Introdução
Estima-se que, a nível mundial, ocorram cerca de 208 milhões de gravidezes por ano, das quais 41% são indesejadas e aproximadamente metade termina em interrupção voluntária da gravidez1. A incidência de interrupções de gravidez por opção da mulher correlaciona-se com a frequência de gravidezes indesejadas e traduz falhas nos serviços de planeamento familiar e na utilização efetiva de métodos contracetivos. Vários estudos apontam também para a importância dos fatores sociodemográficos neste fenómeno, nomeadamente idades mais jovens, populações imigrantes, menor escolaridade e não viver em coabitação com o companheiro, fatores estes que são altamente variáveis entre países e, inclusive, a nível regional 2-6. Os métodos disponíveis para a interrupção de gravidez são seguros, no entanto, não podemos esquecer que o número de interrupções voluntárias da gravidez realizadas traduz o acesso e o uso efetivo de métodos contracetivos e que representam não só custos em saúde como possíveis interferências na saúde física e estabilidade psíquica das mulheres que os realizam 6-13.
Várias medidas de saúde pública, como a melhoria da acessibilidade ao planeamento familiar e à contraceção, fizeram com que o número de interrupções voluntárias da gravidez tenha vindo a reduzir-se em todo o mundo, especialmente nos países desenvolvidos. Portugal não é exceção e apresenta, inclusive, um número inferior à média europeia 14. Apesar disso, entre 2008 e 2018, o valor mais baixo registado de abortos por opção da mulher realizados em Portugal foi de 14306, em 2018, registando-se marcadas assimetrias regionais, entre as quais destacamos a região de Lisboa e Vale do Tejo, que reuniu 58,8% de todas as interrupções registadas nesse ano 15.
O Hospital Beatriz Ângelo, um hospital distrital localizado na periferia de Lisboa, é o 3.o hospital público a nível nacional e o 2.o na ARSLVT a realizar mais interrupções da gravidez 15,16. Contrariamente à tendência nacional, a taxa de abortos voluntários neste hospital não tem vindo a diminuir. Com exceção dos relatórios anuais da Direção-Geral da Saúde, pouco se conhece sobre o perfil das mulheres que realizam interrupções voluntárias da gravidez em Portugal, especialmente no que concerne a populações que apresentam um comportamento distinto da tendência nacional. Os estudos nacionais existentes focam-se em amostras pequenas de mulheres, sem avaliação da evolução temporal ou ajuste dos dados sociodemográficos com base nos dados populacionais.
Só conhecendo o perfil regional destas mulheres é possível analisar os resultados das medidas de saúde públicas instituídas e delinear novas estratégias eficazes e dirigidas de prevenção. Assim, este estudo pretende traçar o perfil das mulheres que realizaram uma interrupção voluntária da gravidez no Hospital Beatriz Ângelo, compará-lo com o perfil nacional, e analisar a sua evolução temporal no período compreendido entre os anos civis 2012-2018.
Métodos
Desenvolvemos um estudo observacional analítico transversal.
Selecionámos todas as mulheres que recorreram à consulta de interrupção voluntária da gravidez do Hospital Beatriz Ângelo entre os anos civis de 2012 a 2018, não tendo aplicado qualquer critério de exclusão.
Recolhemos dados sociodemográficos (idade, nacionalidade, nível de instrução, situação laboral e estado cívil), ginecológicos (método contracetivo pré e pós interrupção voluntária da gravidez) e obstétricos (número de filhos e número de abortos voluntários prévios) presentes na base de dados do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia para efeitos de reporte anual à Direção-Geral de Saúde. Os dados foram anonimizados e não houve lugar a consulta de registos clínicos. Posteriormente, e sempre que disponíveis, ajustámos os dados obtidos com base na informação apresentada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), relativamente aos nados-vivos e população residente, para as regiões de Sobral de Monte Agraço, Mafra, Odivelas e Loures (área de abrangência do Hospital Beatriz Ângelo).
Os dados foram tratados no software Microsoft Office Excel® e realizámos a análise estatística com recurso aos softwares IBM SPSS® v25, Medcalc (disponível em https://www.medcalc.org/calc/relative_risk.php) e Vassarstats (disponível em http://vassarstats.net/propdiff_ind.html). Para a análise descritiva dos dados recorremos à análise de frequências. Para a comparação de proporções independentes utilizámos o teste Z e para a avaliação de associações entre variáveis categóricas e para comparação de percentagens usámos o teste do Qui-Quadrado ou teste de Fisher. Para todas as análises inferenciais considerou-se um nível de significância de p < 0,05 e um Intervalo de Confiança de 95% (IC 95%).
