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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

Print version ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.spe7 Porto Oct. 2020

https://doi.org/10.19131/rpesm.0252 

ARTIGO DE REVISÃO

Saúde em cadeia: (Co)construção de percursos de literacia em saúde e qualidade de vida

 

Chain health: (Co)construction of literacy courses in health and quality of life

 

Salud en cadena: (Co)construcción de recorridos de alfabetización en salud y calidad de vida

 

Carminda Morais*, Maria Isabel Amorim**, Cândida Cracel Viana***, Maria Manuela Cerqueira****, & Maria de la Salete Calvinho*****

*Doutora em Ciências da Educação; Investigadora no CEISUC e Colaboradora na UICISA-E; Professora Coordenadora no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Escola Superior de Saúde, Rua D. Moisés Alves de Pinho, 4900-314 Viana do Castelo, Portugal. E-mail:carmindamorais@ess.ipvc.pt

**Doutora em Saúde Mental; Investigadora na UICISA-E; Professora Coordenadora no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Escola Superior de Saúde, 4900-314 Viana do Castelo, Portugal. E-mail: isabelamorim@ess.ipvc.pt

***Mestre em Ciências da Educação – Especialização em Promoção da Saúde; Investigadora na UICISA-E; Professora Adjunta no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Escola Superior de Saúde, 4900-314 Viana do Castelo, Portugal. E-mail: candidaviana@ess.ipvc.pt

****Doutora em Ciências de Enfermagem; Investigadora na UICISA-E; Professora Adjunta no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Escola Superior de Saúde, 4900-314 Viana do Castelo, Portugal. E-mail: manuelacerqueira@ess.ipvc.pt

 

RESUMO

CONTEXTO: Considerando que a cidadania em saúde consagra o direito e dever dos cidadãos participarem ativamente no processo de cuidados de saúde, procurou-se promover nos reclusos a literacia em saúde e qualidade de vida numa lógica de investigação-ação.

OBJETIVOS: desenvolver competências cognitivas, sociais promotoras da tomada de decisão em saúde; incentivar à procura/mobilização da informação em saúde; reforçar as determinantes individuais e coletivas na gestão da doença crónica.

MÉTODOS: Estudo quasi-experimental com recurso a metodologias participativas e quantitativas. Efetuaram-se entrevistas à Direção de um Estabelecimento Prisional do Norte de Portugal e a focus group com os reclusos. Aplicaram-se questionários de Literacia em Saúde, Avaliação de Qualidade de Vida e um Instrumento de caraterização sociodemográfica.

RESULTADOS: No Grupo de Intervenção a idade média é de 39,2 + 10,8 anos, variando entre os 19 e os 55 anos. Na Qualidade de Vida, as dimensões “Saúde Geral” e “Função Física” apresentaram respetivamente valores mais baixo (47,4%) e mais elevado (71,3%). O nível de literacia “inadequado/problemático” foi o mais frequente, nas várias dimensões.

A (co)construção do programa de “educação terapêutica” configurou-se em 4 eixos: saúde global, higiene, bem-estar; alimentação e saúde; gestão doença; e gestão/compreensão da informação em saúde

CONCLUSÕES: O projeto centrou-se na cooperação intersectorial, multiprofissional, em lógicas de whole-of-government e whole-of-society.

Os resultados são norteadores da intervenção prioritária, mantendo-se o enfoque na lógica de botton-up, orientada para os domínios da saúde geral e emocional, com recurso ao team building. Encontra-se em fase de reavaliação, com recurso às estratégias utilizadas no diagnóstico inicial.

Palavras-chave: Qualidade de vida; Literacia em saúde; Prisões

 

ABSTRACT

BACKGROUND: Considering that citizenship in health enshrines the right and duty of citizens to actively participate in the health care process, it was sought to promote literacy in health and quality of life in the inmates, in a logic of action research.

