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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Med_on  no.15 Lisboa jan. 2014

 

ARTIGO

De computo de Rábano Mauro. O texto e as iluminuras do Santa Cruz 8 e do Alc. 426.

Maria Coutinho*

 

* Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Estudos Medievais / Instituto de História da Arte – FCSH/UNL, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: maria1coutinho@gmail.com

 

RESUMO

Os códices Alcobacense 426 (Alc. 426), de Santa Maria de Alcobaça, e Santa Cruz 8 (Santa Cruz 8), de Santa Cruz de Coimbra, datados do século XIII, além do Vocabularium de Papias, integram a obra De computo (também designada De numeris), de Rábano Mauro. Neste artigo, com o propósito de reflectir sobre o interesse das iluminuras e da parte do De computo copiada e investigar o parentesco entre ambos os manuscritos, procede-se ao estudo do texto e das imagens, não sem antes passar por toda a composição dos códices e sua ornamentação. Dar-se-á ainda conta da existência de um trecho de um autor do século VIII no Santa Cruz 8, que inicialmente pensámos integrar a obra De computo, e da sua relevância na reflexão sobre as imagens. Tal estudo será introduzido por algumas considerações sobre a importância do cálculo na Alta Idade Média, sobre o seu uso na determinação das datas pascais e sobre o conteúdo do tratado de Rábano Mauro.

Palavras-chave: Cômputo; Rábano Mauro; Beda; Papias; Contagem pelos dedos.

 

ABSTRACT

This article proposes a comparative study between the work De computo of Hrabanus Maurus that takes part of two Portuguese manuscripts dated from the 13th century: Santa Cruz 8 (from the Monastery of Santa Cruz de Coimbra) and Alc. 426 (from the Monastery of Santa Maria de Alcobaça).

The aim is then to reflect on the reasons of a parcelled copy of the work, accompanied by the finger reckoning images, and to determine the affinity between the two manuscripts considering not only their proximity, but also their striking differences, specially on Hrabanus’s illuminations.

The study will have a concise introduction on the relevance of the computus for the high Middle Ages and a brief presentation of the general contents of Hrabanus’s treatise.

Keywords: Computus; Hrabanus Maurus; Bede; Papias; Finger reckoning

 

Origem e composição do De computo de Rábano Mauro

O De computo de Rábano Mauro, o último tratado de cálculo a ser composto com as especificidades adiante enumeradas, foi escrito em 820. E, apesar de Rábano só se tornar Abade de Fulda em 822, teria já, nestas e noutras matérias, um papel considerável na corte carolíngia. Daqui se vê que a cópia dos dois códices que ocuparão este estudo, Santa Cruz 8 e Alc. 426, dista em, aproximadamente, quatro a cinco séculos da redacção da obra1. Entendeu-se, ainda assim, que seria relevante dar conta das circunstâncias que motivaram o aparecimento destes tratados em geral e do de Rábano em particular, das matérias que o constituem e, com isso, de uma definição e relevância do computus, visto serem tais informações pertinentes para uma visão mais abrangente e rigorosa.

O que é, portanto, o computus e que utilidade tem um tratado desta natureza? Computus é um termo que se reporta a uma ideia de cálculo alargada, que integra a aprendizagem dos numerais, a prática aritmética, o uso de quadros de datas, o domínio de técnicas para cálculo dessas mesmas datas, o conhecimento sobre alguns fenómenos astronómicos, a explicação e fundamentação teológica de toda a informação e uma ideia de ordem do cosmos que é, simultaneamente, matemática e teológica2. Isto é, não obstante a concepção do mundo ser tutelada ou justificada a partir da Bíblia, reconfirmada em autores de referência para o pensamento cristão (em particular Sto. Agostinho, mas também, no caso de Rábano Mauro, Isidoro de Sevilha, Beda, entre outros), tal concepção está associada a uma procura metódica de compreensão da forma, composição e organização do mundo e seus fenómenos, sem prescindir de uma sucessiva acumulação de saber, matemático, astronómico e geométrico que vinha desde os pitagóricos3. Computus designa, também, parte do currículo monástico, a que depois se regressará e, por extensão, pode reportar-se a um conjunto de argumenta ou reflexões escritas sobre cálculo, quer integre uma miscelânea, quer não; neste caso pode empregar-se para designar o género de códice4.

É sobretudo a partir dos séculos VI e VII que começam a circular no Ocidente diversos textos relativos a estas temáticas, embora de forma ainda fragmentária e dispersa, consistindo em, maioritariamente, tábuas pascais, concebidas para determinar a data da Páscoa5. Estas tábuas atraíam todo um aparato técnico de instruções para a sua leitura e uso (canones) e de fórmulas (argumenta), e eram frequentemente contraditadas por outras com critérios diferentes, mas com o mesmo objectivo. Para a composição desta obra, Rábano Mauro terá recorrido a diversas fontes, estando o De temporibus, o De natura rerum e sobretudo o De temporum ratione de Beda, entre as mais relevantes6. Tanto este tratado como o De computo de Rábano Mauro são em forma de diálogo entre um discípulo e um mestre, assim concebidos tanto para ensino como para aprendizagem7. Nenhuma das obras pretende estabelecer princípios universais ou apresentar considerações teóricas, mas sim fornecer instrumentos úteis para a resolução de um problema8. Que problema? Determinar a data da Páscoa através de uma fórmula, recorrendo à astronomia e ao cálculo, mas também à teologia moral e à exegese bíblica aplicada ao tempo. Ora, de acordo com F. Wallis, o problema deve ser visto no contexto da “Questão Pascal” que ocupou a Igreja nos seus primeiros sete séculos, desdobrando-se, na verdade, em duas questões distintas: uma de vocação teológica, questionando que critérios determinariam uma data adequada para a Páscoa; e outra de carácter matemático e astronómico, que envolvia o modo como podia essa data ser determinada de antemão9. Portanto, resolver esta questão implicaria coordenar dados lunares e solares com a interpretação de textos bíblicos. Há, por isso, a partir deste autor, três aspectos que devem ser articulados na definição de uma data de Páscoa válida:

“1. A celebração anual da Páscoa é suposto coincidir com a Pessach judaica, o período da histórica Paixão e Ressurreição de Cristo. Mas se os cristãos, pelo menos do século II em diante, escolhessem celebrar a Páscoa só ao Domingo mesmo apesar do 14º dia de Nissan, no calendário lunar judaico, poder calhar a qualquer um dos sete dias da semana, qual é o escopo de datas lunares – i.e. datas de Nissan – em que é permissível celebrar a Páscoa? 2. Nissan é “o primeiro mês” [Êxodo 12:2] e acontece na primavera. Mas a primavera, ao contrário de Nissan, é uma época solar. Quando começa a primavera, e quando deve Nissan começar se é suposto que seja “o primeiro mês? 3. Considerando o supra mencionado, em que escopo de datas do calendário Juliano pode a Páscoa calhar? A Páscoa envolve, então, três critérios interligados, ainda que distintos. Domingo é um dia da semana, que resulta de uma contagem arbitrária de 7 dias, desligada de qualquer fenómeno sazonal ou astronómico. Nissan é um mês lunar; começa com o primeiro quarto crescente da primeira lunação da primavera. Mas a primavera é um fenómeno produzido ou resultante da jornada anual do Sol de 365 (1/4) dias à volta do zodíaco”10.

Pensando que os períodos da Lua e do Sol são, strictu sensu, incomensuráveis, um ciclo luno-solar implicaria um ajustamento artificial do período lunar ao período solar, num certo número de anos11. Desta forma, computus não pode ser considerado como ciência observacional ou física do tempo, mas sim como um sistema que permite criar um padrão que se replica em ciclos, submetidos a determinadas convenções12. Daqui se compreende que não fosse possível precisar a data da Páscoa através da observação astronómica directa, ano após ano, pois um ciclo pascal transcende inevitavelmente os ciclos astronómicos. Um sistema projectivo funcional para a comunidade religiosa cristã era essencial, na medida em que da data da Páscoa dependia a calendarização de cerca de dois meses de observâncias pré-pascais, que deveriam ser celebradas em unidade por toda a parte. Era, de resto, indispensável reduzir os conflitos associados à data, não só com os judeus, por razões religiosas, mas também com Roma, dada a probabilidade de coincidir com o aniversário da fundação da cidade13.

A prática da organização de compêndios ou de colecções de cálculo vai-se generalizando e estes códices depressa passam a integrar outros textos de áreas de certa forma afins, como medicina, astronomia, geometria e, por vezes, astrologia e alfabetos então considerados exóticos14. A junção disciplinar destas compilações não é imprevista na medida em que resulta da recuperação e ou introdução das sete artes liberais nas escolas monacais, catedralícias e presbiterais. Mesmo tendo essa tradição uma periclitante continuidade, é no século VII na Espanha visigoda e no século VIII, dos dois lados do Reno, que a divisão do saber entre trivium e quadrivium (matemática, geometria, música, astronomia), volta a assumir dimensões programáticas. Organização do saber que se articulará com um novo paradigma teológico, cujo propósito é preparar os membros da comunidade para o serviço a Deus, opus Dei. O computus, propriamente dito, terá sido introduzido no ensino formal por Alcuíno, autor de um conjunto de 53 problemas de aritmética, geometria e lógica15 e que viria a ser mestre de Rábano Mauro, iniciando-o neste e noutros temas.

O De computo de Rábano Mauro é redigido com o mesmo propósito de fornecer ferramentas de cálculo para a determinação de um ciclo pascal válido, seguindo, por isso, as fundamentações teológicas das colectâneas precedentes, sobretudo do já referido tratado de Beda, que usa mais como matriz do que como fonte. No entanto, a obra de Rábano surge numa circunstância histórica muito distinta, pois o cálculo integrava já as escolas monásticas e era amplamente conhecido e utilizado como ferramenta de estudo e observação, depois de se ter tornado numa plataforma de reconstrução do quadrivium clássico16.

