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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Luís Herberto, uma representação audaciosa

Luís Herberto, a bold way of representation

 

Artur Ramos*

*Portugal, artista visual e professor universitário.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1200-005 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMEN:

Analisa-se em pormenor as pinturas de Luís Herberto, como as constrói, como lida com as questões derepresentação da figura humana e do retrato e como estas se foram adaptando aos seus objetivos conceptuais. A maneira como organiza as cores e como pinta através de fortes pinceladas e com grande espontaneidade, é aqui atentamente analisada e enquadrada no contexto da literatura artística da arte ocidental.

Palabras clave: Pintura / pincelada / figura humana / cor.

 

ABSTRACT:

An in-depth analysis of the paintings of Luis Herberto, how the artist constructs them, how he deals with representation of the human figure and portraiture and how these aspects adapted to his conceptual objectives. A close analysis of the way the artist organizes the colors, and paints using strong brushstrokes and spontaneity, here framed in the context of the artistic literature in Western art.

Keywords: Painting / brushstroke / human figure / color.

 

Introdução

Luís Herberto nasceu nos açores e licenciou-se em pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa em 1998. Independentemente da sua vida académica, enquanto professor de desenho, o desenho e em particular a pintura constituem a ocupação fundamental da sua forma de estar na vida. De facto, inicia em 1991 a sua vida de artista com a participação numa coletiva e desde dessa data são inúmeras as exposições coletivas e sobretudo as individuais. Em todas encontramos os processos de trabalho bem expostos nos catálogos que sempre acompanham as suas exposições, associados a numerosos textos de vários autores:

A pintura de Luís Herberto abre-se numa figuração assumida e consciente sem preconceitos de correntes ou vanguardas, onde o modelo não se distingue do retratado ou onde o actor se cruza com a personagem. Deste modo fala-nos tanto das transfigurações, transmutações ou alterações, como das hesitações e conflitos com que os corpos e as almas se debatem hoje (Salteiro, 2017:8).

Nem sempre estes corpos projetam sombras, como nem sempre o desenho consegue conter os excessos de tinta e cor dentrodaformade uma perna, de um pé, de um braço. Nesta atmosfera sem densidade, o corpo levita, torna-se imaterialidade, virtualidade (Oliveira, 2011:8).

Através destes textos, onde encontramos vários do próprio, podemos facilmente perceber o pintor e a sua pintura desde a singela invenção dos seus temas ao modo como os trabalha em atelier, como percebemos neste trecho a propósito da escolha dos modelos:

Na procura de figurantes, encontrei todavia outras possibilidades interpretativas e visuais, afins do 'casting' realizado, figurantes a quem era pedido que ensaiassem poses entre o ciúme furtivo e o pudor dos amantes atraiçoados (Herberto, 2017:55).

No seu blog encontramos todos estes textos assim como os seus trabalhos. No presente estudo procuramos analisar com detalhe como Luís Herberto define as superfícies dos corpos e dos rostos das suas figuras. Na verdade mais do que pensar o retrato ou os sentidos das fisionomias, da correção da proporção, do engenho da pose ou do 'ar' (Piles, 1989: 130) o que procuramos aqui é uma delimitação muito específica a um campo mais técnico do que conceptual, ao modo como os constrói subordinando o gesto, a pincelada e a cor aos seus aspetos anatómicos formais.

 

Cor e Carnação

É com uma energia e um fervor especiais, condimentados com um espírito que brinca saudavelmente com os limites das relações humanas do amor, do erotismo e da sexualidade que encontramos nas suas exposições Sonhos Húmidos em 2003, Amuos e Desamores em 2008, Nós e Todos os Outros em 2011, As Brincadeiras de Alex de 2016 e as Máscaras de Alex de 2017 um refinamento particular no tratamento dado à carnação. Para tal recorre a modelos vivos, a fotografias ou a imagens paradas de vídeos ou de filmes. A figura humana, o retrato e as carnações envolvidas são transversalmente às suas exposições objeto de especial atenção. A cor está presente em detrimento do jogo claro-escuro o que salienta, como veremos, o lado mais emocional recordando as antigas teorias que opunham os defensores da cor aos defensores do desenho.

