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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.35 Lisboa jun. 2024  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7781 

Recensão

Recensão / Review: Esta fabla compuesta, de Isopete sacada. Estudios sobre la fábula en la literatura española del siglo XIV.

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciência Sociais e Humanas, IELT 1050-037 Lisboa, Portugal; anapm@fcsh.unl.pt

Cuesta Torre, María Luzdivina. (ed.) -, Esta fabla compuesta, de Isopete sacada. Estudios sobre la fábula en la literatura española del siglo XIV. ., Bern: ,, Bruxelles: ,, Frankfurt am Main: ,, New York: ,, Oxford: ,, Warsaw: ,, Wien: :, Peter Lang, ,, 2017. .


Obra produzida no âmbito do projeto de investigação “La fábula esópica del siglo XIV”1, o livro, editado pela diretora do projeto, María Luzdivina Cuesta Torre, reúne seis estudos dedicados à fábula no século XIV em Espanha, como o título indica, integralmente apresentados em espanhol. O conjunto dos autores que assinam os artigos reúne alguns dos mais destacados estudiosos da fábula medieval em Espanha, como María Luzdivina Cuesta Torre, Hugo O. Bizzarri ou Bernard Darbord, e reputados especialistas no campo do estudo sobre a fábula, também com interesses científicos mais alargados tanto no âmbito da literatura medieval quanto de outras épocas - é o caso de Armando López Castro, César García de Lucas e José María Balcells - apostando numa diversidade de perspetivas que não se cinge às diferenças de temas e de abordagens2. A opção por uma bibliografia conjunta, apresentada imediatamente a seguir aos artigos, contribui para a unidade da obra e, em conjunto com a introdução, aprofunda a coerência inegável deste conjunto de estudos. Seguindo uma organização habitual em obras coletivas, o livro contém informação bibliográfica sobre os colaboradores e uma secção de resumos e palavras-chave, nas línguas espanhola, alemã, francesa e inglesa.

Na introdução, da autoria da editora científica do volume, esboça-se o percurso da fábula desde os tempos mais remotos na Suméria até à receção deste género em Espanha no século XIV, fazendo o enquadramento do corpus que é objeto dos estudos aqui reunidos numa realidade de grande amplitude onde ocupa um lugar particular que no corpo do livro se poderá observar em detalhe. A este quadro acrescem indicações importantes no texto de abertura. Indica-se como uma particularidade desta obra o facto de ela incidir sobre o estudo específico da fábula no contexto da literatura castelhana3, o que a demarca dos trabalhos que têm surgido sobre a presença deste género na Idade Média espanhola, onde geralmente tem sido estudado na perspetiva da história do conto, em geral, com especial incidência no exemplum4. São, ainda, feitas anotações sucintas, mas muito elucidativas, acerca da disposição dos diversos capítulos, esclarecendo-se que os respetivos estudos estão organizados segundo a ordem cronológica das obras estudadas, sobre as diversas metodologias de abordagem seguidas pelos respetivos autores, além de dar pistas sobre um dos principais objetivos da obra, que consiste em fornecer uma perspetiva panorâmica sobre os usos da fábula nas obras literárias no decurso do século XIV, época que corresponde ao período da receção da tradição latina medieval em Espanha, com particular ênfase nas questões de inserção e de transição, ou seja, do uso que se faz da fábula nas obras em que é introduzida5. Nos seis capítulos de que se compõe esta coletânea de estudos são abordadas cinco obras - o Libro del Caballero Zifar, El conde Lucanor, o Libro de buen amor, o Libro de los gatos e Lo Crestià do frade franciscano Francesc Eiximenis.

Na sua maioria, os estudos aqui reunidos debruçam-se sobre os usos de fábulas em obras que não constituem coleções de textos deste género, à exceção do Libro de los gatos, que é o corpus principal de um dos artigos. Por outro lado, a heterogeneidade das metodologias seguidas proporciona vários níveis de leitura das fábulas, que não se cingem à diversidade de obras e dos textos analisados. O primeiro estudo do conjunto, e também o mais extenso, faz uma leitura histórica do Libro del Caballero Zifar que propõe esclarecer as opções poéticas do texto, enquanto que os artigos sobre don Juan Manuel, o Libro de buen Amor, o Libro de los gatos e as fábulas de Francesc Eiximenis partem de questões de âmbito predominantemente poético, e os dois trabalhos que se debruçam sobre animais específicos dão atenção muito particular às respetivas funções simbólicas e a aspetos lexicais.

