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Angiologia e Cirurgia Vascular

Print version ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.16 no.3 Lisboa Sept. 2020

 

EDITORIAL

Análise da gestão e atividade clínica do serviço de angiologia e cirurgia vascular do CHUP durante a pandemia COVID-19, no período de 1 de março a 31 de maio de 2020, e lições aprendidas

Analysis of the management and clinical activity of the angiology and vascular surgery department of CHUP during the COVID-19 pandemic, from March 1 to May 31, and lessons learned

Rui Machado1, Gabriela Teixeira1, Daniel Mendes1, Rui Almeida1

1Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular; Centro Hospitalar Universitário do Porto; Porto; Portugal

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

É incontornável o impacto de uma pandemia a nível social, pessoal e económico. Embora esta tenha atingido cada um de nós, o dano que provoca a nível individual depressa se vê submerso pela onda global de caos gerada. Nada ficou impune, e todos, independentemente da idade ou profissão, viram o seu quotidiano alterado.

O propósito desta adenda é a descrição das alterações levadas a cabo no Centro Hospitalar Universitário do Porto e no Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular durante os meses de março, abril e maio com particular incidência no estado de emergência.

A ameaça global do vírus SARS-CoV-2 foi formalizada a 30 de janeiro de 2020 com a declaração de Emergência de Saúde Pública Internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Contudo, na Europa, esta só se tornou real quando atingiu impiedosamente o norte de Itália, no final de fevereiro. Com um ritmo de expansão exponencial, e num mundo quase sem fronteiras, foi inevitável a sua importação para Portugal. O boletim epidemiológico diário da Direção-Geral da Saúde inaugurou-se a 2 de março de 2020 com a comunicação dos dois primeiros doentes infetados no norte do país. A 11 de março foi declarada Pandemia pelo vírus SARS-Cov-2 pela OMS, justificada pelos níveis alarmantes de propagação e infeção. Com perspicácia e capacidade de aprender com os erros dos outros, os portugueses souberam jogar na antecipação. A primeira morte foi confirmada a 16 de março em Lisboa e a 19 de março foi decretado o primeiro de três períodos de Estado de Emergência Nacional (19 de março a 2 de maio de 2020), sucedido pelo Estado de Calamidade Pública (3 de maio até à data de submissão desta adenda).

A ação do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP) moveu-se em simultâneo quer no âmbito da prevenção, quer no combate ao vírus. Com um período de adaptação inerente ao desconhecimento do impacto da pandemia e que cresceu à medida que se compreendia a forma de propagação do vírus, e se repunham stocks de máscaras cirúrgicas, máscaras FFP2 e restante material de proteção individual (EPI), o CHUP tentou sempre garantir o cumprimento das medidas de prevenção aconselhadas pela Direção Geral de Saúde e, sempre que possível, ir mais além. Assinala-se como política de controlo de infeção intra-hospitalar a adoção da medida do uso obrigatório de máscara cirúrgica dentro de instalações hospitalares no dia 18 de março, e o início a 24 de março do rastreio sistemático a todos os doentes admitidos para internamento. No que concerne ao combate direto à pandemia COVID-19, o CHUP teve um papel ativo no diagnóstico, internamento (domiciliário, convencional ou em unidade de cuidados intensivos) e no apoio a outras instituições da cidade e da região. Uma parte importante das instalações, equipamentos e profissionais foram desviados das suas funções habituais, com cerca de 140 camas convencionais e 42 camas de cuidados intensivos cativadas pelo plano de contingência. Ao todo, criaram-se três áreas de decisão clínica para diagnóstico, orientação e seguimento de doentes em regime ambulatório; quatro enfermarias exclusivas a doentes infetados, nos Serviços de Infeciologia/Pneumologia, Medicina B, Medicina D e Neurocirurgia; e três unidades de cuidados intensivos. Serviços como os de Urologia, Fisiatria e Cirurgia Geral viram algumas das suas camas alocadas a doentes não infetados das especialidades acima citadas. Nunca foi atingida a capacidade máxima de internamento de doentes infetados. O CHUP encontrava-se preparado para disponibilizar até 164 camas em internamento convencional e 64 camas de doentes com necessidade de suporte ventilatório invasivo, contudo, pela estabilização dos números e o controlo da pandemia, ficou na fase 4 de 6 etapas do seu plano de contingência. O CHUP colaborou ainda ativamente através do suporte logístico e de recursos médicos e humanos na construção do hospital de campanha localizado no Pavilhão Rosa Mota (em funcionamento de 14 de abril a 15 de maio).

No Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular

Recursos Humanos

Durante o período de contingência, o Diretor de Serviço, Prof. Dr. Rui Almeida, e o Assistente Hospitalar Sénior, Prof. Doutor Rui Machado, estiveram diariamente em presença física no Serviço para manter a organização, apoio às atividades clínicas e assegurar a continuidade dos cuidados médicos/ cirúrgicos. Durante o período de 19 de março a 2 de maio foi feita a divisão do Serviço, inicialmente em dois grupos que realizavam trabalho alternado, cujos responsáveis foram o Dr. Arlindo Matos e a Prof. Doutora Ivone Silva, e posteriormente em três grupos de trabalho liderados pelo Dr. Arlindo Matos, Dr. Pedro Sá Pinto e Dr. Carlos Pereira. Esta divisão foi feita mantendo-se a escala de urgência, e permitiu manter a capacidade assistencial e minimizar os riscos de contágio. Manteve-se ainda em serviço permanente diário o Enfermeiro Chefe Renato Mota a Assistente Técnica Joana Coelho e a Assistente Operacional Cidália Gonçalves. Durante este período nenhum elemento do Serviço (médicos, enfermeiros ou assistentes técnicos operacionais) testou positivo para o vírus SARS-CoV-2, assim como nenhum doente contraiu o vírus enquanto internado.

De 13 de abril a 31 de maio, após entendimento entre Prof. Dr. Rui Almeida o Prof. Doutor Rui Machado e o Diretor de Serviço de Medicina Interna, Prof. Dr. João Correia, todos os internos de formação específica (IFE) de Cirurgia Vascular foram destacados para colaborar com esta especialidade por escala semanal rotativa. Os IFE deram apoio nas enfermarias de Medicina Interna Não-COVID, na avaliação clínica e seguimento de doentes aí internados.

Internamento

O Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular foi dos poucos serviços hospitalares que conseguiu manter ao longo de todo o período as suas vinte e cinco camas. Embora a capacidade de internamento tenha sido também afetada de forma global pela redução do internamento hospitalar de outros Serviços com os quais normalmente colabora, ainda assim a taxa de ocupação manteve-se superior a 100%.

O rastreio do vírus SARS-CoV-2 passou a ser obrigatório a todos os doentes antes da admissão. Para minimizar o risco de contágio de potenciais portadores assintomáticos foi desenvolvido um circuito que permite aos doentes com internamento programado fazerem a colheita ainda antes de entrarem nas instalações hospitalares - “Covidrive”. O primeiro circuito de rastreio em regime de “drive-thru” em Portugal foi criado no Porto, em infraestrutura anexa ao Hospital do Santo António. Os doentes deslocam-se até ao ponto de recolha onde se procede à realização de zaragatoa nasofaríngea, sem saírem da viatura e sem contacto físico com os profissionais de saúde. Os resultados são enviados diretamente aos doentes e às autoridades de saúde pública, e o internamento é orientado de acordo com os resultados - em alguns casos os doentes são admitidos no internamento em confinamento enquanto aguardam o resultado. Esta atitude exigiu grande articulação entre as diferentes entidades envolvidas, assim como ao adequado e atempado planeamento de internamento. De forma extraordinária, durante este período os doentes programados para a realização de procedimentos angiográficos passaram a ser admitidos no dia anterior à realização da angiografia. Relativamente aos doentes provenientes do Serviço de Urgência, a colheita realiza-se no espaço físico da urgência, à responsabilidade da ADC-19, e só após a publicação dos resultados os doentes sobem para a enfermaria.

