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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

Print version ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.25 Porto June 2021  Epub June 30, 2021

https://doi.org/10.19131/rpesm.0299 

Artigo de investigação

Análise qualitativa das experiências anômalas em indivíduos com vivências psicóticas e dissociativas em grupo religioso

The qualitative analysis of anomalous experiences in people with life experiences and psychotic and dissociative in a religious group

El análisis cualitativo de las experiencias anómalas em las personas com las experiências psicóticas y dissociativas a um grupo religioso

Rodrigo Fernandes1 

Luana Scalia2 

Paula Wolkers3 

Carlos Ueira-Vieira4 

1 Médico psiquiatra na Clínica Pleni, Rua Padre Anchieta, 481, 38400-132 Uberlândia (MG), Brasil. E-mail: Rodrigoscalia@yahoo.com.br

2 Enfermeira; Professora na Universidade Federal de Uberlândia, 38408-100 Uberlândia (MG), Brasil. E-mail: luanascalia@ufu.br

3 Enfermeira no Hospital de Clínicas da Universidade da Uberlândia, 38408-100 Uberlândia (MG), Brasil. E-mail: Paulawolkers@yahoo.com.br

4 Biólogo; Professor na Universidade Federal de Uberlândia, 38408-100 Uberlândia (MG), Brasil. E-mail: ueirabio@gmail.com


Resumo

Introdução:

As experiências anômalas vivenciadas por médiuns espíritas são objeto de interesse da psiquiatria transcultural, pela necessidade de se diferenciar vivências Religiosas/Espirituais de vivências patológicas.

Objetivo:

descrever e compreender as vivências sobre experiências anômalas narradas por médiuns espíritas brasileiros pela ótica da fenomenologia e da psiquiatria transcultural.

Métodos:

Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa que utilizou como metodologia de coleta de dados a narrativa e como referencial teórico-metodológico a fenomenologia segundo Ricoeur (1978). Foram realizadas entrevistas em profundidade por meio de um roteiro semi-estruturado com quatro médiuns espíritas.

Resultados:

As vivências mediúnicas foram variadas e com características peculiares. Percebeu-se características geralmente associadas a transtornos mentais. O início das vivências das experiências anômalas provocaram medo, sofrimento e sentimento de inadequação social.

Conclusões:

As vivências das experiências anômalas foram semelhantes às vivências de transtornos mentais e a prática religiosa se mostrou positiva e provocou sentimentos de aceitação e resiliência.

Palavras-Chave: Personalidade; Ajustamento social; Religião; Transtornos mentais

Abstract

Background:

Anomalous experiences lived by spirit mediums are an object of interest in cross-cultural psychiatry, due to the need to differentiate between Religious / Spiritual experiences and pathological experiences.

Aim:

to describe and understand the experiences about anomalous experiences narrated by Brazilian spirit mediums from the perspective of phenomenology and transcultural psychiatry.

Methods:

This is a descriptive study with a qualitative approach that used narrative as the methodology of data collection and phenomenological according to Ricoeur (1978) as a theoretical-methodological reference. In-depth interviews were conducted through a semi-structured script with four spiritist mediums.

Results:

Mediumistic experiences were varied and with peculiar characteristics. Characteristics generally associated with mental disorders were perceived. The beginning of the experiences of anomalous experiences caused fear, suffering and a feeling of social inadequacy.

Conclusions:

The experiences of anomalous experiences were similar to the experiences of mental disorders and religious practice was positive and provoked feelings of acceptance and resilience.

Keywords: Personality; Social adjustment; Religion; Mental disorders

Resumen

Introducción:

las experiencias anómalas que viven los médiums espirituales son un objeto de interés en la psiquiatría intercultural, debido a la necesidad de diferenciar entre las experiencias religiosas / espirituales y las experiencias patológicas.

Objetivo:

describir y comprender las experiencias sobre experiencias anómalas narradas por médiums espirituales brasileños desde la perspectiva de la fenomenología y la psiquiatría transcultural.

Metodología:

Este es un estudio descriptivo con un enfoque cualitativo que utilizó la narrativa como metodología de recolección de datos y fenomenológica según Ricoeur (1978) como referencia teórico-metodológica. Se realizaron entrevistas en profundidad a través de un guión semiestructurado con cuatro medios espiritistas.

