SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 issue1Measurement of chlorinated dioxins, furans and PCBs in Ardea alba Great Egret, and Puffinus puffinus Manx Shearwater: Ilha Grande Bay, Rio de Janeiro, Brazil author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Revista de Gestão Costeira Integrada

On-line version ISSN 1646-8872

RGCI vol.12 no.1 Lisboa Mar. 2012

 

ARTIGO INTRODUTÓRIO / INTRODUCTORY ARTICLE

Gestão Costeira: resultado de uma relação dúbia entre o Homem e a Natureza

Coastal Management: the result of a doubtful relationship between Man and Nature

 

J. Alveirinho Dias1, Michel Michaelovitch de Mahiques2, Alejandro Cearreta3

1Executive Editor. CIMA / Univ. Algarve Faro, Portugal

2Invited Editor. Univ. de São Paulo / Instituto Oceanográfico São Paulo, SP, Brasil

3Invited Editor. Universidad del País Vasco / EHU Espanha

 

1. Introdução

O objectivo central da Gestão Costeira é o Homem. Sem o Homem as zonas costeiras não careceriam de qualquer tipo de gestão. É o Homem que impõe a necessidade dessa gestão como forma de, presumivelmente, melhorar o nível de exploração dos recursos naturais. Claro que, nesta óptica, se pressupõe como verdadeira a dicotomia Homem – Natureza, isto é, que são entidades distintas, o que, em rigor, não corresponde à verdade.

Sem a presença do Homem, a Natureza gere-se a si própria segundo leis universais, imparciais e incorruptíveis. Porém, a gestão natural apresenta características antagónicas aos valores estabelecidos pelo Homem (entre os quais a justiça, a igualdade, a compaixão, a solidariedade, a condescendência e a segurança). Na realidade, se nos centrarmos em qualquer espécie (animal ou vegetal), a Natureza é tipificada pela crueldade, pela injustiça e pelo desprezo pelos valores essenciais a essa espécie.

Todavia, a Natureza gere-se a si própria com extrema eficácia, garantindo verdadeira sustentabilidade para o futuro a curto, médio, longo e muito longo prazos. Ao longo dos cerca de 3,5 biliões de anos de vida na Terra os ecossistemas foram-se sucedendo, tornando-se progressivamente mais complexos. Num planeta dinâmico como é o nosso, diversas componentes abióticas dos ecossistemas foram mudando de características, levando a que as componentes bióticas se adaptassem e evoluíssem.

Neste jogo abiótico – biótico também as acções das componentes vivas provocaram modificações, por vezes fundamentais, nas componentes abióticas. Geraramse mesmo, com frequência, mecanismos de retroalimentação (feed-back) que conduziram a grandes modificações ecossistémicas. A vida baseada no oxigénio resultou precisamente dessas modificações. Refira-se que nos primeiros ecossistemas terrestres, constituídos por organismos unicelulares, os níveis de oxigénio na atmosfera eram ínfimos, provavelmente inferiores a 1% (e.g., Yang et al, 2002). Para os organismos então dominantes o oxigénio era letal. O aumento de oxigénio na atmosfera terrestre constituiu modificação profunda, a qual ultrapassou os níveis de resiliência de muitos ecossistemas, forçando a componente biótica a adaptar-se e a evoluir. Desenvolveram-se, assim, métodos bioquímicos para reter o oxigénio, sendo um dos principais a respiração aeróbica.

Foi muito provavelmente o acréscimo de oxigénio atmosférico, em conjunto com outras alterações dos factores abióticos (e.g., glaciações), que proporcionaram a “explosão cambriana”, há cerca de 530 milhões de anos, quando rapidamente (aprximadamente 70 milhões de anos) surgiram os phyla mais importantes, aumentando extraordinariamente a biodiversidade. Muitos outros casos de quebra de resiliência ecossistémica, capacidade de adaptação e de impulso evolucionista se poderiam referir, como o que culminou no aparecimento das plantas vasculares, no Silúrico, há uns 443 milhões de anos.

É de relevar que foi precisamente a rápida modificação dos factores abióticos, no final do Mesozóico, há 65 milhões de anos, que ultrapassou os níveis de resiliência de muitos dos ecossistemas então existentes, provocando uma extinção em massa de espécies animais e vegetais, incluindo os dinossáurios. Foi a janela de oportunidade para os mamíferos, que tinham surgido muito tempo antes, no início do Mesozóico, há 250 milhões de anos, mas que se tinham mantido com dimensões diminutas (do tamanho de ratos) e com pequena importância ecológica. Foi o evento que, mais tarde, há uns 200 mil anos, viria a propiciar o Homo sapiens, ou seja, do Homem.

