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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.2 Porto dez. 2023  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.21373 

Comentário ao texto histórico

O que é esta atividade, especificamente humana, à qual chamamos trabalho? O exemplo de Leontiev sobre a caça primitiva

¿Qué es esta actividad, específicamente humana que llamamos trabajo? El ejemplo de Léontiev de la caza primitiva

Quelle est cette activité, spécifiquement humaine, que l’on appelle travail ? L’exemple de Léontiev sur la chasse primitive

What is this specifically human activity we call work?Leontiev's example of primitive hunting

Yannick Lémonie1 

Tradução:

Flora Vezzá1 

11CRTD, E.A. 4132, Conservatoire National des Arts et Métiers, Paris, France, 41, rue Gay-Lussac 75005 Paris, France. Yannick.lemonie@lecnam.net


Resumo

Este artigo propõe um comentário histórico sobre o célebre exemplo da caça primitiva de Leontiev. Depois de situar brevemente as principais etapas da carreira de Leontiev, apresentaremos as principais características do conceito de atividade tal como foi introduzido por Leontiev no exemplo da caça primitiva. Por fim, mostraremos que, ao introduzir o conceito de atividade na psicologia, Leontiev introduziu uma rutura com o trabalho anteriormente desenvolvido em Moscovo com Vygotsky, ao mesmo tempo em que se inscreve na filiação histórico-cultural iniciada por este.

Palavras-chave: Atividade; Leontiev; teoria historico-cultural da atividade; caça primitiva

Resumen

Este artículo propone un comentario histórico sobre el famoso ejemplo de la caza primitiva de Léontiev. Tras esbozar brevemente las principales etapas de la carrera de Léontiev, presentaremos las principales características del concepto de actividad tal como lo introdujo Léontiev en el ejemplo de la caza primitiva. Por último, mostraremos que, al introducir el concepto de actividad en la psicología, Léontiev efectuó una ruptura con los trabajos realizados anteriormente en Moscú con Vygotsky, al tiempo que seguía las huellas histórico-culturales abiertas por este último.

Palabras clave: Actividad; Léontiev; Teoría histórico-cultural de la actividad; caza primitiva

Résumé

Ce texte propose de faire un commentaire historique du célèbre exemple de la chasse primitive de Léontiev. Après avoir présenté brièvement les principales étapes de la carrière de Léontiev, nous présenterons les principales caractéristiques du concept d’activité tel qu’introduit par Léontiev dans l’exemple de la chasse primitive. Nous montrerons finalement qu’en introduisant le concept d’activité dans la psychologie, Léontiev introduit une rupture avec les travaux antérieurement menés à Moscou avec Vygotski tout en s’inscrivant dans la filiation historico-culturelle ouverte par ce dernier.

Mots clés: Activité; Léontiev; Théorie historico-culturelle de l’activité; chasse primitive

Abstract

This text offers a historical commentary on Leontiev's famous example of primitive hunting. After briefly outlining the main stages in Leontiev's career, we will present the main characteristics of the concept of activity as introduced by Leontiev in the primitive hunting example. Finally, we'll show that, in introducing the concept of activity into psychology, Leontiev broke with the work previously carried out in Moscow with Vygotsky, while at the same time following in Vygotsky's cultural-historical footsteps.

Keywords: Activité; Leontiev; Cultural-Historical Activity Theory; primitive hunting