O estudo de Luzdivina Cuesta Torre, “Prólogo, fábulas y contexto histórico em el Libro del Caballero Zifar” baseia-se numa linha de leitura que privilegia as conexões entre a obra e personagens relevantes da época, percurso bem atestado na literatura crítica. O artigo começa por uma análise atenta do prólogo, partindo da hipótese de que o respetivo autor teria pertencido à diocese de Toledo, às escolas catedralícias e ao círculo mais estreito de don Gonzalo Pétrez Gudiel, e que produzira esta obra com o propósito de enaltecer a rainha regente María de Molina e louvar a participação de Ferrand Martínez na transladação do corpo do cardeal. Esta hipótese, como se propõe explicar a autora, teria consequências para a leitura, compreensão e interpretação das fábulas de teor político que são interpoladas na narrativa. Num primeiro momento, uma análise da relação do Libro del Caballero Zifar com a diocese de Toledo centra-se em torno das três figuras mencionadas no prólogo - Ferrand Martínez, Gonzalo Pétrez ou García Gudiel e don Gonzalo Díaz Palomeque - concretamente, nos elementos das respetivas biografias que podem ser de utilidade para a interpretação dos conteúdos da obra. A secção seguinte é ocupada pelas conexões do Zifar com a política da sua época, em particular o molinismo, e a primazia da diocese de Toledo. Os argumentos aduzidos, apoiados na crítica que versa sobre este assunto, andam em torno de aspetos da obra baseados na figura e na ação da rainha, o que deixa supor que aquela teria sido escrita sob seu patrocínio direto e possivelmente com objetivos de defesa da sua política. Uma das linhas de força desta argumentação é estribada na participação de três nobres referidos no prólogo em acontecimentos de relevo em favor da política desta monarca, em particular o apoio à candidatura do futuro Fernando IV contra o infante don Juan e don Alfonso de la Cerda. Por outro lado, nesta leitura, a obra também constitui uma justificação do papel desempenhado no governo pelos membros do clero e da intervenção dos arcebispos de Toledo. Interesses políticos e eclesiásticos, nomeadamente a defesa e louvor de don Gonzalo e María de Molina, estão patentes no prólogo mas também no corpo da obra através, por exemplo, da defesa das mulheres governantes de bom conselho e dos conhecimentos exibidos pelo autor sobre a atividade diplomática do embaixador, que são indícios de um autor com interesses tanto no âmbito do governo como no domínio eclesiástico e religioso. A terceira parte do estudo incide sobre as fábulas inseridas na obra. As fábulas são interpoladas a título ilustrativo de uma ideia ou defesa de um argumento, pelo que a obra se apresenta como um livro de aventuras cavaleirescas de pendor didático, sendo possível, como aventa a autora (p. 31), que se destinasse a servir de regimento de príncipes destinado a Fernado IV ou Alfonso IX, circunstância que justificaria a inclusão de material didático. Nesta linha de análise, destacam-se os contos narrados pelo rei Mentón aos seus filhos, que permitem um paralelo com os Castigos de Sancho IV. Nesta hipótese de leitura, as fábulas não têm um valor meramente ilustrativo, mas inserem-se num contexto narrativo concreto onde desempenham uma função argumentativa, o que, por conseguinte, implica uma interpretação contextualizada dessas fábulas enxertadas, ideia suportada pela convenção, já anunciada pelo autor no prólogo, de que mais mérito existe em emendar um texto do que na sua composição original, o que é, aliás, realizado pelo uso pessoal que faz das fontes seguidas. No conjunto das narrativas interpoladas no Libro del Caballero Zifar, as fábulas esópicas constituem uma minoria. Uma parte substancial do artigo é dedicada à análise histórico-política de cinco fábulas: “el asno y el perrillo”, “el lobo y el carnero”, “la calandria y el cazador”, “el lobo y las sanguijuelas” e “El Agua, el Viento y la Verdad”. Em coerência com os objetivos do artigo, a metodologia de análise adotada nestas leituras privilegia a comparação dos elementos literários com aspetos históricos, em particular, relevando-se os paralelismos de situações. Porém, este trabalho não se restringe à identificação de ocorrências, mas vai bastante mais longe, examinando, por meio de uma análise textual em filigrana estribada numa relação a par e passo com situações contextuais, modalidades textuais de defesa, de condenação ou outro tipo de apreciação crítica de determinados ideários ou ações em que a correspondência com aspetos da história da época é reconhecível. É assim, que à inclusão da fábula “el asno y el perrillo” se atribui a função de demonstrar o erro, muito enraizado na época, de impedir a ascensão social àqueles que não descendessem de uma linhagem irrepreensível, problema que se refletia na questão da oposição do partido dos infantes de la Cerda, apoiados na alta nobreza, a María de Molina, que recebia o apoio da baixa nobreza e do povo. Por outro lado, a fábula “el lobo y el carnero”, em que o carneiro é salvo das garras do lobo pelo vizinho do seu dono, que afinal apenas pretende comê-lo ele próprio, inserida na parte da obra dedicada às aventuras do rey de Mentón, serve para defender o princípio de que o produto do roubo deve ser devolvido ao seu dono, por oposição à ideia de que terceiros poderiam usufruir do produto do roubo, o que tem o seu equivalente no plano jurídico relativamente à debatida questão da propriedade dos bens roubados. Neste caso, é evidente a condenação e aviltamento dos que guardam para si o produto do roubo, quando se compara o homem que resgata o carneiro para o comer à fera voraz que se apropria do alheio. A outro nível de interpretação, esta fábula interpolada é relacionada com as questões históricas da partilha do reino de Murcia e o envolvimento que tiveram nela algumas figuras referidas no Libro del Caballero Zifar. Da fábula “la calandria y el cazador” aduz-se uma lição sobre as vantagens de seguir os bons conselhos, anunciando que a quem der ouvidos aos maus conselhos estará reservado o infortúnio. Inserida num exemplo narrado pelo rei Mentón aos seus filhos, esta fábula ocorre numa situação de dupla interpolação, o que contribui para intensificar o seu sentido. Como defende a autora, isso está especialmente bem adequado a uma situação vivida na menoridade de Fernando IV, que se deixa levar pelos argumentos enganosos do infante don Juan e de don Núñez, inimigos da rainha, e despreza os conselhos da rainha María. Se o sentido político é visível na generalidade das fábulas inseridas no Libro del Caballero Zifar, é em “el lobo y las sanguijuelas” que ele se revela de modo mais claro. A advertência recai, mais uma vez, sobre a boa governança, mas, aqui, refere-se especificamente ao excesso de oficiais e aos prejuízos que daí podem advir. Um exame atento dos meandros das tensões políticas e, em especial, da gestão dos dinheiros do reino, incluindo uma revisão das contas da rainha gerente ordenada por Fernando IV após a sua subida ao trono na sequência de suspeitas levantadas por maus conselheiros, que se revelaram infundadas mas que obrigaram a uma duplicação do controlo das finanças, é, neste caso, comparada à fábula onde o lobo é desaconselhado de arrancar as sanguessugas que se lhe tinham colado ao corpo após a travessia do lago porque, quando fizesse nova travessia, isso aumentaria o risco de que outras sanguessugas viessem chupar o seu sangue redobrando os seus sofrimentos. Em “el aqua, el viento y la verdad”, a última fábula, a imperatriz Nobleza previne o seu esposo Rodoán contra o risco de a perder se desse ouvidos aos desejos de uma mulher com quem ele se encontra durante uma caçada. Analisando as fontes e transformações dos elementos da fábula, a autora do artigo reflete sobre a adequação dos seus termos às motivações próprias do Zifar e, em particular, sobre a situação política na época dos conflitos entre os partidários de don Fernando e os de la Cerda, relacionada com a inconstância dos poderosos e as suas mudanças de partido, focando-se no tema da verdade e da mentira. A secção seguinte do estudo é dedicada à sistematização das relações das fábulas com o contexto histórico. Quanto à autoria do Zifar, questão que continua em debate, avança-se a hipótese, não antes defendida mas aqui sustentada por uma consistente argumentação, de esta se dever a Jofré de Loaysa. Suportam esta tese vários fatores aqui expendidos. Em primeiro lugar, o facto de se tratar de um autor literário que escreveu em língua romance, a constatação de paralelismos de expressão e de tema no seu testamento e na Crónica de los reyes de Castilla de 1248 a 1305 da sua autoria, além da proximidade com don Gonzalo e da sua relação com o arcebisbo Palomeque e com o sobrinho do cardeal Gudiel, que mostram que era próximo das três personalidades mencionadas no prólogo. Em segundo lugar, refere-se a sua proximidade da família real - em diversas situações cumpriu funções ao serviço da rainha Violante e de Afonso X, e estava, ainda, no círculo de Sancho IV e de Fernando IV, circunstâncias que, segundo a autora, permitem pensar que pode ser de base autobiográfica a ênfase dada na obra ao papel dos embaixadores. Também em favor da autoria de Loaysa se acentua a defesa molinista demonstrada ao longo do estudo com base em elementos detalhados da obra e da história da época e, por fim, aponta-se as coincidências textuais entre o Zifar e o seu testamento, cuja redação é próxima da data da sua morte, em 1307, no relato da trasladação dos seus avós. A última secção trata da datação do Libro del Caballero Zifar. Os paralelismos já apontados entre a ficção e a realidade histórica sugerem uma proximidade temporal entre a redação do Zifar e as ocorrências dos acontecimentos aludidos. Acresce que toda a obra se apresenta coerente com uma defesa da rainha María de Molina, representando os valores da nobreza e da verdade, opostos à falsidade atribuída aos conselheiros do rei. Os argumentos aduzidos da minuciosa leitura comparativa realizada ao longo deste estudo legitimam a suposição de que o termo da redação da obra se situa em data posterior a esses acontecimentos, mas suficientemente próxima deles para permitir que fossem identificados com facilidade pelo público da época. Considera-se, pois, admissível que a obra tivesse sido terminada em 1305, ano em que foram executados os pactos estabelecidos no ano anterior com os infantes de la Cerda e o rei de Aragão, tanto mais que esta data é coincidente com a conclusão dos feitos relatados por Loaysa na Crónica de los reyes de Castilla de 1248 a 1305.

