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Angiologia e Cirurgia Vascular

versão impressa ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.13 no.1 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGO ORIGINAL

Acessos vasculares nos octagenários

Vascular accesses on octogenarian patients

Marta Reia1, Ana Afonso2, António Gonzalez2, Ana Gonçalves2, Maria José Ferreira2

 

1Serviço de Cirurgia Geral, Hospital Doutor José Maria Grande, Portalegre

2Serviço de Cirurgia Vascular, Hospital Garcia de Orta, Almada

 

*Autor para correspondência

 

RESUMO

Introdução: Os acessos vasculares utilizados na hemodiáliseemdoentes comdoença renalcrónica terminalenglobamas fístulas arterio-venosas (FAV) (proximais e distais), enxertos e os catéteres venosos centrais. Questiona-se se há vantagem e ou indicação para a obtenção de acesso vascular definitivo em doentes com idades mais avançadas, particularmente acima dos 80 anos. O objectivo do trabalho centra-se em demonstrar a exequibilidade e as vantagens dos acessos autólogos em doentes octagenários.

Material e Método: Análise retrospectiva de processos electrónicos dos doentes submetidos a realização de acesso vascular (FAV proximais, distais e enxertos), com idades > 79 anos. O período de tempo avaliado foi 01/01/2010 a 31/12/2015.

Resultados: A casuística dos 6 anos engloba 21 doentes. Da amostra, 52% são do sexo masculino e 48% do sexo feminino. A distribuição etária revela 10 doentes (82-84), 5 doentes (79-81), 5 doentes (85-88) e 1 doente (89-90) anos. Analisa-se a presença de factores de risco (FR) cardiovasculares (diabetes mellitus, dislipidémia e tabagismo), dos quais 35%: 2 FR, 24%: 3 FR, 23%: 1 FR e 12% nenhum dos considerados. Da amostra total, 67% apresentam diabetes mellitus, (57% não insulino-tratada e 43% insulino-tratada). Avalia-se o grau funcional da amostra utilizando a escala Katz, revelando 3 doentes com score 0, 9 doentes com score 1, 5 doentes com grau 2, 2 doentes com score 3 e 2 doentes com score 4. Relativamente à localização dos acessos, 40% FAVs distais, 35% FAVs proximais e 25% enxertos. Todos os doentes foram previamente estudados com ecodoppler para definição anatómica. Do total de cirurgias, 19% dos doentes (4 no total) necessitaram de um novo acesso mais proximal. Destacam-se como complicações 1 hematoma e 2 infecções da ferida operatória.

Conclusão: Este estudo demonstrou ser possivel realizar acesso vascular definitivo (fistula ou enxerto) em doentes octagenarios que iniciam dialise, sendo o status funcional um fator condicionante mais importante que propriamente a idade cronologica. Recomenda-se uma abordagem individualizada, com recurso mais liberal a acessos mais proximais ou mesmo protésicos, dada a menor esperança de vida dos doentes.

Palavras-chave: Fistulas arterio-venosas; octagenários; acesso autólogo

 

ABSTRACT

Introduction: The vascular access used in hemodialysis patients with chronic renal disease include the arteriovenous fistulae (AVF) (proximal and distal), grafts and central venous catheters. It is a question of debate if there is an advantage or indication to obtain definitive vascular access in patients with advanced age, especially over 80 years. The aim of the article focuses on demonstrating the feasibility and advantages of autologous accesses on octogenarian patients.

Material and Methods: Retrospective analysis ofelectronic records ofpatients undergoing vascular access (AVF proximal, distal and grafts), aged> 79 years. The time period was evaluated from 01/01/2010 to 31/12/2015.

Results: The sample of six years includes 21 patients. Of the sample, 52% are male and 48% female. The age distribution shows 10 patients (82-84), 5 patients (79-81), 5 patients (85-88) and 1 patient (89-90) years. The analysis of the presence of the cardiovascular risk factors (RF) (diabetes mellitus, smoking and dyslipidemia), of which 35%: 2 RF; 24%: 3RF; 23%: 1RF; 12% none of the considered. Of the total sample, 67% had diabetes mellitus (57% non-insulin-treated and 43% insulin-treated). The evaluation of the functional status of the sample using the Katz scale, showed 3 patients with score 0, 9 patients with score 1, 5 patients with score 2, 2 patients with score 3 and 2 patients with score 4. For the location of the access, 40% distal AVF, 35% proximal AVF and 25% grafts. All patients were first tested with Doppler ultrasound for anatomic definition. From all surgeries, 19% of patients (4 in total) required a new more proximal access. It stands out as complications, one hematoma and two surgical infections.

