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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.35 Lisboa jun. 2024  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7811 

Varia

Mosteiro de Alcobaça - XIX Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval

Alcobaça Monastery - XIX Congress of the Medieval Literature Hispanic Association

Natália Albino Pires1 
http://orcid.org/0000-0002-8906-3336

Ana Sofia Laranjinha2 
http://orcid.org/0000-0003-0639-3004

Margarida Esperança Pina3 
http://orcid.org/0000-0002-2850-9859

1. InEd /Cátedra UNESCO em Património Imaterial e Saber-Fazer Tradicional Instituto Politécnico de Coimbra, Escola Superior de Educação, Departamento de Formação de Educadores e Professores 3030-239 Coimbra; Portugal; npires@esec.pt

2. Universidade Aberta, SMELPS - Instituto de Filosofia da Universidade do Porto / FCT GU2 4JT, Lisboa, Portugal; Ana.Laranjinha@uab.pt

3. NOVA FCSH, Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas Modernas, IELT - Instituto de Estudos de Literatura e Tradição 1069-061 Lisboa; Portugal; mepreffoios@fcsh.unl.pt


O XIX Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (AHLM) decorreu entre os dias 5 e 9 de setembro de 2023 na ala sul do Mosteiro de Alcobaça, fruto de uma parceria entre a Universidade Aberta, o Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) da NOVA FCSH, a Câmara Municipal de Alcobaça e o Mosteiro de Alcobaça. Os congressos da AHLM, com uma periodicidade bianual, reúnem investigadores de diferentes gerações de toda a Península Ibérica e de outros países, como França, Itália, México, Brasil, Argentina, Inglaterra, Estados Unidos e Japão numa semana de partilha e de construção de novos percursos investigativos. Estes congressos distinguem-se por ter sempre, como tema agregador, a Idade Média Ibérica em múltiplas perspetivas: receção de textos de outras tradições medievais na Ibéria, contextos de difusão cultural na Península, intertextualidade(s), implicações das relações sociopolíticas e culturais na produção literária no contexto dos diferentes reinos ibéricos, estudos de receção, leituras atuais da ibericidade medieval, etc.

O XIX Congresso da AHLM trouxe reflexão sobre as literaturas medievais ibéricas a um espaço arquitetónico símbolo do esplendor da cultura medieval e determinante para a difusão do conhecimento, não só em território nacional, como também além-fronteiras. Pelo scriptorium do Mosteiro de Alcobaça, um dos mais pujantes da Península Ibérica, à época, passaram e foram reproduzidas (e/ou produzidas) obras fundamentais para a cultura ocidental. Saliente-se, a este propósito, os trabalhos de Aires A. Nascimento sobre a importância do scriptorium alcobacense e de vários dos seus manuscritos1.

Este Congresso teve a particularidade de ter sido organizado por várias instituições, universitárias e não universitárias, em parceria, teve lugar fora das paredes da universidade e fora de um grande centro urbano. A realização deste evento decorre da premissa de que continua a ser imprescindível refletir sobre a Idade Média, em particular sobre a literatura produzida durante esse período e sobre os traços culturais de então. Em especial para o grande público, importa desconstruir uma medievalidade veiculada pelo cinema e por diversos romances de fundo histórico. Importa ainda, acima de tudo, que o conhecimento e a produção de conhecimento sobre a Idade Média peninsular deixem de estar confinados às paredes das instituições de ensino superior e sejam transferidos para a sociedade.

O Congresso contou com oito conferências plenárias; duas sessões de homenagem, uma a Elsa Gonçalves e Anna Ferrari e outra a Helder Godinho e José Mattoso (autores de estudos incontornáveis sobre a Idade Média, indispensáveis para a sua compreensão); várias sessões paralelas subordinadas a temas específicos, com um total de 92 comunicações livres; a apresentação de três livros com estudos sobre as literaturas medievais ibéricas e, ainda, um repleto programa social.