No artigo sobre “Don Juan Manuel y su percepción del mundo animal”, Hugo O. Bizzarri parte do prólogo que inicia o manuscrito 6376 da Biblioteca Nacional de Espanha para recordar a lista de onze obras aí referidas como sendo da autoria de don Juan Manuel e traçar uma perspetiva dos interesses diversos deste nobre, entre os quais se conta a história de Espanha, a sua linhagem, os tratados didáticos, a sociedade de estados (estamental), as atividades da guerra e da caça (Libro de los engeños e Libro de caza), além do interesse pela poesia atestado nos “viessos” com que terminam os exemplos de El conde Lucanor sendo, ainda, de referir os seus livros perdidos Las reglas de trobar e Libro de las cantigas. Esta diversidade de interesses é, de resto, verificável no Conde Lucanor, onde estão reunidas as vertentes sapiencial, doutrinal, lírica e exemplar. Apesar desta heterogeneidade, não se apresenta nas obras de don Juan Manuel evidência de um interesse específico por matérias religiosas ou científicas se se excetuar o Tratado de la Asunción e um tratado de espiritualidade no final de El Conde Lucanor, nem tão pouco a literatura animal aí encontra uma expressão individualizada. Mau grado esta constatação, a presença do mundo animal nas obras de don Juan Manuel é constante. Hugo O. Bizzarri dedica o seu artigo ao exame não só das referências aos animais, mas, sobretudo, aos modos como as ocorrências espelham a mundividência do autor e se enquadram em obras dedicadas a uma multiplicidade de outros assuntos. Don Juan Manuel atribui a origem da sua linhagem a um sonho profético de sua avó, o que lhe permite confirmar a significação histórica da sua linhagem, que a descendência real, por outro lado, não pode reivindicar. Isso mesmo comprova o seu escudo de armas, descrito no Libro de las armas, onde se inclui o leão, elemento comum ao escudo dos reis de Castela, mas que omite o castelo, símbolo do reino, o qual foi substituído por um elemento de não menos importância simbólica pela sua significação imperial: a asa de águia e uma mão empunhando uma espada desembainhada. No estudo, elencam-se algumas passagens bíblicas suscetíveis de terem fornecido o fundo imagético para a constituição das figuras do poder, ao mesmo tempo históricas e simbólicas, representadas no brasão de armas deste nobre. O conhecimento que tem o autor da simbologia bíblica do bestiário, patente em várias das suas obras, como, por exemplo, na descrição do significado bíblico atribuído à serpente no Libro de los Estados, não impede que muitas das descrições referentes ao mundo animal tenham um caráter geral mais próximo de textos com caráter enciclopédico, como os bestiários, os quais, por sua vez, se prestam a considerações sobre os vícios e as virtudes numa lógica de comparação com a conduta dos homens. Vão neste sentido as alusões figuradas a vários aspetos conflituosos da convivência entre os homens, como as lutas intestinas das classes sociais cuja agressividade é comparada à ferocidade do lobo, bem como uma curiosa perspetiva sobre o mundo dos animais destacada numa secção do Libro del Caballero et del escudeiro em que se expendem considerações sobre a natureza das coisas, onde a ficção se encontra associada ao interesse científico. Apoiando-se em Ian Macpherson, é aqui demonstrado que essa associação constitui uma manifestação da conciliação entre Deus e o mundo, que atravessa a obra de don Juan Manuel, o qual assim inscreve o tema da salvação numa relação dialógica entre o humano e o divino, segundo o princípio de que os animais foram criados por Deus para o serviço dos homens, pelo que estes, por sua vez, louvam o Criador. Esta dinâmica situa o homem numa posição central no universo, oferecendo uma distribuição dos animais que obedece às classificações conhecidas da época, que distinguem os mamíferos, também designados “bestas”, as aves e os peixes, e sublinhando a sua diversidade como uma das principais características do mundo animal, termo de comparação com a singularidade dos homens. É assim que a caça se torna num critério para a classificação da diversidade nas fábulas inseridas em El conde Lucanor. O artigo centra-se, nesta parte, especificamente no conjunto de onze fábulas inseridas em El conde Lucanor. Cada uma delas põe em cena um animal que ou é caçador ou é caçado. Independentemente da origem, pouco conhecida, destas fábulas - três decorrem da tradição esópica, três são de origem árabe, e as restantes de elaboração medieval -, importa aqui sublinhar que elas se focam nos conflitos do homem na sociedade. Quer isto dizer, que, evitando reproduzir a tradição dominicana, que se serve das fábulas para descrever os vícios e as virtudes dos homens, Juan Manuel usa-as antes para figurar comportamentos políticos. Na revisão das fábulas é dado destaque ao exemplo número 5, baseado na narrativa da raposa e do corvo, que trata a questão da “verdade enganosa”, ao exemplo número 6, sobre a calhandra e o linho, versando sobre o tema da segurança, aos exemplos número 12 e 39, ambos orientados para estratégias de defesa e ataque - destas duas, a primeira, em que o galo e a raposa contracenam, representa os riscos causados pelo medo, a segunda avalia se se deve atacar em primeiro lugar o inimigo mais próximo mas mais frágil ou o que está a maior distância, mas é mais poderoso. As fábulas restantes centram-se numa pedagogia da conduta dos nobres. O exemplo número 9, o mais histórico de todos pelo foco específico da sua situação espácio-temporal, tem como intervenientes dois cavaleiros ao serviço do infante don Enrique que maltratam os seus dois cavalos encerrando-os num curral onde se encontra um leão que os ameaça, mas que eles vencem unindo-se contra ele, concluindo-se que, por vezes, é o receio que provoca as boas alianças. O exemplo número 13, sobre duas perdizes capturadas que ajuízam de modo diverso sobre a atitude do seu caçador, também aborda a questão do ataque do inimigo, aconselhando prudência e desconfiança face ao inimigo. As fábulas inseridas nos exemplos 19, 22, que retomam narrativas do Calila e Dimna, narram, respetivamente, o combate entre os corvos e as corujas, para tratar o tema da traição e aconselhar a desconfiar dos inimigos, e a questão da suspeita, através da narrativa do boi e do touro. São, ainda, visadas duas narrativas em que don Juan Manuel se debruça sobre uma questão abrangente, os animais enquanto modelo que os homens devem seguir, referindo-se à diligência da formiga industriosa e à astúcia e inteligência da raposa na resolução das dificuldades, qualidades que em El Conde Lucanor superam a simples finalidade da sobrevivência e são apresentadas enquanto valores de relevo para a nobreza tais como a boa governança, o direito, a honra e o estado. Na conclusão desta análise uma questão aflora - qual o motivo que levou don Juan Manuel a inserir fábulas em El Conde Lucanor? Esta interrogação traça o arco que segue Hugo O. Bizzarri desde a apreciação prévia da obra de don Juan Manuel num contexto alargado ao problema específico das fábulas interpoladas, para avançar, neste momento, a ideia de que El Conde Lucanor é uma obra de síntese onde estão espelhadas as questões da relação de Deus com o mundo, o que coloca a ação do homem no mundo no centro da sua atenção. Por outras palavras, a diversidade do mundo animal e dos homens reflete-se num livro de intenções diversas. As fábulas, por seu turno, sintetizam a diversidade de interesses de don Juan Manuel, ao ancorarem-se, não numa transcendência, mas no sentido profundo da vida humana. Hugo O. Bizzarri acentua, assim, o uso particular que don Juan Manuel faz das fábulas interpoladas em El Conde Lucanor, que são adaptadas à experiência do autor e ao contexto político em que ele vive, e que se afastam da representação dos vícios e das virtudes e do sentido transcendente para mostrarem, em contrapartida, o animal político através do qual se retratam condutas e atitudes enraizadas na convivência do homem no mundo.