AIM: to develop cognitive, social skills that promote health decision making; encourage the search/mobilization of health information; individual and collective determinants of chronic disease management.

METHODS: Quasi-experimental study using participatory and quantitative methodologies. We resorted to the interview with the Directorate of a prison establishment in the North of Portugal and the focus group with the inmates. We applied questionnaires of "Health Literacy in Portugal", Quality of Life Assessment and an instrument of sociodemographic characterization.

RESULTS: The average age of prisoners is 39.2 + 10.8 years, ranging from 19 to 55 years.The level of "inadequate/problematic" literacy was the most frequent in the various dimensions. In QOL, the "General Health" and "Physical Function" dimensions presented the lowest values ??(47.4%) and the highest (71.3%).

The (co) construction of the "therapeutic education" program was set up in four areas: global health, hygiene, well-being; food and health; disease management; and Management/understanding of health information

CONCLUSIONS: the project focused on cross-sectoral, multiprofessional cooperation in whole-of-government and whole-of-society logics.

The results are guiding the priority intervention, keeping the focus on a bottom-up logic, oriented to the domains of general and emotional health, using team building. It is in the reassessment phase, resorting to strategies used in the initial diagnosis.

Keywords: Quality of life; Health literacy; Prisons

 

RESUMEN

CONTEXTO: Considerando que la ciudadanía sana consagra el derecho y el deber de participar activamente en el cuidado de la salud, se intentó promover en los internos la alfabetización en salud y en calidad de vida dentro de la investigación- acción.

OBJETIVOS:Desarrollar competencias cognitivas, sociales promotoras de toma de decisión en salud; fomentar la búsqueda y la movilización de la información sanitaria; reforzar determinantes individuales y colectivos en gestión de la enfermedad crónica.

MÉTODOS: Estudio cuasi experimental con recurso a metodologías participativas y cuantitativas. Se recurrió a la entrevista a la Dirección del Prisión del Norte de Portugal, un focus group con los reclusos. Se aplicaron cuestionarios de "Alfabetización en Portugal," Calidad de Vida y evaluación de herramientas de caracterización sociodemográfica.

RESULTADOS: En el Grupo de Invervención la edad media es 39,2 + 10,8 años, variando entre los 19 y los 55 años. El nivel de alfabetización inadecuado/ problemático, más frecuente, en diferentes dimensiones. En la QV, las dimensiones “Salud General” y “Función Física” presentaron respectivamente los valores más bajos y elevados (47,4%), (71,3%).

La (co)construcción del programa de "educación terapéutica" se configuró en 4 ejes: salud global, higiene, bienestar; alimentación y salud; gestión de enfermedad y Gestión/comprensión de información de la salud.

CONCLUSIONES: el proyecto se centró en la cooperación intersectorial, multiprofesional, en lógicas de whole-of-government y whole-of-society. Los resultados son orientadores de la intervención prioritaria, manteniéndose el enfoque en la lógica de botton-up, orientada a dominios de salud general y emocional, recurriendo al team building.

Palabras Clave: Calidad de vida; Alfabetización en salud; Prisiones

 

Introdução

A privação da liberdade individual em prisões, como condenação social à transgressão das normas orientadoras da conduta em sociedade, é uma forma de punição, mas também um lugar onde os reclusos poderão ter oportunidade para desenvolver capacidades favorecedoras da sua reintegração na sociedade. Contudo, segundo a Ordem dos Enfermeiros (OE, 2012) a prisão também expõe os reclusos a riscos acrescidos de doenças graves, muitas das quais transmissíveis, e é um espaço onde existe perigo de se desenvolverem comportamentos que favorecem o aparecimento de determinadas doenças. A estes riscos acrescem constrangimentos, o facto de cada recluso “se despir do seu eu” e ficar impedido de estabelecer contactos sociais com o mundo exterior. De acordo com Goffman, com a entrada numa instituição prisional o “eu é, sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado” (Goffman 2001, p.24).