Este estudo mereceu o parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital Beatriz Ângelo (N.o 3021/2019_MJHFB).
Resultados
No período 2012-2018, realizaram-se 5166 interrupções voluntárias da gravidez no Hospital Beatriz Ângelo. Entre 2012 e 2015, observámos um aumento de 55,3% no número de abortos voluntários, atingindo o valor máximo de 879 interrupções da gravidez em 2015 (p < 0,001). Desde então, permaneceram estáveis em torno de 767 abortos voluntários por ano (p = 0,236). Estes resultados mantiveram-se quando se analisou o rácio de interrupções voluntárias da gravidez por 1000 nados-vivos nos concelhos da área de influência do hospital (Figura 1). 17
IDADE
A faixa etária que mais realizou interrupções voluntárias da gravidez foi a dos 20-30 anos, representando 50% de todas as interrupções, seguindo-se a dos 30-40 anos com 31,7%. O grupo de menores de 20 anos constituiu apenas 12,4% dos abortos voluntários (p < 0,001) (Quadro I).
Ajustando, porém, estes dados ao número de nados-vivos 17, evidenciou-se que eram as menores de 20 anos que apresentavam uma maior probabilidade de realizar um aborto por opção da mulher, com cerca de 661 interrupções voluntárias da gravidez por cada 1000 nados-vivos. Já as mulheres com mais de 30 anos eram as que tinham uma menor probabilidade de interromper a gravidez, especialmente o grupo etário dos 30-40 anos, com 83 interrupções voluntárias da gravidez por 1000 nados-vivos (Figura 2). Assim, as mulheres com menos de 20 anos tinham um risco relativo de realizar um aborto por opção cerca de 8 vezes superior ao das mulheres com 30-40 anos. Nos últimos 7 anos, verificou-se uma redução de 71,4% na realização de interrupções voluntárias da gravidez por menores de 16 anos (Quadro I). Os restantes grupos etários não sofreram alterações significativas neste período, observando-se, no entanto, uma tendência de aumento da procura entre as mulheres com mais de 30 anos (aumento de 13,8%, p = 0,06).
Nacionalidade
A nacionalidade portuguesa representou 71,2% dos abortos voluntários realizados (p < 0,001). No entanto, analisando apenas os dados referentes às mulheres que residiam na área geográfica de influência do hospital 18), (19, objetivámos que, em proporção, as imigrantes realizaram mais interrupções voluntárias da gravidez, apresentando um risco relativo de realizar um aborto por opção 5 vezes superior ao das mulheres portuguesas (Figura 3).
Fonte: Instituto Nacional de Estatística: População estrangeira com estatuto legal de residente (N.o) por Local de residência (NUTS - 2013) e Nacionalidade; Anual 18; População residente (N.o) por Local de residência (NUTS - 2013), Sexo e Grupo etário; Anual - INE, Estimativas anuais da população residente 19. *135 mulheres excluídas da análise por não serem residentes nos concelhos em estudo.
Em termos evolutivos, verificámos um aumento na realização de interrupções voluntárias da gravidez por parte da população árabe e uma diminuição por parte da população da europa de leste e brasileira. Nas restantes nacionalidades não se verificaram diferenças significativas ao longo do período analisado (Quadro I).
Nível de instrução e situação laboral da grávida
As mulheres com o 3.o ciclo e ensino secundário foram as que mais realizaram abortos voluntários, com 33% e 38%, respetivamente (p < 0,001). A nível temporal, objetivámos uma diminuição significativa na procura por parte de mulheres com o 1.o e 3.o ciclo e um aumento por parte de mulheres com ensino secundário. As trabalhadoras não qualificadas ou desempregadas foram os que mais realizaram interrupções da gravidez (p < 0,001). Todavia, observámos que ocorreu um aumento da procura por parte das trabalhadoras não qualificadas e uma diminuição por parte das desempregadas e das trabalhadoras com qualificação intermédia (Quadro I).
Estado cívil e filhos prévios
Cerca de 78% das mulheres que realizou uma interrupção voluntária da gravidez era solteira, seguindo-se as casadas (18%), as divorciadas/separadas (4%) e as viúvas (0,2%) (p < 0,001). Temporalmente, observámos uma diminuição de 52,7% na proporção de mulheres casadas e um aumento de 31,6% de mulheres solteiras que recorreram ao aborto voluntário (Quadro I). As multíparas corresponderam a 60% das mulheres que realizaram uma interrupção voluntária da gravidez, no entanto, a realização de um aborto por opção da mulher era significativamente menos frequente nas mulheres que tinham mais filhos (p = 0,007).