E foi o Homem que, primeiro timidamente, depois com relevância crescente, começou a tentar “melhorar” alguns processos naturais, a alterar de forma progressiva o funcionamento dos sistemas terrestres, a colocar cada vez mais a Natureza ao seu dispor. Instituiu-se como a espécie dominante e soberana do planeta que o produziu. Actualmente transformou-se no principal agente modelador das zonas costeiras.

Corrompendo a lógica das leis naturais, onde a adaptabilidade às modificações ambientais constitui factor de suma importância para a sobrevivência da espécie, o Homo sapiens sapiens adaptou-se como pode às alterações do meio em que vivia (e com isso evoluiu), mas com o poder tecnológico que desenvolveu, tenta adaptar a Natureza aos seus próprios interesses.

O Homem, que pode ser considerado como única espécie “moral”. Como defendia Kant (1784 [2004]), não é somente a obrigação moral o factor mediador das relações entre os homens; elas acabarão por ocorrer a partir de uma sociedade moral; todavia, ao mesmo tempo em que o Homem traz em sua natureza uma disposição para associar-se, tende à preguiça, à cobiça, à dominação. O Homem, espécie única, com qualidades ímpares, com imperfeições evidentes, com contradições surpreendentes.

Assim, ao tentar assumir-se como entidade reguladora dos processos dos quais depende, mas que conhece ainda mal e que, efectivamente, não controla, o Homem entrou em conflito consigo mesmo. E esses conflitos são evidentes na exploração dos recursos marinhos, e nunca é demais relembrar que o litoral é o principal recurso marinho explorado na actualidade (Dias et al., 2009). Com efeito, nas zonas costeiras, o turismo conflitua com as actividades portuárias, as pescas com os efluentes industriais, as explorações minerais com o urbanismo, e os exemplos poderiam continuar quase ad infinitum.

Porém, a conflitualidade reveste-se de amplitudes bastante maiores quando se tem em atenção que as zonas costeiras são (positiva ou negativamente) afectadas por:

  • tudo o que acontece nas bacias hidrográficas (e.g., desflorestações, barragens, impermeabilização de grandes áreas, esgotos urbanos e industriais);
  • pelas alterações provocadas pela sociedade no clima atmosférico (local, regional e global);
  • pelas mudanças na agitação marítima (devidas a dragagens, aterros ou construção de estruturas marinhas;
  • pelas transformações que induz no comportamento litosférico (como subsidência devida à carga induzida por grandes metrópoles ou à extracção de grandes volumes de fluidos – água, petróleo, gás).

É precisamente devido a todos estes níveis de conflitualidade que as zonas costeiras carecem de uma gestão cuidada, tendo como base o conhecimento científico do funcionamento dos sistemas naturais, mas baseada em princípios “morais” específicos da espécie humana, tais como a coesão e a equidade sociais, a participação pública e a prática plena da cidadania, a co-responsabilização social (estruturas governamentais, populações, agentes económicos, associações representativas), e a dignificação do conhecimento científico como matriz de base da construção de uma nova sociedade preocupada com o desenvolvimento sustentável inter-geracional.

Para resolver os problemas que afectam o litoral é fundamental compreender a génese desses problemas, o que é abordado para a costa do Alentejo, Portugal, por Bastos et al. (este volume), analisar as diferentes influências que a ocupação turística e as obras portuárias tiveram na evolução recente do litoral, como é abordado por Freitas & Dias (este volume) para a Praia da Rocha, Portugal, compreender como é que os litorais foram progressivamente construídos, como Durão (este volume) estudou para o de Lisboa, Portugal, e como as actividades humanas influenciam as outras espécies, o que pode ser exemplificado pelos poluentes orgânicos persistentes em aves, como foi feito por Ferreira (este volume) no Rio de Janeiro, Brasil.

A gestão costeira é actividade difícil, que exige profundos conhecimentos interdisciplinares, e a correcta determinação das relações de causa e efeito. Por exemplo, as dragagens portuárias podem induzir consequências negativas ou positivas no litoral adjacente, como aconteceu na barra de Aveiro, Portugal, o que foi estudado por Rosa et al. (este volume).

Para adoptar medidas correctivas ou mitigadoreas é essencial conhecer a realidade actual, o que inclui as alterações provocadas na paisagem, como Gianuca & Tagliani (este volume) fizeram num município de Rio Grande do Sul, Brasil, bem como analisar o nível de artificialização já atingido nos diferentes sectores costeiros, como Piartto & Polette (este volume) fazem para Balneário Camboriú, Brasil.