O Observatório Português dos Sistemas de Saúde já, em 2003, apelava à melhoria das condições prisionais, atendendo às particularidades inerentes às áreas da saúde dos reclusos mais preocupantes e aos riscos para a saúde pública, como os comportamentos aditivos e as doenças transmissíveis (OPSS, 2003). O relatório da Provedoria da Justiça, As Nossas Prisões, em 2003, apontava para o facto dos problemas da saúde prevalecentes, nos reclusos institucionalizados, estarem muitas vezes relacionados com o seu percurso de vida, condições sociais desfavoráveis, baixa escolaridade, índice de pobreza, doença mental e desequilíbrios psiquiátricos e com as doenças infeciosas, associadas, direta ou indiretamente, ao consumo de drogas. O ambiente prisional representa, por diferentes razões, um risco elevado para a saúde dos reclusos (Goomany & Dickinson, 2015; Royal College of Nursing, 2009; World Health Organization, 2014a).

Partindo-se da especificidade deste contexto encetou-se a (co)construção do projeto “Saúde em Cadeia”, cujo desenho e resultados preliminares dão corpo a este artigo. Assim, a promoção da saúde e literacia em saúde, bem como a Qualidade de Vida (QV), constituem-se conceções estruturantes pelo que nos propomos revisitar de forma sumária.

 

Saúde, Promoção da Saúde e Literacia em Saúde

O conceito holístico de saúde preconizado pela Organização Mundial de Saúde é “(…) um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente na ausência de doença ou enfermidade” (WHO, 1948). Este conceito foi inovador, à época, por considerar os aspetos da subjetividade, da abordagem positiva e da multidimensionalidade. Contudo, foi criticado pela utopia e carater estático conferido pelo termo “completo”.

 Mais tarde, a definição foi alargada para englobar a extensão em que o indivíduo ou grupo é capaz de realizar as suas aspirações e satisfazer as suas necessidades e também de modificar e lidar com o meio que o envolve. Assim, a saúde requer intervenção e responsabilidades repartidas e complementares dos decisores políticos e dos profissionais do terreno, para que no âmbito das suas intervenções integrem o processo de saúde e de doença em toda a sua abrangência, à luz do conceito positivo de saúde preconizado na Carta de Ottawa. A saúde é proclamada como um recurso para a vida diária, sendo a responsabilidade sobre ele compartilhada pelos cidadãos e pelos profissionais em exercício em todas as estruturas sociais, políticas, económicas e ambientais.

Neste âmbito, a promoção da saúde é um conceito fundamental que visa o envolvimento da sociedade global com o objetivo de permitir a todos um maior controlo sobre a sua saúde e a aquisição e desenvolvimento de habilidades que permitam melhorá-la.

A 9ª Conferência Global sobre Promoção da Saúde, em 2016, reiterar os princípios para a promoção da saúde para o séc. XXI, entre os quais destacamos: promover a responsabilidade social, que se pretende assumida nas políticas e nas práticas, quer do setor público como do privado para que a saúde seja promovida e defendida; aumentar a capacitação (empowerment) dos indivíduos, ou seja, dotar as pessoas de habilidades individuais que lhes permitam tomar decisões e controlar a sua própria vida, relativamente à saúde e a capacidade para a mobilização coletiva que vise influenciar condições que favoreçam a saúde da comunidade.

Para proteger, melhorar e aumentar a saúde, são imprescindíveis práticas profissionais que impulsionem as atitudes individuais positivas para a saúde, favorecidas por decisões políticas para melhorar a QV das populações, como por exemplo a equidade de acesso a cuidados de saúde que a promovam, que previnam e tratem a doença reabilitando os indivíduos, e condições socioeconómicas e ambientais promotoras de bem-estar individual e coletivo.

