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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.34 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7040 

Notas de investigação

Os códices iluminados de corte nos primeiros três quartéis do século XV em Portugal: propósitos, métodos e propostas de uma investigação

Illuminated court manuscripts from the first three quarters of the 15th century Portugal: goals, methods, and proposals of a research project

Catarina Martins Tibúrcio1 
http://orcid.org/0000-0002-5686-732X

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal; catarinatiburcio@fcsh.unl.pt


Introdução

Em Portugal, as cortes régias e as cortes principescas, dos primeiros três quartéis do século XV, foram ativos centros produtores do livro iluminado ou, no mínimo, centros literários onde se estudavam, idealizavam, criavam e compunham textos de fundo eminentemente moralístico-filosófico. Autênticos guias práticos de conduta do ser nobre e cortês. Versavam, pois, sobre as atividades do quotidiano dos altos dignitários do reino, acima de todas elas, a política, mais precisamente, o exercício do poder.

Para além da conceção da narrativa, muitas vezes assinada pelos próprios reis e príncipes, acontecia naqueles mesmos espaços, a fruição desses escritos que funcionaram para a nova dinastia de Avis como material propagandístico e doutrinário, com vista à legitimação e afirmação da jovem casa reinante.

A tese que defendemos1 partiu deste contexto sociocultural português, do final da Idade Média, comummente aceite pela historiografia, e propôs-se a provar como tendo tido origem no scriptorium real, oito dos mais emblemáticos códices iluminados que desta época chegaram até nós. O objetivo primordial era este. Provar que todos foram produzidos no scriptorium do Paço régio que já existiria anteriormente ao reinado de D. Afonso V2. Contudo achámos imprescindível colocar outras questões adicionais que sustentariam com maior firmeza a confirmação ou refutação da tese de partida. Para lá do onde, quisemos identicamente dar resposta ao como. O como dos aspetos materiais e operativos do processo. Quisemos determinar, portanto, o modus operandi de escribas e iluminadores, que esteve por detrás da manufatura destes manuscritos, o que concorreria, em paralelo, para corroborar ou rebater a hipótese matriz de origem comum. Mas também o como do usufruto e da circulação, dentro e fora do meio criador. Por outro lado, o quando, que para três dos oito casos, não era (é), de todo, consensual, poderia beneficiar em alguma clarificação.

A metodologia genérica contemplou um tratamento analítico, confrontativo e interdisciplinar ao objeto de estudo. Foram envolvidas as disciplinas da Codicologia, da Paleografia, da História da Arte e da Química aplicada à análise do património. A cada capítulo, e depois de apresentado o Estado da Questão, corresponderam os estudos respeitantes a cada uma destas áreas do saber. Como não poderia deixar de ser, porque se trata de áreas científicas perfeitamente individualizadas, cada qual assumiu metodologia própria, no que se refere aos procedimentos analíticos, porém comum, no que toca ao comparativismo e à integração. As ponderações finais ou os resultados da investigação surgiram da complementaridade entre as quatro disciplinas, por via do cotejo multidirecional entre elas.

Oito códices iluminados dos primeiros setenta anos de Quatrocentos foram eleitos para formar o corpus de estudo: a Crónica de D. Duarte de Meneses, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (CDDM); a Crónica dos feitos da Guiné, da Biblioteca Nacional de França (CFG); dois códices da Crónica Geral de Espanha de 1344, da Academia das Ciências de Lisboa e da Biblioteca Nacional de França (CGEL e CGEP); o Leal Conselheiro e Livro da Ensinança, da Biblioteca Nacional de França (LCLE); dois códices do Livro da Virtuosa Benfeitoria, da Biblioteca Municipal de Viseu e da Biblioteca da Real Academia de História de Madrid (LVBV e LVBM); e a Vida e feitos de Júlio César (VFJC), da Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo do Escorial em Madrid.

Todos os estudos, exceto o artístico, por ser o que mais diretamente está relacionado com a área da tese - a História da Arte - foram precedidos de um introito explicativo do conceito e da história da disciplina e em que moldes e porquê a iríamos integrar na investigação. No caso das análises laboratoriais foi mandatório ir um pouco mais longe, neste âmbito, explicando noções de química básica e o modo de atuação das diferentes técnicas, numa linguagem acessível a qualquer público (mormente os historiadores e os historiadores da arte a quem, particularmente, se destina o nosso estudo). No fundo quisemos desmontar os conceitos complexos da química e trazê-la à interpretação histórica e artística do objeto de estudo. Tudo isto para nos permitir posicionar estas outras disciplinas no domínio da História da Arte, ou melhor dito, no novo domínio da História da Arte que respeita e busca a colaboração de diferentes áreas do saber no intuito de atingir uma compreensão o mais global e profunda possível do objeto artístico.

Estudo: objetivos e metodologias

Albert Derolez, paleógrafo e codicólogo, autor do livro Archaeology of the manuscript book of the Italian renaissance, distingue duas codicologias, ou os dois campos onde ela opera: “(…) une codicologie lato sensu ou science interdisciplinaire qui étudie les manuscrits et tant que phénomènes de l’histoire culturelle, et une codicologie stricto sensu ou archéologie du livre”3. A codicologia stricto sensu vai estudar todos os aspetos físicos e materiais do códice, sintetizar a informação obtida e conectá-la com a de lato sensu, i.e., com o pensamento histórico, nas suas diversas vertentes, com o propósito de se alcançar alguma progressão no entendimento do códice em si, do códice no seu local de produção, e dele enquanto testemunho vivo para a história do livro medieval e, em particular, do livro medieval do ocidente. Foi neste esquema teórico que assentaram os pressupostos da tese que redigimos.