Realização prévia de interrupções voluntárias da gravidez
Cerca de 62% das mulheres nunca tinha realizado uma interrupção voluntária da gravidez prévia, enquanto 26% já tinha realizado uma e 11% já tinha realizado pelo menos 2 interrupções da gravidez anteriores. Objetivámos uma tendência decrescente entre as mulheres que nunca tinham realizado um aborto por opção previamente, de 74% para 57% (p < 0,001), acompanhada de uma tendência crescente de procura, de 26% para 44% (p < 0,001), por parte de mulheres que já haviam realizado interrupções da gravidez anteriormente. Nenhuma menor de 16 anos tinha realizado um aborto previamente, enquanto as maiores de 30 anos eram as que mais tinham realizado interrupções da gravidez anteriores. Relativamente à nacionalidade, observámos uma proporção significativamente superior de mulheres imigrantes entre as mulheres com antecedentes de abortos voluntários - as mulheres estrangeiras representavam 25,2% das mulheres que não tinham realizado nenhum aborto anteriormente e 34,7% das mulheres com interrupções da gravidez prévias, destacando-se as nacionalidades africanas, da europa de leste e outras. No que toca à escolaridade e qualificação profissional, verificámos que as mulheres com abortos voluntários anteriores tendiam a ter menor escolaridade e qualificação laboral. Quanto à paridade, as mulheres com mais filhos foram as que apresentaram um maior número de interrupções voluntárias prévias (Quadro II).
Contraceção antes e após a interrupção voluntária da gravidez
Nos 12 meses prévios à realização da interrupção da gravidez, cerca de 57,5% das mulheres não realizava qualquer tipo de contraceção, número esse que tem vindo a aumentar significativamente (de 44% para 64%, p < 0,001). Eram as mulheres com menos de 20 anos ou com mais de 40 as que menos realizavam contraceção. Já as mulheres com história de interrupção da gravidez prévia utilizavam mais métodos contracetivos - 61,33% das mulheres sem aborto voluntário prévio não realizava contraceção, percentagem essa que baixava para 51,06% nas mulheres com história de aborto por opção (p < 0,001). Entre as mulheres que utilizavam métodos contracetivos, o método mais utilizado era o hormonal oral/injetável e apenas 0,8% utilizava métodos reversíveis de longa duração.
Após a interrupção da gravidez, verificou-se um aumento de 134% na realização de contraceção, com uma procura significativa por métodos contracetivos reversíveis de longa duração, escolhidos por 37,4% das mulheres. A maioria das mulheres continuou a preferir os contracetivos hormonais orais/injetáveis, no entanto, os extremos da idade foram as que mais optaram por outros métodos: as jovens com menos de 16 anos preferiram o implante subcutâneo em 52,8% dos casos, e as mulheres com mais de 40 anos optaram por contracetivos reversíveis de longa duração ou laqueação tubárica em 56,8% dos casos. As mulheres com antecedentes de abortos voluntários optaram mais por contracetivos reversíveis de longa duração ou laqueação do que as mulheres sem interrupções voluntárias da gravidez prévias (Quadro III).
Discussão
Verificámos que a população em estudo apresenta um rácio de interrupções voluntárias da gravidez por 1000 nados-vivos inferior ao nacional. No entanto, esse rácio tem-se mantido estável desde 2016, não acompanhando a tendência decrescente nacional 15. Objetivámos um aumento da procura por parte das faixas etárias superiores, acompanhado de uma diminuição por parte de menores de 16 anos, o que vai de encontro aos resultados de outros trabalhos que verificaram uma redução nas gravidezes indesejadas e, consequentemente, das interrupções da gravidez, nas faixas etárias mais jovens 20), (21. Apesar de termos apurado um aumento progressivo da escolaridade das mulheres, é de salientar que temos uma percentagem inferior de mulheres com ensino superior e uma percentagem superior de mulheres desempregadas ou com trabalhos não qualificados que os números nacionais, indiciando que a menor escolaridade e situações laborais precárias podem ser fatores preponderantes nesta população 15,21.
Em termos absolutos, a maioria das mulheres que realizou um aborto por opção tinha entre 20 e 40 anos, era portuguesa, tinha o 3.o ciclo ou ensino secundário concluídos, era solteira, tinha filhos e estava desempregada ou tinha um trabalho não qualificado. Contudo, quando realizámos uma análise de risco, observámos que as menores de 20 anos e as imigrantes apresentavam uma maior probabilidade de realizar uma interrupção voluntária da gravidez. Assim, o perfil das mulheres que realizaram um aborto por opção é sobreponível ao perfil descrito em estudos nacionais e internacionais 2,4,5,15,21.
Já as mulheres com antecedentes de outras interrupções voluntárias da gravidez apresentam-se numa percentagem superior à média nacional e internacional e manifestam uma tendência crescente 15,21,22. O perfil destas mulheres era semelhante ao das mulheres que não tinham realizado qualquer aborto por opção prévio, salientando-se, no entanto, uma maior preponderância de imigrantes e de mulheres com menor escolaridade e qualificação laboral, e uma tendência a terem mais filhos.
A importância do acesso a métodos contracetivos na redução do aborto está bem estabelecida 23-25. Verificámos que perto de 60% das mulheres não realizou qualquer método contracetivo no ano anterior à realização do aborto voluntário. A baixa utilização de métodos contracetivos nos 12 meses prévios à interrupção da gravidez e o seu aumento significativo após a interrupção demonstra que as mulheres, em particular as que têm antecedentes de outros abortos voluntários, têm vontade de realizar contraceção, especialmente métodos reversíveis de longa duração não dependentes da utilizadora, sugerindo que a falta de informação ou de acesso a métodos contracetivos pode ter tido um papel importante na génese da gravidez indesejada 22,24,26-30. Apesar de Portugal apresentar um bom desempenho em saúde reprodutiva, pode melhorar, principalmente a nível da divulgação online dos métodos disponíveis, custos associados ou forma de acesso a eles 31,32. Isto é especialmente importante entre as mais jovens, que têm menos consultas de planeamento familiar/ginecologia e procuram, maioritariamente, informação sobre contraceção na internet. É de destacar que menos de 50% das mulheres obtém o seu contracetivo de forma gratuita no SNS, o que apoia a hipótese de falta de informação sobre o acesso aos serviços de planeamento familiar e métodos contracetivos gratuitos 33.
Como limitações a este estudo temos de referir que o ajuste dos dados foi feito para a população dos concelhos de Odivelas, Loures, Mafra e Sobral de Monte Agraço (concelhos abrangidos maioritariamente ou na totalidade pelo Hospital Beatriz Ângelo), o que levou à exclusão de 135 mulheres que não residiam nestes concelhos. Este ajuste foi feito com base nos nados-vivos contabilizados nestes concelhos, no entanto, os nados-vivos não equivalem ao número de gravidezes, já que são contabilizados gémeos e não se contabilizam nados-mortos ou abortos espontâneos. De igual forma, o ajuste quanto à população imigrante foi feito com base no número de mulheres imigrantes com estatuto de residência, excluindo as imigrantes ilegais ou que aguardam o estatuto legal de residente. No entanto, não consideramos expectável que estas imprecisões alterem a tendência geral dos dados.
Este trabalho destaca-se por ser o primeiro a analisar uma população que apresenta um comportamento distinto do padrão nacional, contando com uma amostra bastante expressiva e com a abrangência de zonas urbanas e rurais. Para além de analisar os números absolutos, que têm, obviamente, a sua importância, examina também os resultados à luz dos dados sociodemográficos disponíveis, permitindo uma análise de risco e um efetivo conhecimento da população em estudo.
Consideramos importante que estudos futuros se dediquem a analisar a perceção das mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez face ao planeamento familiar e o seu conhecimento quanto ao acesso a estas consultas, métodos contracetivos disponíveis e a sua correta utilização. De igual modo, seria imperativo avaliar o seguimento a nível de planeamento familiar que estas mulheres têm após o aborto por opção própria. Em conclusão, o padrão de interrupções voluntárias da gravidez verificado neste estudo parece dever-se aos fatores socioeconómicos desta população, como a maior percentagem de imigrantes e mulheres com baixa escolaridade e condições laborais precárias, demonstrando o papel inequívoco da desigualdade e fragilidade social na procura do aborto por opção 2,6,34. O conhecimento da epidemiologia das gravidezes indesejadas e da interrupção voluntária da gravidez em cada população é um requisito essencial para o delineamento eficaz de medidas de prevenção. Assim, urge desenvolver estratégias dirigidas para os mais jovens, imigrantes e casais em situações de fragilidade socioeconómica. Para além de medidas globais, como o reforço da educação sexual nas escolas e o aumento da literacia em saúde da população, tanto a nível de acesso aos serviços de saúde como de utilização de métodos contracetivos, é fundamental que na nossa prática clínica tenhamos especial atenção aos jovens e imigrantes, que por serem tipicamente menos frequentadores dos cuidados de saúde, ficam muitas vezes esquecidos a nível do planeamento familiar. Também o seguimento após uma interrupção voluntária da gravidez constitui uma oportunidade única de educação para a saúde, já que a mulher está mais recetiva à contraceção, tornando-se fundamental, portanto, uma boa articulação entre os cuidados de saúde secundários e os cuidados de saúde primários.