O artigo de Armando López Castro debruça-se sobre a “Poética de las fábulas sobre leones em el Libro de buen amor”. O preâmbulo abre evocando as principais tradições presentes nas fábulas medievais no momento em que Juan Ruiz se lança na sua obra. São referidas, concretamente, a tradição clássica, que segue a filosofia cínica e uma estrutura esquemática em que o relato é seguido de uma lição, e a tradição oriental que opta pelo modelo da narrativa de enquadramento em que se integram várias outras narrativas que dependem daquela, embora possam também ter uma ação modificadora sobre ela. Se ao longo do século XIII os contos e sentenças traduzidos tendem a manter as características mais recorrentes das fábulas orientais, conservando estruturas típicas como a relação dialética entre o universal e o particular, a existência de um par de personagens que dialogam entre si ou o recurso à analogia interna como mecanismo que permite ao leitor reconhecer na obra temáticas ou motivos congéneres, já no século seguinte, segundo o autor, se verifica uma alteração significativa deste modelo baseado numa sociedade estamental e fechada, que promove uma hierarquização do conhecimento. O presente estudo parte da constatação de alterações significativas que vão nesse sentido, e que, na generalidade, residem na gradual substituição do primado da imitação, a que obriga a verosimilhança, por uma lógica da criação à medida que se desenvolve uma maior consciência da obra de arte e do processo artístico que permite passar do natural ao imaginário, tal como é visível, por exemplo, nos bestiários. Apresentado o marco teórico do estudo, a segunda parte do artigo dedica-se à análise de alterações concretas que ocorrem no século XIV e têm reflexo nos textos das fábulas do Libro de buen amor, focando-se no tratamento dado às fábulas que desempenham uma função central no objetivo didático da obra que consiste em “enseñar el buen amor” (p. 78). Na multiplicidade de elementos que constituem a obra, o autor destaca os aspetos que concorrem para lhe conferir uma unidade estrutural, referindo-se ao eu fictício agregador, mas também à modalidade de união do lírico e do narrativo em que o primeiro parece presidir sobre o segundo e determiná-lo. Este último ponto é destacado para demonstrar que a originalidade compositiva de Juan Ruiz reside em larga medida na habilidade para alterar convenções vigentes e, consequentemente, para tornar a fábula num “acontecimiento lingüístico”6 - é o predomínio do gosto literário que determina as escolhas de composição. Tal é relevante para a análise da integração da narrativa e da moral, que irá ocupar a parte seguinte, recorrendo-se ao estudo de quatro “exemplos” (“enxienplos”) cujo protagonista é o leão, com a finalidade de identificar uma possível tipologia do discurso fabulístico tomando como base um conjunto de características comuns. A parte central do artigo é dedicada à análise individual das fábulas selecionadas - “Enxienplo de cómo el león estava doliente e las otras animalias no venían a ver”, “enxienplo del león e del cavallo”, “enxienplo del león que se mató com ira” e “enxienplo del león e del mur”, donde se destacam os elementos para a sistematização na parte final do estudo. A análise comparativa dos quatro textos concorre, também, para uma observação integrada dos processos estudados, considerando, como afirma Armando López Castro, que “toda fábula remite a una fábula anterior y [...] es imposible fijar su sentido aislándola del contexto al que pertenece”7. Atendendo a que o importante é sobretudo a modalidade de narração e a arte de compor a obra e de acomodar os conteúdos aos objetivos do narrador, e não tanto os textos inseridos, uma conclusão que se tira é a da prevalência da transgressão sobre a imitação, ou seja, do primado do discurso criativo em detrimento da obediência estrita a convenções ou a conceitos pré-determinados, favorecendo “un tratamiento artístico, basado en el artificio, que vincula el pensamiento a la imaginación y a la vida”8 que, contudo, tem no seu horizonte modelos prévios que são submetidos à adaptação. Uma breve comparação do conto dos aninais agradecidos perante o homem ingrato incluído no Panchatantra e na fábula “El león y el ratón” no Libro de buen amor serve para mostrar que a moralidade do agradecimento do primeiro deu lugar ao motivo do engano no segundo, e esta alteração depende da construção de uma narrativa credível aos olhos do leitor, ou seja, de um conjunto de instrumentos formais de que o narrador lança mão para alcançar essa finalidade. Os principais instrumentos identificados reúnem-se em três pontos - a construção do discurso, fundamentalmente recorrendo à ambiguidade e, em particular, à simulação para vencer o adversário; o recurso ao diálogo como meio de manter o pensamento ativo e em aberto; a inversão, em que se baseia a situação paradoxal ou a reviravolta na ação, de modo a produzir uma tenção entre os contrários, geralmente os animais que se opõem, cujo conflito se pode resolver apenas pela inversão do discurso. Este último aspeto é aprofundado através de uma interessante analogia com o ritual da caça, presente em duas das fábulas analisadas, que o autor do estudo nos parece tomar como uma metáfora - não explicitada - da própria dinâmica da inversão, que põe em cena o motivo do caçador que se converte em presa, ou seja, que representa o movimento de interpermutabilidade e a simetria dos dois elementos envolvidos, mas manifesta também a variabilidade humana que a fábula põe em cena por via da sua flexibilidade, ou, como é dito quase a terminar o texto: “la poética de la fábula, que expone la materia fingiendo un diálogo entre hombres y animales, defiende el derecho que tiene el poeta de utilizar la imaginación, de convertir el relato en algo irreal”9. É o ponto final da demonstração de que combinar a variação com a unidade que a subtende é o processo fundamental “que da a sus fábulas la posibilidad de iluminar una verdad más profunda que la aparente, toda su personalidad y vigencia”10.