Resultados:

Las experiencias medianas fueron variadas y con características peculiares. Las características generalmente asociadas con los trastornos mentales fueron aclaradas. El comienzo de las experiencias de experiencias anómalas causó miedo, sufrimiento y un sentimiento de insuficiencia social.

Conclusiones:

Las experiencias de experiencias anómalas fueron similares a las experiencias de trastornos mentales y la práctica religiosa fue positiva y provocó sentimientos de aceptación y resistencia.

Palabras Clave: Personalidad; Ajuste social; Religión; Trastornos mentales

Introdução

Religião e espiritualidade são aspetos importantes da vida da grande maioria da população mundial. A relação entre religiosidade, espiritualidade e psiquiatria já foi cenário de muitas controvérsias. A religiosidade foi vista de modo negativo pela psiquiatria, as experiências místicas foram classicamente tidas como evidências de Transtorno Mental (TM) (Almeida, 2004; Le Maléfan; Evrard; Alvarado, 2013;). Essas experiências religiosas e espirituais (ERE) já foram descritas como psicóticas, histéricas, borderline, disfunção de lobo temporal e causa de transtornos mentais (Almeida, 2004; Le Maléfan; Evrard; Alvarado, 2013).

Para diferenciar as ERE de experiências psicopatológicas vivenciadas por portadores de doenças mentais, foram sugeridas diversas nomenclaturas. O termo “Experiência Anômala”(EA) tem sido o mais utilizado em pesquisas com espiritualidade (Alminhana, 2013; Alminhana; Menezes Jr.; Moreira-Almeida, 2013; Menezes; Moreira-Almeida, 2010).

No Brasil, o espiritismo constitui uma religião comum e adota as EAs como componente central (Almeida, 2004; Alminhana, 2013). Dentro do espiritismo, as EAs são ressignificadas para o contexto religioso da mediunidade, que pode ser definida como “comunicação provinda de uma fonte que é considerada existir em outro nível ou dimensão além da realidade física conhecida e que também não proviria da mente normal do médium” (Almeida; Lotufo Neto, 2004). Dentro da religião espírita, as pessoas que vivenciam EAs são denominadas médiuns (Kardec, 1944).

Há três estudos brasileiros importantes para o diagnóstico diferencial entre ERE e transtornos mentais (TM). O primeiro evidenciou vivências em sua maioria não patológicas e com boa adaptação social dos médiuns, com correlação positiva entre anos de espiritismo e felicidade. (Negro; Palladino-Negro; Louzã, 2002). O segundo (Almeida, 2004; Moreira-Almeida; Lotufo Neto; Greyson, 2007) encontrou indivíduos com grande frequência de fenômenos dissociativos e sintomas de primeira ordem de Schneider (classicamente associados com esquizofrenia), embora com alto índice educacional, baixa prevalência de transtornos mentais e bem ajustados socialmente (Almeida, 2004; Menezes; Moreira-Almeida, 2010). Outro achado interessante é que a maioria dos médiuns relatavam início das vivências mediúnicas durante a infância e por vezes com sofrimento psicológico resultante do aparecimento das EAs (Almeida, 2004). Um terceiro estudo identificou que indivíduos com EAs que buscam ajuda nos centros espíritas pareciam se encontrar em uma espécie de “limiar” entres os dados obtidos de uma população geral e os de amostras com transtornos mentais (Alminhana, 2013; Alminhana; Menezes Jr.; Moreira-Almeida, 2013).

Justifica-se a realização desse trabalho dada a possibilidade de colaborar na compreensão de fenômenos culturais existentes em nossa sociedade e atender uma carência científica, filosófica e ética para o avanço da compreensão científica desses fenômenos em busca de conhecimento e orientações para o trabalho dos profissionais de saúde mental e pessoas que trabalham em instituições religiosas. Diante disso, o objetivo deste estudo foi descrever e compreender as vivências sobre experiências anômalas narradas por médiuns espíritas brasileiros pela ótica da fenomenologia e da psiquiatria.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa que utilizou como metodologia de coleta de dados a narrativa e como referencial teórico-metodológico a fenomenologia segundo Ricoeur (1978). Esse estudo faz parte de um estudo mais amplo de metodologias mistas, o qual teve uma etapa quantitativa e outra qualitativa.