Bloco Operatório

Para cumprir as medidas de isolamento e pela necessidade de aumentar o número de camas com ventiladores, houve necessidade de conversão do Bloco Central de Ortopedia em bloco operatório para tratamento de doentes COVID+ e do Bloco Neoclássico numa unidade de cuidados intensivos, respetivamente. As atividades em ambos foram asseguradas pela equipa de Anestesia e de Enfermagem do bloco operatório. O Bloco Central passou a receber toda a atividade cirúrgica eletiva e urgente de todas as especialidades do Hospital, em claro prejuízo da atividade cirúrgica eletiva normal, o que motivou grande competitividade pela obtenção das salas cirúrgicas. O bloco operatório de Cirurgia de Ambulatório esteve encerrado em grande parte deste período.

A distribuição da atividade no Bloco Central foi gerida semanalmente. Mesmo durante a fase mais crítica, a Cirurgia Vascular dispôs de três a sete períodos de cirurgia programada por semana. A partir de dia 4 de Maio, altura em que foi decretado o início gradual da atividade cirúrgica programada, Cirurgia Vascular passou a ter seis períodos fixos de cirurgia programada no Bloco Central (lembrar que em período normal antes da pandemia dispunha de sete períodos) e o Bloco de Ambulatório reiniciou progressivamente a sua atividade, iniciando com três tempos por semana, para a retoma progressiva do tratamento de varizes dos membros inferiores, realização de acessos vasculares e simpaticectomias.

Todos os doentes que dão entrada no Bloco Central Não-COVID são portadores de testes negativos recentes para o vírus SARS-CoV-2. Na patologia emergente, e no desconhecimento de infeção ou não pelo vírus, os doentes são operados no Bloco Central COVID, com as medidas de prevenção que aqui se regem. Apesar de se terem operado alguns doentes de Cirurgia Vascular neste bloco nesta condição de presunção de possíveis positivos (que depois não se confirmaram), até à data apenas um doente COVID+ confirmado foi intervencionado, por isquemia crónica ameaçadora de membro. Será importante destacar os inconvenientes da utilização do EPI no bloco operatório, nomeadamente o calor na sala, agravado pelo vestuário, respetivos acessórios (duas toucas, cógula, viseira, óculos, dois pares de luvas) e ainda da proteção radiológica integral; a dificuldade na comunicação dentro da sala por causa dos respiradores FFP2, numa sala mais ruidosa que o habitual pela presença do filtro de partículas (Hospi-Gard®); e o uso de ortóteses ou suporte visual que está prejudicado pela condensação provocada pela respiração com filtro e a presença da viseira.

As indicações para procedimentos cirúrgicos durante este período seguiram as recomendações emitidas pelo Colégio da Especialidade, nomeadamente o tratamento dos doentes com patologia vascular emergente, doentes com estenose carotídea sintomática > 50%, aneurisma da aorta abdominal > 8cm, isquemia do membro com risco de amputação iminente, assim como outras situações clinicamente relevantes e que pusessem em risco a vida ou integridade física do doente.

Os doentes infetados com o vírus Sars-Cov2 e patologia vascular com indicação cirúrgica não emergente e situação clínica estável ficaram sob o melhor tratamento médico enquanto aguardavam teste negativo, no domicílio ou nas enfermarias dedicadas aos doentes COVID+.

Angio-Radiologia

Durante todo o período foi possível manter os procedimentos endovasculares de Cirurgia Vascular na sala de Angio-Radiologia a 66,6% da sua atividade normal. Até à data, toda a atividade aqui desenvolvida serviu para tratamento de doentes com isquemia crónica ameaçadora de membro. A mesma premissa relativa a testes de rastreio COVID prévios ao procedimento era também aplicada na Sala de Angio-Radiologia.