Além disso, esta obra não é alheia ao interesse que a corte carolíngia vinha manifestando por fenómenos astronómicos e outras questões confinantes, que desencadeou uma significativa profusão de textos sobre esta temática17. Em 789, por exemplo, Carlos Magno, na Admonitio generalis, e no seguimento da exigência de aumento de escolas e respectiva qualidade de ensino, incluiu especificações concretas acerca da aprendizagem de: “psalmos, notas, cantus, compotum, grammaticum per singula monasteria uel episcopia... bene emendate”18. Tal política, controlada através de inúmeros inquéritos, perdurará durante o reinado de Luís o Pio e dos seus filhos, não obstante as conhecidas atribulações políticas. Luís o Pio, à semelhança do pai, expressará longo interesse e apoio ao estudo do cálculo e da astronomia. Contudo, a proliferação de textos há pouco referida, circulando a par e passo com outros tratados antigos, viria a instalar alguma confusão, nomeadamente quanto aos sistemas de tábuas pascais. É assim que em 809 se reúne um conjunto de calculistas para examinar as questões em discórdia e se realiza um concílio em Aachen. São, também, desta data algumas antologias de cálculo, redigidas para dissipar a confusão vigente. Em 814, o gramático irlandês Dicuil apresenta a Luís o Pio o primeiro capítulo do seu Liber de astronomia et computo, assim logrando algum relevo na corte carolíngia19. De acordo com W. Stevens, uma carta que Rábano Mauro recebe de Macário colocando uma série de problemas de cálculo, em 81920, bem como o livro (não concluído) de Dicuil (talvez por abalar a posição proeminente de Rábano junto de Luís o Pio), poderão ter sido decisivos para o empreendimento que Rábano levaria, então, a cabo em 820, beneficiando da sua experiência de ensino em Fulda21.

O De computo de Rábano Mauro compreende 96 capítulos que partem de questões linguísticas, passam pela aritmética elementar, pela astronomia, até ao intrincado assunto das tábuas pascais e respectiva fundamentação. A partir do assunto de cada capítulo, W. Stevens propõe uma organização da obra em cinco secções distintas. A primeira, compreendendo os capítulos I a VIII; a segunda, os capítulos VIIII a XXXVI; a terceira, os capítulos XXXVII a LIII; a quarta, os capítulos LIIII a XCII e a última, os capítulos XCIII a XCV22. Seguiu-se a organização de Stevens, dada a sua pertinência estrutural e de conteúdo, com excepção da última secção.

Do Capítulo I ao VIII, Rábano apresenta o número como essencial para compreender a composição de todas as coisas, nomeadamente a sucessão da noite e do dia, a lua e o sol, os sinais e as estações, os dias e anos. Discute, depois, que tipo de numerais existem, o que significam e como se usam, apresentando as suas variações gramaticais, medidas, pesos e múltiplos.23 Explica que os números podem ser apresentados pelos numerais romanos, pelas letras gregas ou pela posição das mãos. Dedica o capítulo VI à exposição sobre contagem manual, descrevendo a correspondência da flexão dos dedos da mão esquerda e da mão direita aos numerais, idêntica à de Beda e a outra versão que circularia na época24.

Nos capítulos VIIII a XXXVI, Rábano introduz a noção de tempo e sua terminologia fraccionada, como momento, minuto, hora, dia, partes do dia, noite, etc. Nomenclatura que se vai tornando mais e mais complexa, para que o aluno compreenda os vários termos, as suas categorias e períodos, bem como as respectivas relações proporcionais e, com isso, pratique a multiplicação. Acrescenta ainda explicações sobre o que são os meses, as designações e seus usos pelos Hebreus, Egípcios, Gregos e Romanos, sobre as estações do ano e sobre o próprio ano.

Apesar de os referir frequentemente, nomeadamente nas definições de mês, é a partir do capítulo XXXVII ao LIII, que falará mais detalhadamente dos planetas e da origem dos seus nomes, explicando as devidas características e movimentos no céu. Refere, também, o sol e a lua, movimentos e magnitude, as estrelas e apresenta informação sobre o zodíaco e vários fenómenos como eclipses, cometas, solstícios e equinócios, fornecendo os conceitos gerais sobre a esfera celeste e a terrena. As suas descrições permitem supor que partilharia com Isidoro, Beda e outros autores medievais um conceito globular da terra e do céu. O material fornecido supõe a observação astronómica directa, sendo que o uso de instrumentos e cartas estelares está implícito25. É ainda nesta secção que Rábano refere o alinhamento planetário da data em que escreve, correspondendo a 9 de Julho de 820 (XLVIII, 16/19)26.

A quarta secção abrange os capítulos LIIII a XCII e diz respeito aos cálculos associados às tábuas pascais. Rábano utiliza material de Beda, simplifica-o, e acrescenta 8 das 9 direcções fornecidas por Dionísio Exíguo, que permitiriam ao aluno determinar rapidamente se se trataria de um ano bissexto ou contar o número de anos desde a incarnação até ao presente. Em muitas das explicações retiradas de Beda ou de Dionísio, Rábano acrescenta mais exemplos para a determinação dos cálculos. No entanto, o texto de Rábano, assim como o De temporum ratione de Beda, não era auto-suficiente e pressupunha que o aluno tivesse, pelo menos, acesso a uma tabela do ciclo de 19 anos de Dioníso27. Ainda assim, Rábano apresenta novas tabelas que, embora baseadas no ciclo de 19 anos, diferem na inclusão de colunas paralelas para o nascimento da primeira lua e para a sua permanência depois da meia-noite, o que, pela prática romana, marca o aparecimento de um novo dia. As suas tabelas continham ainda colunas de datas para as luas, através das quais podiam ser determinadas as observâncias cristãs. Rábano introduz também explicações e informação relevante para aclarar equívocos ainda recorrentes. Todavia, segue consistentemente a tradição de Beda e Dionísio na determinação da data pascal28.

Nos capítulos XCIII a XCVI, Rábano fala da significação mística da páscoa, do grande ciclo pascal e das idades. De acordo com W. Stevens, corresponderia à última secção29. No entanto, dada a natureza destes capítulos, que prosseguem matéria teológica do grupo precedente, bem como a sua dimensão, talvez fosse desnecessário diferenciá-los do grupo anterior.

Rábano não incita os seus discípulos a especular sobre matéria de cálculo, que se perpetua pela tradição. Antes se comporta conforme a norma rectitudinis carolíngia30, expondo como aplicar os ensinamentos que o precedem, reflectindo sobre algumas questões, inovando ou aclarando outras, mas sem encetar qualquer espécie de conflito histórico-religioso31. No entanto, não se restringe aos conteúdos tradicionais do computus, incluindo outros materiais não só das novas antologias carolíngias, como também do recém-descoberto Aratus32.

Todavia, a organização do saber vai sofrer alterações progressivas. Logo por volta do ano 1000, o papa Silvestre II, que ensinava artes liberais na escola catedralícia de Reims e que passara algum tempo na Península Ibérica, recuperou e alterou o antigo ábaco, fabricou instrumentos de astronomia, interpretou a geometria dos agrimensores romanos e introduziu os numerais hindo-arábico33. No século XII, nas novas escolas urbanas, substituiu-se o estudo do cálculo antigo pela matemática árabe e pela astronomia. A crescente insatisfação com as falhas do calendário tradicional tornou estes autores arcaicos e o desenvolvimento do cálculo natural, naturalis computus, pôs em evidência o carácter artificial do computus ecclesiasticus. O conhecimento árabe, que dominou o século XII, transformou a astronomia e cálculo da Alta Idade Média, tornando-os dependentes da astronomia geométrica ensinada nas universidades34. No século XIII, a tradição monástica do cálculo do tempo tinha, então, sido completamente alterada pelos novos instrumentos astronómicos35, repercutindo-se no interesse por este tipo de manuscritos. Apesar de continuarem a ser copiados, no caso do De temporum ratione de Beda, até ao século XVI36 e no do De computo, de Rábano, até ao XVII37 e, depois, impressos, o número de cópias decresceu significativamente. No conjunto dos 16 manuscritos completos do De computo de Rábano Mauro, num período compreendido entre o século IX e o XVII, apenas 5 são datados do XI e do XII, não havendo nenhum do XIII, apenas um do XIV e um do XVII38. Sabe-se, todavia, que há um número considerável de fragmentos e trechos desta obra, mas permanecem por estudar de forma conjunta e relacional. Uma tal análise permitiria certamente obter conclusões mais aprofundadas sobre este período de transição, designadamente sobre as partes copiadas, as iluminadas e o interesse que possam ter despertado. O que nos traz de novo aos códices Alc. 426 e Santa Cruz 8, uma vez que o que contêm é, não a totalidade do texto, mas os capítulos iniciais da obra de Rábano Mauro. Desconhecem-se, até à data, outros manuscritos que, à semelhança destes, contenham deliberadamente apenas uma parcela do texto, acompanhada das figuras da contagem manual, quer integrados num vocabulário de Papias, como se verifica neste caso, quer noutras obras.

 

O excerto de Rábano e a composição do Sta Cruz 8 e do Alc. 426

Os dois manuscritos incluem, então, a terceira parte do dicionário latino de Papias, Papias Elementarium doctrinae rudimentum [Q-Z]39 (também designado Vocabularium), sendo que, no caso do fundo de Alcobaça, a primeira e a segunda parte correspondem ao Alc. 424 e Alc. 425 e, no de Santa Cruz, a terem existido outras duas partes, permanecem desconhecidas. O dicionário é seguido pelo De arte grammatica, também de Papias40; depois, pelo livro das interpretações dos nomes hebraicos de S. Jerónimo, Liber interpretationis hebraicorum nominum41; pela interpretação de nomes e regiões dos Actos dos Apóstolos, Nomina regionum atque locorum de actibus apostolorum, de Beda42 e, por fim, pelo diálogo sobre o cálculo de Rábano Mauro, De computo (também identificado como De numeris)43. Pode adiantar-se desde já que o Santa Cruz 8, depois dos três capítulos do De computo e antes das iluminuras, inclui um capítulo de outra obra de um autor anterior a Rábano, cuja especificidade e pertinência se retomará na secção sobre a ornamentação dos códices.

O Alc. 426 contém ainda, no último caderno, um tratado sobre as partes das orações (sintaxe), Ars grammatica, de Donato, correspondendo ao De partibus orationis ars minor44; depois, com letra posterior, uma lista anónima de acentuação das palavras latinas, “De pronunciatione huius littere “x”45, e de outra mão ainda, no fólio final, “De psalmo[rum] usu” de Alcuíno46.