Narrar é compartilhar uma experiência com alguém, é contar nossa estória ou uma estória da qual nos sentimos personagens (Cury, 2013).

A fenomenologia pode se basear entre a relação do ser com o mundo, podendo ser manifesta em forma de narrativa. O olhar fenomenológico ocorre pela busca do fenômeno como ele se apresenta. A fenomenologia hermenêutica de Ricoeur (1978) admite que o conhecimento de si mesmo perpassa pela compreensão de si em uma experiência temporal humana. Nesse sentido, a hermenêutica se relaciona ao conceito de interpretação da experiência humana, buscando a aproximação e compreensão de um fenômeno através de suas intersubjetividades.

A compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada; esse último empréstimo à história tanto à ficção fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se preferirmos uma ficção histórica entrecruzando o estilo historiográfico (...) (Ricoeur, 1991, p. 138)

É indispensável à psiquiatria, abandonar, ao menos temporariamente, qualquer ambição explicativa ou mesmo terapêutica e focar na tarefa de observação e descrição dos fenômenos humanos (Parnas; Sass; Zahavi, 2013).

Local de Estudo

O estudo foi realizado em um município brasileiro de médio porte situado no interior do estado de Minas Gerais.

Para obter a listagem de todos os centros espíritas do município, foi contactada a Aliança Municipal Espírita (AME) que consiste em um órgão federativo que reúne a maioria dos centros espíritas do município.

População de Estudo

Os representantes de oito centros espíritas concordaram em participar da etapa quantitativa deste estudo. Do conjunto de indivíduos participantes do trabalho, foram selecionados por conveniência, os quatro indivíduos mais experientes (com maior tempo de vivência mediúnica) para a etapa qualitativa.

Os critérios de inclusão no estudo foram: Médiuns que participavam de reuniões mediúnicas em centros espíritas do município, que referissem apresentar pelo menos um dos seguintes tipos de mediunidades: psicofonia, incorporação, vidência, audiência, cura, psicografia, efeitos físicos ou pintura mediúnica (Kardec, 1944) e que aceitassem participar do estudo. Foram excluídos aqueles que não aceitaram participar da pesquisa.

Colheita de Dados

Os dados foram colhidos, transcritos e analisados no primeiro semestre de 2014 por um dos pesquisadores deste estudo que tem como formação profissional graduação em medicina e especialização em psiquiatria. Os médiuns foram abordados no mesmo dia que rotineiramente realizavam seus trabalhos mediúnicos. Foi realizada uma entrevista em profundidade com cada participante e foram utilizados dois instrumentos para obtenção dos dados e norteamento das entrevistas.

Os instrumentos utilizados na pesquisa foram elaborados por Almeida (2004). O primeiro foi o “Questionário Sociodemográfico e de Atividade Mediúnica” que investiga variáveis sócio-demográficas e aspectos sobre a atividade mediúnica. Foram pesquisadas nove tipos de vivências mediúnicas, da mesma maneira utilizada por Almeida (2004) e de acordo com a descrição de Kardec (Kardec, 1944): Psicofonia: Manifestação do espírito pela voz do médium. Incorporação: Manifestação do espírito por todo o corpo do médium, inclusive a fala. Vidência: capacidade de ver os espíritos. Audientes: escutam a voz dos espíritos “clara e distinta, qual a de uma pessoa viva”. Curadores: “dom de curar pelo simples toque, pelo olhar, mesmo por um gesto, sem o concurso de qualquer medicação”. Psicografia: capazes de transmitir o pensamento de um espírito através da escrita. Efeitos físicos: produzem efeitos materiais, como movimentos de corpos inertes ou ruídos. Pintura mediúnica: pintam ou desenham sob influência dos espíritos. Desdobramento: “a alma se emancipa (...) vê, ouve, e percebe fora dos limites dos sentidos”.

O segundo instrumento utilizado foi um roteiro intitulado como Entrevista Estruturada sobre a mediunidade do entrevistado (Almeida, 2004). E consiste em três perguntas norteadoras: - Como surgiu sua mediunidade? - Como descobriu que era médium?- Quais os tipos de mediunidade você apresenta? Descreva suas experiências mediúnicas.