A emotividade com que aborda os temas tem tido correspondência no modo como as suas pinturas têm evoluído. Desde do colorido, do toque com que define a forma até às composições e suas narrativas, tudo tem caminhado para uma lógica consonância no sentido em que a presença da cor vai aumentando assim como o lado voluptuoso a que associamos as cores.

É este equilíbrio, que nos parece ter sido a sua conquista mais evidente e mais natural, e que procuramos aqui caracterizar fazendo para tal uma análise ao desenho subjacente à pintura, ao modo como constrói os volumes, as massas e os pormenores, à escolha das cores e seus matizes.

Assim se compararmos as figuras expostas em Sonhos Húmidos com as expostas em As Máscaras de Alex notamos uma forte diferença no tratamento dado à figura em geral e às superfícies em particular. Na pintura (Figura 1) existem grandes manchas lisas que funcionam mais como indicadoras da configuração dos elementos do corpo, como por exemplo, o ante braço direito ou a face iluminada. Com uma parca variedade cromática não existe grande modelação nem pormenor na generalidade das superfícies do corpo. Na pintura Alex (Figura 2) o interesse sobre a representação da figura é mais profundo a todos os níveis. A cor marca presença, as superfícies ganham variação, as massas volume e os elementos anatómicos consistência. E tal sucede porque por um lado a paleta enriqueceu não só com tons mais avermelhados mas também com verdes e azuis, e por outro porque nas grandes superfícies lisas apareceram pinceladas que definem mais planos e pormenores. O claro-escuro presente é apenas o suficiente para explicar os volumes e a sua posição relativa como o braço que está à frente do corpo. Ou seja a cor não chega a perder a sua identidade nos tons mais escuros fazendo com que a figura se destaca pela presença de uma mancha cromática em vez de uma forma criteriosamente modelada. E é esta falta de claro-escuro em favor da cor que acentua o lado mais emotivo ou sensual da figura e que cresce nos trabalhos mais recentes de Luís Herberto.

 

 

 

 

Em Alex de 2012 (Figura 3) da exposição Nós e Todos os Outros, que decorreu no ISEG, encontramos um meio-termo. Uma crescente definição dos pormenores das superfícies do corpo, como a forma do deltoide e o ângulo inferior da omoplata. Um corpo transfigurado ou transmutado, aparentemente masculino mas com um rosto mais feminino dado pela sua tez, cabelo e subtileza dos traços. A pincelada torna-se mais expressiva assim como a cor.

 

 

Na pintura Alex de 2017 da exposição As Máscaras de Alex A figura mantém um lado ambíguo, embora pareça tender para o feminino (Figura 4). O rosto andrógino uma postura algo masculina mas umas mãos delicadas decididamente femininas. Encontramos nesta carnação uma intensa multiplicação da pincelada que não só nos aproxima mais dos pormenores anatómicos das mãos, das veias e das articulações como vinca os traços fisionómicos conferindo mais idade e talvez masculinidade. Por exemplo, no rosto destaca a prega nasolabial e o sinus frontal situado entre a chanfradura frontal e as bossas frontais e que revela idade e perde juventude (Delaistre, 1852: 152). Para além das cores de carnação básicas encontramos azuis muito vivos como o sévres e verdes, que são importantes para a sugestão das veias das mãos e outras zonas onde a estrutura óssea é mais saliente como as têmporas, zigomático e mento. A presença de uma carnação mais avermelhada, que contrasta com os cinzentos esverdeados e azulados, é beneficiada pelos pontos de luz dados por cores quase brancas. E esta dinâmica cromática, sem a presença notável de manchas escuras, encontra reforço no fundo colorido pela evocação de obras de Katsushika Hokusai.