Considerando, no caso do texto de Rábano, que se trata apenas de uma pequena parte, de pouca relevância temática, como se verá, porquê assumir que a truncagem é deliberada? Um estudo das características físicas de ambos os códices, coordenado com a bibliografia, permite supor que os códices foram planificados, equacionando não só a sua organização, como a extensão das obras. Tanto o Alc. 426, como o Santa Cruz 8 são compostos em pergaminho de boa qualidade, com regramento uniforme, dando assim conta, entre outros aspectos, da importância do volume e do zelo na sua preparação. Além disso, têm ambos a encadernação primitiva47, com características similares a outras obras coetâneas dos respectivos fundos, facto que permite supor que não há alterações posteriores na organização e composição da obra, o que é confirmado pela geral regularidade dos cadernos48. O Alc. 426 tem um total de 33 cadernos e 259 fólios, supõe-se que copiados e iluminados, até à obra de Donato, pela(s) mesma(s) mão(s)49, e o Santa Cruz 8 possui 23 cadernos (22 quat. + 1 bin.), 180 fólios, também copiados e iluminados pela(s) mesma(s) mão(s). O que confirma, na sequência do antes exposto, uma preparação delimitada num período cronológico, cuidada e planeada, conduzida pelo mesmo copista e pelo mesmo iluminador. Tendo presente que a obra de Rábano Mauro ocupa, no Alc. 426, os fl. 250v até ao 252, a truncagem não pode senão ter sido determinada ou pelo modelo que precedeu a cópia ou decorrer de decisão do copista, pois o volume dispunha de mais fólios em branco e o trecho de Rábano é seguido pela Ars Grammatica de Donato. Considerando, também, que a obra de Rábano Mauro ocupa, no Santa Cruz 8, os fl. 178v ao 180, a conclusão precedente é válida também para este caso. Pode-se, portanto, propor que as obras têm a ordem e extensão calculadas e que o trecho de Rábano Mauro corresponde ao previsto.

Há, no entanto, uma pergunta que se impõe. Tratando-se de um texto de cálculo, que sentido tem a porção copiada neste volume de Papias, quando há pouco se referia que integra, quase invariavelmente, miscelâneas de cálculo, astronomia, entre outros, e com o propósito de fornecer dados e ferramentas para a determinação das datas pascais? É por demais evidente que só a muito custo se encontrará uma resposta satisfatória para esta questão, a menos que se determine o exemplar, ou exemplares, que podem estar na origem destas cópias. Faltando outros casos análogos para enriquecer a reflexão, sobretudo que contenham iluminuras com a contagem dos dedos, torna-se difícil, se não mesmo arriscado, ser conclusivo. Contudo, pode ser esclarecedor ter em perspectiva a natureza dos textos que integram os códices, pensá-los como conjunto e, face ao que foi apresentado sobre tratados de cálculo, perceber em que medida o texto de Rábano converge ou diverge em assunto.

O Elementarium de Papias Lombardo é um dicionário monolingue, de Latim, com as entradas ordenadas alfabeticamente, a partir das três primeiras letras da palavra. Não sendo um dicionário etimológico, fornece muita informação sobre os vocábulos, inserindo exemplos, relacionando-os com outros, ou fornecendo excertos de glosas e de outros textos, com indicação das fontes. Já a gramática de Papias é um dos dois novos textos introduzidos em meados do século XI para o ensino do Latim, consistindo numa súmula actualizada das regras de Prisciano, a quem deve a organização da obra, embora trate apenas de fonética e de partes do discurso. Neste esforço de síntese, omite quase todas as referências ao grego e ao latim para ilustrar as suas lições e adapta a obra às necessidades dos aprendizes contemporâneos50.

A gramática de Donato, embora fosse uma obra elementar, supunha um conhecimento prévio de morfologia latina51. A Ars minor correspondia à parte mais simples e a ars maior à mais complexa. O Alc. 426 inclui o correspondente ao tratado inicial sobre as partes da oração, catequético, que compreenderia 8 capítulos: nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição e interjeição. Há um segundo tratado, com os mesmos capítulos do anterior, mas mais detalhado e expositivo e que integra a “arte maior”. A Arte Gramática de Donato é seguida, no Alc. 426, por uma série de palavras apresentadas como versos, escritas em letra mais pequena. Outra mão terá acrescentado marcas de acentuação e o título: Versus accentuales.”52

O livro da interpretação dos nomes hebraicos, de S. Jerónimo, é um glossário que explica as etimologias do hebreu, aramaico e grego dos nomes próprios da Bíblia, escrito como preparação para a tradução do hebreu. Nomina regionum atque locorum de actibus apostolorum, ocupa-se da interpretação dos nomes das regiões e locais dos Actos dos Apóstolos e foi escrito a partir de Orósio, Isidoro e Plínio, entre outros autores. De psalmorum usu é uma proposta de organização dos salmos agrupados em 8 conjuntos, ajustados a ocasiões especiais, derivados do texto de Alcuíno Quia etiam prophetiae spiritus53.

O códice alcobacense, assim como o crúzio, incluem apenas os três primeiros capítulos da obra de Rábano (como se viu, de um total de noventa e seis) e mesmo o terceiro está truncado: De numerorum potentia; Unde dictus sit numerus; De species numerorum diversis (2-18)54. Através do estudo das partes de texto, foi possível verificar que no capítulo destinado aos tipos de numerais (III De speciebus numerorum diversis), há em ambos os códices um maior nível de especificação dos exemplos face aos restantes manuscritos completos indicados no CCCM55. É o caso dos numerais adverbiais, dos distributivos, entre outros: “(...) aut aduerbiales ut semel, bis, ter, quater, [add. Alc. 426 ; Santa Cruz 8] quinquies, sexies, septies, octies, nouies, decies. Aut dispertiui ut singuli, binni, terni, quaterni, quini, seni, [add. Alc. 426 ; Santa Cruz 8] septeni, octoni, noni, deni (...)”.56

Quatro das oito obras, ou parte de obras (incluindo, no caso do Alc. 426, o fólio acerca da pronunciação da letra “x”), incidem sobre questões gramaticais, de definição ou estudo da língua latina. E os textos de S. Jerónimo ou de Beda, embora teológicos, partilham do mesmo princípio lexicológico e lexicográfico. Por estas razões, tem-se proposto que se trata de um volume de estudo, de carácter educativo, para a aprendizagem do latim mas, sobretudo, da Bíblia. Este tipo de compêndios prolifera a partir dos séculos XI e XII e, embora circulando anteriormente, torna-se muito comum nos mosteiros e catedrais por ser útil para a leitura e estudo da Bíblia. A prática da lectio começa com a leitura e análise gramatical dos textos bíblicos, e a gramática é, por isso, fundamental para a sua interpretação57.

Os capítulos I a VIII do De computo (em particular os primeiros três), dedicam-se maioritariamente à definição do número e indicação das suas formas gramaticais, incluindo medidas e pesos. Portanto, uma das razões para o interesse e cópia deste excerto pode ser de origem lexical. Nesta medida, o trecho do Rábano Mauro seria, por assim dizer, usado como fonte para os numerais romanos. Cumpre acrescentar que esta obra, enquanto manual de aprendizagem, supunha que os exemplos pudessem ser preenchidos por cada copista (cada indivíduo copiaria o seu próprio manual de trabalho), para assim praticar as definições e o cálculo. Daí que o nível de explicitação que encontramos no texto possa decorrer do interesse, necessidade ou conhecimento do(s) seu(s) portador(es). O manuscrito De computo Sankt Gallen, Stiftsbibliothek 87858, um exemplar copiado e anotado por Valafrido Estrabão, inclui a gramática de Donato, declinações dos nomes, poesia, arte métrica de Beda e declinações e, embora seja um raro exemplo deste tipo de aglomeração textual (pois a maior parte inclui ou outra obra de Rábano Mauro ou outros textos de cálculo, receitas de medicina, etc.), é suficientemente elucidativo sobre o uso que um tal volume poderia receber. A partir daqui pode sugerir-se que a dificuldade em encontrar compêndios análogos a estes talvez se deva ao facto de, tratando-se justamente de um texto truncado a acompanhar obras completas ou de maiores dimensões, ser menos referido em inventários, e não propriamente à sua inexistência.

A possibilidade do trecho disponibilizado responder a conveniências lexicológicas é, todavia, menos segura do que se fez supôr, pois todo o capítulo é dedicado às definições e a parte copiada corresponde apenas a metade. Havendo real interesse no assunto, faria sentido apresentá-lo na íntegra (e, porventura, os capítulos seguintes). O que não invalida, porém, que o códice fosse destinado ao estudo e aprendizagem do latim, da Bíblia ou mesmo de cálculo. Pois se o texto copiado se revela pouco útil, por ser diminuto, as imagens são, inversamente, o bastante para a aprendizagem da contagem digital e suficientemente invulgares para despertarem, por si, interesse na cópia. Não é de desmerecer a singularidade pictórica destas representações, muito menos o seu préstimo. Parece ter havido um prolongado interesse na forma de contagem digital, por ser proveitosa para a aprendizagem da aritmética e do cálculo59, mesmo depois das tábuas pascais se tornarem desnecessárias ou desactualizadas. A reunião destes textos, que abrange parte das artes liberais, mostra, enfim, “que, pelo menos até ao século XII, os estudos estavam predominantemente orientados para a compreensão da Bíblia, verdadeiro centro e fim de toda a aprendizagem letrada”60. Aliás, J. Meirinhos refere inclusivamente que “as ciências não são senão uma parte do plano de formação que conduz à sabedoria e antes de mais à inteligência da Sacra pagina. É o caso do direito com a compilação do Corpus iuris civilis em cinco partes, e das três partes do Decretum ou Concordia discordancium canonum de Graciano, por exemplo. É também o caso da lexicologia com os dicionários e distinctiones bíblicas e o grande Vocabularium de Papias”61. É por este motivo que semelhante utilidade, a par da peculiaridade das representações, pode estar na origem da cópia, colocando-se os capítulos iniciais apenas para fornecer contexto, assinalar o tema, identificar o autor, assim integrando um volume de estudo.

A última hipótese que se coloca como justificação para a selecção de apenas alguns capítulos e iluminuras desta obra não dispensa, antes complementa, qualquer uma das precedentes. Se se deslocar o problema para a cópia de um modelo, qualquer uma das razões supra referidas pode estar na origem da integração de uma porção de um manuscrito de cálculo num volume dedicado maioritariamente ao vocabulário e gramática. Assim, nenhum dos fundos aos quais pertencem os manuscritos teria tido acesso a um manuscrito completo, mas a um outro exemplar que contemplasse o que vigora actualmente em ambos os códices. Não caberia, portanto, nem a Alcobaça, nem a Santa Cruz, uma decisão acerca do texto truncado ou das suas características. Na busca por esse possível exemplar, confrontou-se o texto de cada um dos manuscritos com o texto editado em Corpus Christianorum e variantes, pensando inclusivamente que lugar poderia ocupar no stemma codicum. Assim, verificou-se que as variantes do cód. Alc. 426 e do Santa Cruz 8 coincidem maioritariamente com as do ms. L e com as do ms. H62 (sublinhe-se, todavia, que a porção de texto existente não é suficientemente extensa para que se possa ser conclusivo neste particular), que têm um antecedente comum, hoje perdido63. É possível que o ms. intermédio (ou os ms. intermédios), tenha tido acesso a este exemplar. Verifica-se também que tanto o Alc. 426 como o Santa Cruz 8 têm um número suficiente de variantes próprias (algumas distintas entre si) para fortalecer a possibilidade de haver ou um, ou mais do que um, manuscrito de permeio, desta feita já truncado.