A conferência inaugural foi proferida por Aires A. Nascimento, membro fundador da AHLM e da respetiva Secção Portuguesa, cujo labor investigativo tem sido determinante para os estudos medievais. A sua palestra, intitulada “Alcobaça em interrogação…” propôs um percurso sobre a biblioteca do Mosteiro, indagando a relação passível de se estabelecer entre essa biblioteca e os modos de plenitude (e a sua assunção) buscados pelos monges. A conferência de encerramento, proferida pela Presidente da AHLM, María Jesús Lacarra, intitulada “Motivos y temas literários en el arte hispánico”, procurou abrir vias de interpretação para alguns textos a partir de representações plásticas de sábios enganados por mulheres, sobre temas fabulísticos, épicos e artúricos. A conferência de Elvira Fidalgo, intitulada “Las aves del alba de Torneol: outra propuesta de interpretación” revisitou as aves referidas na cantiga “Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias” (B 641, V 242), de Nuno Fernandez Torneol, procurando significados e propondo novas interpretações a partir de símbolos presentes em bestiários medievais. A conferência de Isabel Beceiro Pita, intitulada “Libros portugueses en Castilla (1430-1451): contextos devocionales y nobiliarios”, refletiu sobre o que terá levado a que os vestígios da cultura lusa em Castela, neste período, sejam débeis, destacando algumas referências à participação de poetas portugueses em cancioneiros, mas sublinhando a escassez de documentos escritos em português que, maioritariamente, pertencem, ou à nobreza exilada, ou à nobreza fronteiriça, ou integram bibliotecas de conventos da zona raiana. A conferência de Tobias Brandenberger, intitulada “Recorridos transibéricos de la ficción sentimental”, procurou mapear a complexidade da ficção sentimental, sublinhando a presença de uma tradição extensa transversal e intersecionada através da Península Ibérica. A conferência de Yara Frateschi Vieira, intitulada “Dona, senhor, molher…lírica galego-portuguesa e ‘minorias’ femininas”, evidenciou a predominância discursiva e o papel superior atribuído à mulher nas cantigas de amigo e nas cantigas de amor, tentando aferir se esse facto poderia permitir-nos questionar se a mulher representada na lírica trovadoresca gozaria de uma condição distinta daquela que caracteriza o que se convencionou chamar, desde meados do século XX, a “minoria feminina”. Examinou, ainda, a configuração desta “minoria feminina”, em geral, face ao elemento masculino e considerando diversas minorias intersecionais representadas na lírica galego-portuguesa. A conferência de Mariano de la Campa, intitulada “Historiografía, historia medieval e historia literaria en Castilla (1270-1350)”, procurou mostrar como os textos historiográficos produzidos entre 1270 e 1350 constituem um ramo da prosa medieval na qual também se verificam os mecanismos retóricos da prosa literária e da prosa de ficção que irão dar origem ao romance do século XIV. A conferência de Rafael Beltrán, intitulada “Visiones y distorsiones de imágenes evangélicas de concepción y muerte en los primeros libros de caballerías”, discutiu algumas passagens que exemplificam o papel decisivo exercido por determinadas cenas bíblicas na ilustração de episódios cruciais dos primeiros textos de cavalarias, desde o Tirant lo Blanc até ao Baladro del sabio Merlín ou ao Tristán de Leonís, entre outros, incluindo outros géneros literários de ficção como A Celestina. Centrou-se, nomeadamente, na utilização (e, por vezes, distorção) do motivo iconográfico da Anunciação em imagens que ilustram cenas de alcova relacionadas com conceções extraordinárias.

No que concerne às sessões de homenagem, salientamos, desde já, o labor dos quatro homenageados e a sua importância para o estudo e conhecimento da literatura medieval ibérica aquém e além-fronteiras. A primeira sessão, organizada por Maria Ana Ramos, homenageou Elsa Gonçalves, recordando o seu papel determinante para os estudos medievais, em particular o impulso que deu à investigação sobre a produção lírica galego-portuguesa. O seu trabalho foi inovador, em parte, graças ao seu contacto com os estudos filológicos em curso na Universidade de Roma, o que a estimulou a elaborar a relevante edição da Tavola Colocciana (1976), de que decorreu o melhor conhecimento de Angelo Colocci e da sua ação na preservação da poesia medieval, dada a cópia dos importantes cancioneiros romanos (Cancioneiro Colocci-Brancuti e Cancioneiro da Vaticana). Quase em simultâneo àquela pesquisa, foi publicado o substancial estudo sobre o Cancioneiro Colocci-Brancuti (1979) por Anna Ferrari. Talvez tenha sido o humanista italiano quem, sem o saber, veio a reunir as duas investigadoras, que nos proporcionaram dois dos trabalhos mais emblemáticos sobre a tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa2. As coincidências (talvez irónicas!) determinaram que a homenagem inicialmente prevista à professora portuguesa, contemplasse também Anna Ferrari, falecida pouco antes do congresso alcobacense, como se o trabalho que, simultaneamente, produziram em vida, não pudesse dissociar-se do tributo que a ambas a AHLM dedica.