 

 

São gravuras ricamente coloridas que incorporo ocasionalmente no meu trabalho […] em citações cuja escala subverte a orgânica original e que se assumem numa orientação cenográfica (Herberto, 2017:12).

Esta citação contribui diretamente para um ambiente onde a sexualidade e os seus jogos se tornam mais presentes, para além da cor os tornar mais quentes e a pincelada mais próximos.

De facto esta sensação de intimidade e de sensualidade encontra-se revigorada nas pinturas como Amor e Dedinhos de 2017 (Figura 5) ou outras como por exemplo As Brincadeiras de Alex de 2017.

 

 

A forma da pincelada adapta-se aos planos do rosto e rivaliza com a própria importância da forma do rosto. O perfil fisionómico é bem delimitado mas os restantes elementos são ultrapassados pela presença forte e dominante da pincelada que se divide fundamentalmente por cores locais e cores de luz. A carnação ganha um tom quente devido aos diversos tons de vermelhos. Esta cor está de acordo com o gesto da figura pois concorre para aumentar a vertente sensual da cena. Os diversos tons de brancos inseridos sem gradações ou esbatimentos tonais no perfil do rosto e nas articulações metacarpofalangianas da mão substituem a severidade do desenho que se atenua pela importância da cor. O corpo iluminado com uma cor vermelha, fica mais carnal, mais voluptuoso enfim mais libidinoso.

E como último exemplo encontramos na pintura Apontamento Para Aqui é um Lugar Seguro (Teresa) de 2017, (Figura 6) a adoção de uma camada de fundo a deadcolouring (Bardwell, 1756:12) vermelho inglês, já presente na pintura Aqui é um Lugar Seguro! visível na zona dos cabelos, testemunha a intenção de aquecer a carnação com uma cor quente que não chega a ser contrariada pelas pinceladas de tons brancos e cinzentos azulados. Nestes rostos a pincelada é fluída e deslizante e sugere, apesar dos poros não serem visíveis, uma certa humidade que a pele possui dada pelo suor ou sebo. A direção da pincelada é determinante para a definição dos planos dos rostos como por exemplo a fronte, a arcada supraciliar da figura da direita e o zigomático da figura da esquerda. Apesar de os rostos estarem representados certos detalhes são evitados, pouco definidos ou inacabados. Esta redução do nível de pormenor é mais exposta pela grande escala usada que associada ao tema, um beijo entre duas raparigas, nos confronta e provoca.

 

 

 

Audácia e Ousadia na Representação

Luís Herberto contorna as questões relacionadas com a correção do desenho com o modo arrojado com que trabalha a pincelada, mantendo-a espontânea direta e simples, ou seja, sem a esconder, dispersar ou esbater. Os toques dados com o pincel criam um padrão de áreas planificadas de cor que se sobrepõem às configurações e modelações da forma e à inclusão do detalhe supérfluo. Curiosamente, esta execução é enquadrada pelas antigas definições expostas em diversos vocabulários ou dicionários de arte de há vários séculos. Assim, faz todo o sentido falar nos termos expostos nos dicionários e enciclopédias de Watelet e Lévesque em 1792 como facilité (vol 2 pp. 256-257), fraicheur (vol 2 pp. 364-365), large (vol 3 pp. 210-211), liberté, (vol 3 pp. 222-226) maniement (vol 3 pp. 369-371), entre outros. A facilidade, por um lado, como uma disposição natural para escolher e trabalhar os temas e por outro como um pincel fácil, cujo rasto indica o caminho, a liberdade e a franqueza. A largueza de traçado, de gesto, contrário a um pincel mesquinho e tímido que prende os nossos olhos com mais intensidade do que os pequenos detalhes. A liberdade no sentido de fuga aos constrangimentos das crenças e dos juízos e no sentido da prática fluente e de execução fácil e desenvolta. E por fim o maneio ou a manipulação do pincel, aquele toque próprio de cada mão como se de uma assinatura se tratasse. Todas estas definições se aplicam com maior ou menor intensidade ao trabalho de Luís Herberto. Algumas destas características são evidentes na capacidade de trabalhar com grandes formatos, com rostos com uma escala superior ao natural e com as pinceladas dadas com um pincel largo.