Tal hipótese é tanto mais plausível quanto existe uma grande familiaridade entre os dois códices em estudo, não só do ponto de vista estrutural (na organização do volume), como na decoração, como até na obra de Rábano Mauro, dada a proximidade do texto e das imagens, familiaridade essa reconhecida, nomeadamente, por Adelaide Miranda e José Meirinhos64.

Contudo, a sugestão de um modelo comum é apelativa mas pode ser enganosa, pelo que deve ser pensada com cautela. Não obstante as similitudes estruturais, textuais e ornamentativas a que se vem aludindo, há diferenças suficientes e relevantes (em particular na obra de Rábano Mauro), para que se desconfie de tal solução. São, de resto, essas mesmas diferenças que fazem reequacionar a tese de que o Santa Cruz 8 seja uma cópia do Alc. 426. Propõe-se, neste sentido, que se veja a ornamentação das iniciais, os diagramas e as iluminuras da contagem manual com mais detalhe.

 

A ornamentação, iniciais, diagramas e loquela digitorum

O Alc. 426 tem iniciais a vermelho, verde e azul, destacando capítulos e divisão de texto (como parágrafos), sendo mais ou menos evidente que a um início de obra ou de capítulo está destinada uma inicial elaborada. Há, geralmente, embora com assíduas excepções, uma preocupação na alternância da cor entre verde rubricado e, ocasionalmente, azul, assim criando ritmo visual ao longo dos fólios.

Existem aproximadamente 16 iniciais de maiores dimensões, sem enquadramento, onde o contorno da letra é nítido, monocromático e completamente preenchido, terminando em palmeta e folhagem. No interior ou áreas adjacentes, a inicial é preenchida por filamentos a que acrescem caules ou palmetas, nalguns casos perfazendo padrões. Sobre o contorno preenchido é frequente encontrar apontamentos decorativos ou simples pontilhado, a branco. Uma das iniciais, “V”, é habitada por duas criaturas aladas, havendo outros exemplos de figuras animais, dragões decorativos, sobre, sob ou ao lado da inicial. Estas alternam entre o vermelho, verde (que mostra sinais de deterioração), azul e laranja, com tendência para os matizes, com um tratamento ornamental que, mesmo revelando influência das casas cistercienses francesas, parece, de acordo com Adelaide Miranda, resultado de uma evolução local65. Há ainda iniciais de dimensões intermédias, cujos caules se estendem ora na horizontal sobre a marca de regramento, ora na vertical, ocupando duas a três linhas.

O manuscrito de Santa Cruz, mesmo tendo menos 10 cadernos do que o Alc. 426, tem uma estrutura coincidente nas iluminuras. Há, no total, 16 grandes iniciais com características similares a outras obras coevas do mosteiro66. Filigranadas, entremeiam vermelho e azul sem que haja grande investimento na profusão dos filamentos, embora a disposição e desfecho da folhagem e palmetas, que as preenchem ou acompanham, varie. Adelaide Miranda classifica-as como iniciais articuladas ou quebradas, pois o corpo da letra é separado por um filamento não pintado67.

A proximidade decorativa entre os dois manuscritos é posta em evidência pelo simétrico recurso a grandes iniciais com localização correspondente, e pela presença de três diagramas. O da qualitas e da quantitas68de Aristóteles, traduzidos por Boécio, e um outro com círculos concêntricos69.

Nos diagramas da qualitas e da quantitas, verificamos que há ligeiras desconformidades no uso de abreviaturas, nos contornos, na distribuição do texto e até na sua partição pelo espaço, mas que não são, por si, relevantes. Outra diferença, igualmente subtil, diz respeito ao diagrama da quantitas; o Santa Cruz 8 faz uma separação entre corpus e numerus, oratio, inexistente no Alc. 426. Mais significativo é, todavia, o talhe de uma divisória para a qualidade de mole, molle, no diagrama do Santa Cruz 8, sem correspondente no 426. O terceiro diagrama, por seu turno, encontra-se mais preenchido no alcobacense: possui 10 circunferências a rubricado, divididas em 8 partes e numa delas pode ler-se, do exterior para o interior, aries, saturnus, jupiter, mars, sol, venus, mercurius, luna. O Santa Cruz 8 tem apenas as 10 circunferências sem qualquer divisória ou preenchimento.

Quanto ao trecho da obra de Rábano Mauro, este é acompanhado tanto no códice Alc. 426 como no Santa Cruz 8 por um conjunto de iluminuras que representam a técnica de utilização dos dez dedos das mãos para assinalar quantidades, que vem desde a Antiguidade. O capítulo I (De computo vel loquela digitorum) do De temporum ratione de Beda transcreve o modo como este sistema era utilizado e o capítulo 55 (De reditu et computu articulari utramque epactarum) é uma primeira adaptação da contagem manual à determinação das datas pascais70. Este sistema, loquela digitorum, destina para as unidades e dezenas (1-99), os dedos da mão esquerda e para as centenas e os milhares (100 – 1000), os dedos da mão direita. Para os números superiores a dez mil até novecentos mil, combinam-se diversas posições da mão esquerda (dezenas de milhar) ou da mão direita (centenas de milhar), com o peito, o umbigo e o fémur, perna. A introdução do sistema de contagem manual na obra de Beda permitirá que os tratados de cálculo eclesiástico posteriores o retomem, quer textualmente, quer na prática de iluminura, embora tanto neste autor como em Rábano Mauro a maior parte dos manuscritos não seja iluminada.71

Ora, é justamente nestas representações que existe um conjunto de diferenças significativas, assim questionando não só a existência de um modelo único para ambos os códices, como o seu parentesco.

As iluminuras surgem, no Alc. 426, logo após a truncagem do capítulo III quando, conforme acima se referiu, a contagem manual é descrita apenas no capítulo VI. Já o manuscrito do fundo crúzio, truncado no capítulo III no mesmo local, prossegue depois com outro texto que, com excepção de alguns parágrafos, poderia ser o Capítulo VI do De computo, sobre a contagem com os dedos (VI: Quomodo digitis significentur). Deste modo, o códice de Alcobaça apresenta menos texto, estando inclusivamente em falta aquele que forneceria dados para a elaboração das imagens. É sempre possível que tenha cabido ao copista, no momento da cópia, a decisão de transcrever parcelarmente o texto e não todo aquele a que terá tido acesso. Ainda assim, convém reiterar que o códice dispunha de mais fólios, utilizados apenas em período posterior. Se o Santa Cruz 8 for uma cópia do Alc. 426, permanecem por explicar as diferenças nos diagramas e o texto remanescente. Esta conclusão volta a sofrer novo abalo ao estudar detalhadamente as imagens.

O fl. 180r do Santa Cruz 872 tem desenhado um quadro com a representação da contagem digital, que mostra as mãos distribuidas por pequenos rectângulos de fundo vermelho, encimados pela numeração respectiva. O quadro apresenta a numeração de 1 a 4, na primeira fila; de 5 a 9, na segunda (note-se que o 9 está assinalado como IX, enquanto Alc. 426 assinalará como VIIII); de 10 a 50, na terceira e de 60 a 90 na quarta fila. Já a quinta fila apresenta a numeração das centenas, de 100 a 400 (a representação do 100 difere da usual nos manuscritos de Beda e do Alc. 426; também a representação do 400 será diferente no manuscrito alcobacense), depois de 500 a 900, de 1000 a 4000 e, na última, de 5000 a 9000. O quadro está ladeado por um conjunto de 8 figuras em grupos de dois, que fazem coincidir a posição das mãos e do corpo para representar as dezenas de milhar, seguindo o texto de perto. A primeira assinala 10.000 (mão esquerda no meio do peito, com os dedos voltados para o pescoço); a segunda 20.000 (a mão esquerda na mesma posição da anterior, mas com a palma voltada); a terceira 30.000 (a mão voltada e o polegar levantado); a quarta 40.000 (a palma da mão voltada para fora posicionada no abdómen); a quinta 50.000 (a mão esticada com o polegar a tocar no abdómen); a sexta, provavelmente 60.000 (a mão sobre a coxa / fémur esquerdo, com a palma aberta). A sétima figura levanta algumas dúvidas, uma vez que representa a mão direita agarrando a coxa, posição que diria respeito ao 600.000, dado que as centenas de milhar seguem a lógica das dezenas, desta feita com a mão direita. Se se tratasse do 70.000 a posição deveria ser similar à anterior, mas com a mão colocada ao contrário, com a palma para fora. A última figura não terá sido finalizada. Por determinar está o sentido dos objectos que a mão dispensada da representação numérica segura, sendo que no caso do 60.000 pode bem tratar-se do fémur, referido no texto.

 

 

O códice Alc. 426 apresenta a contagem digital com uma estruturação distinta, diferenciando o conjunto da mão esquerda do da mão direita. A organização gráfica da numeração, até à data sem termo de comparação, assemelha-se ao que Adelaide Miranda, em diversas intervenções orais, identificou como um cadeiral visto de perfil73. A representação das mãos é encimada pela numeração e apresenta-se sobre um fundo alternadamente vermelho e verde, intervalada por um espesso contorno a azul. Note-se que há, em relação a Santa Cruz, não só um maior cuidado na execução técnica das mãos como no investimento decorativo dos punhos. A primeira fila apresenta a numeração de 1 a 4; a segunda de 5 a 8 (note-se que a representação do VI é erradamente igual à do VIII); a terceira, 9 (escrito como VIIII), 10, 20 e 30; a quarta vai do 40 ao 90. O segundo conjunto apresenta, de um lado, 100, 200 e 300, depois 400, 500 e 600 e, finalmente, 700, 800 e 900. Do outro, 1000, 2000, 3000; depois, 4000, 5000, 6000 e, enfim, 7000, 8000, 9000. Os quadros têm na base duas figuras masculinas, a primeira acompanhada do número 10.000, a segunda intervala o que se supõe ser 20.000. Note-se que, no caso da primeira, a posição da mão coincide com o descrito no texto (mão no meio do peito, com os dedos voltados para o pescoço), mas seria esperada a mão contrária. A segunda figura retoma a mão esquerda com os dedos posicionados como no algarismo 2, embora apontados para o pescoço. O fólio seguinte apresenta um conjunto de 8 figuras, novamente em grupos de dois74. Aqui, numeração escrita e posição das mãos não mais coincidirão com Santa Cruz 8 nem, por isso, com o texto de Rábano Mauro ou com o de Beda. A primeira coluna apresenta escrito o número 30.000 e a mão na posição do algarismo 3, embora junto ao peito; a segunda o número 40.000 e a mão na posição não do 4, nem do 40 tal como mostra o quadro, mas sim do 40 tal como é representado e descrito no manuscrito de Beda. A terceira figura apresenta o 50.000 inscrito, mas a mão esquerda está sobre a coxa, ou fémur, o que coincidiria no texto com 600.000, uma vez que se trata da mão direita. A quarta mostra a inscrição 60.000 e a mão pode estar posicionada como o 6. Apesar de trocar de braço, o desenho da mão mostra-a como sendo a direita, suposição que ganha consistência depois de observada a coluna seguinte onde, ao trocar de braço, a mão é representada como sendo a esquerda. Na segunda coluna, aquela que parece ser a mão esquerda posiciona-se como o 2000 do quadro e a segunda sustém um quadrado com “XX”. A figura seguinte posiciona a mão junto ao abdómen, deitada, e a outra segura um quadro com, talvez, “XXX”, tendo em conta a inscrição precedente e a subsequente. A terceira figura posiciona a mão como a já vista no 40.000 e suportando a inscrição “XC” e a última, por terminar, em posição novamente simétrica ao 50.000, posiciona a mão sobre o fémur e sustém um quadro em branco.