A escolha deste excerto de Leontiev apoia-se em três razões principais. A primeira diz respeito ao lugar central do conceito de atividade, cuja estrutura Leontiev descreve através deste famoso exemplo de caça primitiva. Como lembra (Daniellou, 2005), a “ergonomia de língua francesa” recebeu o conceito de atividade desenvolvida pela psicologia soviética a partir da tradução francesa de duas obras de Leontiev, incluindo “O Desenvolvimento do Psiquismo”, de onde este excerto foi retirado. Esta recepção do conceito de atividade se fez em um terreno cultural já moldado pelo trabalho de Ombredane e Faverge (1955), em que se desenvolveu “uma forma de sincretismo1(Daniellou, 2005, p. 411) entre a abordagem francófona das condutas reais em uma situação de trabalho e “o conceito soviético de atividade humana” desenvolvido em particular por Leontiev 2. Neste quadro francófono, o conceito de atividade foi assemelhado ao de “conduta” e é definido como aquilo que um operador realmente faz para responder às exigências de uma tarefa (Leplat & Hoc, 1983). No entanto, esta aceitação do conceito de atividade revela-se, do nosso ponto de vista, bastante distante daquele desenvolvido em particular por Leontiev, e então daquilo que podemos qualificar como a escola nórdica da teoria da atividade (Bødker, 1991; Engeström, 1987). Isto resulta em numerosos mal-entendidos quando se estabelece o diálogo entre diversas tradições de pesquisa e intervenção relacionadas com a atividade. Este excerto permite-nos assim retomar, na forma de um exemplo famoso, as distinções teóricas elaboradas por Leontiev com o objetivo de alimentar o diálogo entre estas diferentes abordagens.

A segunda razão diz respeito ao lugar que este exemplo ocupa nos trabalhos internacionais contemporâneos dentro das abordagens histórico-culturais da atividade. Frequentemente citado, e portanto mantendo a sua atualidade, o exemplo da caça primitiva está na raiz de conflitos de interpretação.

A terceira razão está ligada à natureza transdisciplinar do conceito de atividade humana. Para o próprio Leontiev (1975/2021, p. 88), “não está escrito na frente da atividade de qual ciência ela é objeto” e por esta razão “a psicologia não deve ignorar a riqueza da atividade humana”. Se Leontiev se posiciona como psicólogo, trata-se, no entanto, de um conceito transdisciplinar que inicialmente não faz parte da tradição psicológica da qual ele se aproveita. Assim, só é possível “explicar cientificamente a natureza e a particularidade do reflexo psíquico apoiando-se no estudo dos processos externos” (1975/2021, p. 86), portanto, na atividade. Mas se a atividade prática exterior dá origem à atividade interior, estas duas formas partilham uma comunidade de estrutura. É, portanto, possível dar conta da estrutura da atividade de abstração independentemente da forma (interior ou exterior) que ela assume (1975/2021, p. 98). O exemplo da caça serve para ilustrar a estrutura da atividade sem reduzi-la imediatamente ao seu significado psicológico, ou seja, a uma “unidade de vida mediada pelo reflexo psíquico” (p.81).

A estrutura deste comentário será a seguinte: após apresentarmos muito brevemente o percurso de Leontiev, destacaremos as principais características do conceito de atividade a partir de trechos do exemplo da caça. A originalidade e a ruptura que Leontiev introduz na psicologia devem-se à centralidade do conceito de atividade na sua teoria. Em uma segunda etapa, argumentaremos, com base numa controvérsia recente, que se a contribuição de Vygotsky prepara a abordagem teórica da atividade de Leontiev, o conceito de atividade (no sentido de Tätigkeit) serve como uma linha de demarcação entre estas duas teorias. Paradoxalmente, portanto, mesmo que o conceito de atividade não seja, ao contrário de Leontiev, central para Vygotsky, este último pode ser considerado como a figura emblemática de uma primeira geração de trabalho no que é internacionalmente denominado a Teoria Histórico-Cultural da Atividade (CHAT, em inglês).