Análise dos dados ocorreu seguindo o referencial teórico proposto por Ricoeur (1978) que busca a compreensão dos sentidos buscando decifrar o sentido oculto no sentido aparente. Assim, é na interpretação que a pluralidade dos sentidos se torna manifesta e o significado é desvelado para além do conteúdo manifesto. Para a análise dos dados foram seguidos os três passos propostos pelo autor: leitura inicial do texto, leitura crítica e apropriação.

Para prevenir a identificação dos participantes foram utilizados pseudônimos e as falas foram identificadas por um código composto pela inicial do pseudônimo, sexo e idade do participante, por exemplo: Alice, sexo feminino, 50 anos de idade, seria AF50.

O atual estudo obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Local.

Resultados

Dos quatro médiuns entrevistados, dois eram homens e duas mulheres. Três eram casados. Os quatro possuíam escolaridade alta (ensino superior completo) e estavam empregados. Todos (100%) participavam em trabalhos mediúnicos há mais de cinco anos, estudos semanais sobre mediunidade, e realizavam a prática pelo menos uma vez por semana.

Carlos, 57 masculino

Ana, 48 feminino

Marina, 60 feminino

Pedro, 24 masculino

O surgimento da Mediunidade

Os quatro médiuns tiveram início das manifestações mediúnicas durante infância. Em um primeiro momento as EAs causaram medo e sensação de estranhamento:

“Com quatro aninhos eu vi o espírito do meu tio que foi assassinado(...). Eu vi esse meu tio que estava próximo do meu primo que estava dormindo(...). Eu fui na sala e vi aquele homem luminoso e fiquei falando com ele porque ele se parecia muito com o meu primo.” (AF48)

Para um médium, as visões iniciais continham bastante detalhes e nitidez:

“Quando eu via a minha tia era tão real que eu não saberia diferenciar entre uma pessoa viva e ela, sabe? Mas não escutava nada, só sorria pra mim e não falava nada”. (CM57)

Um dos médiuns descreve uma sensação de despersonalização, ou seja, a sensação de ser expectador de si próprio:

“Eu estava conversando com o espírito que estava incorporado em mim. Mas não era eu. Era uma espécie de força, de consciência diferente da minha que falava como se fosse eu”. (PM24)

Três dos quatro entrevistados não vieram de famílias espíritas, o que causou estranhamento com as crenças culturais aceitas no contexto familiar:

“Minha mãe não era espírita. Ela me mandou de volta para o quarto, disse que era coisa da minha cabeça”. (CM57)

Vivências Mediúnicas

Das vivências mediúnicas elencadas por Kardec (1944) estiveram presentes nas narrativas dos entrevistados as seguintes vivências: desdobramento, incorporação, psicografia, psicopictografia, psicofonia, vidência e premonição.

Desdobramento

Dois dos médiuns entrevistados apresentavam essa manifestação mediúnica. Uma delas apresentava durante o sono:

“Eu me via fora do corpo. Eu tentava voltar para o corpo e não conseguia, é como se fosse uma morte leve (...). Às vezes eu me via de lado, as vezes me via em cima. Aí você quer mover o seu corpo e seu corpo não move, você quer mexer com o braço e não consegue”. (MF60)

Outra médium referia que o desdobramento acontecia durante as reuniões mediúnicas:

“Eu sentava e o meu corpo ficava totalmente inerte, eu entrava em sonambulismo mesmo. É como se fosse um sono acordado, eu não sei o que está acontecendo em minha volta, o corpo fica pesado e gelado e aí eu saia do corpo. Eu percebia que tinham dois corpos, um que ficava e um outro que ia. Só que minha consciência ficava no que estava indo”. (AF48)

Os médiuns referiam que durante a experiência mediúnica sentiam que o seu espírito ela levado para outros lugares por outros espíritos:

“Era conduzida para diversos locais. As vezes via pessoas. As vezes via parentes, vejo amigos que já desencarnaram”. (MF60)

Uma médium refere sensações físicas durante o desdobramento:

“Eles me abraçaram, eles vieram e me abraçaram, eles vieram e ficaram tudo em volta de mim, eu não ouvia eles, mas eles ficaram me abraçando, eu sentia aquelas coisinhas pequenas muito lindas cheia de aura luminosa” (AF47).