 

 

 

 

O afastamento das figuras relativamente ao texto não deixa margem para dúvidas de que o copista do códice Alc. 426 não conheceria o capítulo VI do De computo de Rábano Mauro, nem o texto de Beda, tornando muito inconsistente a existência liminar de um parentesco comum para estes dois manuscritos. No entanto, o facto de em ambos os casos o texto ter variantes comuns, ser truncado no mesmo local, permanecerem por terminar as últimas figuras, a sua proximidade figurativa, os objectos que guardam ou ostentam serem muito similares entre si e ainda a existência em Santa Cruz 8 de um pequeno quadro, por terminar, semelhante aos de Alcobaça, não afasta por completo as dúvidas. Poderão ter sido copiados de um manuscrito comum? Pode o Santa Cruz 8 partir do Alc. 426, completando-o e desenhando as figuras fiéis ao texto? Poderá o Alc. 426 ser uma cópia do Santa Cruz 8 e o iluminador empregar, na sua sequência numérica, a lógica das representações dos quadros (dezenas, etc.), por não ter tido o modelo em mãos tempo suficiente, terminando as imagens de memória? Ou segue Alcobaça um outro esquema, uma outra lógica, que incorpora também os objectos, que não nos é hoje [ainda] conhecida?

Estas questões tornam-se ainda mais prementes depois do estudo da porção de texto que o Santa Cruz 8 possui, já antes mencionada. Trata-se, na verdade, e de forma surpreendente, (de parte) do primeiro capítulo do De temporum ratione de Beda (De computo vel loquela digitorum) que, depois de alguns parágrafos, explica a contagem pelos dedos (fl. 179-180). Desta feita, o texto não retoma, afinal, o De computo de Rábano Mauro no capítulo VI, mas integra o primeiro capítulo do tratado que Rábano usou como fonte. Se, por um lado, fica explicado o rigor textual das imagens, permanece surpreendente semelhante junção (que não é despropositada), sem paralelo conhecido. Perduram, também, as dúvidas quanto às imagens e ao texto em falta no Alc. 426 e às restantes diferenças.

Pouco conclusiva é, ainda, a comparação com outros códices, uma vez que não foi possível ter acesso a outros trechos ou fragmentos e, do conjunto dos manuscritos completos referidos pelo CCCM e com imagens acessíveis, só no ms. L de Rábano Mauro é que há alguma similitude na forma de representar o quadro das mãos, o que poderia contribuir para a eventualidade de um parentesco verificada também, como se apontou, ao nível do texto. Porém, no ms. de Leiden as iluminuras ocupam 4 folios (fl. 4 e 5) e destinam-se a iluminar o capítulo VI da obra de Rábano. Estão dispostas em quadrados (fl. 4r) e círculos (fl. 4v e 5r), sendo 53 no total, sem cor, e as figuras humanas envergam uma toga. Além disso, as representações foram executadas com detalhe para poder diferenciar a medium palmae da radix palmae (distinção relevante para a correcta posição dos dedos), o que não acontece nem no Alc. 426, nem no Santa Cruz 8. Por fim, o último fólio apresenta três figuras, duas fecham o ciclo do fólio precedente representando 800.000 e 900.000 e a central, de maiores dimensões, assinala um milhão, o mais elevado número a ser representado através dos processos de contagem manual. Tamanha divergência reduz o entusiasmo causado por uma hipotética familiariedade textual.

Tendo-se ocupado, esta investigação, com a procura de um antecedente para o Alc. 426 e para o Santa Cruz 8 que aclarasse as diferenças entre ambos os códices, explicasse a sua relação e proximidade e contribuísse para esclarecer as razões da cópia de uma pequena parcela do De computo, iluminada, mas já sem qualquer relação com as funções dos tratados de cálculo que lhe estiveram na origem, pode dizer-se que não há, até à data, uma resposta satisfatória. Porém, talvez estas questões se possam complementar com outras. Isto é, há outros manuscritos em Portugal similares? Há outros manuscritos de cálculo, compêndios ou não que, à semelhança do que vemos acontecer noutras obras, incluam questões de astronomia, geometria, etc.? E que outros volumes de Papias existiram?

 

Notas finais sobre a circulação de Papias e de Rábano em Portugal e as características científicas de Santa Cruz

Foi em função destas questões que se procurou, sob a orientação da bibliografia a que se vem recorrendo e de forma tão exaustiva quanto possível, alusões a volumes de Papias, obras de Rábano Mauro ou tratados de cálculo, na actual constituição dos fundos, em inventários, notícias e testamentos. Teve-se também em consideração a inscrição do Alc. 426, datada do séc. XVIII, que atribui a cópia do códice a um Frei Afonso do Louriçal, do Mosteiro de Santa Maria de Seiça. Aqui mantiveram-se as devidas reservas, pois Aires do Nascimento, à semelhança de outros autores, ressalva que a atribuição referida por Frei Manuel dos Santos, por Barbosa Machado e até pelo Index Codicum, é duvidosa75. A inscrição deve ser vista à luz da preocupação eclesiástica que se fazia sentir por pressão política e que pode ter originado falsas atribuições, para forjar origens portuguesas e remotas para os códices. Sem outros dados torna-se, pois, difícil assentar numa datação, atribuição e proveniência tão precisas. Porém, a inscrição serviu de motivação para conhecer as características do fundo de Seiça e procurar referências à movimentação de monges (no caso de Cister) para outros mosteiros, a fim de copiar ou adquirir códices.

Ora em Seiça, Bouro e nas abadias beneditinas do Norte de Portugal, ao longo dos séculos XI e XII, praticamente não existem obras científicas ou de autores carolíngios. Na lista de livros incluída no inventário dos bens dos mosteiros de Seiça e de Bouro de 1408, e na lista de livros do mosteiro de Bouro de 143776, não encontramos nenhum tratado de cálculo referenciado. Contudo, em Santa Maria de Seiça há registo de “dous livros de defin[i]çõoes”77. E o Vocabularium de Papias integra a lista de Bouro. De acordo com José Mattoso, os cistercienses de ambos os mosteiros não conhecem nada do que se produziu durante o século XI a não ser este Vocabularium78. Ignora-se, em todo o caso, qualquer relação que possa ter com os manuscritos em estudo e se possuiria o texto de Rábano no final. Mas fica a questão: terá sido a rubrica de Seiça o ponto de partida para a inscrição no fl.1 do Alc. 426? É difícil assegurar e talvez não muito provável, uma vez que refere dois, e não três livros de definições.

No inventário de Bouro de 1437 há 5 exemplares do Livro de Reis79, não se sabendo exactamente quais destes seriam comentários, dado o carácter sucinto das entradas. Todavia, está indicado que o mosteiro adquiriu um “liuro de expranação sobre hos quatro liuros dos reys” (n. 47). Segundo José Mattoso, pode tratar-se do comentário ao Livro de Reis de Rábano Mauro, um dos mais difundidos neste período80, constituindo uma excepção relativamente ao acima apontado81.

Há um inventário de livros de meados do século XIII feito no final de um Necrológio, relativo ao Mosteiro de S. Vicente de Fora, que descreve a livraria indicando os códices ausentes por empréstimo. Na lista, consta o vocabulário de Papias em dois volumes, mas não há novamente outras informações que permitam associá-lo aos exemplares em estudo82.

No fundo de Santa Cruz de Coimbra, além do Santa Cruz 8, conhecemos a existência de homilias de Rábano Mauro, datadas de 1139, e um comentário ao livro de Reis83. Quanto a Papias, A. da Cruz refere a cópia do texto deste autor num códice de Santa Cruz de meados do século XII: “Por seu turno, bem carece o gramático Papias, esse sim, de uma anotação, a partir dos seus textos que foram transladados num códice de Santa Cruz. Justifica-se assazmente, em nosso entender, a particular circunstância de nem sempre haver merecido a obra deste autor lombardo a observação que lhe é devida e que vem atribuir-lhe destacado lugar no enciclopedismo do seu tempo, uma vez que através dela, posto que só em curtos excertos, alguns escritores latinos e gregos assim foram divulgados na segunda metade do século XI, pois que foi entre 1053 e 1063 que Papias redigiu o seu Vocabularium. Decorrido um século e por meio de uma cópia do texto de Papias, esses mesmos autores entravam no convívio das leituras de Santa Cruz: além dos Santos Padres (Agostinho, Ambrósio, Beda, Bento, Jerónimo, etc.), um Aristóteles e um Cícero (Tullius), um Juvenal, um Lucano, um Ovídio, um Prisciano, um Platão, um Terêncio... Reduzido pecúlio, o dos excertos dos escritores gregos e latinos incluídos no Vocabularium de Papias? Sem dúvida. Porém, sinal de presença e logo pelos meados de duzentos, dentro da canónica conimbrigense, de autores do Classicismo de quem geralmente só vem a ser assinalada a sua divulgação e em terra nossa nos tempos posteriores ao século XII”84.

A referência à existência de um códice de Papias em meados do século XII não pode passar despercebida, pois ou se refere a um outro códice com datação anterior, ou se recua a cronologia do Santa Cruz 8 para a primeira metade do XII, tornando-o anterior ao Alc. 426. Claro que esta datação pode ser imprecisa. Contudo, tratando-se de um exemplar anterior, pode colocar-se a possibilidade de ter servido de modelo para o Alc. 426 e para o Santa Cruz 8.