Em “Sapos y búhos: en torno a la función de algunos animales en la fábula medieval”, Bernard Darbord interessa-se pelas designações lexicais dos animais que protagonizam as narrativas, partindo do princípio de que a “representación de un animal, su tipología, varía según las épocas, y también según las lenguas”11. Através de uma análise pormenorizada de ocorrências lexicais e temáticas, o artigo propõe duas ordens de conclusões. Por um lado, que um léxico por vezes ambíguo pode favorecer o aparecimento de confusões e analogias surpreendentes. Por outro lado, que os animais são identificados mais pelo valor simbólico, emblemático ou moral que adquirem nos relatos, herdado das versões antigas, em que são fixados os esterótipos, do que pelas suas características científicas. Focando-se no Libro de los gatos, propõe um estudo de âmbito lexical, centrado no mundo animal, tendo em conta que se trata de uma transposição linguística do texto de uma versão em latim, as Fabulæ de Odo de Chériton, o que exige, simultaneamente, que se dê atenção às interpretações das significações dos termos feitas pelo redator espanhol. O artigo analisa duas fábulas desta coleção, a saber, o exemplo número 7, “Enxiemplo del bufo con la lebre” e o número 54, “Enxiemplo del galápago con el bufo”. A discussão acerca do primeiro texto releva a ambiguidade do termo em latim e em latim medieval que deu origem ao termo espanhol “bufo”, com as respetivas variantes: por um lado, está documentado como podendo significar coruja ou corujão, antes de se fixar com esta significação no espanhol medieval (bufo1), havendo, a par desta, outra significação deste termo em latim - sapo, ou o género de batráquios em que se inclui o sapo (bufo2), ambiguidade lexical que se reflete na versão em espanhol, criando a dúvida sobre a natureza do animal referido nas duas fábulas em questão no texto em espanhol, tanto do ponto de vista da sua significação neste texto como no texto da fonte latina. A análise do segundo exemplo foca-se, inicialmente, no termo “galápago” em que Bernard Darbord deteta, após um exame detalhado, uma perda do sentido deste termo na passagem do latim para a versão em espanhol, bem como anota o processo de imaginação que subjaz a uma transposição de significados, mas que deixa em aberto a confusão dos termos. Já no caso de “bufo”, o texto não deixa dúvidas de que aqui significa “sapo”, sendo, em relação a este animal, este caso menos complexo do que o anterior. Constatada a dualidade lexical, desenvolve-se, na parte seguinte do artigo, um minucioso estudo relativo às possíveis interferências na determinação do sentido de “bufo” no texto em espanhol. Recorrendo-se à base de dados CORDE. Corpus diacrónico del español é possível detetar diversas ocorrências em outros textos que inequivocamente designam a ave, mas no Libro de los gatos a ambiguidade é a regra. É possível verificar que essa ambiguidade se regista já no texto original latino e que a fábula a mantém graças a uma análise comparativa das duas versões incidindo em referências textuais que poderiam ter favorecido a passagem de “sapo” em Odo de Chériton a “búho” no texto em espanhol. A comparação dos atributos dos diversos animais também é objeto de análise tendo em vista a dilucidação da significação deste termo no Libro de los gatos, em particular o vício da jactância, tema marcadamente cínico, catalogado por Rodríguez Adrados na sua monumental Historia de la fábula greco-latina, e a sua representação no mundo animal, que, apesar de ser bastante diversa, é um dos aspetos reveladores do caráter negativo da ave noturna. Os termos de tal associação são observados em lente de aumento através de um percurso temático cujo círculo termina na versão da coruja (“búho”) e da lebre no Libro de los gatos (LG7).