A Organização Mundial de Saúde advoga a literacia em saúde como fundamental para a manutenção e melhoria da saúde dos indivíduos e populações e define-a como um conjunto de competências cognitivas e sociais e a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e utilizarem a informação de modo a promover e manter a saúde (WHO, 1998). Estas competências são consideradas essenciais para que cada pessoa seja capaz de lidar com os assuntos relativos à sua saúde, nas opções do seu quotidiano, na procura e utilização dos serviços de saúde e na integração prática e responsável das informações para preservar e melhor a própria saúde.

A literacia em saúde assenta na interação das aptidões dos indivíduos com os múltiplos contextos de vida. Nesta perspetiva, a literacia em saúde resulta de vários setores sociais que a devem assumir de forma partilhada. Requer ainda, que se estabeleçam redes de conhecimento entre investigadores e profissionais do terreno que facilitem a circulação e congregação do conhecimento que suporte políticas e intervenções sustentadas na evidência e capazes de ultrapassar barreiras sociais no âmbito da saúde (WHO, 2014b).

Está em jogo a alteração intencional e critica de percursos complexos de relação entre “a(s) pessoa(s), a literacia em saúde e a capacitação para a transformação positiva das determinantes sociais da saúde e das condições de vida das comunidades” (Morais, Brito & Tomás, 2018: 69).

 

Educação para a Saúde como Contributo para o Empowerment

A saúde depende de múltiplos eixos confluentes das políticas públicas, como a saúde, a educação, o desenvolvimento socioeconómico e cultural, o meio ecológico e ambiental, entre outros. É um processo de construção permanente no continuum da vida, imbricado no projeto de vida de cada indivíduo, é multidimensional e convida à interação, participação e análise crítica na linha do estilo de educação para a “consciência crítica” preconizada por Paulo Freire (Freire, 2011).

Assim, neste projeto, a Educação para a Saúde (EPS) é entendida como “comprises consciously constructed opportunities for learning involving some form of communication designed to improve health literacy, including improving knowledge, and developing life skills which are conducive to individual and community health” (WHO, 1998, p.14).Favorece aprendizagens e experiências que estimulem cada indivíduo ou grupo a adotar comportamentos saudáveis de uma forma voluntária e informada.

A EPS é uma atividade intencional, que requer um programa assente na análise da realidade ou definição do problema. A partir do desenvolvimento do pensamento reflexivo e crítico, propiciador da autonomia e da responsabilidade face à sua saúde (ibidem), pretende favorecer a adoção consciente de hábitos e estilos de vida saudáveis e responder às necessidades em saúde identificadas atendendo às especificidades da pessoa, família, grupo e comunidade.

As escolhas no âmbito da saúde são, muitas vezes, condicionadas por recursos individuais, socioeconómicos e ambientais. Nesta equação, a capacitação individual (empowerment) pode e deve ser incrementada através de intervenções que favoreçam a aquisição de competências para a tomada de decisão, a autoconfiança e competências interpessoais para compreender, procurar e usar a informação, a autoestima e a perceção para controlar e capacidade para decidir a sua própria vida. Aumentar a literacia em saúde favorece a capacitação do individuo para agir sobre a sua saúde e a dos que de si dependem, contribuindo para ambientes mais saudáveis e estilos de vida favoráveis à qualidade de vida.

 

Qualidade de Vida e Reclusão Prisional

O conceito de QV introduzido por Pigou associa o bem-estar humano com a economia, que a influência, como publicou na obra The Economics of Welfare, em 1920. Este autor chamou, pela primeira vez, a atenção para a influência das condições de vida sobre a qualidade com que as pessoas viviam e deu o mote para que estudos académicos contribuíssem para mostrar que várias são as condições que influenciam a vida das pessoas.

A QV é um conceito subjetivo e não universal, pelo que é variável no significado que tem de pessoa para pessoa, no tempo histórico e nas diversas culturas, condições de vida, crenças, entre outros. Os fatores que a determinam são de várias ordens e natureza, designadamente: materiais (remuneração, capacidade financeira para fazer frente aos custos de vida); e/ou de ordem individual e pessoal (a felicidade, o prazer, o amor e a realização pessoal). É uma importante dimensão da saúde, influencia-a e inscreve-se no conceito de saúde que a WHO, adotou, em 1948.