Conclusion: This study proved that is possible to achieve permanent vascular access (fistula or graft) in octogenarian patients starting dialysis, and that the functional status is a more important determinant than the chronological age”

It is recommended an individualized approach, with more liberal use of proximal or prosthetic access, given the shorter life expectancy of patients.

Keywords: arteriovenous fistulae; octogenarian; autologous access.

 

INTRODUÇÃO

Um acesso vascular é uma via de acesso à circulação, que neste contexto se obtém para a possibilidade de realização de hemodiálise(1), em doente com doença renal crónica terminal. Estes doentes apresentam-se já na fase final da sua doença renal crónica, caracterizada pela manifestação de sinais e sintomas que caracterizam a síndrome urémico — anorexia, náuseas, vómitos, pericardite, neuropatia periférica e alterações do sistema nervoso central(2).

Os acessos vasculares utilizados utilizados na hemodiálise são as fístulas arterio-venosas (FAV) (proximais e distais), enxertos e os catéteres venosos centrais(1).

Os acessos autólogos (FAV's) são os acessos preferencialmente utilizados, pela menor morbilidade associada, pela maior durabilidade quando comparadas com os outros acessos acima descritos(3), bem como pela menor taxa de eventos trombóticos(4) após maturação.

Questiona-se se há vantagem e ou indicação para a obtenção de acesso vascular definitivo com construção de FAV ou enxerto em doentes com idades mais avançadas, particularmente acima dos 80 anos, assunto que aparece pouco explorado na literatura internacional, com resultados disponíveis pouco concordantes(6–14), apesar da crescente prevalência de doentes idosos com doença renal crónica terminal, a necessitar de diálise(3,5,15,16).

A escolha do melhor acesso para os doentes idosos permanece desafiante, com dificuldade em contrabalançar os riscos e benefícios numa população com comorbilidade acentuada e baixa esperança de vida(15).

O factor “idade” associa-se frequentemente ao decréscimo de patência primária e secundária, e diminuição da taxa de maturação das FAV's e dos enxertos, mas descreve-se uma menor mortalidade ajustada favorecendo as fístulas quando comparadas aos catéteres, apesar da maior tendência para a aplicação destes(15).

Não obstante, os resultados menos favoráveis apontados às FAV's nos doentes idosos, há a evidência de que a maior parte dos problemas encontrados podem ser corrigidos e/ ou atenuados por equipas multidisciplinares dedicadas, pela referenciação precoce destes doentes a um nefrologista, com decisão atempada quanto ao melhor acesso vascular, realizado por um cirurgião/centro experiente(16).

Os objectivos deste estudo passam então pela demonstração da exequibilidade dos acessos autólogos em doentes octagenários, e a comparação dos resultados obtidos com os estudos publicados na bibliografia internacional.

 

MATERIAL E MÉTODO

Análise retrospectiva e descritiva. Os dados da amostra foram obtidos por consulta de processos electrónicos dos doentes submetidos a realização de acesso vascular (FAV proximais, distais e enxertos), com idades > 79 anos. O Período de tempo estudado foi de 01/01/2010 a 31/12/2015.

Foi feita a análise da distribuição por género e grupo etário, factores de risco (com particular avaliação de doentes diabéticos), status funcional (pela aplicação da Escala de Status Funcional de Katz, localização e tipo de acesso vascular, avaliação da funcionalidade das FAV's distais e ainda descrição das complicações ocorridas.

 

RESULTADOS

No período de 01/01/2010 a 31/12/2015 — 6 anos —, resultaram 21 doentes. Da amostra, 12 doentes eram do sexo masculino (52%) e 11 doentes eram do sexo feminino (48%)(gráfico 1).