Continuando na mesma linha de observação das ocorrências lexicais, César García de Lucas, por outro lado, explora os campos semânticos da tartaruga e do caracol no artigo intitulado “De tortugas y caracoles: vaivenes léxicos y narrativos”. Começando por uma revisão de associações relativas aos dois animais num campo textual e iconográfico de lato espetro, fornece exemplos que vão desde as Sagradas Escrituras e a filosofia Antiga até aos tratados tardomedievais e renascentistas, para demonstrar a persistência da valorização negativa dos dois animais na bacia do Mediterrâneo, apesar de existirem referências a propriedades benéficas dos dois animais, como seja a capacidade de curar algumas maleitas. O caráter negativo, por vezes maldito, tanto da tartaruga como do caracol está associado ao seu modo de locomoção, deslocando o ventre na terra, já referido no Levítico (Lv, 11:42). A sua fixação posterior nas suas características negativas está atestada, por exemplo, em representações iconográficas. A tartaruga representa a imobilidade, a lentidão e o mutismo, mas também surge associada ao limo, à terra, à sujidade e, por vezes, com símbolo cristão das forças das trevas, em oposição ao galo, animal solar, arauto da alvorada - com o qual chega a ser confrontada. A fixação para a posteridade de uma característica que se tornou universal, a lentidão, deve-se a Zenão de Eleia no seu célebre paradoxo. Com ele se criou um fundo narrativo suscetível de indefinidas declinações. Por conseguinte, avança o autor do artigo estribado na obra de Rodríguez Adrados, é provável que as narrativas das fábulas que foram conservadas tenham partido do paradoxo de Zenão. Quanto ao caracol, já entre as classes populares romanas surgia como uma representação da retração parcimoniosa, e é por vezes evocado para significar também a lentidão. Na Idade Média, a associação da tartaruga à lentidão está já firmemente fixada, sendo afirmada, por exemplo, por Isidoro de Sevilha quando se refere às suas propriedades nas Etimologias, mas surgindo também mais tarde em Li livres dou Tresor de Brunetto Latini, que utiliza o nome do animal como sinónimo da lentidão, ou, no tratado da Iconologia de Cesare de Ripa, como atributo ilustrativo do homem fleumático, sendo, nalgumas edições, substituída pelo caracol. Se, enquanto elementos iconológicos, a tartaruga e o caracol ocupam um espaço de significação permutável, também ao nível lexical, como na parte seguinte do artigo se demonstra, os dois animais partilham um espaço comum. A análise da questão lexical deixa claro o complexo percurso de analogias que permitiram relacionar o termo testa, que designava a tartaruga, com um objeto feito do material da sua carapaça ou que exibisse uma forma semelhante. O termo evolui através de um percurso de associações lexicais, baseado sobretudo na forma convexa da carapaça, que permitiu que passasse a designar objetos tão dispersos como os recipientes de barro cozido ou os ossos da cabeça humana, mas a distinção entre os termos que designam a tartaruga e o caracol mantém-se. É no século XIII que se cria uma confusão terminológica, provavelmente através de textos de Alberto Magno, que aprofundou a sua associação e que alargou o uso do termo testudo aos gastrópodes de concha. No Libro de los gatos é possível observar a ambiguidade dos termos com que os dois animais são designados, sobretudo se se atender ao original latino e à tradução em espanhol. A análise da fábula “a águia e a tartaruga” demonstra que o esquema narrativo em que inicialmente se confrontavam uma águia e uma tartaruga, evolui para uma complexificação do esquema narrativo, onde se observa a intervenção de um terceiro elemento, uma gralha, e para uma imprecisão do lugar ocupado pela função da vítima, ao ponto de poder transformar-se num outro animal de carapaça-concha - o caracol. Não muito diferentemente da convicção manifestada por Bernard Darbord no estudo anterior, conclui César García de Lucas na sua análise que se pode assistir, como se verifica na fábula analisada, a uma neutralização dos traços distintivos de dois animais, como a tartaruga e o caracol, embora na sua leitura particular tal seja atribuído ao facto de o seu traço comum, a lentidão, os ter tornado comutáveis uma vez que se revelavam aptos a desempenhar a mesma função na narrativa.