Na urgência

A escala de urgência não sofreu qualquer alteração em relação ao período pré-COVID, salvo substituições pontuais

Foram ajustadas as indicações para realização de eco doppler na urgência a doentes com queixas neurológicas dependentes de estenose carotídea, suspeita clínica de trombose venosa profunda com D-Dímeros positivos e isquemia aguda do membro. Para a realização dos exames, o cirurgião vascular em serviço dispunha de máscara FFP2, óculos, viseira, capa protetora para ecógrafo e manga para a sonda. Os exames passaram a ser efetuados preferencialmente com o ecógrafo portátil na Urgência Geral, na “Pequena Cirurgia” (e não na sala com ecógrafo fixo localizada no átrio do internamento).

Consulta Externa

No dia 15 de março foi emitido pelo Diretor da Consulta Externa um documento com uma Medida de Exceção para realização de consulta sem a presença do doente. Assim, a partir desta data, cada médico ficou responsável por rever a sua agenda e selecionar os doentes que poderiam ser reagendados para data posterior ou avaliados em consulta não presencial (“telefono-consulta”) sem prejuízo para a sua saúde, e os que exigiam consulta presencial. Diariamente, um médico do Serviço foi destacado para estar no edifício da consulta externa, para a realizar, tendo sido criada para este efeito uma agenda da especialidade. Durante este período, foram realizadas um total de 37% das consultas. A partir de 7 de maio, todos os médicos voltaram a assumir o seu período de consulta, estando autorizados a ver em presença física 40% dos doentes das agendas base (inclui primeiras consultas e subsequentes).

A consulta aberta de pé diabético manteve-se em regime presencial durante todo este período, tendo sido uma porta de entrada no sistema do doente com isquemia critica de membro extremamente importante.

Atividade Cirúrgica

Face ao previamente citado, com a manutenção das camas e da atividade cirúrgica urgente e eletiva prioritária, a produção cirúrgica durante todo este período foi muito elevada. Para estabelecer uma comparação da atividade cirúrgica no período de emergência, pode-se analisar no quadro 1 e na figura 1 o número de procedimentos cirúrgicos e endovasculares realizados entre 16 de março e 3 de maio nos anos de 2019 e 2020. A diferença na produtividade foi quase exclusivamente pela quebra no tratamento cirúrgico e endovascular da doença venosa crónica e pela diminuição significativa na área de transplantação renal. Destacar ainda que no ano de 2019, 23,4 das cirurgias foram realizadas em contexto de urgência, enquanto em 2020 esta proporção sobe aos 48,0%.

 

 

 

 

 

 

 

Atividade Científica

Sabendo a importância do registo e análise de dados, para aprendizagem e compreensão do panorama atual e para definição e redefinição de estratégias para o futuro, o Serviço de Cirurgia Vascular aderiu ao estudo COVID-19 ESTUDO VASCULAR SERVICE (COVER): O impacto da pandemia COVID-19 na disposição, prática e resultados da Cirurgia Vascular. Este estudo multinacional, clínico, observacional e prospetivo, está a ser realizado em colaboração com o Departamento de Investigação dos Hospitais Universitários Coventry & Warwickshire, Reino Unido, e tem como objetivo compreender e avaliar o impacto da pandemia na prática vascular global e o efeito nos resultados para os doentes que recebem tratamento durante a pandemia.

Conclusão

A presença constante no Hospital das Chefias do Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular lutando pela disponibilidade de bloco operatório e de camas para internamento associado a presença de vias abertas de entrada do doente vascular no sistema através da consulta presencial de pé diabético e da consulta de cirurgia vascular geral e do serviço de urgência permitiu tratar um grande numero de doente com os critérios de gravidade definidos pela Ordem dos Médicos .

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Correio eletrónico: rmvasc@gmail.com (R. Machado).

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