Incorporação

Dois dos médiuns referiram experienciar a incorporação. Geralmente a incorporação foi associada com perda do controle das funções corporais, embora nos dois casos os médiuns referissem continuar conscientes, ou seja, percebendo o ambiente e o próprio corpo:

“É como se eu perdesse o controle sobre mim mesmo né, é como se alguém que não sou eu, passasse a querer usar a mim mesma, meu corpo né, é como se tivesse duas consciências usando o mesmo espaço”. (AF48)

Os dois médiuns descrevem ter consciência do que é dito, embora a percepção de que se trate de uma informação de fonte paranormal:

“Ele passa pela minha consciência, eu sei o que ele quer falar”. (AF48)

Dois dos médiuns descrevem sensações corpóreas que ocorrem durante a manifestação mediúnica, e que também é atribuído ao espírito comunicante:

“Você sente dor, você tem angústia, você tem todas as sensações, o espírito necessitado ele passa isso pra gente, ele passa sensações, então você passa a sentir”. (MF60)

Um médium descreve um fluxo de ideias aumentado durante o transe, com mudança do afeto que também é atribuída ao espírito que se liga ao médium:

“Vem todas aquelas ideias confusas, por exemplo, de briga, de discussão, na sua mente, de xingamento, de destruição, mesmo na sua mente, vêm todas essas ideias que você não tinha antes, né, em um instante estavam na sua mente, são ideias desconexas (...)”. (PM24)

Psicografia

Um dos médiuns refere episódios frequentes de psicografia, ou escrita sob influência espiritual. O médium descreve a sensação de perceber uma ideia atribuída à uma consciência externa a sua ou escutar vozes internas, e escrever em seguida:

“É como se fosse uma voz, mas dentro da cabeça (...). Vinha direto, era tanta coisa ao mesmo tempo, por exemplo, eu recebia algumas letras de músicas, então alguns compositores se aproximavam de mim e dizia, escreve aí uma letra de uma música, eu falava para minha esposa: você quer ver eu escrever a letra de uma música em um minuto? (CM57)

Psicopictografia

Um dos médiuns entrevistados narra um episódio de psicopictografia ou desenho por meio de influência espiritual, em episódio único:

“Houve tipo uma psicografia, mas o espírito traçou um mapa inteiro do mundo. Eu que não sei desenhar nada e o espírito desenhou no quadro com um monte de explicações. Só que eu não lembro de nada, foi uma coisa mecânica”. (MF60)

Psicofonia

Diferente dos médiuns de incorporação, uma médium com a mediunidade de psicofonia faz um relato referindo uma ação inconsciente da fala:

“Eu comecei a sentir uma vibração diferente, uma vibração mais muito diferente, parecia que meu coração ia pular, assim, uma taquicardia mesmo, uma sensação de taquicardia (...) aí a minha língua ficou extremamente pesada, totalmente pesada, a garganta ficou igual quando você bota peso nas pernas pra fazer ginástica, foi a sensação que eu tive na região do laríngeo, ficou tão pesado, tão pesado, que eu não conseguia falar no meu normal, ai eu fiz uma prece, mas não fui eu que fiz a prece. Foi o espírito. Ele usou diretamente minhas cordas vocais”. (MF60)

Vidência

Uma das médiuns refere ver “quadros” quando concentrada, apenas durante as reuniões mediúnicas, frequentemente tem a impressão de que um “aparelho” invisível é colocado sob sua cabeça:

“Eu sinto o capacete, é pra eu ficar quietinha, o equipamento tá lá, aí eles colocam o capacetezinho aí depois tem uma tela na minha frente, como uma televisão, uma tela de computador, aí eu vou visualizando, isso é uma das formas que eu vejo né (...)”. (AF48)

Premonição

Um dos médiuns narra sonhos nos quais referia ter informações sobre o futuro:

“Eu tive um sonho, eu andava numa avenida numa grande cidade, uma avenida larga que eu nunca tinha visto aquele tipo de cidade na região até então que eu conhecia... e eu estava andando pela aquela avenida e chão começou a tremer, aí eu saí correndo, eu vi as pessoas correndo desesperadas aí eu corri também, aí eu acordei... (No outro dia) ligaram a televisão e vi as cenas do terremoto ocorrido em Los Angeles naquela madrugada” (CM57)