No conceito da WHO a QV é a perceção do indivíduo sobre a sua vida, em estreita relação com o contexto cultural em que está inscrito, com os seus objetivos e expectativas de vida. Não sendo completamente consensual, este conceito incluí três aspetos fundamentais que o caracterizam por consenso: a subjetividade, a multidimensionalidade e a bipolaridade.

A melhoria da QV dos reclusos merece atenção constante para serem superadas as condições adversas dos estabelecimentos prisionais de modo a que nesse espaço e tempo, seja possível contribuir para a sua reintegração responsável na vida em sociedade. Para Saraiva e Lopes (2011) a reinserção implica que o ex-recluso saiba viver em sociedade e tenha adquirido capacidades para se auto cuidar e, para isso, o investimento na literacia em saúde é fundamental.

Nos estabelecimentos prisionais o quotidiano é organizado por atividades que obedecem a uma regulamentação programada e planificada. Cada recluso fica submetido às regras da vida na prisão e, como tal, assimila a cultura prisional (Barreto, 2006). O estudo de Rocheleau (2013), sobre a exploração da vida prisional e a sua associação ao mau comportamento e envolvimento em violência, evidenciou que as pessoas que consideravam especialmente difícil lidar com o tédio, com as preocupações com sua segurança e com os conflitos com funcionários, estavam em maior risco de apresentar mau comportamento e violência.

Os reclusos têm resistência na reprodução da sua história de vida e de mostrar as suas próprias fraquezas, o baixo nível de instrução é, de certa forma, decorrente do alto índice de portadores de transtornos cognitivos, o que se traduz na redução das capacidades cognitivas necessárias para obter, processar e utilizar as informações adequada e oportunamente (ibidem). Na população a viver as circunstâncias da vida em reclusão, limitante da atividade pessoal e das relações sociais, o conhecimento da QV é um indicador para a implementação de programas de escolarização e de estratégias de educação, particularmente na área da saúde. Partindo-se destes pressupostos teóricos, procedeu-se à construção do projeto “Saúde em Cadeia”.

 

Métodos

Partindo-se do princípio que a cidadania em saúde, nos termos da Declaração de Alma-Ata consagra o direito e dever das populações em participar individual e coletivamente em todas as etapas do processo de cuidados de saúde, procura-se promover a literacia em saúde e a QV dos reclusos. O projeto emergiu na sequência da colaboração com um Estabelecimento Prisional do Norte de Portugal (EPNP), numa lógica de pesquisa-ação participativa em saúde conducente à construção e validação de um programa de “educação terapêutica” (PET) tendo por objetivos: desenvolver competências cognitivas e sociais promotoras da tomada de decisão fundamentada em saúde;incentivar à procura e mobilização da informação em saúde; e reforçar as determinantes individuais e coletivas na gestão da doença crónica.

O projeto teve por base um estudo “quasi-experimental”, constituindo-se dois grupos: o Grupo de Intervenção (GI) e um Grupo de Controlo (GC), nos quais foi avaliada a literacia em saúde e a QV na fase precedente e seguinte à implementação do PET. Encontrando-se a última em curso pelo que não será integrada neste artigo.

O GI foi constituído por reclusos que voluntariamente se disponibilizaram para a construção do PET e o GC, de entre os restantes, de forma aleatória, obedecendo-se ao emparelhamento com base na idade e escolaridade.