O autor e seu percurso

Para apresentar brevemente o autor, lembremos que Leontiev foi aluno de Vygotsky, com quem trabalhou em Moscovo até o início da década de 1930. Sua contribuição para a abordagem histórico-cultural desenvolvida por Vygotsky é importante, notadamente por meio de seu trabalho sobre a memória (publicado em 1931), exemplar da abordagem instrumental e do método de dupla estimulação desenvolvido em Moscovo na década de 1920. À medida que as condições políticas se tornaram cada vez mais complicadas no período estalinista, Leontiev migrou com outros estudantes para Kharkov, na Ucrânia, a partir de 1932, onde seu grupo de trabalho se tornou conhecido internacionalmente como a “Escola de Kharkov” (Yasnitsky & Ferrari, 2008). Na época de sua morte, em 1979, Leontiev era reitor da faculdade de psicologia da Universidade do Estado de Moscovo e membro da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS. Dois de seus livros foram traduzidos para o francês. O primeiro, intitulado “O Desenvolvimento do psiquismo”, apareceu em 1957 na Rússia e em 1976 na França. O segundo, intitulado “Atividade, consciência, personalidade”, apareceu em 1975 na Rússia e em 1984 na França.

A centralidade do trabalho no Homem e a especificidade do conceito de atividade humana

O exemplo da caça primitiva foi extraído do segundo capítulo da obra “o desenvolvimento do psiquismo”, dedicado ao aparecimento da consciência humana na evolução. Segue-se um capítulo dedicado ao psiquismo animal. Assim, o fato de o exemplo da caça primitiva começar pela questão essencial de saber “o que é esta atividade especificamente humana a que chamamos trabalho” não é trivial. Leontiev, de fato, adere à tese de Engels segundo a qual o trabalho seria a atividade chave para compreender a transição do animal para o humano.

O estudo comparativo da atividade dos animais e dos humanos é importante na escola histórico-cultural. Numa obra de Vygotsky e Luria escrita em 1930, os estudos de Köhler servem de base para estudar as diferenças fundamentais entre a atividade instrumental dos homens e a atividade dos chimpanzés. Sobre o lugar dos instrumentos, Vygotsky e Luria observam que no chimpanzé o uso da ferramenta permanece embrionário: o uso não é permanente e a confecção de ferramentas não existe no chimpanzé: “o uso de ferramentas na ausência de trabalho, é isso que une e separa o comportamento do macaco e do homem” (Vygotsky & Luria, 1992), p. 32). No mesmo espírito, a tese de doutorado (datada de 1938) de Galperin, importante figura da escola de Kharkov e aluno de Leontiev, recentemente descoberta nos arquivos do Instituto de Neurologia de Kharkov, enfocava o significado psicológico do uso da ferramenta em animais e humanos ((Galperin et al., 2023).

Além do uso e da concepção de ferramentas, a diferença entre animais e humanos reside na dimensão coletiva e na divisão do trabalho que está no cerne do exemplo de Leontiev. Desta divisão do trabalho resulta uma diferença profunda na estruturação da atividade entre o homem e o animal.

Por mais complexa que seja, a atividade “instrumental” dos animais nunca tem caráter de processo social, não é realizada coletivamente e não determina as relações de comunicação entre os seres que a realizam. […] O trabalho humano, por outro lado, é uma atividade originalmente social, baseada na cooperação dos indivíduos, que pressupõe uma divisão técnica, ainda que embrionária, das funções do trabalho: assim, o trabalho é uma ação sobre a natureza que liga os participantes entre si, mediando sua comunicação (Leontiev, 1959/1976, p.68).

Nesse sentido, toda atividade humana é um processo coletivo e, ao mesmo tempo, mediado por ferramentas. Enquanto nos animais a necessidade se confunde com um motivo biológico, o trabalho e a sua divisão suscitam uma separação dentro da atividade (coletiva, orientada por um objeto) dos objetivos atribuídos a cada um dos participantes da caça. O que cada um dos caçadores tomados individualmente realiza é uma ação definida como: “um processo cujo motivo não coincide com o seu objeto (isto é, com o que visa), mas pertence à atividade em que a ação é considerada” (Leontiev, 1959/1976, p. 289).