Relação com psicopatologia

Dois dos médiuns entrevistados referiram episódios de TM ao longo da vida. Um deles narra sintomas tipicamente psicóticos que refere terem desaparecido após se tornar espírita e trabalhar como médium:

“Sentia que estava sendo perseguido, que estavam atrás de mim. Aí as vezes ficava com uma variação de humor absurda, irritado em excesso e chegava a ficar agressivo mesmo. Me atrapalhava como pai, como marido, como tudo né? Foram mais de 10 anos assim (...) A vida foi muito agitada nesse sentido, só quando realmente decidi me dedicar e estudar (a mediunidade) é que comecei a ser beneficiado, e foi asserenando...” (CM57)

Outra médium descreve associação com episódios depressivos na adolescência e com Lupus Eritematoso Sistêmico, que refere ter mudado suas percepções mediúnicas. Essa médium refere ter uma irmã com esquizofrenia:

“Depois do Lupus eu passei a ser clarividente. Eu não tinha essa clarividência de você ver a pessoa e confundi-la com um encarnado, sabe? A partir de então eu tenho que tomar muito cuidado, e eu faço isso, quem está do meu lado é que me alerta: - Com quem você ta falando que não estou vendo?” (AF48)

Discussão

Foi possível reconhecer variações na expressão do fenômeno e seus significados individuais. As falas evidenciaram sinais de sofrimento, medo e sentimento de inadequação social, principalmente nos relatos das primeiras manifestações das EAs. Percebe-se que quando obtiveram aprofundamento no conhecimento sobre a religião espírita e seus conceitos sobre mediunidade foi possível maior aceitação, melhor adequação social. Evidenciaram-se sinais classicamente associados com TMs. No entanto, fatores como a alta escolaridade e um sistema de crença que ressignifica os sintomas parecem ter funcionado como fator protetor para transtornos mentais. De acordo com o Censo Brasileiro de 2010, o espiritismo é a única religião que o nível educacional é diretamente proporcional ao número de adeptos, ou seja, a frequência aumenta com o aumento do nível educacional. Outros estudos encontram resultados semelhantes no perfil socioeconômico (Almeida, 2004; Menezes Jr.; Alminhana; Moreira-Almeida, 2012; Negro; Palladino-Negro; Louzã, 2002).

Todos os médiuns entrevistados referiram início das vivências psiquiátricas na infância ou adolescência. A maioria dos médiuns no estudo de Almeida (2004) iniciaram as EAs na mesma fase de suas vidas. Outro fator comum na descrição foi o fato das vivências se manifestarem em ambientes não vinculados ao espiritismo. Esse achado também foi encontrado por Almeida (2004). De maneira geral, os médiuns relataram que os familiares não apoiavam as vivências mediúnicas ou tinham completo desconhecimento delas, ou as viam como resultado de ações malignas. Isso parece indicar que o comportamento mediúnico não é resultado de estimulação parental.

Chama a atenção o fato de em um primeiro momento as manifestações causarem sofrimento ou medo. Com o passar da utilização da mediunidade e treinamento em cursos de médiuns, os participantes alegaram que a mediunidade deixou de ser fonte de sofrimento. De maneira geral o desenvolvimento mediúnico é indicado em grande parte dos centros espíritas como forma de aliviar sintomas de transtornos físicos e mentais uma vez que estes poderiam ser sintomas de mediunidade latente (Almeida, 2004).

As vivências mediúnicas descritas pelos médiuns foram bastante variadas, e com características bem específicas em cada caso.

A sensação de não conseguir comandar o próprio corpo durante o sono parece corresponder à descrição de Paralisia do Sono. Esse fenômeno é diferente de pesadelos e Terror Noturno. Acredita-se que esse fenômeno envolve a paralisia muscular característica do sono REM (Rapid Eye Movement - no qual os sonhos são comuns mas músculos voluntários estão relaxados), enquanto o indivíduo está desperto. Esse tipo de experiência parece ser universal e apavorante (Loewenthal, 2006). Há uma diferença, no entanto: a médium tinha a impressão de estar ao lado ou em cima do corpo, o que se aproxima mais das experiências de estar fora do corpo. Esse tipo de experiência parece ser comuns entre xamãs (Krippner, 2007). A Paralisia do sono é frequentemente atribuída a espíritos malignos, mesmo em culturas nas quais essas crenças não são prevalentes e não são tidas como vivências patológicas (Loewenthal, 2006).