O último trabalho da coletânea, intitulado “originalidade fabulística de Francesc Eiximenis”, é assinado por José María Bancells. Neste artigo, o autor aponta um conjunto de procedimentos por parte do autor franciscano, nascido em Girona em 1329 e falecido em Perpignan em 1409, apontando a sua originalidade no contexto do uso da fábula em obras de relevo da época em língua vulgar. Começando por uma revisão da sua obra onde se integram fábulas, procede-se à descrição de textos tão importantes como Lo Crestià, trabalho de grande dimensão e de caráter enciclopédico, equiparado às demais Sumas medievais, sendo uma das mais extensas redigidas em língua vulgar. Como indicam o título e a sua divisão em treze livros, dos quais apenas quatro foram conservados, a obra está organizada segundo a vida de Cristo e dos doze apóstolos, que serve de modelo à vida do cristão. Neste conjunto, importa destacar o terceiro livro, Terç del Crestià, monumental texto dedicado ao tema do Mal e dos pecados, onde foram integradas onze das dezasseis fábulas que constam na obra de Francesc Eiximenis. Curiosamente, ao Terç del Crestià segue-se o décimo segundo livro, designado Dotzè del Crestià, sem que sejam conhecidas as razões desta organização. Este último livro, consagrado a temas políticos e comparável ao regimento de príncipes, acolhe um texto redigido em 1383, o Regiment de la cosa pública, além de inserir quatro fábulas. Refere-se, ainda, o Llibre de les dones, de 1396, obra catequética e de cariz moralístico que, segundo o autor do presente estudo, pode ser entendida como um speculum feminino que, além das suas características específicas, aqui resumidamente referidas, tem a particularidade de albergar a última fábula do conjunto. A parte mais substancial do artigo é consagrada ao estudo das fábulas deste autor, e está dividida em três secções, que se ocupam do uso, fontes e humor, bem como de elementos comparativos, em que os textos são apreciados em relação contrastiva com as obras de don Juan Manuel e do Arcipreste, e, também, confrontados com o Libro de buen amor e o Libro de los gatos. Esta orientação do estudo é reveladora de um desejo de observar o uso eiximeniano das fábulas num contexto alargado e, consequentemente, de as situar num patamar de referência na produção fabulística em língua vulgar, o que, ao mesmo tempo, dá um contributo muito relevante para este volume pela originalidade da visão panorâmica das fábulas medievais em língua vulgar que ele oferece, como já fora sublinhado no texto introdutório do volume. No uso das fábulas por Eximenis, encontra José María Balcells uma singularidade que é assaz reveladora dos paradoxos - de resto centrais na prática dos pregadores no século XIV - do recurso às fábulas no universo dos pregadores - se por um lado, ele repudia expressamente o uso das fábulas na Ars predicandi populo, mostrando-se avesso ao recurso a qualquer tipo de narrativas fabulosas, suscetíveis de provocar o riso, por outro lado, na sua prática não deixa de as incluir nos dois últimos livros, como modo de avivar o discurso e propiciar uma receção mais ampla de Lo Crestià. A exiguidade do número de fábulas incluídas, contudo, parece indicar que elas são tomadas principalmente como um meio complementar dos objetivos distintos da obra, o que, de resto, também é sugerido pela concentração dos textos no Terç del Crestià, para a sua frequência diminuir consideravelmente no Dotzè del Crestià e este género ser abandonado depois do Llibre de les dones. A questão das fontes é abordada a partir de uma breve revisão de alguns dados da crítica, anotando que aquelas não se limitam à tradição esópica mas evocam uma influência indireta do Panchatantra e de outros textos orientais dele derivados assim como do Llibre de les bestiès de Ramón Llul. O franciscano parece ter utilizado dois fabulários, designados, em catalão, por vell e novell. O primeiro poderia ter sido o Romulus através de um derivado, e o menos tardio, mais dificilmente identificável, poderá derivar de uma coleção composta em Inglaterra, em anglo-normando ou em latim. As muito breves considerações tecidas acerca do humor das fábulas eiximenianas confirmam, por um lado, o recurso a este processo, que oscila entre o uso mais livre e a contenção, e alargam-no a outros textos intercalados na obra, como anedotas, ditos populares e provérbios, por outro lado, mostrando que o uso do humor ultrapassa as fábulas. Não se descarta, também, a possibilidade de a vertente do gracioso ser de origem jogralesca, sem prejuízo dos preceitos da Igreja no que respeita aos instrumentos usados na pedagogia cristã. Alargando o espetro de análise, o artigo prossegue com uma abordagem comparativa no horizonte das fábulas de outras obras do século XIV, nomeadamente de don Juan Manuel, do Arcipreste de Hita e o Libro de los gatos. Numa primeira etapa, estabelece-se a comparação de um relato comum aos textos de El conde Lucanor, do Libro de buen amor e de Francesc Eiximenis. Passando, antes, em revista a frequência com que surgem os animais nas quatro obras, verifica-se que o franciscano de Girona dá a primazia à raposa, o que permite afirmar que as advertências incluídas na sua obra são dirigidas preferencialmente contra a astúcia malevolente, sobretudo no contexto da arte de governar, tanto mais que elas ocorrem no Dotzè del Crestià, que, como aqui se lembra, contém os elementos de um tratado de política. A fábula comum analisada é “A raposa e o corvo”, cujo percurso de leitura comparativa permite ao autor identificar um conjunto de características da obra de Francesc Eiximenis. Em primeiro lugar, salienta-se o seu tratamento original do discurso de moralização, que coloca uma versão preliminar da lição na boca da raposa antes de o narrador a sintetizar no final, processo que concorre para enfatizar o protagonismo da raposa no contexto dialógico da fábula e para acentuar o dramatismo da ação. Por outro lado, o franciscano explicita o recurso ao fabulário como fonte seguida, enquanto os outros dois autores incorporam o relato abstraindo-se do texto de onde partem. Além destas particularidades, sublinha-se, com apoio em fontes críticas e ao examinar as descrições do corvo nos três textos, que na versão do frade, tal como na de El Libro de buen amor, a argumentação da raposa apela à emotividade do corvo ao louvar a sua beleza física e o seu canto - o que pode apontar para uma fonte comum, possivelmente Gualterus Anglicus -, no que se distinguem de El conde Lucanor onde são enaltecidas as características naturais da ave, a postura, o voo e o canto. Na última parte do artigo, a contraposição das fábulas narradas por Eiximenis às do Libro de buen amor e do Libro de los gatos centra-se na fábula “O lobo e a grua”. Uma das singularidades de Eiximenis relativamente aos outros dois textos é a opção por um desfecho menos recorrente, em que o lobo não só não paga o prometido à grua por libertá-lo de um osso que tinha preso na garganta como a devora no momento em que a cabeça desta está afundada na sua boca. Segundo o autor do artigo, os diferentes desenlaces dever-se-iam aos objetivos diversos dos respetivos autores. No caso da versão de Eiximenis, sobressai a complexidade da justificação, que assenta no argumento de que a grua estava ciente da má fama do lobo, pelo que outra paga deste não poderia esperar além da morte. Este argumento é desdobrado em diversas instâncias do discurso que vão desde a autojustificação pelo lobo produzida no decurso de um breve diálogo com a raposa - elemento original tanto em relação à fonte como às versões que servem aqui de comparação, e que inclusivamente põe na boca deste animal a sentença da lição: “qui a deable fa servei tot mal n’espera” - até ao remate pelo narrador que apresenta a sua justificação conclusiva. Em ambos os casos, o autor sublinha a particularidade, na obra fabulística eiximeniana, de se delegar a voz enunciadora da moral num animal, a raposa, para ser depois desdobrada na do narrador, que com ela compartilha a mensagem e a função moralizadora. Apesar de não ser um procedimento regular nas fábulas do frade franciscano, é um traço específico e singulariza o seu tratamento dos textos face às obras que estão aqui no horizonte de comparação.