A presença de uma carnação mais avermelhada nas últimas pinturas, demasiado evidente para não ser intencional, não deixa de estar ligada ao temperamento (Piles, 1989:133) do retratado ou à manifestação de uma paixão. E esta predominância do vermelho na carnação não nos deixa de impressionar lembrando aquela ideia de George Steiner que depois dos ciprestes de Van Gogh todos os Ciprestes estão em chamas (Steiner, 1993: 170). Este avermelhar não deixa de ser ousadamente exagerado e que associado à pouca expressão que o claro-escuro possui acentua o ar sensível e leve, desdramatiza a presença e o olhar que um retrato carrega. Faz um verdadeiro apelo aos sentidos em detrimento da razão no sentido da antiga querela entre o desenho e a cor.

Por fim, e como testemunho da capacidade de arriscar Luís Herberto continua inconsolavelmente a trabalhar nas pinturas durante anos, mesmo depois de já terem sido expostas. Sem intervir muito no desenho, muda as cores, repinta e acrescenta novas pinceladas agora mais visíveis e intensas renovando as suas figuras ou personagens.

 

Conclusão

A pintura de Luís Herberto concilia a vertente conceptual, do tema, da composição, da utilização do modelo com a execução técnica e as soluções expressivas encontradas. Vimos como as pinturas sofreram uma mudança substancial ao longo dos últimos dez anos. Muitas pinturas voltaram a ser trabalhadas já depois de terem sido dadas como prontas para expor. É um exemplo de perseverança, de autocrítica e profunda vontade de melhorar. Esta vontade aliada ao modo como lida com as questões do desenho, sempre muito rígidas quando se trata de figura, através de um maneio particular do pincel, de uma escolha específica de cores e de um consequente isolamento do pormenor é aquilo que o define verdadeiramente como um pintor. Para quem gosta de pintar e se interessa pelo tema da figura humana e do retrato, não pode ficar indiferente ao trabalho e ao modo de trabalhar de Luís Herberto.

 

Referências

Bardwell, Thomas. (1756). The Practice of Painting and Perspective made easy in which is contained The Art of Painting in Oil with the method of colouring under the heads of First Painting, or dead colouring, Second Painting, Third Painting or Last Painting, Painting Back-Grounds, On Copying, Drapery-Painting, Landscape-Painting e perspectiva. London.         [ Links ]

Delaistre, Louis. (1842). Cours Méthodique du Dessin et de la Peinture. Paris.         [ Links ]

Herberto, Luís. (2017). O Pintor no seu Labirinto… In catálogo da exp. As Máscaras de Alex, Lisboa, ISPA.         [ Links ]

Lévesque, Pierre Charles e Watelet, Claude-Henri. (1792). Dictionnaire des Arts de Peinture, Sculpture et Gravure. 5 vol. Paris.         [ Links ]

Oliveira, Luísa Soares de. (2011). Dos Corpos Pouco Gloriosos. In catálogo da exp. Nós e Todos os Outros… Cascais. Fundação D. Luís I.         [ Links ]

Piles, Roger de. (1989). Cours de Peinture par Principes. Paris. Gallimard. (1708).         [ Links ]

Salteiro, Ilídio. (2017). Quem é Alex? In catálogo da exp. As Máscaras de Alex. Lisboa, ISPA.         [ Links ]

Steiner, George. (1993). Real Presences (M. Pereira trad.). Presenças Reais As Artes do Sentido. Lisboa. Editorial Presença. (1989).         [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: a.ramos@belasartes.ulisboa.pt (Artur Ramos)

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