No decurso da investigação demos clara preferência - por se tratar de um estudo sobre a materialidade dos códices - à consulta dos manuscritos no local. No primeiro contato direto esclarecemos dúvidas suscitadas por uma preambular análise alicerçada em cópias digitais, no caso específico dos três códices da Biblioteca Nacional de França e do manuscrito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Quanto aos restantes códices, quer os sitos em Portugal, quer os pertencentes a duas bibliotecas espanholas, não havendo deles cópias digitais disponibilizadas na Web, só a observação in situ permitiu a primeira abordagem. A segunda fase de conferência dos dados reunidos de primeiro, foi efetuada para os códices de Paris e do Tombo. A formulação das conclusões preliminares, para estes, para a Crónica Geral de Espanha de 1344 de Lisboa (CGEL) e para o Livro da Virtuosa Benfeitoria de Viseu (LVBV), foi desenvolvida, com base em imagens procedentes de levantamento fotográfico. Já os códices que se encontram em Espanha - a Vida e feitos de Júlio César (VFJC) e o Livro da Virtuosa Benfeitoria de Madrid (LVBM) -, nunca foram sujeitos a qualquer revisão digital ou fotográfica, uma vez que o acesso às reproduções é exclusivamente pago e o registo fotográfico proibido, circunstância limitativa que se manteve até ao final da investigação. Por esse motivo sentimos que o exame a estes dois códices pecou por defeito. Ainda assim seguimos nas condições possíveis, assumindo-as. A segunda observação no local foi, como seria de prever, a mais esclarecedora e proveitosa - tendo em conta a dicotomia sempre presente, elementos a analisar / tempo disponível - pois a nossa mente partiu bem mais experimentada, conhecedora e orientada para o resultado real que pretendíamos alcançar.

A recolha e organização dos informes baseou-se na lista de componentes codicológicos sugerida por Aires Nascimento4 nos seus estudos, que embora seja demasiado sistemática e descritiva para o cotejo dedutivo que desejávamos elaborar foi pedra basilar da sua edificação.

Podemos dizer então que a nossa abordagem se enquadrou no espírito teórico-prático da codicologia quantitativa e da arqueologia do livro, vertentes de investigação dentro da codicologia, ou, mais do que isso, o seu fundamento. Tanto uma, quanto a outra têm sido intensamente discutidas pelos mais reputados codicólogos, que veem nelas a direção que a codicologia de hoje deve seguir. Só munida de rigor científico, a codicologia poderá libertar-se da conjetura e proporcionar o melhor entendimento possível no que se refere ao códice medieval, olhando-o enquanto objeto de estudo, não só entendido como o alvo etéreo das indagações, mas como objeto propriamente dito, um todo material, palpável, mutável e divisível, logo, passível de análise sob os mais variados prismas: o chamado objeto-livro; e ainda, e em paralelo, numa dimensão mais alargada, enquanto monumento histórico, dado o peso do tempo e a carga sociocultural que carrega5.

No estudo paleográfico, e conforme planeado, demos continuidade à linha quantitivista e de integração adotada no capítulo da codicologia. Tal como ela, entendemos paleografia, não como uma disciplina isolada, mas complementar da codicologia e de outras ciências humanas como a epigrafia, a diplomática, a filologia, a crítica textual, etc. Servem todas a História do Livro, ou a História do Livro Medieval e, neste caso particular, serviram a história dos códices de corte portugueses, dos três primeiros quartéis do século XV. Na nossa investigação, a paleografia veio auxiliar ao reajuste pretendido do quando e do onde (datação, origem e proveniência dos códices), mas veio, acima de tudo, dar resposta ao como e ao quem, e.g., como foi feito e por quem foi feito.

Esta foi uma abordagem que mais do que promover a interdisciplinaridade, como se compreenderá, dependeu profundamente dela. Estas questões entrecruzam-se e interpenetram-se, e ultrapassam os limites individuais das diversas áreas de conhecimento, tendo de ser todas levadas em consideração, com vista à compreensão global do objeto de estudo. Por esse motivo, somos adeptos e pusemos em prática, a integração das ciências duras em domínio das ciências humanas, de molde que o seu contributo concorra para um melhor entendimento da história deste conjunto de códices medievais de corte.

O estudo que apresentámos no segundo capítulo seguiu, pois, dois ramos da paleografia: a paleografia integral e a paleografia quantitativa e informaticamente suportada que atende às especificidades do traçado das letras com o objetivo de identificar a(s) mão(s) que o(s) desenhou(aram). À precisão e objetividade que a matemática, a geometria e a estatística fornecem a uma análise morfológica simples, em toda a linha subjetiva, a sua associação à informatização permite uma exponencial recolha e tratamento dos dados. O paleógrafo, ou, no caso, o medievalista, não têm de ser engenheiros informáticos ou humanistas digitais. Não é necessário perceber os processos que estão a montante dos resultados gerados pelo computador. É tão-só exigível que os saibam interpretar. É dessa descodificação, de que carecem os dados objetivos gerados pela máquina - uma das tarefas por nós levadas a cabo. A nossa opção metodológica está longe de, ainda atualmente, ser pacífica entre os paleógrafos. Ainda assim mantivemo-nos fiéis à ideia inicial, crentes de que a palavra-chave se mantinha integração. Integrar as várias ciências cujas matérias possam tocar a investigação em códices medievais, de que este capítulo da paleografia foi, ao nosso ver, um exemplo paradigmático. Exemplo paradigmático da inclusão das ciências puras em território das ciências sociais, respaldadas pelo processamento computorizado da informação. O envolvimento de novas tecnologias, além de possibilitar o tratamento de uma quantidade bem maior de dados, conferiu também maior exatidão aos resultados e muitas vezes alguma inovação, uma vez que permitiu a exploração de novas perspetivas. Entendemos, portanto, que este entrosamento interdisciplinar, foi a fórmula ideal para atingirmos resultados mais fiáveis e completos6.

Por outro lado, apresentava -se-nos ainda a questão da nomenclatura, que identicamente não reúne concórdia. Assim elegemos aquela mais clássica, porque também a mais comummente aceite, apesar de todas as limitações que autores mais recentemente dedicados ao problema lhe possam apontar. É que mesmo as perspetivas mais atuais não estão livres de objeções. Referimo-nos ao sistema Lieftinck. As três principais categorias de escrita estabelecidas por Lieftinck, com base na morfologia, são as seguintes: textualis formata (letra caligráfica muito cuidadosamente desenhada; a textura de Bernhard Bischoff); textualis (tout-court) ou libraria (uma caligráfica mais rápida); e currens (escrita rápida mais ou menos cursiva)7. Existe ainda a cursiva que se distingue das anteriores pela sua inclinação à direita, em relação à linha de texto, pelas pernas alongadas das letras, pelo laço nas hastes altas (incluindo no d), e pelos a, g e s finais de formas mais simples. De todo o modo, as novas perspetivas metodológicas que direcionam a análise no sentido da regionalização e não da generalização de procedimentos de escrita à escala europeia do ocidente chamaram a atenção para algo que sempre foi defendido pelos estudiosos da escrita do século XV em Portugal: o seu forte hibridismo identificador. Isto quer dizer que a nova dinastia ao tomar o poder e tendo no documento escrito um dos principais motores de legitimação e afirmação desse mesmo poder (dentro e fora de fronteiras), construiu uma escrita que reunia em si características das várias escritas em voga à época na Europa ocidental. Criaram uma escrita denominada híbrida pelos autores e que a distinguia de todas as outras que eram produzidas nos demais reinos europeus. Manifestou-se sobretudo nos diplomas, na documentação jurídico-administrativa emanada da Chancelaria régia, das chancelarias aristocráticas e do tabelionado, mas, cremos nós, foi igualmente, e como não poderia deixar de ser, absorvida pela produção livreira de corte.

