No fim do primeiro semestre de 2021 a comunidade obstétrica foi surpreendida pela emissão de uma Resolução da Assembleia da República, a n.º 181/2021, que recomendava ao Governo para que diligenciasse pela eliminação de práticas de violência obstétrica e que promovesse um estudo nacional anónimo sobre essas mesmas práticas. E o sobressalto ainda foi maior com o conhecimento de um projecto lei, provindo de uma deputada independente da Assembleia da República, e que tem por objectivo a criminalização dessas mesmas práticas.
Este espanto é perfeitamente compreensível por parte de profissionais (médicos e enfermeiros) que fazem da sua vida o contrário do que o termo “violência” pressupõe. O conceito de “violência”, associado a constrangimento, abuso, coação, violação, é por demais estranho à comunidade que tem por missão tratar e cuidar, criando uma imediata repulsa. Alem de que a noção de “violência” por parte de um agente traz em si a ideia de alguma intencionalidade, o que para os que se dedicam ao outro (como é o caso de médicos e enfermeiros) ainda menos faz sentido. No entanto, o conceito de “violência obstétrica” tem a vindo a impor-se e tem por base não só a existência de violência física sobre a grávida, mas também qualquer tipo de atitude ou acção sobre ela e do qual possam resultar lesões físicas ou psicológicas. A Organização Mundial da Saúde pronunciou-se sobre este tema em 20141 e desde então têm surgido movimentos que criam um ambiente de desconfiança e conflito entre a grávida e quem pratica a obstetrícia e que por vezes é bem difícil de dirimir.
Vivemos numa época em que a facilidade de obter informação e de comunicar faz parte do quotidiano. No que concerne à Medicina, torna o provérbio “De Médico e de Louco todos tem um pouco” uma realidade pois não há quem não se ache capaz de opinar sobre um qualquer assunto de Saúde. É impossível escamotear esta nova realidade da qual a prova cabal é o que e tem passado sobre a vacinação contra o COVID-19 e que se tem resolvido por uma paciente atitude dos agentes envolvidos e uma intensa campanha informativa. Foi esta forma de agir (paciência e informação) que levou a que mais de 80% da população portuguesa se vacinasse contra a nova doença. E o mesmo se passa no que concerne à “violência obstétrica”! O empoderamento da grávida (algo em que todos nos temos empenhado) reforçando a sua capacidade de decisão, a facilidade com que as pessoas comunicam entre si, a tecnologia que permite que qualquer utilizador da internet crie e publique conteúdos e que faz com que cada um se possa deparar apenas com o que o lhe interessa saber/conhecer, facilitando a criação e difusão de falsos conceitos, são o contexto perfeito para passarmos a viver num permanente conflito com a população de grávidas gerando-se inúmeras situações que podem perfilhar a dita “violência obstétrica”. Assim, urge que a comunidade (médicos e enfermeiros) que se dedica ao cuidado da grávida tome idênticas atitudes de paciência, tolerância e promoção de informação que permitam atenuar todo o potencial conflito.
O exercício de uma Medicina paternalista, em que o médico tudo sabe e o doente tem o dever se deixar guiar, deve pertencer ao passado. Sem dúvida que os que exercem Medicina deverão ter os conhecimentos que permitam resolver o problema do doente concreto, mas é sua função transmiti-los de forma paciente e ouvir e esclarecer quanto a dúvidas ou diferentes opções que possam existir dando-lhe oportunidade de decidir de forma livre e informada. Para isto é necessário existir tempo, bem escasso para os que trabalham em Saúde, sendo essencial sensibilizar quem tutela para que seja dado mais tempo na assistência ao doente - neste caso à grávida, ao casal. Além de tempo, tem também de existir oportunidade; e, em Obstetrícia, a promoção da criação de planos de parto com a grávida/casal e sua discussão ulterior é a oportunidade que este têm de expor de forma clara aquilo que pretendem durante o trabalho de parto e parto e sejam esclarecidos quanto às possibilidades de resposta do local onde planeiam que o parto ocorra. O plano de parto deve ser visto, não como uma interferência nos cuidados a realizar, mas como uma ferramenta de diálogo entre o médico/enfermeiro e a grávida/casal possibilitando troca de informação que, ao reflectir aquilo em que a grávida/casal acreditam/desejam, facilita um maior conhecimento entre os intervenientes e um melhor entendimento da realidade da gestação concreta. E, a par do plano de parto, nestes tempos em que tanta informação pode causar insegurança à grávida/casal, devem ser fomentados cursos de preparação para o parto administrados por profissionais idóneos e com conhecimentos obtidos no terreno.
E por fim, como forma de respeito pela autonomia da grávida, é fundamental existirem consentimentos informados. O objectivo do consentimento informado em Medicina é o de transmitir ao doente a informação “necessária e relevante no seu processo de decisão, incluindo os riscos e benefícios de aceitar ou rejeitar o tratamento proposto” (2.
Estes devem ser precedidos de uma informação sobre o procedimento (ou conjunto de procedimentos) idealmente fornecida um tempo antes da sua realização. Esta informação, que deve ser clara, deve conter uma descrição simples e suficiente do(s) procedimentos(s) com referência expressa à sua indicação, às possíveis consequências da sua omissão, às possíveis alternativas e aos riscos que lhe estão mais frequentemente associados. A entrega desta informação deverá ser registada e a grávida deverá assinar um documento que comprove que recebeu esta mesma informação. O consentimento informado deverá repetir alguns aspectos da informação dada e ser igualmente assinado pela grávida e pelo médico. A Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal, cumprindo um dos objectivos do programa da actual Direção, encontra-se neste momento a elaborar consentimentos informados sobre os principais procedimentos da especialidade - parto vaginal, cesariana programada, versão cefálica por manobras externas, cerclage e interrupção médica da gravidez - por forma a permitir aos seus associados terem à disposição um texto base que lhes facilite a sua práctica clínica.
Em súmula, as mudanças da sociedade actual, promovidas pela tecnologia e pelo maior conhecimento do corpo e capacidade de decisão da mulher, fazem com que um conceito estranho a quem pratica Obstetrícia se esteja a instalar: o da “violência obstétrica”. Na percepção deste conceito pela gestante está subjacente uma falta de informação transmitida por vectores fidedignos e idóneos. Aumentar o período de tempo para informar, preparar para o parto - cursos de preparação para o parto-, promover a discussão de aspectos importantes para a grávida - planos de parto - e obter consentimentos informados são aspectos determinantes para reduzir os casos em que as grávidas se sintam de alguma forma “violentadas”.
A woman will forever remember her birth experiences. May they be memorable ones for all the right reasons (anon)