 

 

Obtiveram-se 4 grupos etários: 5 doentes com idades entre 79 e 81 anos (24%), 10 doentes entre 82 e 84 anos de idade (47%), 5 doentes entre 85 e 88 anos (24%), e 1 doente com idade compreendida entre 89 e 90 anos (5%) (gráfico 2).

 

 

A presença de factores de risco (FR) cardiovasculares (diabetes mellitus, dislipidémia e tabagismo), revela que 35% dos doentes apresentam 2 FR, 24% dos doentes apresentam 3 FR, 23% dos doentes apresentam 1 FR e 12% não apresenta nenhum dos factores de risco considerados.(gráfico 3). Da amostra total, 67% apresentam diabetes mellitus, (38% não insulino-tratada e 19% insulino-tratada) (gráfico 4).

 

 

 

 

Avalia-se o grau funcional da amostra utilizando a escala Katz, revelando 3 doentes com score 0, 9 doentes com score 1, 5 doentes com grau 2, 2 doentes com score 3 e 2 doentes com score 4.

 

 

Relativamente à localização e tipo de acessos, realizaram--se FAVs distais em 40% dos doentes, FAVs proximais em 35% (25% cefálicas e 10% basílicas), e em 25% dos casos optou-se pelo enxerto (braço) (gráfico 6). Não foram colocados cateteres venosos centrais para hemodiálise. Todos os doentes foram previamente estudados com ecodoppler para definição anatómica.

 

 

Do total de cirurgias, 19% dos doentes (4 no total) necessitaram de um novo acesso mais proximal (gráfico 7). O tempo de maturação das FAVs foi de 8 semanas. O follow-up máximo é de 6 anos e o minino de 1 ano tendo em conta a data da intervenção cirúrgica.

 

 

Destacam-se como complicações 1 hematoma e 2 infecções da ferida operatória.

 

DISCUSSÃO

As fístulas arteriovenosas continuam a ser consideradas como o gold-standard dos acessos vasculares para realização de hemodiálise. Após maturação, caracterizam-se por apresentar menor morbilidade e menor taxa de eventos trombóticos, além da sua maior durabilidade e menor custos com a sua manutenção(16). Estas vantagens estão bem estabelecidas numa população jovem, mas são menos expressivas em doentes mais idosos. Atendendo à crescente prevalência de população idosa a necessitarde um acesso vascular para hemodiálise, questiona-se se é possível extrapolar os resultados atrás descritos para esta população, habitualmente com acentuadas comorbilidades associadas. Uma das grandes vantagens que têm os acessos vasculares autólogos é o facto de apresentarem menores taxas de infecção.

A opção pela realização de fístulas arteriovenosas nos doentes idosos mantém-se um tópico de debate, por se associar habitualmente uma maior taxa de falência de maturação da fístula, bem como menores taxas de patência primária e secundaria menores nesta população(15,17, 18).

O aumento da idade associa-se ao aumento do risco de não-maturação das fístulas arteriovenosas, que pode dobrar em idades >65 anos (OR 2,23; 95% CI 1,25 a 3,96(19)). Nesta população, a patência primária aos 12m e 24m varia entre 43% e 74%, e entre 29% a 70%, respectivamente; a patência secundaria aos 12m e 24m varia entre 56% e 82%, e entre 44% e 67%, respectivamente(7,9,20–24).

Numa meta-análise recente incluindo 13 estudos, confirma-se a tendência de maior falência primária das fistulas em populações idosas, com maiores taxas de falência da fístula aos 12m (p=0,001) e aos 24m (p=0,01) em comparação com populações mais jovens. Dentro das fístulas, descreve-se menor taxa de falência das fístulas braquio-cefálicas relativamente à rádio-cefálica (p=0,004). No entanto, uma vantagem atribuída à realização de uma fístula distal inicialmente é a possibilidade de novo acesso mais proximal, em caso de falência da primeira; a frequência da síndrome de roubo é também menor nas fístulas distais(3).