O estudo paleográfico dividiu-se, então, entre estudo morfológico e estudo metrológico. O primeiro, um exame tradicional, empírico, dedutivo, cujos parâmetros de análise foram: o tipo de escrita, a forma, o peso, i.e., a relação entre traços espessos e delgados, a angulosidade, a cursividade, as ligações entre letras, as terminações8. A alternância à qual obedecem (ou não), ao longo do texto, e o modo como foram desenhadas, podem ser identificativas do seu autor. Atendemos também às ligações entre letras: qual o seu formato e o que elas nos poderiam dizer sobre a posição da pena, e eventualmente, sobre a mão do escriba, no momento em que foram executadas. Tentámos perceber, ainda, se existia maior ou menor cuidado na escrita, critério que está sobremaneira associado ao grau de angulosidade e cursividade, e necessariamente à rapidez da cópia. Depois saímos um pouco do domínio da morfologia, para incluirmos outros parâmetros a exame que, do nosso ponto de vista, estão intimamente relacionados com o estilo individual de escrita de um copista: a disposição das letras dentro da palavra e a disposição das palavras na linha de texto. Estudámos a regularidade ou irregularidade destes arranjos, bem como a relação que as palavras estabelecem com os limites impostos pela justificação e regramento. Refletimos sobre o ductus (a ordem pela qual os traços constitutivos das letras são desenhados e a direção da pena em cada delineamento), o formato do bico da pena e as consequências práticas que essa configuração teria no traçado. Tentámos determinar o comportamento da pena no que se refere a eventuais indícios de desgaste, sua localização e frequência; e igualmente no que toca ao percurso deste instrumento de escrita sobre o pergaminho, sinalizando, e.g., possíveis resistências, resultantes do atrito entre a ferramenta scribendi e o suporte, que se materializam em deformidades no desenho das letras; e, por fim, em que medida estas dificuldades estariam associadas ao tipo de instrumento de escrita e talhe do bico, e à postura corporal do copista (tronco, braço e mão) por oposição ao mobiliário de escrita. Este tipo de pesquisa paleográfica pretendeu superar a análise morfológica mais elementar, indagando mais além, sobre qual o modo de operar do artesão, na sua dimensão prática, mas identicamente, ao nível dos esquemas mentais que estiveram por detrás da execução. Muito do que tencionámos conhecer para lá da objetividade da matéria foi-nos revelado pelo diálogo que soubemos e pudemos manter com ela, enquanto único testemunho vivo de toda a ação que lhe deu origem9.

O segundo exame consistiu na medição informaticamente assistida de diversos componentes de uma letra e de uma escrita sendo eles: unidade de regramento, altura do corpo da letra, comprimento das hastes altas, comprimento das hastes baixas, ângulo de inclinação da letra, ângulo das hastes altas, ângulo das hastes baixas, espaçamento entre palavras, largura da letra e superfície escrita. Este género de estudo, chamado metrológico, ainda em fase experimental10 no campo da paleografia, visa, tal como vimos para a codicologia, a aplicação de métodos estatísticos, mensuráveis, exatos, enquanto auxiliares dessa análise formalista. Esta última, de forte cariz especulativo, tenta alcançar maior consistência de conclusões, por intermédio dos números (que no caso, se traduzem em medições), no intento de se descobrir especificidades na escrita de cada copista, por mínimas que sejam, e que por isso, escapam por norma ao estudo morfológico, ou não são tão bem entendidas por ele. O manuseio do sistema por parte do operador pode conduzir a erros e enviesamentos da amostra e consequentemente dos resultados que só a honestidade intelectual do utilizador pode prevenir e atenuar.

Foram selecionados três fólios por códice que julgámos ser a amostra mínima representativa da evolução da escrita. Este critério foi aplicado diretamente aos códices considerados como sendo da autoria de um só copista, pelos autores que antes de nós os estudaram. Limitações de tempo não permitiram que o mesmo critério fosse aplicado aos códices que incluem mais do que uma unidade codicológica e que coincidentemente foram tidos, à partida, como da autoria de mais do que um escriba. Neste caso acabaram por fazer parte da amostra apenas um fólio por unidade codicológica.

Partimos de uma atribuição preliminar fundada numa observação, também ela preambular das escritas. Tivemos igualmente em conta as considerações que, nos mesmos moldes foram tidas por outros autores. Houve ainda que atentar ao facto de nem todos os códices do grupo estarem escritos com o mesmo tipo de letra. A maioria apresenta-se numa gótica libraria. As exceções são o LVBV e o Prólogo do LO (Livro dos Ofícios), segunda unidade codicológica do LVBM (a primeira é o Livro da Virtuosa Benfeitoria, propriamente dito).

Decorrente dos exames individuais e comparativos nas duas vertentes de análise - morfológica e metrológica - propusemo-nos obter informações significantes no que concerne à identificação dos copistas, aos métodos de trabalho do hipotético scriptorium, e aos usos da época, no que à arte da escrita diz respeito.

O estudo artístico dividiu-se essencialmente entre a decoração maior e a decoração menor. A primeira englobou todos os grandes elementos da iluminura, que já de si, são, em termos genéricos, comuns ao corpus, o que suscitou desde sempre a sobejamente mencionada sensação de ar de família. Falamos, em concreto, das cercaduras e as iniciais de prólogo, das iniciais a cores e ouro e das iniciais a cores e filigranadas do interior do códice. A segunda abarcou as rubricas e a decoração do texto. Demos continuidade aqui à lógica comparativista intra e intermanuscrito, no intuito de, uma vez mais, se apreender, na medida do exequível, os modos de fazer vigentes no local, ou nos locais de produção destes códices. As marcas de uso pelo seu carácter artístico foram também abrangidas por este ponto.