Para recolha de dados aplicaram-se três instrumentos:

- Instrumento de caraterização sociodemográfica, construído para o efeito;

- Escala de avaliação de Qualidade de Vida “Estado de Saúde MOS SF – 36 v2” (Ferreira, 2000), instrumento desenvolvido sob a forma de escala de likert, constituído por 36 itens de autorresposta, dividida em 2 componentes (Componente física e Componente Mental) e 8 dimensões (Função física, Desempenho Físico, Dor, Saúde Geral, Vitalidade, Função Social, Desempenho Emocional e Saúde Mental). As pontuações finais de cada dimensão variam entre 0 – 100, com as pontuações mais elevadas a corresponder a melhor estado de saúde possível.

- Questionário Europeu de Literacia em Saúde (Espanha, Avila & Mendes, 2016), constituído por 47 questões cuja escala de resposta varia entre 1 e 4 valores (do muito difícil ao muito fácil),na qual a pessoa diz o grau de dificuldade que sente na realização de tarefas relevantes na gestão da sua saúde. O instrumento integra três domínios da saúde – cuidados de saúde, promoção da saúde e prevenção da doença – e quatro níveis de processamento da informação essenciais à tomada de decisão – acesso, compreensão, avaliação e utilização.

Para a construção do PET, recorreu-se ainda à entrevista semiestruturada à Direção do EPNP, a um focus group e a um world caffé com reclusos, para identificação das necessidades/possibilidades e negociação das estratégias/compromissos do tipo e natureza de envolvimento individual e do grupo.

Recorreu-se à estatística descritiva e inferencial, respeitando na última os pressupostos de normalidade e nível de mensuração das variáveis. O nível de significância definido foi de 5%.

Foram respeitadas as recomendações da Declaração de Helsínquia, com as revisões de Tóquio, Veneza, Hong Kong, Sommerset West, Edimburgo e Seul para a investigação envolvendo pessoas.Assim, aos participantes foram explicitados os objetivos, natureza e âmbito da participação, garantindo a confidencialidade dos dados recolhidos, privacidade e anonimato, sendo também assegurada a possibilidade dos mesmos poderem desistir a qualquer momento. Ao EPNP foi garantido o anonimato e negociados os termos de caraterização do contexto organizacional a ter em conta na divulgação científica e comunitária dos desenvolvimentos.

 

Resultados

Relativamente ao perfil sociodemográfico do GI, verifica-se que a idade média é de 39,2 anos + 10,8,variando entre os 19 e os 55 anos, 40% não sabe ler ou possui o 1º ciclo de escolaridade, a maioria (95,0%) participa em outras atividades programadas e do ponto de vista clínico 50% refere ter, pelo menos, uma patologia, sendo a mais frequente a hepatite C. Quanto ao grupo de controlo, a média de idades é de 36,85± 8,2 anos, com uma idade mínima de 25 e máxima de 52 anos, 30% não sabe ler ou possui o 1º ciclo de escolaridade, 85% participa em outras atividades programadas e 25% refere possuir, pelo menos, uma patologia, sendo a mais frequente a obesidade. Comprova-se a equivalência dos grupos quanto à idade (t Student =3,121; p =0,447) e quanto à escolaridade (c2F; p=0,235).

No que se refere à QV, verifica-se que a dimensão Saúde Geral apresenta o valor médio mais baixo (menor QV percecionada) tanto no GI como no GC, respetivamente 47,7+7,2 e 49,8+6,8. A dimensão Função Física regista o valor médio mais elevado nos dois grupos (71,9+32,3 no GI e no 89,5+19,4 GC) (Tabela 1). Não se observam diferenças com significado estatístico entre os grupos nas várias dimensões, à exceção da Função Física, em que o GC apresenta um valor mais elevado (U=101,0; p=0,01).

No que diz respeito à literacia em saúde, constata-se que o nível “inadequado/problemático” é o que regista maior frequência, quer em termos dos domínios quer em termos do Índice Geral. Verifica-se ainda, que o domínio da Prevenção da Doença, embora tenha registado uma frequência absoluta inferior no nível “inadequado/problemático” comparativamente aos demais domínios, é também o que apresenta maior frequência de “não resposta” (Tabela 2). Não se verificam diferenças com significado estatístico entre os grupos.

