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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.34 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.6874 

Editorial

Editorial - Para ler devagar a Idade Média

Editorial - To slowly read the Middle Ages

Luís Filipe Oliveira1 

João Luís Fontes1 

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal, lfolivei@ualg.pt; joaofontes@fcsh.unl.pt


Vem a lume um novo número da Medievalista, numa data em que, encerrado o ano lectivo, se começam a fazer planos para um tempo de descanso, de encontros e de maiores demoras na fruição das coisas e, para muitos, na visitação de livros, ensaios ou mesmo textos mais breves que ficaram em lista de espera por causa das urgências da vida académica e profissional. São por vezes textos mais antigos, familiares, que agora se revisitam, como num diálogo com autores, personagens e lugares, que de algum modo se tornaram próximos, quase fazendo parte de quem os leu.

Em certa medida, é também esta a aproximação que se propõe em muitos dos artigos reunidos neste número, aplicada a textos e autores de geografias e de cronologias diversas, que procuraram construir uma determinada memória do passado, uma narrativa dos acontecimentos tornados mais significativos pela situação vivida por quem os organizou e redigiu, ou pelas instituições em que estes se inseriam. Longe da ingenuidade positivista que neles procurava sobretudo a identificação dos factos que, depois de situados no tempo e numa sequência de causa-efeito, permitiam uma reconstituição objectiva do passado, do que efectivamente se passou, a investigação actual, aprofundando os diálogos com outras disciplinas, da literatura e da filologia aos estudos culturais, veio mostrar a complexidade desses processos de construção da memória do passado. Em particular, a necessidade de os ler e interpretar à luz dos respectivos contextos de produção, das agendas de cada autor, mas também das múltiplas intertextualidades a que muitas vezes apelam, ou nas quais se suportam e se legitimam. Como se esta arqueologia dos textos não dispensasse a recuperação da história destes, nem dos autores por detrás deles…

É precisamente em torno destas temáticas que se centra, desde logo, o conjunto de artigos reunidos por Graeme Dunphy e Isabel Barros Dias, dedicado ao universo das crónicas medievais. Com grande amplitude cronológica e geográfica, da Hispânia à França, à Inglaterra e à Hungria, questionam-se percursos biográficos e métodos de trabalho, distintas memórias em torno de figuras e acontecimentos, problemas na definição de géneros literários, ou mesmo na reconstituição de tradições textuais e da circulação de manuscritos. De uma forma ou de outra, todos dão conta da vitalidade desta área de trabalho nos últimos anos, e, também, da forma como neles se têm interrogado e questionado as categorias herdadas do passado.

Também Iria Gonçalves explora e contextualiza, no artigo em destaque, as notícias sobre as dificuldades sentidas pela cidade de Lisboa durante os conflitos militares entre Portugal e Castela dos finais do séc. XIV. O estudo cobre o período que vai do pesado cerco imposto à cidade por Henrique II em 1373 ao Interregno, quando os seus habitantes foram obrigados a resistir a um novo assédio, dez anos volvidos, e a viverem sob o medo de novas invectivas castelhanas, apenas travadas graças à vitória alcançada pelos portugueses em Aljubarrota. Em larga medida devedor da memória dos acontecimentos deixada por Fernão Lopes, o cronista régio ao serviço da nova dinastia de Avis, o texto explora com mestria o modo como a cidade, os seus habitantes e os poderes desta, procuraram preparar-se e resistir a tais adversidades e, ao mesmo tempo, enfrentar e exorcizar o medo suscitado pela guerra e pelo rasto de morte e destruição que esta sempre acarretava. Mas também nele se interroga o sentido que os contemporâneos davam a tais fatalidades, necessariamente ligado a uma dimensão religiosa, que as interpretava como decorrentes de uma ira divina que exigia penitência e conversão. Por isso se multiplicaram as procissões e os sermões, os rituais litúrgicos que pediam clemência e expressavam arrependimento, mas também os compromissos para erradicar os pecados - públicos ou privados - que mais atentavam contra a divindade. Desde as permanências de ritos pagãos, ou de formas de magia e de bruxaria, à persistente barregania dos clérigos, ou ao desrespeito pelos dias de descanso impostos pela Igreja. Advinda a paz, é ainda pela celebração de missas e pela instituição de múltiplas procissões que se perpetuará a memória da vitória dos portugueses, do novo monarca e da cidade que desde cedo o apoiou.