A descrição dos médiuns quanto à incorporação difere muito da descrição comumente encontrada na literatura para descrever “possessão”, que geralmente envolve movimentos violentos e excessivos, comportamento motor compulsivo e outros comportamentos tidos como histéricos (During et al., 2011; Hughes, 1991; Sar; Alioğlu; Akyüz, 2013). Os médiuns descrevem sensações bem mais brandas e, por vezes, quando o espírito é considerado superior, agradáveis. Nesse sentido o termo “possessão” não é o melhor para descrever as vivências mediúnicas habituais, por exprimir ideia de dominação e subjugação (Almeida, 2004; Hughes, 1991).

As alucinações visuais foram muito comuns nas descrições mediúnicas dos médiuns entrevistados. Essa característica difere um pouco do padrão encontrado na esquizofrenia, na qual alucinações auditivas são bem mais frequentes (Connors et al., 2016). Connors et al (2016) defende a “Teoria dos dois fatores”, para a qual a presença de alucinações verbais só progrediriam para delírios e uma visão psicótica do mundo quando vivenciadas com a sensação de não ter controle sobre a experiência (Connors et al., 2016). A maioria dos médiuns declararam a sensação de controle sobre a experiência, embora destaquem que nos períodos iniciais das vivências isso não ocorria. Interessante notar que grande parte dos ensinamentos espíritas dizem respeito ao “controle das manifestações” e a “disciplina mediúnica” (Kardec, 1944), o que nos faz questionar se o contexto cultural de aceitação dessas vivências e estímulo de seu controle foi capaz de ressignificar as EAs nesses médiuns, evitando o surgimento de mais sintomas psicóticos. Essa descrição que após a prática do espiritismo o sofrimento mental vinculado às EAs diminuiu é consistente com o estudo de Almeida (2004).

Moreira-Almeida (2013) afirma que há quatro principais hipóteses para explicar as EAs: fraude; personalidade dissociativa; percepção extrassensorial e a hipótese que a mente pode sobreviver à morte corporal e se comunicar por meio de outra pessoa. Para o autor, as duas últimas hipóteses só deveriam ser consideradas após as duas primeiras terem sido descartadas. A EA é uma experiência complexa que pode envolver diversos fenômenos e evidenciam de forma empírica que a mente não pode ser condicionada a uma visão reducionista (Moreira-Almeida, 2013).

Conclusões

Os resultados permitiram a descrição e a compreensão das vivências das EAs sob a narrativa dos médiuns. Os relatos das EAs elucidaram características geralmente associadas à TM, no entanto, há características contraditórias que não sustentam essa associação plena. As EAs continuam a ser um fenômeno enigmático à ciência e aos profissionais de saúde mental. As vivências das EAs foram variadas e com características peculiares. Compreende-se que as vivências das EAs provocaram medo, sofrimento e sentimento de inadequação social, principalmente nas primeiras experiências. No entanto, o ato de conhecer e praticar a religião espírita evidenciou, nas narrativas, sentimentos de aceitação e resiliência. Nesse sentido, a prática e o conhecimento da religião espírita se mostraram positivos no alívio das sensações e sentimentos negativos provocados pelas EAs.

Os profissionais da saúde mental convencionalmente não recebem treinamento adequado para lidar com as questões religiosas em um contexto clínico. Estudos sobre essa temática são importantes para ampliar os conhecimentos e o senso crítico-reflexivo desses profissionais, auxiliando na prática clínica.

Evidentemente, este trabalho apenas contribui para um campo de estudo muito vasto e que ainda se encontra pouco explorado. Há necessidade premente de trabalhos que possam ajudar a desvendar esses fenômenos comuns e ao mesmo tempo tão desconhecidos pela literatura psiquiátrica.

Referências bibliográficas

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Recebido: 23 de Junho de 2020; Aceito: 16 de Julho de 2020

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