A originalidade das perspetivas e das questões abordadas, bem como a atualidade dos recursos usados e dos próprios temas tratados, fazem deste livro uma obra de interesse maior, de consulta inevitável para os interessados num conhecimento aprofundado da fábula na Idade Média.12 Este livro insere-se numa tradição dos estudos sobre as fábulas medievais frequentemente dirigidos a um público académico com conhecimentos prévios sobre a complexidades da tradição fabulística. A sua vertente de especialização, contudo, não elimina o cuidado constante de clarificação e explicitação, quer na organização geral quer na apresentação e desenvolvimento das problemáticas específicas em cada um dos estudos, o que denota preocupações pedagógicas e de informação. Uma utilização do livro como instrumento ao serviço de um público de investigadores especializados, a quem, como já se afirmou, ela se destina em primeiro lugar, não exclui, por isso, que ele seja igualmente proveitoso a outros destinatários com objetivos mais generalistas que pretendam obter informação atualizada e ter acesso a metodologias de estudo cientificamente avançadas sobre a fábula na literatura espanhola no século XIV.

Referências Bibliográficas

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1“La Fábula esópica del signo XIV” - FFI2012-32265 - Projeto financiado pelo Governo de Espanha.

2Cf. os contributos anteriores dos autores no âmbito do referido projeto e do anterior, também dirigido por CUESTA TORRE, María Luzdivina - “La transformación y adaptación de la tradición esópica en el Libro de buen amor” - LE020A10-1 - financiado pela Junta de Castilla y León. In CUESTA TORRE, María Luzdivina - "Introducción: En torno a la fábula esópica medieval". Atalaya [em linha] 14 (2014). Disponível em http://journals.openedition.org/atalaya/1385 (Consultado em setembro de 2023). Igualmente relevante no âmbito do trabalho da equipa de investigação é a antologia organizada por vários colaboradores do presente volume (BIZZARRI, Hugo O. et al. (eds.) - La fábula en la prosa castellana del siglo XIV: Libro del Caballero Zifar, Conde Lucanor, Libro de los Gatos. Antología comentada. Murcia: Ediciones de la Universidad de Murcia, 2017).

3Destaque-se, contudo, o trabalho magistral de RODRÍGUEZ ADRADOS, Francisco - História de la fábula greco-latina. 3 vols. Madrid: Editorial de la Universidad Complutense, 1979-1987, que inclui comentários de grande relevo para traçar a história da fábula em Espanha na Idade Média.

4Entre os contributos mais generalistas para o conhecimento da fábula da Idade Média em Espanha, recorde-se que muitos dos estudos sobre obras que contêm fábulas consideraram estes textos, de um modo geral, no âmbito do conto ou do exemplum medieval e não tiveram por objetivo o estudo da fábula como um género com características próprias. Veja-se, a título de exemplo, MORREALE, Margherita, “La fábula «Del alano que llevava la pieça de carne en la boca» en el Libro del Arcipreste: Lectura sincrónica y diacrónica contra el fondo de la tradición latina”. Cahiers de linguistique hispanique médiévale 14-15 (1989), pp. 207-233.

5A respeito das problemáticas da interpolação e da transição, veja-se CUESTA TORRE, María Luzdivina - "Introducción” e CUESTA TORRE, María Luzdivina - "La inserción de la fábula esópica del león y el ratón en el Libro de buen amor”. In TORO CEBALLOS, Francisco (dir.) - Juan Ruiz, Arcipreste de Hita y el Libro de buen amor. Congreso homenaje a Alberto Blecua. Alcalá la Real: Ayuntamiento de Alcalá la Real, 2014, pp. 45-61.

6 LÓPEZ CASTRO, Armando - "Poética de las fábulas sobre leones en el Libro de buen amor”. In CUESTA TORRE, María Luzdivina (ed.) - «Esta fabla compuesta, de Isopete sacada». Estudios sobre la fábula en la literatura española del siglo XIV. Bern, Bruxelles, Frankfurt am Main, New York, Oxford, Warsawa, Wien: Peter Lang, 2017, p. 79.

7 LÓPEZ CASTRO, Armando - "Poética de las fábulas sobre leones”, p. 79.

8 LÓPEZ CASTRO, Armando - "Poética de las fábulas sobre leones”, p. 89.

9 LÓPEZ CASTRO, Armando - "Poética de las fábulas sobre leones”, pp.91-92

10 LÓPEZ CASTRO, Armando - "Poética de las fábulas sobre leones”, p. 92.

11 DARBORD, Bernard - "Sapos y búhos: en torno a la función de algunos animales en la fábula medieval. In CUESTA TORRE, María Luzdivina (ed.) - «Esta fabla compuesta, de Isopete sacada». Estudios sobre la fábula en la literatura española del siglo XIV. Bern, Bruxelles, Frankfurt am Main, New York, Oxford, Warsawa, Wien: Peter Lang, 2017, p. 93.

12Como complemento de informação sobre o estudo da fábula na Idade Média recorda-se o instrumento atualmente imprescindível ao investigador que é a base de dados Sendebar - base de datos del cuento medieval, integrada no projeto Clarisel, da Universidad de Zaragoza, a cargo de Juan Manuel Cacho Blecua e María Jesus Lacarra - https://clarisel.unizar.es - que contém informação bibliográfica extensiva sobre a fábula em Espanha na Idade Média.

Recebido: 29 de Setembro de 2023; Aceito: 03 de Novembro de 2023

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