Por fim, nesta abordagem interdisciplinar, juntámos o estudo laboratorial que envolveu a análise química às tintas de escrita e de iluminura e aos metais nobres. Foi levado a cabo em parceria com o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, no âmbito do E-RIHS MOLAB, programa europeu para o estudo científico e tecnológico do património, em laboratório móvel, o que não implica a deslocação do objeto artístico colocando em prática técnicas não-invasivas, i.e., que comprometem o mínimo possível a integridade física e a conservação da obra de arte. As técnicas utilizadas foram a Fotografia de Fluorescência de Ultravioleta (UVF), a Fotografia de Infravermelhos (IVF), a Microscopia Digital (MD), a Espectroscopia de fluorescência por dispersão de energia de Raios-X (EDXRF), a Microespectroscopia de fluorescência por dispersão de energia de Raios-X (µXRF), a Espectroscopia de refletância por fibra ótica, no comprimento de onda do ultravioleta e do visível (UV-Vis FORS), e a Espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier (ER-FTIR). O conjunto das técnicas envolvidas nesta pesquisa coincidiu com o protocolo para análises não-invasivas em iluminura proposto por Catarina Miguel e Maria João Melo, do Laboratório HERCULES e do Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, respetivamente, que desde os anos 2000, investigam laboratorialmente pigmentos de códices iluminados medievais11. Este protocolo é, de uma forma genérica, defendido e adotado por todos os investigadores em ciências do património. Estabeleceu-se então, um protocolo de atuação para o técnico/investigador assente em pressupostos relacionados com o acesso e o manuseamento dos códices medievais e a complementaridade necessária às técnicas de análise. Salientou-se nele a importância de o exame privilegiar a inclusão de vários pontos para uma mesma cor e de esses pontos serem observados pelas diferentes técnicas. As pesquisas devem, portanto, seguir a sequência: UV-Vis FORS, MD, XRF e FTIR. Tanto uma, quanto outra diretriz foram tidas em conta no nosso estudo: efetuámos a análise dos espectros FORS atendendo aos máximos de refletância e absorvância dos azuis, verdes e violetas e pontos de inflexão de amarelos, laranjas e vermelhos. Em seguida introduzimos a MD que possibilitou identificar misturas e áreas de alteração das tintas. Depois as XRF que permitiram descobrir quais os componentes metálicos, identificar pigmentos não coloridos, como o branco, o preto e o cinzento, não identificáveis com FORS, detetar camadas sobrepostas, reconhecer mordentes de corantes e pigmentos-laca, e impurezas; informação toda ela muito útil à aferição da origem dos materiais utilizados. Presidiram a este conjunto de técnicas os exames de área protagonizados pelas fotografias de ultravioleta e infravermelhos, que nos deram a perceção geral e preambular dos materiais em presença através da reação visível dos mesmos às ditas radiações: escuridão/luminescência, opacidade/transparência, etc.

Apenas três dos oito manuscritos foram sujeitos a este tipo de estudo visto não ter sido obtida autorização por parte das instituições custodiais para que se concretizasse nos demais cinco.

A metodologia teve em conta, e em primeiro lugar, a seleção dos fólios de cada códice. Elegeram-se os fólios mais representativos em função dos nossos objetivos, i.e., na CGEL escolheram-se fólios decorados por cada iluminador12, com vista à comparação intramanuscrito. Uma vez que os programas decorativos dos outros dois códices (CDDM e LVBV) se distanciam do repertório da CGEL e se organizam essencialmente, entre portada ornada (a toda a volta do texto e com capitular figurada) e iniciais de capítulo a cores e ouro e filigranadas, selecionámos a partir de cada um desses tipos artísticos, as cores comuns aos três manuscritos, para assim autorizar o cotejo intermanuscrito. Resultou então em aproximadamente 9 fólios por códice. Depois, em cada fólio começámos por examinar três pontos por tinta de escrita, por tinta colorida da iluminura, e por superfície dourada, preferencialmente empregando em cada exato ponto, ou em pontos vizinhos a ele, cada uma das técnicas de análise, com vista à comparação entre técnicas, entre fólios e entre manuscritos. Com a repetência dos resultados, esperando nós, a cada novo ponto de análise, em cada cor, metal, ou tinta de escrita, que não existia variabilidade substancial nas respostas, e dadas as contingências de tempo e acessibilidade às obras, passámos de três para dois pontos, em cada local examinado. No caso das tintas de escrita foram eleitos, pelo menos, pontos no texto e pontos nos restantes constituintes a apreciar: letras caligrafadas, decoração das letras caligrafadas e hastes alongadas, e rubricas (títulos dos capítulos, caldeirões e reclamos).

A aplicação prática destas técnicas envolveu um número apreciável de limitações, não só o tempo disponível, mas sobretudo o próprio momento de aquisição dos dados que conta com sempre com um cenário multivariável que afeta sobremaneira a sua exatidão.

Estudo: Propostas interpretativas

Os principais contributos desta tese de doutoramento tocaram, em primeiro lugar, uma das questões centrais que quisemos ver clarificadas: que datações para estes manuscritos? No caso, a data de finalização do códice, depois de terminada a cópia e a decoração. Muitas destas datas foram avançadas em estudos anteriores ao nosso, como dissemos antes, de fundo eminentemente literário, com as quais, de um modo geral, concordamos. De todo o modo, a nossa investigação e o cruzamento da informação por nós obtida, com aquela proveniente dos estudos que a antecederam, permitiu uma fixação mais precisa, ao abrigo das teses por nós desenvolvidas, das datas de início dos trabalhos de redação do texto primitivo e da conclusão das cópias que constituem o corpus de estudo.

