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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.2 Porto dez. 2023  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.21001 

Pesquisa Empírica

Pianistas no trabalho: uma discussão acerca do fazer musical profissional em São Paulo

Pianistas en el trabajo: una discusión sobre la creación musical profesional en São Paulo

Pianistes au travail : une discussion sur la création musicale professionnelle à São Paulo

Pianists at work: a discussion about professional music making in São Paulo

Helder Capuzzo1 

1Universidade de São Paulo, heldercapuzzo@gmail.com


Resumo

O artigo compartilha parte dos resultados de pesquisa de doutorado (Capuzzo, 2022) que acatou a atividade do pianista na intersecção entre duas dimensões que privilegiam seu trabalho: a primeira, relacionada às elaborações artísticas e criativas de instrumentistas que transitam, prioritariamente, pela música de concerto; a segunda, voltada à inserção laboral dos pianistas na sociedade. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas em profundidade (Queiroz, 1991) com dezoito músicos que vivem e atuam na cidade de São Paulo e em alguns municípios de sua região metropolitana. Contribuíram na realização deste estudo os aportes de ; (Huws, 2017), pela compreensão da morfologia do trabalho na contemporaneidade, bem como as pesquisas de (Becker, 2008) e (Menger, 2005), que problematizam especificamente a temática do trabalho nas artes. Os resultados refletem os movimentos na vida profissional dos entrevistados que buscam conciliar autonomia do trabalho com a segurança financeira.

Palavras-chave: Piano; Mercado de trabalho do músico; Fazer musical; Atuação profissional; São Paulo

Resumen

El artículo comparte parte de los resultados de una investigación doctoral (Capuzzo, 2022) que consideró la actividad del pianista en la intersección entre dos dimensiones que privilegian su trabajo: la primera está relacionada con las elaboraciones artísticas y creativas de los instrumentistas que tratan, principalmente, con la música de concierto; la segunda aborda la inserción laboral de los pianistas en la sociedad. La recopilación de datos se realizó a través de entrevistas en profundidad (Queiroz, 1991) con dieciocho músicos que viven y trabajan en la ciudad de São Paulo y en algunos municipios de su región metropolitana. Este estudio ha aprovechado las investigaciones de ; (Huws, 2017) para comprender la morfología del trabajo en la contemporaneidad, así como las investigaciones de (Becker, 2008) y (Menger, 2005), que problematizan específicamente el tema del trabajo en las artes. Los resultados reflejan los movimientos en la vida profesional de los entrevistados que buscan conciliar la autonomía en el trabajo con la seguridad financiera.

Palabras clave: Piano; Mercado laboral del músico; Creación musical; Actividad profesional; São Paulo

Résumé

L'article partage une partie des résultats d'une recherche doctorale (Capuzzo, 2022) qui a examiné l'activité du pianiste dans l'intersection entre deux dimensions qui privilégient son travail : la première est liée aux élaborations artistiques et créatives des instrumentistes qui traitent principalement de la musique de concert ; la deuxième aborde l'insertion professionnelle des pianistes dans la société. La collecte de données a été réalisée au moyen d'entretiens approfondis ((Queiroz, 1991) avec dix-huit musiciens qui vivent et travaillent dans la ville de São Paulo et dans certaines municipalités de sa région métropolitaine. Cette étude a bénéficié des recherches de ; (Huws, 2017) pour comprendre la morphologie du travail contemporain, ainsi que des recherches de (Becker, 2008) et de (Menger, 2005), qui problématisent spécifiquement le thème du travail dans les arts. Les résultats reflètent les mouvements dans la vie professionnelle des interviewés qui cherchent à concilier l'autonomie au travail avec la sécurité financière.

Mots clés: Piano; Marché du travail des musiciens; Pratique musicale; Activité professionnelle; São Paulo

Abstract

The article shares part of the results of a doctoral research (Capuzzo, 2022) that considered the pianist's activity in the intersection between two dimensions that privilege its work: the first is related to the artistic and creative elaborations of instrumentalists who deal, primarily, with concert music; the second approaches the occupational insertion of pianists in society. Data collection was carried out through in-depth interviews ((Queiroz, 1991) with eighteen musicians who live and work in the city of São Paulo and in some municipalities in its metropolitan region. This study has profited from the research of ; (Huws, 2017) for understanding the morphology of contemporary labor, as well as the research of (Becker, 2008) and (Menger, 2005), that specifically problematize the theme of work in the arts. The results reflect the movements in the professional life of the interviewees who seek to reconcile autonomy at work with financial security.

Keywords: Piano; Musician labor market; Music making; Professional activity; São Paulo

1. Introdução

De quais maneiras os pianistas narram suas experiências profissionais? Até que ponto essas experiências são contadas a partir da elaboração criativa dos instrumentistas, em que são consideradas a relação direta entre músico e instrumento, suas estratégias de estudo, as abordagens prática e reflexiva em torno do repertório? É possível, afinal, pensar no trabalho do pianista como uma "constelação de mediações” 1.que conectam, entre outras coisas, tanto suas relações profissionais quanto suas implicações artísticas?