Torna-se clara a distinção entre as ações que permitem a realização da tarefa atribuída a cada participante e a atividade considerada como “um processo coletivo de ação sobre a natureza” (p. 69). A separação entre atividade e ação só pode ser feita pelo reflexo da relação entre os resultados de uma ação e o resultado final do processo coletivo de atividade.

Leontiev vai além ao distinguir as ações das operações que as realizam. Estas operações que “dependem das circunstâncias” mostram claramente a dívida que Leontiev tem para com outro investigador russo: o fisiologista da atividade Nikolai Bernstein 3. Assim, o gesto de lançar a lança para matar a caça depende do cansaço do operador, da posição da caça, do estado da ação, etc. Neste contexto, o gesto ou operação que realiza uma ação não pode ser idêntico a si mesmo: é a sua variabilidade que a caracteriza, variabilidade que é o outro nome dado a esta forma de repetição sem repetição para usar os termos de Bernstein (Lémonie, 2019; Nadin, 2015).

A atividade é, portanto, um sistema hierárquico em três níveis: atividade orientada para um objeto, atravessada por uma divisão do trabalho, realizada através de ações dirigidas a objetivos conscientes, que são realizadas por meio de operações.

Desta concepção da estrutura da atividade, retomando a abordagem materialista marxista de Tätigkeit 4, decorrem diversas consequências que não são isentas de impacto tanto para os debates atuais nas ciências do trabalho como para a metodologia de análise da atividade:

A atividade é um processo inobservável por natureza, porque se distribui no espaço e no tempo por múltiplos sujeitos: é atravessada por uma divisão do trabalho. A observação não pode ser o único método de análise como mostrou Pinsky (1991). Ela constitui certamente um ponto de partida, o início de uma trama, mas nunca a conclusão ou a ferramenta central para a análise da atividade.

A atividade é um processo coletivo de transformação da natureza e que se realiza por meio de ações e operações. A atividade é, neste sentido, um processo histórico que permite colmatar o fosso entre o indivíduo e a sociedade, na medida em que a atividade pode ser concebida como a menor unidade da vida em sociedade.

A atividade é definida não pelos sujeitos que a realizam, mas pelo objeto que a dirige. Neste sentido - e para dar um exemplo - é sem dúvida preferível não falar da atividade dos professores, mas falar da atividade docente, assim como é justo dizer que no exemplo de Leontiev, o batedor realiza ações para assustar o animal dentro de uma atividade de caça.

A atividade é definida por um objeto que atende às necessidades de uma coletividade: neste caso, a necessidade de alimentar a tribo. É uma formação coletiva, histórica, sistêmica, cultural que em suas relações com as ações dá sentido às ações humanas.

As ações que são o “componente essencial” da atividade realizam-na com referência a uma tarefa: “um objetivo dado em condições determinadas”. Assim, a atividade não é o que os indivíduos fazem para satisfazer os requisitos de uma tarefa, mas o princípio explicativo e de significado na sua relação com o que os indivíduos fazem para realizar a tarefa.

Esta concepção de atividade obviamente tem consequências assim que desejamos estudá-la. A análise da atividade é antes de tudo uma análise sistêmica “em vários níveis. É esta análise que permite superar a oposição entre o fisiológico, o psicológico e o social ou a sua redução de um ao outro” (Leontiev, 1975/2021, p. 117). Além disso, como bem viu Lorino (2017):

Não é possível compreender a ação situada se não levarmos em conta as suas extensões históricas e sociais. O batedor faz exatamente o oposto do que deveria fazer se quisesse alimentar diretamente, pois afugenta a caça. O desvio pelo motivo (versus o objetivo) e a natureza coletiva organizada da atividade são essenciais para a sua compreensão e para a sua possível transformação [...] isto mostra os limites das análises centradas no indivíduo (p. 927).