Estes resultados foram orientadores da reflexão necessária e conducente ao planeamento e operacionalização dos eixos a desenvolver. Assim, a (co) construção do PET configurou-se em torno de 4 eixos: Saúde global, higiene e bem-estar; Alimentação e saúde; Gestão da doença - novos e velhos desafios; e Gestão/compreensão da informação em saúde.

Incluindo desde dinâmicas de desconstrução de estigmas, a sessões de relaxamento, passando pela construção de hortas verticais, entre outras, o projeto desenvolveu-se num total de 12 sessões, com a duração de 1 hora. Os assuntos foram desenvolvidos em espaços/tempo de reforço das “vozes” e da partilha dos saberes experienciais. A descoberta de sentidos e a qualidade das interações estabelecidas constituem um das marcas mais relevante do projeto.

 

Discussão

A população do projeto caracteriza-se por uma faixa etária ampla (19-55 anos) e com número expressivo de elementos sem alfabetização ou com a escolaridade ao nível do 1º ciclo (40%). Estas condições influenciam as dimensões da literacia em saúde estudadas e a capacidade individual para a participação nas sessões de intervenção em grupo, requerendo das investigadoras adaptação da linguagem e estratégias que favoreçam a inclusão e participação dos elementos presentes.

A baixa escolaridade da população com que trabalhamos sobrepõe-se ao retrato do país e inscreve-se numa problemática nacional de baixa literacia em saúde (Sorensen, et al 2012; WHO, 2013; Espanha, Ávila & Mendes, 2016).

Os dados sobre as condições da saúde no grupo de reclusos participantes mostram que existe pelo menos uma patologia diagnosticada, em metade dos elementos e que a Hepatite C é a mais frequente. Identificamos outras problemáticas de saúde como o consumo de álcool e de tabaco. Estes dados são corroborados nos relatórios quer nacionais (designadamente no relatório “As Nossas Prisões” da Provedoria da Justiça, em 2003) quer internacionais (WHO, 2014a) onde as doenças transmissíveis, associadas a comportamentos e condições de vida em comum, apresentam uma expressão considerável. Da mesma forma são expressos comportamentos aditivos de forma significativa, nomeadamente no que diz respeito ao tabagismo e álcool.

Há uma crescente tomada de consciência de que os níveis de literacia são determinantes indeléveis dos níveis de saúde da população (WHO, 2013; Nutbeam, 2000). A gestão da saúde requer capacidades para aceder a informação e avaliá-la, interpretá-la e compreendê-la para os indivíduos a poderem utilizar nas situações relacionadas com a saúde, na compreensão das indicações e prescrições para controlo de doenças, nos cuidados de saúde preventivos e opções promotoras da própria saúde e dos que coabitam e/ou deles dependam (Sorensen et al 2012; Espanha, Ávila & Mendes, 2016).

Relativamente à literacia em saúde, os resultados obtidos no nosso estudo evidenciam que é problemática na população reclusa estudada. O índice de literacia geral e o índice de cuidados de saúde situa-se num nível “inadequado/problemático” (n=12, em cada um). O índice prevenção da doença revelou “inadequado/problemático” em 7 casos com o mesmo número de “sem resposta”. No índice promoção da saúde o nível inadequado/problemático evidenciou n=10 e n= 2 “sem resposta”.

Os resultados obtidos a este nível, no nosso estudo, ainda que mais baixos, apontam no mesmo sentido do estudo sobre literacia em saúde, em Portugal (Espanha; Ávila & Mendes, 2016). Nesse estudo verificou-se que o índice geral de literacia em saúde se encontra ligeiramente abaixo dos 8 países europeus estudados, com 11% da população num nível inadequado e 38% num estado problemático. No que se refere às dimensões, verifica-se: no índice de literacia em cuidados de saúde, que quase metade da população está num nível inadequado ou problemático; no índice de literacia sobre prevenção de doenças – a capacidade para a prevenir doenças revelou-se limitada com 45,5% da população em situação de literacia inadequada ou problemática; e no índice de promoção sobre promoção da saúde – os valores são ligeiramente superiores aos países da UE estudados.