Há outros contributos neste número igualmente organizados em torno dos textos e dos seus problemas. É o caso dos dois artigos exteriores ao número temático, ambos com incursões bem distintas. O primeiro, de Geraldo Rosolen Junior, recupera as relações diplomáticas e políticas do século VI, entre o imperador Justiniano e o rei vândalo Gelimero, a partir da troca de correspondência entre ambos, mas também da forma como esta foi lida e enquadrada pela memória que desses acontecimentos transmitiu Procópio de Cesareia na sua História das Guerras. Por seu lado, María Paula Castillo revisita o mundo dos primeiros textos normativos franciscanos e do complexo percurso de regularização e normalização do movimento dos frades menores, desde os textos produzidos em vida de S. Francisco - nomeadamente as chamadas 1ª e 2ª Regras e o Testamento - às constituições posteriores, no caso, as chamadas Constituições de Narbona de 1260, associadas à acção ordenadora de S. Boaventura, aliás em conformidade com a sua leitura mais “canónica” da figura do Poverello proposta na Legenda Maior. De modo particular, a autora procura estudar os diversos aspectos referentes às relações dos frades e das comunidades com o mundo exterior, às formas de controlo e regulação adoptadas e inclusive os recursos definidos para o castigo dos faltosos.

Também as Recensões abrem com a análise de outro texto memorialístico, a Estoria del fecho de los Godos, editada e estudada por Manuel Hijano Villegas, ora apreciada por Filipe Alves Moreira. Aí se discutem as distintas versões e testemunhos da obra, os seus eventuais contextos de produção e as relações dela com textos cronísticos ibéricos anteriores ao século XV. Nas notas de investigação, regressa-se outra vez aos textos cronísticos e à produção literária, de novo centrados no mundo ibérico: Maria Eugénia Alcatena, com uma investigação sobre o maravilhoso e o sobrenatural no período de emergência do verso e da prosa literária em castelhano; e, para o universo da produção literária da corte tardo-medieval portuguesa, os textos de Catarina Tibúrcio sobre a produção dos códices iluminados na Corte de Avis, atento à articulação da moldura com o texto e a imagem, e o de Geraldo Augusto Fernandes sobre o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, aplicando aos poemas ditos de formas mistas, uma das suas categorias, uma metodologia de análise que tem em conta, sobretudo, os elementos que determinam a sua versificação e o esquema rimático.

Os restantes contributos trazem outras fontes, problemas e temáticas, na fidelidade, aliás, à vocação inter e multidisciplinar da revista, consagrada, de forma ampla, ao universo dos Estudos Medievais. Entre estes, os dados da arqueologia têm uma presença importante. Tanto na recensão feita à colectânea sobre a arqueologia rural altomedieval na Península Ibérica, dirigida por Sara Prata, Fabián Cuesta-Gómez e Catarina Tente, e que saiu dos primeiros Early Medieval Countryside Archaeological Meetings, realizados em Castelo de Vide em 2019, como na notícia trazida por Dália Paulo sobre os Banhos Islâmicos de Loulé, discutindo a origem e o significado desta estrutura, mas também os caminhos e as opções tomadas durante a musealização desse conjunto patrimonial. A muito recente classificação dos Banhos de Loulé como Monumento Nacional mostra bem a actualidade deste apontamento.

Este número inclui ainda a apreciação e a divulgação de outros trabalhos de âmbito interdisciplinar e com proposta de um novo olhar sobre velhos problemas. Desde logo, a recente obra de Daniel Baloup, L’homme armé. Expérience de la guerre et du combat en Castille au XVe siècle, recenseada por Bernardo Vasconcelos e Sousa e que valoriza opção do autor por uma perspectiva antropológica da guerra, indispensável para associar a cultura material às praticas guerreiras, às representações mentais e aos códigos de valores, ou ao sangue e às emoções dos combatentes. Inovadores são também os contributos trazidos pelo projecto FALCO, aqui apresentados por Tiago Viúla Faria, como seu investigador responsável, para uma abordagem inter e multidisciplinar da zooantropologia histórica.

O presente número faz ainda memória e presta merecida homenagem à Professora Jacqueline Hamesse (1942-2023), pelos seus incontornáveis contributos para o conhecimento dos textos filosóficos medievais, para os quais concorria o domínio excecional que detinha da Paleografia, da Codicologia e da Lexicografia.

São muitos, pois, os itinerários de leitura propostos. Com eles, continua-se a fazer jus à missão e propósito da Medievalista, não só pela abertura aos múltiplos olhares sobre a diversidade presente no mundo medieval, como pela vontade de fazer das suas páginas um forum de partilha dos desafiantes caminhos de investigação, das novas problemáticas e dos contextos e das cronologias mais diversas. Com este número, consolida-se igualmente a internacionalização da revista, muito graças aos autores que a procuram para a publicação de números temáticos, ou para dar a conhecer os resultados das suas investigações. Para que todos sejam lidos com vagar.

João Luís Fontes, Luís Filipe Oliveira

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