Deve-se acrescentar, sem dúvida, que, como a atividade nunca é fixa, está sempre em desenvolvimento, é no seu movimento e somente no seu movimento que a atividade pode ser apreendida. Isto tem consequências importantes em termos de análise, que só podemos mencionar no espaço deste comentário para sublinhar a contribuição da teoria da atividade de Leontiev para o trabalho de investigação atual relativo à análise da atividade em situações de trabalho.

A contribuição de Leontiev à abordagem histórico-cultural da atividade

Leontiev, considerado como o pai da teoria da atividade, é identificado como o autor mais marcante de uma “segunda geração” de trabalhos da Teoria Histórico-cultural da atividade na linha de Vygotsky (Engeström & Sannino, 2020). A continuidade e também a ruptura entre a obra de Vygotsky e a de Leontiev suscitam numerosos debates que sem dúvida deixam vestígios no sentido atribuído ao conceito de atividade. Aqui iremos apenas debruçar-nos sobre esta problemática com base numa controvérsia recente entre Clot e Schwartz em A revista filosófica da França e do estrangeiroClot, 2015; entre Schwartz, 2015). Clot critica Schwartz, 2007 por situar mal

a tradição filosófica aberta por Vygotsky. Ele o coloca muito rapidamente na linhagem intelectualista da Tätigkeit alemã [...], enquanto toma emprestado o essencial de Spinoza.

Por sua vez, Schwartz responde referindo-se mais detalhadamente a Leontiev do que a Vygotsky e observando que

a reconceptualização marxiana de Tätigkeit penetrou em toda a psicologia soviética, com conteúdos variados dependendo dos autores, incluindo Vygotsky

.

Nessa polêmica, os argumentos apresentados por Veresov (2005, p. 41) apoiariam as críticas formuladas por Clot. O conceito de atividade não constitui de fato um conceito central para Vygotsky: “parece, portanto, que não temos elementos suficientes para afirmar que o conceito de atividade (deyatelnost, Tätigkeit) tenha desempenhado um papel essencial em sua teoria histórico-cultural [de Vygotsky]”. Além disso, ele observa que o uso do termo atividade por Vygotsky estava alinhado com o uso dos fisiologistas e psicólogos de sua época e que, ao contrário da crença popular, o conceito de atividade não pode, indubitavelmente, encontrar suas origens nos escritos de Vygotsky.

Nesse sentido, a teoria da atividade de Leontiev constitui uma teoria diferente daquela de Vygotsky. Essa divergência pode ser resumida de forma sucinta (Bratus, 2022). Para Leontiev, tratava-se de revisitar as teses iniciais do grupo de Moscovo formado na década de 1920 em torno de Vygotsky, Luria e dele próprio e de desenvolvê-las em novas direções para estudar a inteligência prática, isto é, a ação objetiva. Vygotsky, por sua vez, permanece centrado e orientado para o estudo da consciência e mais precisamente para a pluralidade material e semiótica dos instrumentos psicológicos que estão na origem da formação da consciência. Esta pluralidade levou-o a revisitar tradições sobre afetos e emoções, recorrendo no último período da sua vida a Spinoza (Roth & Jornet, 2016) para superar a separação entre intelecto e afeto, pensamento e palavra.

Em última análise, Leontiev continua a linhagem vygotskiana ao mesmo tempo que se distancia dela (Nechaev, 2022) para desenvolvê-la (no sentido de fazê-la tomar uma direção qualitativamente nova) reapropriando-se do conceito de atividade (Tätigkeit) em sua interpretação materialista marxista. Leontiev e seus colegas afirmam aqui a necessidade de focar na atividade prática e material para compreender e analisar o desenvolvimento e o nascimento das funções psíquicas superiores.

Após a saída de Leontiev de Moscovo e a sua ruptura com Vygotsky, o conceito de atividade ganhará, então, consistência conceptual e irá gradualmente diferenciar-se daquele de ação:

Ao contrário de Vygotsky, que se concentrou no estudo do papel da interação entre a fala e o pensamento (e a criação de significado) no desenvolvimento da consciência, os membros da escola de Kharkov colocaram ênfase no estudo da atividade prática humana (Dafermos, 2018, pág. 201).