A segunda sessão de homenagem, organizada por Maria do Rosário Ferreira, teve início com a leitura de um depoimento de Aires A. Nascimento sobre o seu amigo Helder Godinho. Ana Margarida Chora e Ana Sofia Laranjinha destacaram o humanismo e a capacidade de transmissão do saber deste extraordinário professor, dando conta da sua curiosidade científica inesgotável e da sua capacidade para refletir sobre a literatura como forma de pensar o mundo e o Ser Humano3. José Carlos Miranda apresentou uma visão diacrónica da vastíssima obra de José Mattoso, centrando-se no caráter inovador da sua metodologia, nomeadamente no que diz respeito à utilização e interpretação de textos literários. Maria do Rosário Ferreira pôs em evidência a consistência teórica do pensamento de Helder Godinho e, lembrando a sua antologia A Prosa Medieval Portuguesa4, na qual o estudioso retomou alguns textos dados a conhecer por José Mattoso nas Narrativas dos Livros de Linhagens5, salientou as afinidades entre estes dois estudiosos da Idade Média, ambos bem conscientes das ressonâncias simbólicas dos textos que manejaram.

Durante os trabalhos, foram lançados três livros coletivos, todos resultantes de encontros científicos, com estudos sobre as literaturas medievais ibéricas. Cristina Álvares, da Universidade do Minho, apresentou o volume de estudos decorrente do último encontro da Secção Portuguesa da AHLM, no qual se reúnem trabalhos subordinados ao tema “limiares homem animal”. Elisa Borsari, da Universidade de Córdova, apresentou o volume de estudos decorrente do colóquio internacional da AHLM que se realizou em Córdova, 2-4 de setembro de 2021, Pervivencia y Literatura: documentos periféricos al texto literário, no qual se debateram, principalmente, os contributos de marginalia textuais para a literatura e a forma como foram utilizados no processo literário por diferentes autores. Meritxell Simó Torres, da Universidade de Barcelona, apresentou o volume de estudos decorrente do colóquio internacional da AHLM que se realizou em Barcelona, 2-6 de setembro de 2019, no qual encontramos um conjunto de trabalhos sobre lírica, romance, crónicas, livros de cavalarias, etc. Trata-se de volumes onde os leitores poderão encontrar estudos relevantes sobre a literatura da Idade Média sob diferentes perspetivas6.

O congresso contou com cinco dias de abundante trabalho científico, tendo sido apresentadas comunicações sobre múltiplos domínios da literatura medieval ibérica, da poesia lírica à literatura sapiencial, passando pela historiografia, literatura de viagens e livros de cavalarias. Foram apresentados estudos sobre tópicos específicos, suas recorrências e transformações, sem descurar o estabelecimento de pontes com outras literaturas e culturas, tanto mais próximas (italiana, francesa), como mais longínquas (oriental) ou ainda cronologicamente diversas (medievalismo). Marcaram igualmente presença os estudos sobre bibliotecas, manuscritos e problemáticas editoriais.

Os trabalhos científicos foram intercalados com um intenso programa social. No primeiro dia, os congressistas tiveram a oportunidade de visitar o Mosteiro, acompanhados pela diretora, Drª Ana Pagará, que os agraciou com uma minuciosa explicação dos espaços. No dia seguinte, a Câmara Municipal de Alcobaça ofereceu um jantar volante na Estalagem do Cruzeiro, em Aljubarrota, que permitiu a confraternização entre os congressistas. O habitual jantar do congresso da AHLM decorreu no dia 7, na sala D. Pedro do Hotel Montebello (ala norte do Mosteiro). Este jantar contou com uma performance de Ana Margarida Chora que cantou uma composição moçárabe e executou duas danças orientais, homenageando, deste modo, uma cultura que deixou um importante legado na Ibéria medieval. No dia 8, na sala do capítulo do Mosteiro de Alcobaça, teve lugar um concerto com Ana Raquel Roque, acompanhada ao piano por Joaquim dos Santos Roberto. Foram cantadas várias cantigas de amigo galego-portuguesas em versões musicadas por compositores portugueses dos séculos XIX e XX. O programa cultural terminou com uma visita guiada, a cargo de António Maduro e Alberto Guerreiro. O percurso incluiu uma visita ao Mosteiro de Cós e um trajeto pelos Coutos de Alcobaça, destacando as obras de ordenamento territorial desenvolvidas pela Ordem de Cister ao longo de vários séculos.