Não se sabendo muito sobre a circulação, permuta de códices e recrutamento de escribas, sabemos já o grau de contacto que Santa Cruz mantinha com São Mamede do Lorvão, Santa Maria de Alcobaça e, até, S. Vicente de Lisboa85, a que acrescem, como refere Caeiro, “as recíprocas e fundas influências exercidas entre Regrantes e Cistercienses, que a história das duas ordens confirma, o exame das respectivas espiritualidades fundamenta e a que não só a tradição monástica portuguesa, como a comprovação analítica das fontes da obra antoniana, vêm emprestar uma força singular”86.

A informação que Caeiro adita na nota 78, a partir do trabalho de Pierre David e para corroborar a estreita ligação entre os dois Mosteiros, dá conta da escassa mas preciosa informação relativamente à cópia em Alcobaça de pelo menos um manuscrito dos cânones regulares. É através de uma notícia que descreve manuscritos cedidos a três distintos destinatários (Pedro Peres, Pedro Vicente e Mestre Gil) em, respectivamente, 1206, 1207 e 121887, identificada por Caeiro como a mais antiga resenha da biblioteca dos cónegos regrantes, que tomamos conhecimento das características científicas da livraria de Santa Cruz, respondendo às organizações esquemáticas, no caso vertente do quadrivium88.

Este inventário revela-se de particular importância não só pelo que aclara sobre a circulação, empréstimo ou mesmo doação de livros entre mosteiros, mas também porque refere concretamente livros científicos, entre os quais um de cálculo. Saúl A. Gomes declara inclusivamente que foi detectado “um número significativo de fragmentos de códices de obras científicas reutilizados, no scriptorium de Santa Cruz de Coimbra, como materiais de encadernação”. E prossegue: “Não poderemos, naturalmente, garantir que tivessem pertencido a manuscritos do armarium desses cónegos, mas a sua existência, ainda que como membra disiecta, neste espaço não pode deixar de assumir significado cultural.”89

Santa Cruz teria, portanto, no seu fundo, em pleno século XII e no início do XIII, o vocabulário de Papias e um conjunto de obras que, provavelmente, a deixam no lugar de livraria mais bem documentada sobre cálculo, astronomia e astrologia. Ao contrário da biblioteca de S. Vicente ou mesmo de Santa Maria de Alcobaça, que teriam pouca propensão para estas matérias, sendo o alcobacense de Rábano Mauro uma das poucas excepções.

José Mattoso associa as características científicas da livraria da Sé de Coimbra90 e do mosteiro de Santa Cruz ao facto da cidade ter sido, até aos anos 1115 ou 1116, centro de resistência de uma comunidade moçárabe. Razão que pode, inclusivamente, explicar a circulação de códices de Isidoro de Sevilha, obras de gramática e textos clássicos, já que “os meios moçárabes conservaram durante todo o período de ocupação muçulmana um vivo interesse pela cultura clássica”91. Se se cotejar as reflexões pregressas, testemunho das características científicas de Santa Cruz, com a eventualidade de ter cabido ao mosteiro crúzio a circulação de outros códices, entre os quais obras de gramática, e a ser precisa a datação de Papias logo de meados do século XII, é ainda mais plausível que daqui tenha partido o modelo para Alcobaça (e para outros mosteiros). Mas a hipótese inversa não pode ser posta de parte. E se o Santa Cruz 8 é uma cópia do Alc. 426, é perfeitamente admissível que tenha sido confrontado e completado com o De temporum ratione de Beda, “corrigindo” as imagens. Aparte a questão de quem é que copiou quem, estranha-se que não haja uma sugestão de correcção para Alcobaça (recorde-se que os fólios finais só são preenchidos mais tarde), o que nos volta a deixar perante a possibilidade dos dois códices poderem ser menos relacionados do que aparentam.

Apesar deste caminho ir já longo, é ainda preliminar. Faltaria trabalhar os dois códices em conjunto com outros que sejam comuns a ambos os mosteiros92. Uma análise global das correspondências de autores, a par do estudo da ornamentação e das variações textuais, pode dar mais consistência a qualquer uma das alternativas que se sugeriram, permitindo que se prossiga com a investigação em busca das certezas possíveis.

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

Referência electrónica:

COUTINHO, Maria – “De computo de Rábano Mauro. O texto e as iluminuras do Sta Cruz 8 e do Alc. 426”. Medievalista [Em linha]. Nº15, (Janeiro - Junho 2014). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA15/coutinho1506.html.         [ Links ]

 

Data recepção do artigo: 12 de Setembro de 2013

Data aceitação do artigo: 7 de Novembro de 2013

 

Notas

1 A datação destes dois manuscritos não parece estar completamente resolvida. A.A. Nascimento data o Alc. 426 como sendo dos finais do século XII, inícios do XIII, tendo em conta as características da encadernação. Adelaide Miranda, depois de um estudo da ornamentação e iluminura, data-os também do final do século XII. Actualmente vigora a informação que consta no Catálogo dos Códices da Livraria de Mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Biblioteca Municipal do Porto. Porto: BPMP, 1997, pp.75-77, coord. Aires Augusto Nascimento e José Meirinhos e no The Fundo Alcobaça of the Biblioteca Nacional, Lisbon. Collegeville, Minnesota: Hill Monastic Manuscript Library, 1988-1990, pp. 199-202, de Thomas Amos e Jonathan Black (co-autor).

Cf. NASCIMENTO, Aires Augusto do; DIOGO, António Dias – Encadernação Portuguesa Medieval: Alcobaça. Lisboa: INCM, 1984. pp. 60-61, 84-85;

Cf. MIRANDA, Adelaide – A iluminura românica em Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de Alcobaça: subsídios para o estudo da iluminura em Portugal [Texto policopiado], Tese dout., História da Arte Medieval, Univ. Nova de Lisboa, 1996, pp. 185 e 428; in SILVA MARQUES, João Martins da – Estudos de Paleografia Portuguesa. Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia, 1938, p. 32.

2 STEVENS, Wesley – “Rabani Mogontiacensis Episcopi De computo”, Corpus christianorum continuatio mediaevalis 44, Turnhout: Brepols, 1979, p. 167.

3 “Le terme de comput ne désigne pas seulement, au Moyen Age, l’ensemble des procédés permettant de fixer à l’avance la date de Pâques; il englobe un certain nombre de conaissances qui relèvent aujourd’hui de la science astronomique. Computus équivailait à l’expression ratio temporum” (inCORDOLIANI, Alfred – Traités de comput ecclésiastique de 525 a 990. Daupeley-Gouverneur, 1942, p. 51).

4 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. p. 167.

5 Cf. Bede - The reckoning of Time. Ed., trad. e introd. Faith Wallis. Liverpool: Liverpool University Press, 1999. p. xvii.

6 Além das fontes citadas, a obra de Rábano Mauro inclui reflexões do De natura rerum e das Etymologiarum sive originum libri XX de Isidoro de Sevilha (ou de alguma colectânea que incluisse excertos ou paráfrases destas obras) e usou argumenta e a tábua de 19 anos de Dionísio Exíguo. Textos de autores como Ambrósio, Agostinho, Jerónimo, Donato, Prisciano, Virgílio e Josefo, com que tomou contacto em diversas ocasiões, podem, também, ter tido alguma relevância. É ainda possível que Rábano conhecesse a obra Arithmetica de Boécio (citada no capítulo 1), a de Plínio Segundo, Naturalis historia (usada no capítulo XXII) e o Astronomicon (usada no cap. XXVIII), embora W. Stevens refira que tais passagens possam ter sido retiradas de tratados de cálculo mais gerais. in STEVENS, Wesley – op. cit. p. 177.

Acerca das possíveis fontes de Rábano Mauro (ou dos manuscritos que circulariam e com que pode ter tomado contacto), veja-se pp. 177-180 e nota 59 deste autor, e RISSEL, Maria – Rezeption antiker und patristischer Wissenschaft bei Hrabanus Maurus: Studien zur karolingischen Geistesgeschichte. Bern [u.a.]: Lang [u.a.], 1976, pp. 30-40.

7 A inspiração de Beda para o seu texto sob a forma de diálogo parece ter sido um texto irlandês, o De computo dialogus (PL 90.647-652). Este tratado, bem como o que o acompanha na PL, De divisionibus temporum, formam parte de uma obra maior composta na Irlanda no século VII. Cf. WALLIS, Faith – op. cit., p. xxiii e nota 18 (onde acrescenta bibliografia). A estrutura do texto de Rábano pode, então, ser influência do tratado de Beda.

8 F. Wallis diz que é justamente por esta razão que o tema não tem despertado grande interesse científico; não só não tem antecedente no cânone antigo das ciências, como não tem sucessor. Cf. WALLIS, Faith – op. cit. p. xviii.

9 Cf. WALLIS, Faith – op. cit. p. xxxiv.

10 in WALLIS, Faith – op. cit. p. xxxv. Tradução da autora.

11 De acordo com o que explica F. Wallis e que S. McClusluskey também refere, ao dividir 365,2422 dias por 29,5306 (em média, uma vez que pode haver alterações mês a mês decorrentes da força gravitacional da Terra e do Sol), obtém-se o resultado de 12,3683, que será o número de lunações num ano solar. Ora aproximadamente de três em três anos deve introduzir-se um mês lunar, fazendo com que o ano solar tenha 13 lunações. O objectivo de um calendário luno-solar cíclico é, portanto, encontrar um conjunto de anos solares que consiga acomodar um conjunto de lunações completo, de forma a que as datas possam ser confrontados com o calendário solar, em qualquer um dos seus 365 dias. Tal calendário é impossível porque a fracção decimal do excesso dos meses lunares (3683) é um número irracional e não é possível comutar para uma fracção comum. Todavia, é possível chegar a soluções aproximadas, como intercalar 3 meses lunares sobre 8 anos, 4 meses lunares sobre 11 anos, 7 sobre 19 anos ou 31 sobre 84 anos. Estas são as bases do ciclo de 8 anos (octaeteris), dos vários ciclos de 84 anos e do ciclo de 19 anos. O que se procurava era, enfim, um sistema matemático que permitisse correlacionar dois artificiais ciclos astronómicos regularizados, prejudicando o mínimo possível os fenómenos naturais. Todos estes sistemas foram usados na Antiguidade, sendo que o de 19 anos é o mais preciso e o mais recorrente. in e cf. WALLIS, Faith – op. cit. pp. xli-xliii e cf. MCCLUSKEY, Stephen - Astronomies and Cultures in Early Medieval Europe. USA: Cambridge University Press, 1998, pp. 80-84.