Todo o conhecimento científico que se vai adquirindo sobre as zonas costeiras tem que ser devidamente utilizado pelos responsáveis pela gestão do território, e as estratégias e medidas adoptadas devem ser periodicamente avaliadas, o que é efectivado por Oliveira & Nicolodi (este volume) no que se refere ao Projecto Orla, o grande projecto nacional brasileiro tendente a melhorar o ordenamento costeiro.

Este número da Revista de Gestão Costeira Integrada / Journal of Integrated Costal Zone Management não resolve, como é óbvio, os amplos e complexos problemas da gestão costeira. Integra, porém, um conjunto de artigos que constituem contribuições de grande valia para a adopção de medidas gestionárias mais eficazes, constituindo, simultaneamente, fontes de inspiração para o desenvolvimento de programas e de projectos futuros que possam, de uma ou de outra forma, ampliar os níveis de sustentatibilidade social e ambiental das zonas costeiras, de que todos nós dependenmos profundamente.


The central objective of coastal management is Man. Without Man coastal zones would not require any sort of management. It is Man who imposes the need for such management, as a way of hypothetically improving the level of exploitation of natural resources. Consequently, we assume as true the dichotomy between Man and Nature, i.e. they are distinct entities, which strictly speaking is not true.

Without the presence of Man, Nature manages itself according to universal, impartial and incorruptible laws. However, natural management characteristics are antagonistic to the values established by Man (including justice, equality, compassion, solidarity, condescension and security). In reality, if we focus on any species (animal or plant), Nature is typified by cruelty, injustice and disregard for fundamental

However, Nature manages itself with extreme efficiency, ensuring true sustainability for the future in the short, medium, long and very long range. Over approximately 3.5 billion years of life on Earth, ecosystems were succeeding, becoming progressively more complex. In such a dynamic planet as ours, various abiotic components of ecosystems continuouslly changed characteristics, leading the biotic components to adapt and evolve as a result.

In this biotic-abiotic game, also the actions of live components generate modifications in abiotic components. Often feedback mechanisms lead to major modifications in the ecosystem. Oxygen-based life resulted precisely from these modifications. It should be noted that in the early terrestrial ecosystems, consisting of single-celled organisms, oxygen levels in the atmosphere were infinitesimally small, probably less than 1% (e.g., Yang et al, 2002). For those ancient dominant organisms oxygen was a lethal poison. The increase of oxygen in the Earth’s atmosphere led to a profound change, which surpassed the levels of resilience of many ecosystems, forcing the biotic components to adapt and evolve. Hence there were to develop biochemical methods for retaining oxygen, one of the main methods being aerobic respiration.

It is likely that increase of atmospheric oxygen, together with other changes in abiotic factors (e.g., glaciations), led to the “Cambrian explosion”. This took place 530 million years ago, when rapidly (in about 70 million years time) the most vital phyla appeared, increasing enormously the amount of biodiversity. Many other cases of breach of ecosystem resilience, adaptation capabilities and evolutionary stimulation could be mentioned, such as that one which culminated in the appearance of vascular plants during the Silurian period (approximately 443 million years ago).

It was precisely the rapid modification of abiotic factors (at the end of the Mesozoic, about 65 million years ago) which surpassed the levels of resilience of many then existing ecosystems, causing a mass extinction of animal and plant species, including the dinosaurs. This extinction was a unique opportunity for mammals, who had appeared long before at the beginning of the Mesozoic (251 million years ago). Until then, mammals had remained diminished in size (more or less the size of rats) and played a role of small ecological importance. This was the event that, later on, resulted in the emergence of Homo sapiens, that is, Man.

And it was Man who first attempted to “improve” some natural processes (shyly at the beginning and in a shameless way afterwards) trying to force Nature to be his servant. Man has become the dominant species, trying to be the emperor of the same Nature that birthed him. Currently Man has occupied the position of the most important shaping agent of the coastal zones worlwide.

Corrupting the logic of natural laws, where the adaptability to environmental modifications constitutes a factor of paramount importance for the survival of the species, Homo sapiens sapiens adapted (the best he could) to those modifications, thus evolving culturally. In a perverted way, while Man augmented his technological power, he progressively stopped needing to submit himself to Nature’s will, and instead forced Nature to adapt to himself.