No que respeita às datações que não reuniam consenso quando elaborámos o estado da questão, elas dizem respeito a três dos oito códices: a CGEL, com um limite ante quem em 1438, por força do registo que consta na lista dos livros do rei D. Duarte, no seu Livro dos Conselhos, que é identificado como se referindo a este códice e tendo ele próprio - o Livro dos Conselhos - a mesma baliza temporal; a CFG, cujo limite ante quem fixámos em 1463, dado sabermos que os acrescentos ao texto primitivo são posteriores a 1460 (data da morte do Infante D. Henrique), que Zurara terá concluído o texto definitivo nesses primeiros anos da década de 60 e que o iluminador das iniciais a cores e ouro da CFG terá iluminado, com iniciais técnica e estilisticamente idênticas, parte do códice da VFJC, cuja conceção terminou, no máximo, em 1464 (data em que o Condestável D. Pedro, o mandatário do códice, subiu ao trono de Aragão e o terá levado consigo); e por fim, o LCLE, com um limite ante quem de 1440, ano em que D. Leonor de Aragão partiu para o exílio em Castela levando consigo o códice que reunia ambas as obras autógrafas do rei D. Duarte seu marido, uma delas a ela dedicada.

A abordagem interdisciplinar aos oito códices iniciou-se, como sabemos, com o estudo codicológico, onde analisámos pormenorizadamente a sua constituição física e material, desde a encadernação, até à estruturação e organização interna dos fólios. Logo, neste primeiro estudo estabelecemos relações entre os manuscritos, que os estudos seguintes confirmariam e aprofundariam, relações essas que, por outro lado, corroboravam as datações que estabelecemos precedentemente. São exemplo das ligações que continuámos a observar, desse momento em diante, as dimensões excecionais de dois dos mais antigos manuscritos do grupo, a CGEL e o LCLE, encomendados e da autoria do rei D. Duarte; as medidas que conformaram todos os espaços dos fólios dos dois LVB e da CGEP, três manuscritos encomendados e da autoria de pai e filho, o Infante D. Pedro e o Condestável D. Pedro; e as dimensões um pouco mais afastadas da média geral, dos dois manuscritos mais tardios do grupo: CDDM e VFJC. Dizer ainda que imediatamente nesta fase começámos a notar a uniformização genérica dos procedimentos.

No estudo paleográfico examinámos as escritas dos oito manuscritos considerando para tal, a morfologia e a metrologia, numa lógica, uma vez mais, comparativista e de integração de diferentes disciplinas, abrindo as ciências humanas àquilo que elas podem beneficiar com a rigor das ciências chamadas exatas. Assim, à análise morfológica juntámos as medições de ângulos, comprimentos e larguras das letras entre outros elementos paleográficos associados à escrita, através da aplicação do programa informático metrológico Graphoskop. Daqui, e como era nossa intenção, conseguimos chegar à identificação dos copistas e explorámos, igualmente, na medida do possível, os modi operandi da tarefa de transcrição dos textos, do geral para o particular, i.e., do tempo e do espaço de produção dos códices para o desempenho pessoal de cada escriba. Com os resultados deste trabalho percebemos a provável ação de um mesmo copista operando em manuscritos diferentes. Estes resultados redundaram então nas seguintes associações: o copista da CGEL será o copista do LVB, primeira parte do LVBM; o copista do LVBV será o copista do Prólogo, do LO, do LVBM; o copista do LCLE, João Gonçalves, escrivão d’el rei13 será o copista do LO, segunda parte do LVBM; o copista da CFG será o copista da CDDM; o copista 1 da CGEP será o copista 4 da VFJC (e João Gonçalves o autor dos títulos dos capítulos); o copista 2 da CGEP será o copista 3 da VFJC. As ligações que vínhamos a verificar entre manuscritos voltaram a notar-se aqui, inexoravelmente relacionadas com o(s) encomendante(s) e com o período em que foram produzidos.

Fazendo uso da média de fólios/dia calculada por Jean-Pierre Gumbert estimámos o tempo que foi preciso para transcrever os textos. Temos nas pontas do intervalo o LVBV, com a cópia mais rápida, cerca de meio ano, e a CGEL, com a cópia mais demorada, quase dois anos, o que condiz com a gótica cursiva usada no primeiro e a gótica librária, extremamente regular, da segunda.

Pudemos, portanto, constatar a ação do mesmo copista em diferentes códices, podendo até atestar a permanência do mesmo escriba por décadas, e a intervenção de vários copistas num só códice. Esta última realidade surgiu-nos em manuscritos todos eles encomendados e assinados pelos senhores da Casa de Coimbra, o Infante D. Pedro e o Condestável D. Pedro.

O estudo artístico dividiu-se na análise comparativa da decoração maior que incluiu a iluminura dos prólogos e as iniciais a cores e ouro do interior do códice. Aqui tornou a confirmar-se as relações de proximidade entre manuscritos, nomeadamente entre a CGEL e o LCLE e entre a CGEP e a VFJC. Os dois primeiros partilharam inclusive um iluminador, bem como o encomendante e autor, o rei D. Duarte, e os segundos o encomendante e autor, o Condestável D. Pedro. Fazendo ainda parte da decoração maior, as iniciais a cores e ouro revelaram-nos uma vez mais, também, o tão citado ar de família e, portanto, modos iguais ou muito similares de fazer. A decoração menor conduziu-nos exatamente no mesmo sentido, mas mais. Dada a grande variedade dos elementos examinados notámos, paralelamente, formas de fazer muito singulares e, por isso, identificadoras do seu autor, bem como o reforço dos vínculos entre duos ou trios de manuscritos que vínhamos advogando desde o estudo codicológico. Referimos ainda que da observação aos componentes da decoração menor, por estes estarem mais intimamente associados ao texto, inferimos uma assinalável polivalência ao nível do desempenho dos artesãos responsáveis pela feitura destes códices. Mas não só na realização desses constituintes, também na própria transcrição do texto e na elaboração da decoração maior. Isto significa que, do nosso ponto de vista, os copistas foram identicamente calígrafos, rubricadores, corretores e foliotadores, o que nos remete para a dita polivalência, acumulando ainda alguns deles a função de iluminador.