Em síntese, os resultados obtidos apontam para a necessidade de capacitação efetiva dos reclusos na promoção da saúde e na prevenção e gestão das doenças, com vista à melhoraria do bem-estar e da QV. Pretende-se ainda contribuir para o desenvolvimento das capacidades e preparação para a reinserção na comunidade, designadamente pela adequada utilização dos recursos em saúde.

A avaliação da QV, nesta população, revelou que a dimensão da Saúde geral foi percecionada como baixa (47,7 ± 7,2) e que a dimensão avaliada como mais alta foi a perceção da Função Física (71,9 ± 32,3). Nas dimensões relacionadas com a saúde mental e social evidenciou-se que as perceções mais baixas são nas dimensões Desempenho Emocional (64,5 ± 26,9) e Vitalidade (64,7 ± 18,9) e a Função Social é a melhor percecionada (71,1 ± 27,3).

Estudos da QV na população prisional em Portugal são escassos. Numa revisão da literatura realizada para explorar o modo como o clima prisional influencia a saúde mental de reclusos adultos, verificou-se que o clima nas prisões não é favorável ??à manutenção da saúde mental (embora não tivesse acontecido de forma sistemática) e pode não responder adequadamente às necessidades dos reclusos diagnosticados com problemas de saúde mental (Goomany & Dickinson, 2015). São, pois, necessárias mais pesquisas para compreender como o clima nas prisões pode contribuir para melhorar ou manter a saúde mental dos residentes e apontar estratégias para operacionalização da promoção da saúde mental e a gestão dos problemas de doença mental dos residentes.

 

Conclusões

O grupo de intervenção demonstrou um comportamento pró-ativo, evidenciando interesse nos temas das sessões efetuadas, colocando questões e partilhando situações/experiências que contribuíram para o enriquecimento da sessão e desenvolvimento da aprendizagem em torno dos temas abordados.

Os resultados reforçam a importância das intervenções capazes de promoverem a capacidade para a melhoria da saúde em geral e pelo desenvolvimento de estratégias pessoais para gestão das emoções e reforçam a pertinência do plano de ação em torno dos 4 eixos norteadores da investigação-ação.

O projeto centrou-se na cooperação intersectorial e multiprofissional, em lógicas de whole-of-government e whole-of-society.

A relevância social e económica que a saúde comporta, requer o desenvolvimento de mais estudos e de políticas institucionais e públicas favorecedoras da manutenção da saúde dos reclusos e da oportunidade que o período de reclusão representa para o desenvolvimento das capacidades de literacia em saúde, gestão da doença e melhoria do seu bem-estar físico e mental, reinserindo pessoas mais habilitadas a gerir a sua saúde e a contribuírem para a saúde no seio familiar.

 

Implicações para a Prática Clínica

Os resultados são norteadores da intervenção prioritária nos domínios da saúde geral e na dimensão emocional, variando desde cuidados com a alimentação, consumos aditivos, gestão do stress.

O projeto encontra-se em fase de reavaliação, com recurso às estratégias utilizadas no diagnóstico inicial e na sua continuidade prevemos a integração de atividades de team building e consulta de cessação tabágica.

A lógica Botton-up que norteou o projeto foi favorecedora da (co)construção de toda a intervenção e resultou da franca descoberta de sentidos entre a comunidade reclusa e a equipa de investigação. Neste sentido, todo o processo se revelou dinâmico e surpreendentemente empoderador, consubstanciado pelo agir transformador, intencional e crítico, de todas as partes.

 

Referências Bibliográficas

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Recebido em 30 de dezembro de 2018

Aceite para publicação em 11 de março de 2019

 

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