O grupo de Kharkov, sob a supervisão de Leontiev, conduziu numerosas pesquisas experimentais com base em novas posições teóricas desenvolvidas em relação ao problema da atividade. Os princípios desenvolvidos durante este período são os seguintes:

As funções psicológicas são o resultado da internalização de processos de atividade externa. É um derivado do processo externo, o processo externo interiorizado: “O processo de interiorização não é, portanto, o deslocamento da atividade externa em direção a um plano interno de consciência pré-existente, é o processo durante o qual este plano interno se forma” (Leontiev, 1975/2021, pág. 95)

A estrutura dos processos psíquicos é isomórfica à estrutura da atividade externa da qual a psique é um derivado: “A atividade exterior e a atividade interior têm uma estrutura comum. […] A comunidade macroestrutural da atividade prática exterior e da atividade teórica interior permite-nos analisá-la fazendo, inicialmente, abstração da forma como essas atividades se desdobram” (Leontiev, 1975/2021, p. 98).

Estes dois princípios não são totalmente partilhados por Vygotsky e Rubinstein. É aí que residem, sem dúvida, as razões da ruptura intelectual entre Vygotsky e Leontiev, de um lado, e entre Leontiev e Rubinstein, de outro (Martins, 2013; Mironenko, 2013).

A partir daí, a incorporação do conceito de atividade defende a crítica formulada por Clot. Contudo, é possível mostrar, como aponta Schwartz, as continuidades entre a obra de Vygotsky e a de Leontiev. Se certamente não é ao nível do Tätigkeit que é possível fazer isto, contrastar a contribuição de Vygotsky e a de Leontiev não é inteiramente correto ao nível da análise histórica. Assim, na literatura atual, optou-se pelo termo Teoria Histórico-Cultural da Atividade (THCA ou CHAT em inglês) para designar a linha de pesquisa que evita a oposição das duas abordagens:

O impulso fundamental por trás de uma abordagem CHAT é rejeitar esta dicotomia [entre Leontiev e Vygotsky]. Pelo contrário, os adeptos de uma perspectiva CHAT argumentam que, quaisquer que sejam as suas divergências, Leontiev (1981) reconhece prontamente o papel constitutivo da mediação cultural na sua descrição da atividade, enquanto Vygotsky enfatiza a importância da atividade como um contexto para a ação mediada (1997) (Cole & Engeström, 2007, p. 485).

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1O termo “sincretismo” utilizado por Daniellou mereceria ser discutido. Com efeito, o sincretismo designa a combinação de doutrinas ou sistemas inicialmente incompatíveis. Uma afirmação de Leontiev sobre este ponto é esclarecedora: “É evidente que não é reunindo, sob a mesma encadernação, conjuntos heterogêneos, os fatos e generalizações psicológicas adquiridas que teremos alcançado a síntese científica. Para conseguir isso, devemos refinar ainda mais o aparato conceitual” (1975/2021, pp. 74-75).

2Se Leontiev é considerado internacionalmente como o pai da Teoria da Atividade, foi Rubinstein quem introduziu o conceito na psicologia soviética. Após um período de estagnação durante a era stalinista, entre as décadas de 1930 e 1960, o conceito de atividade tornou-se mais uma vez um conceito central tanto na psicologia como na filosofia soviética. Deveriam ser citados aqui muitos pesquisadores que não mencionaremos devido a restrições de espaço. Mencionemos, no entanto, Ilyenkov, cujo trabalho influenciou grandemente Leontiev, com quem trabalhou.

4Mais marcadamente na obra “Atividade, consciência, personalidade”, Leontiev tem grande cuidado em distinguir os significados do termo atividade em termos de Tatïkgeit e Activitat.

Recebido: 06 de Junho de 2023; Aceito: 03 de Outubro de 2023

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