No final do estudo artístico chegámos a importantes deduções que enriqueceram o esquema das relações entre os executores destes oito códices. Retirámos, portanto, as deduções que seguem: o iluminador 3 da CGEL é o iluminador do LCLE, o iluminador, pelo menos, da filigrana da CFG, o calígrafo e o decorador das letras da primeira e da última linhas de texto da CDDM e da CFG e, por conseguinte, dado que consideramos que esta decoração é da autoria do copista, o copista destas duas últimas crónicas. A VFJC e a CGEP terão dividido o tempo de execução, entre 1460 e 1464, com a CFG. Com a Crónica da Guiné estava ocupado o copista e iluminador 3 da CGEL, num labor que terá demandado disponibilidade e tempo consideráveis a este mesteiral, que talvez a tenha redigido com menor rapidez do que aconteceu mais tarde com a CDDM, conforme depreendemos do estudo paleográfico. Para códices tão extensos como a CGEP e a VFJC, e certamente numa perspetiva de acelerar o trabalho, foram recrutados cinco escribas. Dois destes cinco tomaram parte em vários cadernos destes dois códices. Prosseguindo com a identificação dos copistas/iluminadores dizer que o iluminador 1 da CGEL é igualmente o copista do LVBV, e do LVB e do prólogo do LO, ambos do LVBM. O que faz todo o sentido se pensarmos que se trata de três códices produzidos em tempo coincidente, a década de 30 do século XV, para integrar a biblioteca de D. Duarte e de D. Pedro. Poderá ser, aliás, o motivo pelo qual o iluminador 1 da CGEL abandonou a sua participação na iluminura desta crónica, de meio do códice em diante, salvo uma ou outra reincidência pontual. Trasladou-lhe o texto ainda na década de 20. A decoração terá tido início no final de 20, princípio de 30. Entre 1429 e 1430 chegou a versão final do texto da Virtuosa Benfeitoria ao presumível scriptorium régio. Nessa altura o nosso iluminador 1 deixou a CGEL, para se dedicar em exclusivo, ou quase em exclusivo, ao LVBV. Terminado este e quiçá também já a CGEL, passou à redação do LVB, do LVBM e ainda fez a cursiva o prólogo do LO que depois foi copiado por João Gonçalves. Isto em meados da década de 30. No final da década dedicou-se João Gonçalves ao traslado do LCLE. Dizer também que propomos que o LO, do LVBM terá sido não só copiado, como iluminado pelo próprio João Gonçalves.

Os principais resultados do estudo laboratorial prenderam-se com a confirmação da continuidade de traço entre texto, letras caligrafadas e decoração das hastes das letras, o que atestou que era o copista quem realizava estes apontamentos decorativos. Foram também aferidas composições diversas de tintas de escrita, no mesmo texto ou no mesmo fólio, o que remete para um uso algo aleatório e de acordo com as necessidades do momento, os materiais disponíveis e se em condições de serem utilizados. Por seu turno, os pigmentos da ornamentação revelaram estar de acordo com o que era comumente empregue à época e obedecem ao sistema hierarquizado onde o conjunto das iluminuras de um manuscrito se insere enquanto marcador das diferentes partes do texto. A hierarquia, se assim podemos dizer, também se manifestou na importância de cada um dos manuscritos para encomendante e destinatário. Por isso vemos pigmentos mais dispendiosos, como a lápis lazúli, a ser aplicado em partes mais relevantes apenas da CGEL e do LVBV, dois códices que terão feito parte da biblioteca do rei D. Duarte. Os corantes orgânicos também foram incluídos, desta feita, nos rosas, nos amarelos e nos violetas. O emprego de prata, ou pó de prata, numa das grandes iniciais figuradas da CGEL foi a grande surpresa do estudo laboratorial e situação única em todas as iluminuras analisadas.

Concluímos então, dizendo que o grupo de oito códices foi redigido num intervalo temporal de mais ou menos cinquenta anos, ao tempo de três reis e dois regentes, que foram, concomitantemente, os mandatários e os autores destas composições literárias. Nelas trabalharam um corpo de mesteirais dos ofícios de escrivão e iluminador, recrutados de jovens pela também jovem dinastia avisense, para trabalhar no scriptorium de corte que cremos existiu desde o reinado de D. João I, olhando à constância deste grupo de profissionais reunidos em torno da produção de manuscritos, independentemente do momento exato e local de implantação concreta desse espaço de cópia e decoração de livros. Estes artífices do livro tardo-medieval tiveram parte em mais do que um códice saído deste meio de fabrico livreiro, cujas intervenções foram, compreensivelmente, seccionadas no tempo, i.e., antes e depois de 1450, ano de reformas, na sequência da entronização do novo rei, grande impulsionador da cultura livresca, D. Afonso V. Situação que torna inequívoca a filiação destes funcionários à coroa, bem como a repetência deliberada dos mesmos indivíduos na execução de espécimes literários de grande vulto. Mas mais do que isso. É também notória a atribuição estudada de determinado trabalho, em função das características individuais do copista, ou do seu histórico de serviço no scriptorium. Estes homens, não só repartiram a feitura das mesmas obras, como partilharam conhecimentos, influíram uns sobre os outros, e cumpriram os padrões impostos pelo scriptorium régio, o qual integravam, não obstante, pudessem não estar a ele dedicados em exclusivo, ou circular por outros departamentos da administração pública, ou até por outros centros produtores do códice medievo, transportando consigo, para todos esses locais, o seu saber-fazer. Reconhecemos, portanto, o diálogo estreito entre administração, livraria e arquivo, muito por força de diretivas organizacionais que priorizavam a interação e a mobilidade constantes destes oficiais multifacetados.

Participaram neste grupo de códices, oito copistas que podiam ser igualmente calígrafos, rubricadores, corretores e anotadores e até iluminadores, tendo existido, porventura, outros para os quais não estabelecemos nenhuma ligação/identificação, por não haver matéria de análise suficiente que satisfaça o cotejo e a determinação. De qualquer forma afastámo-nos da visão ideal de scriptorium, onde todas as tarefas seriam individualizadas e estariam perfeitamente distribuídas, de forma estanque. Pareceu-nos antes não ter havido lugar à separação e à hierarquização de posições dentro do hipotético scriptorium, ou local afim, sem embargo de, em algumas ocasiões, uma ou outra tarefa menos exigente, poder ter sido entregue a alguém artisticamente menos hábil e experimentado: os aprendizes.