12 Cf. WALLIS, Faith – op. cit. p. xx.

13 Veja-se WALLIS, Faith – op. cit. nota 62, pp. xxxviii-xxxix. Nesta página, tal como na anterior, dá conta das datas específicas da celebração, dos processos para determinar o equinócio, dos limites definidos por Roma e da preocupação em evitar que a Páscoa coincidisse com a festa da fundação da cidade, a 21 de Abril. Na nota 49 (p. xxxv), F. Wallis refere duas antologias de textos patrísticos sobre o tema e respectivas controvérsias, úteis para o estudo da questão.

14 “These combinations (e.g. easter tables and tracts of computistical calculation) very shortly attracted to themselves works on arithmetic, astronomy, geography, chemistry and medicine. Moreover they gave rise to two of the most popular mediaeval literary forms, the annal and the martyrology”. in JONES, Charles W. – Opera de temporibus, Cambridge, Mass.: Mediaeval Academy of America, 1943 (pp. 2-122), p. 76. Citado a partir de RISSEL, Maria – op. cit. p. 22.

15 GRANT, Hardy – "Mathematics and the Liberal Arts". in The College Mathematics Journal. Vol. 30, Nº 2 (Março 1999), (pp. 96-105), p. 102.

16 A este respeito, veja-se a nota 1 da p. 21 de M. Rissel (op. cit.) que refere a existência, no período entre os séculos VIII e XII, de mais de 100 manuscritos de cálculo. Na nota fornece bibliografia relevante sobre o tema. Vejam-se, também, as observações iniciais de A. Cordoliani em “Une encyclopédie carolingienne de comput: les "Sententiae in laude compoti", in Bibliothèque de l'école des chartes. 1943, tome 104. (pp. 237-243), p. 237.

17 Consulte-se, a título de exemplo, a troca de correspondência entre Carlos Magno e Alcuíno ou a resposta de Dungal a Carlos Magno, sobre os eclipses do sol, em 810 (PL CV 447-458). Cf. MCCLUSKEY, Stephen – op. cit. pp. 132-133.

Para uma perspectiva sobre tratados, ou outros, sobre cálculo produzidos neste período, veja-se STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 171-175.

18 Citado a partir de STEVENS, Wesley – op. cit. p. 174.

19 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 174-176.

20 Sobre a epístola de Macário e a respectiva resposta de Rábano, confira-se RISSEL, Maria – op. cit. pp. 19-21.

21 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. p. 176.

22 Stevens propõe esta divisão discutindo a tripartição proposta por M. Rissel, bem como as fontes que atribui a cada capítulo. Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. p.178. e RISSEL, Maria – op. cit. pp. 30-40.

23 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 178-179.

24 Stevens refere que o tratado da contagem manual pode ser encontrado em vários manuscritos do início do séc. IX. Diz na nota 58: “The tract with which Hraban begins his discussion of finger-reckoning (VI, 4/15), inc: Tres digiti in sinistra manu..., is found in many manuscripts of the early ninth century; see Jones Bedae Ps 54 and TKr 1583. There are several versions and a large bibliography. (...)” in STEVENS, Wesley – op. cit. p. 179 nota 58. Ver também p. 179 e nota 59.

Para a descrição dos capítulos, cf. pp. 179-180.

25 De resto, sobrevivem de Fulda desenhos de planisférios e outros instrumentos de observação estelar. Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 182-183, nota 9 e nota 64. Acerca da percepção globular da terra veja-se a nota 63 do autor.

26 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 180-187.

27 in e Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 183-187.

28 in e Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. ibidem.

29 Ibidem cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 187-188.

30 Sobre norma rectitudinis ver STEVENS, Wesley – op. cit., p. 187 e nota 78.

31 Cordoliani refere que o tratado De computo de Rábano, assim como o de Alcuíno De bissexto e De cursu et saltu lunae, são simples adaptações do De temporum ratione de Beda: “La Renaissance carolingienne a été une période de diffusion des conaissances scientifiques bien plus que d’elaboration de théories nouvelles. Dans chacun des arts libéraux, on a vu apparaître des traités généraux, des encyclopédies, ayant pour but de permettre aux clercs et aux laïques d’acquérir un ensemble suffisant de conaissances. C’est la pensée à laquelle ont obéi Alcuin et Raban Maur en composant leurs traités de comput, simples adaptations du De temporum ratione de Béde.” in CORDOLIANI, A. – “Une encyclopédie carolingienne de comput: les "Sententiae in laude compoti", in Bibliothèque de l'école des chartes. 1943, tome 104. (pp. 237-243). p. 237.

Não obstante ser visível a proximidade entre estes textos e o reconhecido o interesse da corte carolíngia mais em aclarar dúvidas e uniformizar as práticas, no caso as observâncias pascais, do que propriamente inovar nesta matéria, a obra de Weasley Stevens a que se tem vindo a recorrer, bem como a de M. Rissel, questionam sem esforço a putativa falta de originalidade compositiva de Rábano Mauro.

32 MCCLUSKEY, Stephen – op. cit. p. 150.

33 GRANT, Hardy – op. cit. pp. 102-103.

34 MCCLUSKEY, Stephen – op. cit. p. 207.

35 MCCLUSKEY, Stephen – op. cit. ibidem.

36 Cf. WALLIS, Faith – op. cit. p. xcvii e nota 277.

37 Ms. B London, British Library, Additional 10801 (séc. XVII), transcrito de um exemplar de Fulda, f. 1-59v. Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. p. 190.

38 Manuscritos do século XII A: Avranches, Bibliothèque municipale 114 (séc. XII, Normandia?), f. 98-132; O: München, Bayerische Staatsbibliothek, Codex lat. 17145 (séc. XII 12, Schäftlarn/Baviera), f. 41-56v; V: London, British Library, Cotton Vitellius A. (séc. XI ou XII, Sul de Inglaterra), f. 10v-40v; H: London, British Library, Harley 3092 (séc. XI, 1ª metade do século XII?, Fulda?) ff. 29r-39v; L: Leiden, Bibliothek der Rijksuniversiteit, B.P.L. 191 BD (séc. XII, zona central do Reno), f. 1-26v. Cf. WALLIS, Faith – op. cit. pp. 190-194.

39 Cód. Alc. 426 fl. 1v-155v; Santa Cruz 8 fl. 1-105v.

40 Cód. Alc. 426 fl. 155v-220; Santa Cruz 8 fl. 105v-155.

41 Cód. Alc. 426 fl. 220-249; Santa Cruz 8 fl. 155-177.

42 Cód. Alc. 426 fl. 249-250v; Santa Cruz 8 fl. 177-178v.

43 Cód. Alc. 426 fl. 250v-252; Santa Cruz 8 fl. 178v-180.

44 Cód. Alc. 426 fl. 252v-258.

45 Cód. Alc. 426 fl. 258v.

46 Cód. Alc. 426 fl. 259.

47 O Alc. 426 apresenta encadernação primitiva, de camisa com dupla cobertura em pele e fecho no plano posterior. Não sendo regra, é tradição mediterrânica. Aires do Nascimento classifica-a como sendo de articulação por nervo sigmático tipo B (tal como o 424 e o 425, por exemplo), com um furo vertical junto à margem do dorso. Cf. NASCIMENTO, A. A.; DIOGO, António Dias – op. cit., pp. 60-61, 84-85. Quanto ao Santa Cruz 8, a encadernação é considerada do tipo Santa Cruz, com planos em tábua e cobertura em pele. Cf. Catálogo dos Códices...,pp. 75-77.

48 Com excepção, no Alc. 426, do caderno 19, que apresenta uma irregularidade, pois há um folio com anotações cortado e um outro fixo no talão, provavelmente resultado de algum erro na cópia, e embora haja pequenas alterações face aos fólios precedentes (os anteriores empregam pequenas iniciais rubricadas, a verde e azul e este tem apenas rubricadas), não são em número suficiente para que se suponha um corte e acrescento, posterior à data da cópia do manuscrito.

49Cf. AMOS, Thomas; BLACK, Jonathan (co-autor) – op. cit., pp. 199-202.

50 Cf. WITT, Ronald G. – The two latin cultures and the foundation of renaissance humanism in medieval italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, pp. 259-261.

Um dos aspectos particulares desta obra, segundo Marinoni, será o facto de haver cada vez mais pessoas de categorias sociais distintas (ligadas ao comércio, à vida pública, política) a querer aprender latim, o que estará na origem do espírito de síntese desta gramática, que dispensa alguma da erudição das anteriores, tornando a sua utilização mais prática. Cf. MARINONI, Augusto - "Du glossaire au vocabulaire", in Quadrivium 9, 1968, pp. 127-141.

51 Ibidem.

52 Sobre este acrescento codicológico na Gramática de Donato veja-se: AMOS, Thomas; BLACK, Jonathan – op. cit. p. 201.

53 Cf. ibidem p. 202.

54Rabani Mogotiacensis Episcopi De computo”. In Corpus christianorum continuatio mediaevalis 44, Turnhout: Brepols, 1979, pp. 205-208.

55 Cf. STEVENS, Wesley – op. cit. pp. 196-197.

56Rabani Mogotiacensis Episcopi De computo”... p. 207, III 7-9.

57 Cf. MIRANDA, Adelaide – op. cit. p. 184.

58 Manuscrito G: Rabanus Maurus De Computo. Sankt Gallen, Stiftsbibliothek 878 (c. 825, Reichenau), fl. 178-240. Consultado em linha em: http://www.e-codices.unifr.ch/en/description/csg/0878

59 Cf. MEIRINHOS, José (org. com Agostinho Figueiredo Frias e Jorge Costa) – Santa Cruz de Coimbra: A cultura portuguesa aberta à Europa na Idade Média/ The Portuguese Culture Opened to Europe in the Middle Ages. Porto: Biblioteca Pública Municipal, Porto 2001, p. 264.

60 Cf. MEIRINHOS, José – op. cit. ibidem.

61 In MEIRINHOS, José – “A Filosofia no Século XII, Renascimento e resistências, continuidade e renovação” in Mirandum : estudos e seminários, vol. 4, n.º 9, Jan./Jun. 2000, pp. 51-74. Disponível em: http://www.hottopos.com.br/mirand9/meirin.htm

62 Há 17 variantes que coincidem com as do ms. L; 14 que coincidem com o ms. H e cerca de 17 próprias.

63 Cf. Stevens – op. cit. p. 192

64 Cf. MEIRINHOS, José – op. cit. ibidem.

MIRANDA, Adelaide – op. cit. pp. 184-186; MIRANDA, Adelaide – A iluminura de Santa Cruz no tempo de Santo António. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1996, p. 52.