Referências bibliográficas

ÁLVARES, Cristina; SOUSA, Sérgio Guimarães de (eds.) - Limiares Homem Animal na literatura e na cultura da Idade Média. Lausanne: Peter Lang, 2023. [ Links ]

FERRARI, Anna - Trobadors e Trobadores. Prologo de E. Gonçalves, edição de F. Barberini. Modena: Mucchi Editore, 2014. [ Links ]

GODINHO, Helder - Prosa Medieval Portuguesa. Lisboa: Editorial Comunicação, 1986. [ Links ]

GODINHO, Helder (org.) - A Imagem do Mundo na Idade Média . Actas do Colóquio Internacional. Lisboa: ICALP-ME, 1992. [ Links ]

GONÇALVES, Elsa - De Roma ata Lixboa. Estudos sobre cancioneiros galego-portugueses. Ed. de João Dionísio, Henrique Monteagudo e Maria Ana Ramos. A Coruña: Real Academia Galega, 2016. [ Links ]

MATTOSO, José - Narrativas dos Livros de Linhagens. Lisboa: Temas e Debates, 2020 (1ª edição: 1983). [ Links ]

NASCIMENTO, Aires A. - “A experiência do livro no primitivo meio alcobacense”. In Atas do IX Centenário do Nascimento de S. Bernardo. Braga: Universidade Católica e Câmara Municipal de Alcobaça, 1991, pp. 121-145. [ Links ]

NASCIMENTO, Aires A. - O Scriptorium de Alcobaça: o longo percurso do livro manuscrito português. Alcobaça: DGPC-Mosteiro de Alcobaça, 2018. [ Links ]

SIMÓ, Meritxell (coord.) - “Prenga xascú ço qui millor li és de mon dit”. Creació, recepció i representació de la literatura medieval. San Millán de la Cogolla: Cilengua, 2021. [ Links ]

VALDÉS, Carmen F. Branco; BORSARI, Elisa (eds.) - Pervivencia y Literatura: documentos periféricos al texto literario. San Millán de la Cogolla: Cilengua , 2023. [ Links ]

Notas

1Não cabe neste espaço darmos conta do estado da arte relativamente aos estudos sobre a importância do scriptorium do Mosteiro de Alcobaça nem listar todos os trabalhos de Aires A. Nascimento. Referimos apenas dois dos seus estudos que acentuam a importância do scriptorium alcobacense: NASCIMENTO, Aires A. - O Scriptorium de Alcobaça: o longo percurso do livro manuscrito português. Alcobaça: DGPC-Mosteiro de Alcobaça, 2018; NASCIMENTO, Aires A. - “A experiência do livro no primitivo meio alcobacense”. Atas do IX Centenário do Nascimento de S. Bernardo. Braga: Universidade Católica e Câmara Municipal de Alcobaça, 1991, pp. 121-145.

2O labor científico das duas investigadoras será impossível mencionar num trabalho deste teor. Salientamos, não obstante, os trabalhos de Elsa Gonçalves republicados em GONÇALVES, Elsa - De Roma ata Lixboa. Estudos sobre cancioneiros galego-portugueses. Ed. de João Dionísio, Henrique Monteagudo e Maria Ana Ramos. A Coruña: Real Academia Galega, 2016, e o livro FERRARI, Anna - Trobadors e Trobadores. Prologo de E. Gonçalves, edição de F. Barberini. Modena: Mucchi Editore, 2014.

3Veja-se, por exemplo o seu trabalho GODINHO, Helder (org.) - A Imagem do Mundo na Idade Média. Actas do Colóquio Internacional. Lisboa: ICALP-ME,1992.

4 GODINHO, Helder - Prosa Medieval Portuguesa. Lisboa: Editorial Comunicação, 1986.

5 MATTOSO, José - Narrativas dos Livros de Linhagens. Lisboa: Temas e Debates, 2020 (1ª edição: 1983).

6Trata-se dos volumes: ÁLVARES, Cristina; SOUSA, Sérgio Guimarães de (eds.) - Limiares Homem Animal na literatura e na cultura da Idade Média. Lausanne: Peter Lang, 2023; VALDÉS, Carmen F. Branco; BORSARI, Elisa (eds.) - Pervivencia y Literatura: documentos periféricos al texto literário. San Millán de la Cogolla: Cilengua, 2023; SIMÓ, Meritxell (coord.) - “Prenga xascú ço qui millor li és de mon dit”. Creació, recepció i representació de la literatura medieval. San Millán de la Cogolla: Cilengua, 2021.

Recebido: 23 de Outubro de 2023; Aceito: 03 de Novembro de 2023

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