como salienta João Cabral, uma forma de promoção e valorização de um sector de cidade cuja escolha parte do estado central (tornando ambígua a definição de responsabilidades dos diferentes poderes políticos nesta escolha); sendo este facto, consequentemente “(...) desmobilizador da capacidade de intervenção da sociedade civil e dos agentes a atores locais, comprometendo a valorização dos recursos endógenos e a capacidade da cidade ser simultaneamente competitiva e coesa.“ João Cabral, “Para uma política de Cidades – Os imperativos, as novas políticas urbanas, as questões éticas” in  Sociedade e Território. Nº 33 (Fevereiro 2002), p. 33.

[20] Neste sentido estamos de acordo com Manuel de Solà-Morales quando denuncia o entendimento recente do projeto do espaço público, caracterizando-o como uma “(...) prática profissional autónoma de uma arquitetura da cota zero, desenvolvida a céu aberto”, onde parece não haver programa, custos, funções, estrutura ou cliente. Manuel de Solà-Morales, “The Impossible Project of Public Space”, “In favour of public space: ten years of the european prize” (Magda Anglès ed.), Barcelona: Actar, p. 27.

[21] Nuno Portas, “Planeamento Urbano: Morte e Transfiguração” in Arquitectura(s): teoria e desenho, investigação e projecto. Porto: Faup publicações, 2005, p. 64, 65.

[22] Alguma investigação tem vindo a ser desenvolvida em torno deste problema nos últimos anos. No âmbito da área disciplinar da arquitetura e do urbanismo, de forma mais ou menos sistemática, alguns autores portugueses têm vindo a fornecer elementos novos, seja ao nível da compreensão dos processos de transformação urbana, seja a um nível mais propositivo, apontando-nos alguns exemplos e pistas sobre onde e como atuar perante uma condição urbana com as especificidades da portuguesa. De entre os estudos mais recentes, diretamente ligados ao tema da construção do espaço público da cidade portuguesa contemporânea, um dos contributos teóricos mais relevantes é-nos apresentado por Nuno Portas, Álvaro Domingues e João Cabral em Políticas Urbanas. Tendências, estratégias e oportunidades. Uma parte deste estudo é dedicada, justamente, à compreensão de possíveis estratégias de intervenção na cidade a partir do espaço público/colectivo, procurando indagar (a partir da referência a exemplos concretos) novos papéis que este pode desempenhar em contextos urbanos mais indefinidos.

[23] Álvaro Domingues defende que a dificuldade em abordar a questão da cidade portuguesa e dos seus espaços públicos está em muitos casos ligada à “dificuldade de aceitar” o processo de transformação “da cidade em urbano”, criador de uma nova ordem urbana de escala territorial, que é comum a grande parte das cidades médias portuguesas, em especial nas conurbações descontínuas e extensivas que compõem as duas maiores áreas metropolitanas e as aglomerações urbanas do litoral português. Álvaro Domingues, “Novas paisagens urbanas” in JA, nº 218-219 (Janeiro-Junho 2005), p. 268.

[24] Bernardo Secchi citado por Carlos Martí em “Lugares Públicos”, Conferência proferida no Colegio de Arquitectos de Madrid em 26-04-2001, edição policopiada do autor, p. 1.

[25]  Carlos Martí Aris (2001) “Lugares Públicos”, Conferência proferida no Colegio de Arquitectos de Madrid em 26-04-2001, Edição policopiada do autor, p.1.

[26] Tendo em conta este entendimento, Joan Busquets salienta justamente a necessidade de resgatar a ideia “de projeto ou visão a médio prazo do plano” a partir da intervenção sobre “alguns espaços, em determinados sistemas ou em certas estratégias”, o que não deixa de implicar a necessidade de, como refere, estudar “quase tudo” e a “fundo”. Segundo este autor, este entendimento está diretamente ligado à necessidade de recuperar o esforço “(...) conceptual e abstracto do projeto de plano como forma de enfocar a questão da forma urbana sem ter de cair na falácia do desenho de todas as suas partes (...)”. Joan Busquets, “Entrevistas: 20 visiones” in Papers. Regió Metropolitana de Barcelona, nº 43, Junho 2005, p. 26, 27.

[27] Esta proposta de interpretação converge com a aproximação teórica proposta, por exemplo, por Joan Busquets, quando este autor defende e propõe como método mais relevante para a análise da cidade e aprofundamento da prática do urbanismo e do desenho urbano o estudo de “(...) linhas de projecto urbanístico dotados de uma certa especificidade metodológica e instrumental que nos permite pensar que a sua incidência na produção da cidade no futuro pode ser mais relevante”. Joan Busquets. “Presente y perspectivas del urbanismo”. Sociedade e Território, n.º 37-38 (2004), p. 47.

[28] Este entendimento tem subjacente o projeto urbano de escala intermédia como o instrumento de aproximação que julgamos mais consistente e adequado para intervir na cidade a partir do espaço público. Ou seja, não se trata portanto de pensar o projeto do espaço público de forma autónoma e objetual (como se de um equipamento ou de uma peça de arquitetura se tratasse), como também não se trata de o pensar a partir da lógica do plano. Trata-se essencialmente, como refere Manuel de Solà-Morales (destacando justamente à longa tradição do projeto urbano), “(...) de partir da geografia e da cidade dada, das suas solicitações e sugestões, e de introduzir com a arquitetura elementos de linguagem que deem forma ao sítio (...) é também trabalhar de forma indutiva, generalizando o particular, o estratégico, o local, o generativo, o modélico“. DE SOLÀ-MORALES, Manuel (1987) “La segunda historia del proyecto urbano” UR nº5 (1987), p. 22.

[29] MARTÍ ARIS, Carlos (2005) “Lugares Públicos en la Naturaleza” in La Cimbra y el Arco, Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, p. 63.

[30] MARTÍ ARIS, Carlos (2005) “Lugares Públicos en la Naturaleza” in La Cimbra y el Arco, Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 2005, p. 69. Marti associa esta ideia (de contemplação) aos espaços públicos desenhados por Luis Barragan, caracterizando-os como espaços de “solidão, serenidade e alegria”; espaços para a “espera”, “dispositivos visuais” “(...) que nos preparam para encontrar o Outro (...) que não necessitam a presença da multidão; (...) basta que alguém se situe no seu interior para que o cenário ganhe vida e se ative a sua carga de teatralidade. Então algo pode acontecer”. Carlos Martí Aris, “Lugares Públicos en la Naturaleza” in La Cimbra y el Arco, Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 2005, p. 69.

[31] Podemos reconhecer estes pressupostos na origem da concepção do Central Park em Nova Iorque, onde, na opinião de Iñaki Ábalos, a noção de “público”, para Olmsted,  tinha sem dúvida passado a ser uma “emanação do natural”. Na sua acepção, ambos os conceitos - público e natureza - ficavam ligados a uma concepção democrática da cidade. Olmsted estava empenhado em construir no centro da cidade um “Ágora Natural”, cuja função primordial era a “educativa”, no sentido em que, acrescenta Abalos, os transcendentalistas entendiam que a natureza era educativa: “(...) o lugar onde se revelava que as leis éticas e morais do homem e da cidade eram uma emanação das leis físicas da natureza, entendida como um verdadeiro foro, o lugar onde resplandecesse o público”. Iñaki Ábalos, Atlas pintoresco, Vol. 1: el observatorio, Barcelona: Gustavo Gili, 2005, p. 11.

[32] Carlos Martí Aris, “Lugares Públicos en la Naturaleza” in La Cimbra y el Arco, Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 2005, p. 56.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons