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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.12 no.2 Coimbra jun. 2018

 

ARTIGO DE OPINIÃO/ OPINION ARTICLE

Centros de referência. Precisam-se?

Referral hospitals. Do we need them?

Nuno Clode*

Serviço de Obstetricia - Hospital de Santa Maria/Centro Hospitalar de Lisboa Norte

*Diretor de Serviço de Obstetrícia, Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria)

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

Referral Centers for particular situations are necessary and an added value for Nacional Obstetrics. Centers for fetal therapy and for management of placenta accreta spectrum disorders are a good example of this need. Creating teams with experience is the only way to answer to the challenges that Modern Obstetrics poses to us.

Keywords: Centros de Referência; Placenta acreta; Acretismo placentário; Síndrome transfusão feto-fetal; Terapêutica fetal.


 

Na segunda quinzena de Abril deste ano surgiu, num semanário português de difusão nacional, a notícia de que na Maternidade Alfredo da Costa se tinha iniciado um programa de tratamento da síndrome de transfusão feto-fetal. O título era bombástico - Gémeos salvos ainda dentro do útero... - e aguçava o interesse para a leitura do artigo em que se desenvolvia o caso de uma gestação gemelar monocorial em que, às 22 semanas, pela existência de STFF, se optou pela laqueação selectiva das anastomoses entre as circulações fetais por laser através fetoscopia. A diferença para o que tem sido habitual no últimos tempos - referenciar o casal para um centro europeu com experiência - foi que a técnica era realizada num centro português que, ao longos dos anos, tem desenvolvido e apurado técnicas para a resolução de patologia fetal - como a transfusão intra-uterina no tratamento da anemia fetal1 - e de complicações raras na gestação múltipla - recordo-me da comunicação social noticiar, em 2013, da laqueação do cordão de um feto acardíaco realizada às 25 semanas através de radio-frequência. Obviamente que para o Serviço de Obstetrícia da Maternidade Alfredo da Costa ter realizado esta técnica, um longo percurso foi percorrido e que passou não só pela observação e prática da técnica em centros no estrangeiro, como pela aquisição da tecnologia necessária e pela criação de uma equipa - obstetras, anestesistas, enfermeiras -, capaz de executar de forma harmoniosa um procedimento que só nos livros parece simples. Idêntico percurso fez o Serviço de Obstetrícia do Centro Hospitalar de Gaia, que iniciou um programa similar em 2017.

Em Portugal, de forma muito grosseira, ocorrerão cerca de 400 gestações monocoriais por ano, sendo previsível que um quarto destas desenvolva alguma complicação - transfusão feto-fetal, restrição de crescimento selectivo, anomalia de um dos gémeos -, cuja resolução pode exigir uma fetoscopia com utilização de foto-coagulação com laser. O encaminhamento do casal para o estrangeiro, além dos custos financeiros para o erário público e para o próprio casal, tem para este último a agravante de o colocar num local que lhe é desconhecido, onde a dificuldade de comunicação e do entendimento do que se está a passar, pode tornar muito penosa a experiência. A criação de mais um centro em Portugal, capaz de responder a estas situações, era pois premente.

Mas será que precisamos de mais de Centros de Referência? Bem, os Hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado já são Centros de Referência e têm por missão atender todos os casos de elevado risco materno e fetal mas, com a diversidade de doenças e a resposta que é possível dar a cada uma, torna-se muito difícil que todos consigam dar solução adequada a todos os casos com que se deparam ou que lhes são referenciados. Assim, quando falamos em Referência, provavelmente devemos particularizar a que patologia nos referimos e, para algumas, devem existir Centros específicos, porque será aí que a orientação diagnóstica/terapêutica será a mais adequada; não só porque existe a melhor tecnologia disponível, mas também porque as equipas que aí se constituíram têm experiência em lidar com o caso concreto. No entanto, a existência de múltiplos Centros de Referência poderá impedir que se ganhe a experiência necessária pois, e tendo como exemplo as gestações monocoriais, o número de casos que exigem fetoscopia é diminuto; a fim de manter um elevado grau de excelência no desempenho desta técnica é necessário um número mínimo de procedimentos anuais pelo que dispersar os casos será contraproducente.

Uma outra patologia obstétrica cuja incidência tem vindo a aumentar e para a qual se devem igualmente criar Centros de Referência é o acretismo placentário. Quando iniciei o meu internato em Obstetrícia e Ginecologia, no final da década de 80 do século passado, o acretismo placentário era muito raro. Tão raro, que todos os casos eram apresentados em reuniões de Serviço e alguns publicados em revistas médicas como Casos Clínicos. O acretismo era diagnosticado intraparto pela dificuldade na dequitadura, muitas vezes de zonas focais; era quase sempre acompanhado de hemorragia significativa e frequentemente terminava numa histerectomia total ou subtotal. E, como surgia de forma inesperada, a preparação da equipa estava longe de ser a ideal - lembro-me de recorrer, fora de horas, ao cirurgião mais experiente do Serviço que vinha, estremunhado, proceder à histerectomia periparto, do Serviço de Imunohemoterapia se desdobrar para obter os componentes transfusionais necessários e das aflições vividas pelas equipas, nomeadamente a de anestesiologia, nestes cenários. Na história descortinava-se uma curetagem ou manobras abortivas, mas raramente a cesariana prévia surgia associada. Mas nessa época em Portugal, a taxa de cesarianas era inferior a 25% (em 1996, dados do Pordata, apontam para 24,3%) e talvez tenha sido esse o motivo que nos poupou durante algum tempo ao fenómeno do acretismo.

Mas, com o fim do intervalo de tempo esperado entre a subida da taxa de cesarianas e o incremento dos casos de acretismo - cerca de 6 anos2 -, é necessário enfrentar esta complicação que está associada a uma elevada morbilidade e mortalidade materna. No meu Serviço, entre 2009 e 2015, nunca tendo nada de semelhante ocorrido nos dez anos anteriores, assistimos a 10 casos de placenta increta/percreta em que a opção foi sempre de histerectomia e sendo quase sempre necessário um suporte transfusional significativo. O problema actual do acretismo placentário, e que está claramente associado ao número excessivo de cesarianas realizadas, é tão importante, que a FIGO publicou recentemente normas de orientação para esta patologia com uma revisão extensa da epidemiologia, do diagnóstico e das atitudes terapêuticas a tomar3-6. A diferença entre um caso com um bom desfecho e uma situação catastrófica passa pelo diagnóstico pré-natal que é o que irá permitir que a grávida seja orientada para um Centro de Referência onde se encontra a equipa multidisciplinar capaz de a tratar. Esta equipa deve ser composta por obstetras, ginecologistas com experiência em cirurgia urológica e oncológica, urologistas, radiologia de intervenção, anestesiologistas e imunohemoterapeutas que, idealmente, actue de forma programada mas que também seja capaz de ser facilmente mobilizada. Só assim se poderá evitar o inesperado - a cesariana programada ou de emergência, em que se constata uma placenta invadindo o segmento inferior com eventual invasão de órgão adjacentes e que o obstetra não está preparado para solucionar e que, ao fazer, arrisca a lesão grave de órgãos adjacentes à qual se seguirá uma hemorragia cataclísmica com a necessidade de suporte transfusional maciço que um Serviço de Imunohemoterapia apanhado de surpresa terá dificuldade em apoiar.

O número reduzido de casos -incidência 0,05-0,2%- expectáveis de acretismo placentário mas que se associam com uma elevadíssima morbilidade e mortalidade materna torna imperativo que se criem, unidades hospitalares dotadas de recursos humanos e materiais capazes de orientarem de forma adequada estes casos.

Assim, Centros de Referência para situações particulares são portanto necessários e uma mais-valia. Criar equipas com experiencia é mesmo a única forma de respondermos aos desafios que a Medicina Materno - Fetal actualmente nos coloca.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Rijo C, Cohen A, Martins AT, Cruz J, Queirós A, Ramos H, Correia J. Transfusão intra-uterina para o tratamento de anemia fetal grave - experiência de 14 anos de um centro de diagnóstico pré-natal em Portugal Acta Obstet Ginecol Port 2016;10(2):102-109        [ Links ]

2. Solheim KN, Esakoff TF, Little SE, Cheng YM, Sparks TN, Caughey AB. The effect o cesarean delivery rates on the future incidence of placenta previa, placenta accrete and maternal mortality. J Matern Fetal Neonatal Med 2011;24:1341-1346         [ Links ]

3. Jauniaux E, Chantraine F, Silver RM, Langhoff-RoosJ. FIGO consensus guidelines on placenta accreta spectrum disorders: Epidemiology. Int Gynecol Obstet 2018; 140: 265-273        [ Links ]

4. Jauniaux E, Bhide A, Kennedy A, Woodward P, Hubinont C, Collins S. FIGO consensus guidelines on placenta accreta spectrum disorders: Prenatal diagnosis and screening. Int Gynecol Obstet 2018; 140: 274-280        [ Links ]

5. Allen L, Jauniaux E, Hobson S, Papillon-Smith J, Belfort MA. FIGO consensus guidelines on placenta accreta spectrum disorders: Nonconservative surgical management. Int Gynecol Obstet 2018; 140: 280-290        [ Links ]

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Nuno Clode

Lisboa, Portugal

E-mail: nclode@netcabo.pt

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