65 Cf. MIRANDA, Adelaide – A iluminura românica em... pp. 60-61 e p. 85. e MIRANDA, Adelaide – A Inicial Iluminada Românica nos Manuscritos Alcobacenses. Dis. de Mestrado, Lisboa: F.C.S.H., 1984.
p. 77 e 188.

66 A. Miranda refere, a propósito da iluminura do fundo de Santa Cruz de Coimbra, que, no final do século. XII, se cria um tipo de inicial que fará escola no scriptorium:“letras articuladas em torno de espaços não pintados, que utilizam como cores o vermelho, azul e mais raramente aguadas laranja nos fundos de ornamentação”. Os manuscritos Santa Cruz 5, 8, 34 e 40, partilham estas características. in MIRANDA, Adelaide – A iuminura românica em... p. 428, mas também na p. 388 e nota 755. Ver ainda p. 185.

67 Cf. MIRANDA, Adelaide – op. cit. p. 185.

68 Cód. Alc. 426 fl. 3; Santa Cruz 8 fl. 1v.

69 Cód. Alc. 426 fl. 83v; Santa Cruz 8 fl. 53.

70 CORDOLIANI, A – “A propos du chapitre premier du De temporum ratione, de Bede”, in Le Moyen Age. Revue D’Histoire et de Philologie, nº3-4, 1948, pp. 209-223.

71 Há, no entanto, alguns manuscritos de Beda e de Rábano que são iluminados, mais raro no último do que no primeiro. De Beda há, por exemplo, o ms. Paris, BNF, Latin 7418, do séc. XIV, Beda De temporum ratione. Não está digitalizado, a ficha na BNF é muito sumária e não descreve a decoração, não existem imagens disponíveis em catálogos online, mas há imagens a preto e branco em CORDOLIANI, A. – “Études de comput” in Bibliothèque de l’école des chartes, tome 103, 1942, pp. 61-68. Assim, neste ms., encontram-se, nos fólios 3, 4 e 5r, cinquenta e cinco figuras de cálculo manual que acompanham o capítulo primeiro do tratado de Beda: De computo vel loquela digitorum. De acordo com Cordoliani, cada uma dessas figuras representa um homem que, no meio dos dedos da mão, mostra os números do cálculo decimal. Cordoliani acrescenta que este tipo de representação é raro. Cf. CORDOLIANI, A. – “Études de comput...” p. 62 e nota 2.

Outros manuscritos que recorrem à contagem dos dedos: Paris, BNF, Latin 7418; Vaticano, BAV, Palat. latin. 1447; Palat. latin. 247; Palat. latin. 299, Palat. latin. 642 e London, British Library, Cotton Vit. A (XII), ou as figuras dos fólios de guarda do Paris, BNF, Latin 3352 B (XIV). Cf. CORDOLIANI, A. – “Un manuscrit de comput ecclesiastique mal connu de la Bibliotheque Nationale de Madrid” in Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, Tomo LVII, 1, Madrid, 1951, pp. 8 e 9.

72 Veja-se fig. 1.

73 Veja-se fig. 2.

74 Veja-se fig. 3.

75 Frei Manuel dos Santos – Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça. BN. Alc. 307, Fls. 1-35. Leitura, introdução e notas por Aires Augusto do Nascimento. Alcobaciana 3, s.d.

76 Respectivamente: TT, Mosteiro de Alcobaça (sala 25) maço 19, doc. 453; ibid., maço 23, doc. 539; ibid. livro 4, fº 124r-126r. É a Iria Gonçalves que se deve a descoberta destes três documentos (1408, 1408 e 1437), depois referidos por Virgínia Rau, assim permitindo conhecer a composição das bibliotecas. Em “Leituras Cistercienses do século XV”, José Mattoso apresenta uma leitura de conjunto relacionando e interpretando os três fundos. cf. MATTOSO, José – “Leituras Cistercienses do século XV”, in Religião e Cultura na Idade Média portuguesa. Lisboa: INCM, 1997, pp. 475-514. Sobre as listas de livros, ver p. 475, nota 4, 5 e 6. Ver também: MARQUES, Maria Alegria – Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições Colibri, 1998, pp. 239-272.

77 Cf. MARQUES, Maria Alegria – op. cit. p. 269 e MATTOSO, José – op. cit. pp. 510-511.

78 Cf. MATTOSO, José – “A cultura monástica em Portugal (875-1200)” in op. cit. p. 493.

79 “Outro livro grande dos reis (n.42); outro livro dos reis (n.48); outro livro muito grande que fala dos reis e dos Evangelhos (n. 61); um livro grande com os cinco livros dos reis (n.39); outro livro grande com os cinco livros dos reis (n. 58)” in MATTOSO, José – “Leituras Cistercienses do século XV”, in Religião e Cultura na Idade Média portuguesa. Lisboa: INCM, 1997, p. 482 e pp. 513-514.

80 Cf. MATTOSO, José – op. cit. p. 482.

81 Além disso, atestando a parca, mas existente, circulação de obras de Rábano em Portugal, José Mattoso refere que o autor que redigiu a Vida de Santa Senhorinha, talvez monge de Refojos de Basto, pode ter baseado a sua referência às rãs como símbolo do diabo em Rábano Mauro, a partir de De universo libri viginti duo VIII 2. Não há, porém, qualquer registo sobre a circulação ou existência desta obra em fundos portugueses. Cf. MATTOSO, José – “A cultura monástica em Portugal (875-1200)” in op. cit. pp. 387-388, nota 77 e p. 492, nota 41.

Outros documentos consultados onde não se encontraram quaisquer registos considerados relevantes: Testamento de D. Mumadona (de 959) ao Mosteiro de Guimarães; Primeira Livraria de Santa Cruz de Coimbra: “Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, recebeu o seguinte presente de livros do Mosteiro de Sani Rufo”; Livraria do Bispo do Porto, D. Vaco (1331); Biblioteca do cabido do Porto (1331); Livraria do Bispo D. Vicente (1334); Livraria de Vasco de Sousa (1359); Livraria da corte do rei D. Dinis; Constituição da Biblioteca do Santo Contestável. Verifica-se queo item 41 corresponde, provavelmente, ao Comentário ao Livro de Reis de Rábano Mauro iluminado e com uma útil descrição das suas características físicas, nomeadamente a encadernação de então. Cf. - Tragédia de la insigne Reina Doña Isabel. Publicação e prefácio de Carolina Michaelis de Vasconcelos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922, pp.130-131.

82 “Hij sunt libri Monasterii Sancti Vicencii” cód. 707, fº 92, BPMP. Cf. CAEIRO – op. cit. pp. 31-34 e notas.

83 in Catálogo dos Códices... p. 28 e 67.

84 In CRUZ, A. – Santa Cruz de Coimbra na Cultura Portuguesa da Idade Média. Porto, 1964, pp. 184-185.

85 Cf. CAEIRO – op. cit. p. 83 que refere os estudos de Pierre David e A. Cruz.

86 in CAEIRO – op. cit. p. 84.

87 Santa Cruz 34 BPMP, no verso do último fólio. Veja-se CAEIRO, – op. cit. p. 35, nota 62 (onde menciona concretamente a alusão de Diogo Kopke e a transcrição e estudo por CRUZ, A. – Santa Cruz, pp. 192-209.

88 Lista de livros entregues a Mestre Gil: “CC.XVIIJ. in mense Julij Presbiter [...] Iohan- / nes Cancellarius iussu domnj Prioris d. Didacj / dedit magistro Egidio tridecjm libros quorum / 1us nonus ab Almanzor. / Ysidorus ad regem Siburtum De Naturis / Alcabitius obtimus liber de Astrolomia / Macer cum Lapidario et cum suis apendicijs / et cum Mapa Clauicula ad aurum faciendum et / cum [...] ad plantandas arbores et cum multjs / experimentis. / Liber circulj celestis spere. / Libri Fiscales duo optimj. / Duo libri de Geometria magnj / Duo libri de Retorjca <scilicet> Tulij. / Liber Compotj <scilicet> / Liber de Astronomia (...)”. Cf. CAEIRO – op. cit. p. 35; MATTOSO, José – Obras Completas. Portugal Medieval. Novas interpretações. Vol. 8, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 173; GOMES, Saúl António – “Livros de ciência em bibliotecas medievais portuguesas” in Ágora. Estudos Clássicos em Debate 14.1 (2012), p. 16.

Sobre os códices, ver CRUZ – op. cit. pp. 201-207 e notas.

89 In GOMES – op. cit. p. 17.

90 Igualmente bem documentada em matéria científica (matemática, astronomia e medicina) estava a Sé de Coimbra; refere a este propósito Saúl A. Gomes: “Nesta biblioteca catedralícia, entre os Livros ditos de Magister Parisius, cerca de 1175, encontravam-se os seguintes volumes: Abaco Librum arismetice Librum de astronomia Philosophiam magistri Vilielmi [Philosophia mundi, de Guilherme de Conches (+1145)] Praticam de medicini Dietas particulares, alias Dietas Librum Constantini (Breviarium Constantini dictum Viaticum)” in GOMES – op. cit. p. 18.

91 MATTOSO, José – Obras Completas... pp. 173-174.

92 Para tal, e só a título de exemplo, poder-se-ia recuperar os estudos de Aires do Nascimento sobre a encadernação do fundo de Alcobaça. Assumindo uma certa contemporaneidade no recurso a uma mesma técnica, teria interesse comparar os vários códices que apresentam o mesmo sistema de encadernação e afinidades decorativas com os do fundo crúzio, nas obras coincidentes, e como um todo. Como referido na nota 1, A. A. do Nascimento data os manuscritos 424 a 426 do século XII e integra-os no conjunto sigmático B, que incorpora 19 códices. A sua leitura interpretativa do conjunto sai reforçada pelo facto do grupo B se caracterizar por uma grande homogeneidade formal, compreendendo autores e obras, assim insistindo na ideia de um corpus cujas características seriam complementares ao grupo A, de sistema de articulação por laço de volta inteira. Não encontrando obras repetidas entre os dois grupos, pode pensar-se em circunstâncias distintas (sequenciais ou não) de produção, de uma comunidade organizada que planeia e acrescenta paulatinamente a sua biblioteca. Cf. NASCIMENTO, Aires Augusto do; DIOGO, António Dias – op. cit. pp. 86-88.

Também os trabalhos de Adelaide Miranda sobre a inicial iluminada de Santa Maria de Alcobaça e de Santa Cruz de Coimbra, aqui recorrentemente citados, e que provam afinidades ornamentais entre códices, nalguns casos com clara correspondência com os conjuntos de encadernação propostos por A. A. Nascimento, orientados para estas questões, analisando o texto e a imagem em conjunto, podem trazer mais pistas às hipóteses que aqui se foram levantando.

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