Os artesãos que serviram na produção destes códices dividiram os mesmos ambientes de trabalho, mas bem mais do que isso, partilharam as mesmas diretrizes, as mesmas regras, que surpreendentemente se uniam a um grau de liberdade criativa notória que, nos parece, resultava numa grande versatilidade organizacional. Apesar de terem, obviamente, seguido algumas orientações, no mínimo, impostas pelo encomendante, e que derivavam, de igual modo, dos influxos externos ao meio da corte, nacionais e internacionais, a construção artística que se espelha aqui denuncia, por um lado, autonomia individual, e por outro uma colagem a modelos que foram reproduzidos de forma reiterada, ao longo do século XV. Assim se explicará a permanência dessas mesmas pessoas, desempenhando as mesmas funções, no mesmo local, exercendo o mesmo cargo ou similar, dentro do intervalo temporal estabelecido nesta investigação.

Referências bibliográficas

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Notas

1 TIBÚRCIO, Catarina Martins - Os códices iluminados da corte portuguesa no século XV (1400-1470): a origem, a produção e os usos a partir de uma abordagem interdisciplinar. Lisboa:Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2023.

2Leia-se desde o reinado de D. Duarte ou de D. João I. A existência da livraria real vem mencionada em documento de 1450, já em tempo de D. Afonso V. Vide VITERBO, Sousa - A cultura intelectual de D. Affonso V. Lisboa: Off. Typ. Calçada do Cabra, 1904 e GOMES, Saúl - D. Afonso V, o Africano. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 157.

3 DEROLEZ, Albert - Archaeology of the manuscript book of the Italian renaissance. Roma: Unione Internazionale degli Istituti di Archeologia Storia e Storia dell’Arte in Roma, Arbor Sapientiae Editore S.r.l., 2018, p. 10.

4 NASCIMENTO, Aires; DIOGO, António Dias - Encadernação portuguesa medieval: Alcobaça. Lisboa: INCM, 1984, p. 30.

5Ezio Ornato, o grande impulsionador do método quantitativista aplicado ao campo da codicologia, explicou a importância deste sistema de análise para a compreensão profunda e concreta do códice medievo. De acordo com a sua visão, o estudo do livro medieval viu-se, e ainda se vê, refém da excessiva teorização dos problemas por parte dos codicólogos eruditos que são, na sua perspetiva, incapazes de observar e questionar as variáveis das quais se serve um quantitativista, e que, embora à primeira vista de somenos importância, são essenciais à compreensão integral do objeto-livro e dos fenómenos históricos, sociais, económicos, políticos, etc. a ele associados. No fundo, Ornato quis ressaltar o embate entre a subjetividade das aferições históricas puras, que não contam com o apoio fulcral das ciências exatas, e a objetividade de uma ciência arqueológica apoiada na aritmética, na estatística, na química, etc. O combate ao raciocínio, a vários títulos, improcedente do teórico, encetaram-no os codicólogos a partir da década de 70 do século XX, secundados pela evolução tecnológica, sobretudo, no domínio da informática. Porém, e ao contrário do que o leitor possa pensar, a esta altura, a codicologia foi, e terá de necessariamente continuar a ser, uma ciência fundada no empirismo e na sensibilidade do investigador, sem os quais, as cifras extraídas do quantitativismo não têm qualquer leitura de contexto. Mais do que isso: na ausência de um conhecimento teórico sobre a história do livro manuscrito medieval “(…) l’introduction du quantitatif dans les procédures d’expertise est inutile et dangereuse”. Ou os números ficam desprovidos de interpretação, ou aquela que se fará corre o sério risco de não ter qualquer correspondência com a realidade dos factos. A arqueologia do livro opera a par do quantitativismo fornecendo-lhe os dados que este irá examinar, e de ambos se serve a codicologia, ou a codicologia quatitativa, conquanto achemos que esta segunda designação é redundante: “(…) la codicologie quantitative, fondée sur une observation archéologique ad hoc des volumes, est la seule clé qui donne accès à la compréhension du fonctionnement du monde du livre”. A união entre estas disciplinas permitiu ultrapassar a barreira limitativa das datações e da origem dos manuscritos, em torno das quais gravitava o estudo codicológico. E assim se progrediu para o nível seguinte: o do como. Basicamente, como foi produzido este manuscrito. E atingido este ponto, foi com agrado que notamos ser justamente esta a questão, colocada por nós no centro da investigação, desde o início do projeto de doutoramento, mesmo antes de qualquer contato com as considerações de codicólogos de carreira sobre o rumo que, na atualidade, a codicologia deve perseguir. De toda a teoria disponível se deve munir o quantitativista, de molde a conferir o melhor significado à análise que levou a cabo. Sem perder de vista, contudo, que “Chaque fois que l’on obtient un résultat, il faut se demander, toujours et avant tout, s’il s’agit d’une réalité ou d’un mirage, et c’est toujours la deuxième hypothèse que l’on doit prendre pour bonne en première analyse”. Nos anos 90 do século XX Ezio Ornato esboçava um desejo para o futuro, e que nós hoje, tentaremos a todo o passo cumprir: “Le jour où méthodes quantitatives et méthodes érudites seront utilisées concomitamment et dans le même but, n’est peut-être pas loin”. Resumindo, e para concluir, ainda nas palavras do autor: é função primordial do quantitativista “transformar os dados numéricos em história”. Frase curta, mas que define na perfeição a nossa atitude perante o códice medieval. Com efeito, sem saírem do campo da codicologia, os codicólogos geram deduções que abrem novos horizontes à filologia, à história da arte e à história. ORNATO, Ezio ; PETRUCCI, Armando - “La codicologie quantitative outil privilégié de l’histoire du livre medieval”. In La face cacheé du livre médiévale : l’histoire du livre vue par Ezio Ornato. Roma: Viella, 1997, pp. 382-401; GRUYS, Albert - “De la “Bücherhandschriftenkunde” d’Ebert à la “Codicologie” de Masai”. In Codicologica. Vol. I - Théories et príncipes. Leiden: Brill, 1976, p. 33. Em termos gerais, em La face cachée du livre medieval, Ezio Ornato tratou a questão da cientificidade da codicologia, separando a abordagem experimental (arqueológica e quantitativa), da abordagem heurístico-dedutiva (erudita), que apesar das diferenças entre objetos e desafios de estudo e suas metodologias, são complementares.

6Segundo Peter Stokes: “Palaeography, like every other field, therefore cannot ever be purely objective. However, the more we can articulate our methods and our results, the more we can debate our different interpretations, the more we can aid communication and interpretation and analysis, and the more quantitative and new evidence we can bring to the discussion, the stronger our conclusions will be”.STOKES, Peter - “Computer-aided Palaeography, present and future”. In Codicology and Palaeography in the digital age. Norderstedt: Herstellung und Verlag, Books on Demand GmbH, 2009, p. 331.