Man, being a unique species, can be considered the only “moral” species. As Kant argued (1784 [2004]) moral ought to be the most crucial mediator factor of the relationships amongst Men, which means that moral values should rule human societies; however, simultaneously, Man tends to laziness, greed and domination. Man: a unique species with fantastic qualities but also notorious defects.

Man came into conflict with himself when he attempted to rise as the ruler of Natural processes, not fully understanding those processes. This is evident in the exploitation of marine resources and is never in vain to be reminded that the littoral is the main marine resource currently being explored (Dias et al., 2009). Indeed, in coastal zones, touristic activities are usually in conflict with harbour operations, industrial effluents clashes with fisheries, mineral marine and coastal exploitations are in contradiction with urban development, and this sort of examples could be presented almost ad infinitum.

However, the referred conflicts reach much wider contours since costal zones reflect (positively or negatively) everything that happens in the:

  • hydrographical basins (e.g. deforation, levees, impermeabilization of large areas and urban and industrial sewers);
  • climate changes (local, regional and global) of anthropogenic roots.
  • changes in the climate of maritime waves (as a consequence of dredging, landfills and building of marine works)
  • transformations in lithospheric behaviour (such as subsidence caused by the load of mega metropolis, or the extraction of great amount of fluids: water, oil and gas).

All of these levels of conflict verified in coastal zones demand a careful coastal management always supported by the scientific knowledge, but taking in its essence basic specific moral principles of the human species, such as cohesion and social equity, public participation and full practice of citizenship, social co-responsibility (involving governmental structures, populations, economic agents and representative associations) and enhancement of Science as the base of the building for a new society concerned about the intergenerational sustainable development.

To an effective coastal zone management it is crucial to understand the roots of the conflicts and issues that influence the littoral at Present. This topic is studied in this volume by Bastos et al. for the coast of Alentejo (Portugal), covering the entire historical period, and by Freitas & Dias that, using Praia da Rocha (Portugal) as a case study, analyse the positive and negative influences of touristic occupation and harbour development including jetty constructions and dredging operations.

In order to figure out how artificial coastal zones were progressively built, Durão analysed the coastal zone of Lisbon (Portugal) started to be build trough land reclamation at least since medieval times.

Human activities influence all ecosystems being extremely important to know contamination levels in the different parts of the trophic chain. A good contribute to this matter is given by Ferreira that studied the presence of organic pollutants in birds of Rio de Janeiro (Brazil).

A sustainable coastal zone management is a difficult task, as it requires profound interdisciplinary knowledge as well as the correct determination of causes and consequences. Dredging operations carried out in ports may lead to positive or negative impacts in the adjacent littoral, as it happened for instance in the inlet of Aveiro (Portugal). This subject is the focus of the study carried out by Rosa et al. in this volume.

To adopt corrective measures, it is essential to understand the current situation, which includes the changes in the landscape, as Gianuca & Taglianiani have done for the case of a city council of Rio Grande do Sul (Brazil) or as Piatto & Polette have also done for Balneário Camboriú (Brazil) in which they analysed the level of landscape artificialization.

All of the scientific knowledge reached about coastal areas has to be properly used by the territory managers. Adopted strategies and measures have to be periodically evaluated in order to be confirmed, adapted or corrected. Oliveira & Nicolodi have done such a work evaluating the 10 years of Project Orla (the greatest Brazilian project that aims to improve coastal management activities).

This edition of Journal of Integrated Coastal Zone Management 7 Revista de Gestão Costeira Integrada obviously does not intend to solve the many and complex problems of coastal zone management. Despite that, this volume compiles a group of papers that are important contributions to the adoption of more effective coastal management measures. Simultaneously, these papers may serve as an inspiration for the development of future programmes and projects that will enhance the levels of social and environmental sustainability of the coastal zones. We all profoundly depend on this.

 

Bibliografia

References

Kant, Immanuel (1784 [2004]) - Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Tradução de “Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerliche Absicht” por Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. 2ª edição, 171p., Editora Martins Fontes, São Paulo, SP, Brasil. ISBN: 8533619391

Yang, W.; Holland, H.D.; Rye, R. (2002) - Evidence for low or no oxygen in the late Archean atmosphere from the 2.76 Ga Mt. Roe #2 paleosol, Western Australia: Part 3. Geochimica et Cosmochimica Acta, 66(21):3707-3718

Dias, J.A.; Carmo, J.A. do; Polette, M. (2009) - As Zonas Costeiras no contexto dos Recursos Marinhos. Revista da Gestão Costeira Integrada, 9(1):3-5.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License