A maior taxa de falência primária e moderada patência atribuem-se a fenómenos de trombose precoce e falha na maturação(30). Nos idosos, o risco de falência deste tipo de fístula é maior, já que são doentes com comorbilidades significativas, incluindocardiomiopatiaurémicaouisquémica, doençaarterial periférica e diabetes mellitus(3). Apesar de tudo, depois de estabelecidaafistula, apresentaóptimapatênciaalongoprazocom reduzida taxa de complicações(30). Procedimentos “de salvação” por angioplastia transluminal percutâneas hoje em dia mais disponíveis possibilitam ainda a melhoria dos resultados(3).

Os enxertos são uma opção tida como secundária ou terciária, pela sua menor patência primária e secundária, e maior morbilidade e mortalidade associadas. Consideram-se como opção em doentes idosos com mais comorbilidades, ou em doentes com falência de fístula, vasos não susceptíveis de poderem ser usados para a construção de fistula, referenciação tardia pela nefrologia, ou em caso de necessidade de acesso urgente, quando se pretende evitar a colocação de catéter(15).

De entre as várias opções de acesso vascular, as fístulas arterio-venosas apresentam-se com menor mortalidade relativamente aos enxertos ou catéteres (mortalidade global, relacionada com eventos infecciosos ou cardiovasculares)(16,26–29); além disso, os doentes com acesso arteriovenoso à data de início da hemodiálise têm melhor sobrevida, e menor risco de morte(16).

A escolha do melhor tipo de acesso reveste-se de vários desafios, havendo a considerar a probabilidade de progressão de doença, o tempo de vida expectável para o doente, os riscos e benefícios associados a cada tipo de acesso vascular, a preferência do doente,(15) e a disponibilidade de um centro e equipa multidisciplinar dedicados a estes procedimentos(16).

Uma abordagem pragmática para a selecção do melhor acesso vascular, proposta por Louise M. Moist et al, tem em consideração o tempo de vida expectável, as complicações inerentes a cada tipo de acesso vascular, a preferência do doente e a sua qualidade de vida: considera-se a realização de uma fístula em doente idoso com menor comorbilidade, seguidos numa clinica dedicada, com previsão de início de hemodiálise num período superior a 6 meses; a escolha de um enxerto seria apropriada para doentes com maior comorbilidade e tempo de vida expectável inferior a 1–2 anos; por último, optar-se-ia pela colocação de cateter em doentes com múltipla comorbilidade, com tempo de vida expectável mínimo(15). Alguns autores defendem ainda a possibilidade de criação FAV proximal em doentes com comorbilidades graves e tempo de vida expectável baixo, se o património vascular distal for sub-óptimo(3).

 

CONCLUSÃO

A realização de acessos vasculares autólogos demonstra ser vantajoso mesmo em doentes octagenários, desde que status funcional razoável (<4), sendo este mais importante que a idade cronológica. A abordagem deve ser individualizada e a idade não deverá ser um factor limitante no momento da escolha do acesso vascular.

A presente casuística acompanha o paradigma internacional ao realizar-se sempre que possível um acesso vascular autólogo, tendo em conta as particularidades dos doentes (a maior parte deles com bom status funcional).

A escolha do acesso vascular nos doentes idosos não deve ser diferente da eleição nos doentes mais jovens. Torna-se fulcral existir uma equipa multidisciplinar, cirurgiões experientes, follow-up próximo durante a maturação da fístula, intervenção radiológica ou cirúrgica precoce em caso de complicação ou não-maturação para a patência da fístula arterio-venosa.

 

BIBLIOGRAFIA

Hemodialysis acess. (2015). National Kidney Foundation. Retirado em Maio 2016, de https://www.kidney.org/atoz/content/hemoaccess        [ Links ]

Rosenberg M. (2016, 24 de Fevereiro) Overview of the management of chronic kidney disease in adults. Retirado em Maio de 2016, de http://www.uptodate.com/contents/overview-of-the-management=-of-chronic-kidney-disease-inadults?source-search_result&search=end+stage+renal+disease&selectedTitle=1%7E150         [ Links ]

Lazarides, M; Georgiadis, G; Antoniou, G. et al.“A meta-analysis of dialysis access outcome in elderly patients”, Journal or Vascular Surgery, Vol 45, no 2; 420-426.         [ Links ]

 

*Autor para correspondência

 

Recebido a 27 de julho de 2016;

Aceite a 26 de setembro de 2016.

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