7Vide caracteríticas gerais da escrita gótica em BISCHOFF, Bernhard - Latin Palaeography: antiquity and the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, pp. 145-153.

8De acordo com Léon Gilissen, a grossura ou a ligeireza dos traços de escrita dependem de quatro fatores principais: o instrumento; o modo como ele foi calibrado, de acordo com as exigências da escrita ou com o gosto/costume do copista; a posição em que coloca a pena sobre o pergaminho, em relação à linha de regramento (ângulo de escrita); e, finalmente, como faz progredir a pena no traçado sucessivo dos signos. Lembramos que o escriba corta a ponta da pena de acordo com os seus hábitos de trabalho e com o resultado que pretende obter. O desgaste da ponta da pena, no decurso da cópia, também pode provocar alterações na espessura dos traços, mas estas de origem não intencional. Vide relações admissíveis entre todos estes critérios e características em GILISSEN, Léon - L’expertise des écritures médiévales. Recherche d’une méthode avec application à un manuscrit du XIe siècle : le Lectionnaire de Lobbes, codex Bruxelliensis 18018. Ghent : E. Story-Scientia, 1973, p. 38.

9Vide a este respeito D’HAENENS, Albert- Écrire, utiliser et conserver des textes pendant 1500 ans. Louvain-la-Neuve: Centre interuniversitaire de l’Histoire de l’Écriture, 1983, pp. 240-246.

10A análise metrológica foi realizada com base no programa informático Graphoskop que é disponibilizado livremente online, como ferramenta de apoio à paleografia. Consiste num plug-in dentro do logicel ImageJ. Foi concebido na École Nationale des Chartes e apresentado por Maria Gurrado em 2009. Dos programas criados nesta área da paleografia é dos mais simples de utilizar. Por essa razão é, de facto, dos mais usados pelos investigadores, mas também, por ser gratuito e acessível a qualquer pessoa, e por ser de fácil emprego, desde que tenhamos a digitalização dos fólios em qualquer formato de imagem: JPEG, TIFF, GIF, etc. Mesmo com resoluções de inferior qualidade é possível aumentar a imagem e trabalhar sobre ela. ATTIA, Élodie; GURRADO, Maria; MAILLOUX, Anne - “Les caractères discrets de l’écriture : paléographie quantitative à l’âge du numérique”. Memini [em linha] 26 (2020). Disponível em http://journals.openedition.org/memini/1697.

11 MIGUEL, Catarina et al. - “A study on red led degradation in a medieval manuscript Lorvão Apocalipse (1189)”. Journal of Raman Spectroscopy 40 (2009), pp. 1967-1973.

12Assumindo a autoria da iluminura da CGEL por parte de três iluminadores: o iluminador 1, o mestre; o iluminador 2, que substituiu o mestre de meio do códice até ao final; e o iluminador 3, a presença mais assídua. Vide a nossa tese defendida na dissertação de mestrado, TIBÚRCIO, Catarina Martins - A iluminura do Manuscrito 1 Série Azul da Crónica Geral de Espanha de 1344 da Academia das Ciências de Lisboa: da técnica e do estilo individual ao posicionamento no seu ambiente criador. Lisboa: Dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013, pp. 142-149.

13Atribuímos-lhe a autoria do traslado pelo facto de existir um códice alcobacense, o Alc. 451, onde parte do texto é assinada, na margem de pé, por João Gonçalves que se autointitula escrivão do rei. Após análise paleográfica concluímos, numa primeira fase, que o alcobacense e o LCLE foram transcritos pela mesma pessoa. Em longa nota de rodapé António Júlio Dias Dinis elucida-nos acerca desta personagem: “João Gonçalves foi escrivão dos livros do Infante D. Pedro e tomou parte por ele na batalha de Alfarrobeira, crime que D. Afonso V lhe perdoou em carta de 5 de Novembro de 1451, restituindo-lhe também, seis dias depois, as casas que ele tinha em Lisboa (Sousa Viterbo, em A livraria real…, p. 4 e documentos I e II, reproduzidos na p. 59 e extraídos pelo autor da Chancelaria de D. Afonso V, respectivamente Liv. 11º, fl. 121v. e Liv. 37º, 45v.). Indultado e reabilitado assim pelo monarca, João Gonçalves terá entrado logo ao serviço de el-rei, como seu escrivão dos livros ou calígrafo, ficando a trabalhar na Livraria Régia, onde o vamos encontrar em 18 de Fevereiro de 1453, segundo declara o próprio no explicit do códice de Paris da Crónica da Guiné, fl. 160r.: «scudeiro e scrivam dos liuros do dicto senhor Rey». Na Chancelaria de D. Afonso V, encontrámos o documento seguinte, que não sabemos publicado, de 9 de Março de 1453, e que, possivelmente, se refere ao mesmo indivíduo. Nomeia-o «tabelião geral em todos nossos reinos e senhorio» em vez de «Fernão Lopes, que o dito ofício tinha e o renunciou por um instrumento público feito e assinado por Gomes Martins tabelião em Lisboa aos 13 dias de Fevereiro desta era presente» de 1453. Depois de transcrever o documento o autor dizia ainda: “Em 24 de Julho de 1470, João Gonçalves era ainda vivo e desempenhava os cargos de «Escrivão dos livros e dos Fornos do Biscoito del-rei D. Afonso o quinto», segundo explicit que lançou em cópia que fez então da Crónica do Conde D. Pedro de Meneses (…). E é curioso notar que em 1470, dez anos após a morte do Infante D. Henrique já não assina escudeiro; portanto, talvez o escudeiro ao Infante D. Henrique do retro-transcrito documento nos sirva para interpretar o escudeiro do explicit de 1453 do códice de Paris: isto é, Gonçalves não era escudeiro de el-rei, mas de D. Henrique o que nos dá margem a supormos que se trata do mesmo indivíduo nos dois citados documentos de 1453”.DINIS, A. J. Dias - Crónica dos feitos de Guiné / Gomes Eanes de Zurara, vol. II. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1949, pp. 305-307 e nota de rodapé n.º 1.

Recebido: 05 de Abril de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

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