Questionamentos como esses me levaram, em 2018, a iniciar uma pesquisa de doutorado que acatou, como objetivo principal da investigação, a relação de pianistas com o mundo do trabalho. Mais especificamente, estudei a intersecção entre pelo menos duas dimensões desse universo: a primeira, relacionada às elaborações artísticas e criativas de instrumentistas que transitam, prioritariamente, pela música de concerto - o trabalho do pianista ao piano; a segunda, voltada à inserção laboral dos pianistas na sociedade - o pianista no mercado de trabalho 2.. Desde o início do estudo, a hipótese de fundo sugeria que esses dois tipos de trabalho estão em permanente desequilíbrio, em uma tensão que na maior parte do tempo pode reduzir o primeiro ao segundo. No entanto, também foi importante questionar em que medida é possível inverter essa tendência e observar os modos como o próprio repertório e as experiências no instrumento também podem direcionar a atuação e o fazer profissional.

No presente texto, apresento algumas amostras dos resultados obtidos durante o processo de pesquisa, com foco no fazer musical de pianistas em meio aos diversos compromissos profissionais, seja performances a solo ou em colaboração com outros artistas e aulas de piano, por exemplo 3. São discutidas as maneiras como a prática do piano pode gerar demandas profissionais ao mesmo tempo em que responde a elas, bem como avaliar o impacto do acúmulo de tarefas no dia a dia com o instrumento, além de acatar eventuais embates entre os lados de fora e de dentro da profissão - remetendo, aqui, à discussão proposta por (Latour, 2011) ao analisar o processo de produção do conhecimento científico 4.

Sabe-se, de antemão, que os pianistas se distribuem em variados segmentos profissionais do campo produtivo no qual estão inseridos. Ao tratar daqueles que se dedicam à performance da chamada música de concerto, por exemplo, é esperado que venha à cabeça a função óbvia do recitalista, que está sempre no palco, sozinho ou acompanhado de outros músicos. Mas o pianista muitas vezes exerce funções laborais fora desse espaço e, na grande maioria das vezes, em conjunto com outras pessoas, em salas de aula e de ensaio. As diversas atividades realizadas por esses músicos, portanto, são ocupações que se consolidaram historicamente a partir da divisão do trabalho e da necessidade de se desempenhar uma função laboral, de modo que, nessa perspectiva, a atividade profissional do pianista irá inevitavelmente responder a uma demanda de mercado. Ao sistematizar essas funções, portanto, é preciso levar em conta os contextos nas quais estão inseridas, uma vez que, em um centro urbano brasileiro como São Paulo, podemos notar configurações específicas que podem ou não encontrar ressonância na comparação com outras localidades, brasileiras ou de fora do país 5.

Se é possível encontrar indivíduos em regimes formais de emprego em organismos públicos e privados - poucos e disputados cargos disponíveis em corpos artísticos estabelecidos, escolas de formação e de ensino superior, por exemplo -, verifica-se em número muito maior trabalhadores sem vínculos empregatícios formais. Conforme constatou (Menger, 2005, p. 109), "o auto-emprego, o freelancing e as diversas formas atípicas de trabalho (intermitência, tempo parcial, multi-assalariado…) constituem as formas dominantes de organização do trabalho nas artes", de forma que tais disposições acabaram por desenvolver quase todas as formas flexíveis de emprego.

Assim, a partir das vivências dos pianistas que vivem e atuam na cidade de São Paulo e em alguns municípios vizinhos, partiremos de duas questões norteadoras: 1) de quais maneiras os pianistas experienciam o estudo do instrumento em meio aos compromissos profissionais? 2) de quais formas eles descrevem as rotinas de trabalho, considerando não somente suas ocupações em seus empregos mas também seus trabalhos ao instrumento? Dessa forma, espera-se compreender melhor em quais medidas é possível manter uma prática de estudo em convívio com períodos muitas vezes exaustivos de ensaios, aulas, deslocamentos e outras demandas particulares. Se a realização musical depende, em grande medida, de um espaço privilegiado de atenção e de criatividade, também espera-se entender de quais formas é possível criá-lo sob condições de incerteza profissional, típicas do trabalho nas artes (Becker, 2008; Menger, 2005; Segnini, 2006) e que, por sua vez, reiteram a tendência verificada nas configurações do trabalho na contemporaneidade, cada vez mais heterogêneo, complexo e fragmentado (Antunes, 2009; Huws, 2019), em um cenário que coloca a figura do artista enquanto uma espécie de arquétipo desse trabalhador do presente (Menger, 2005).

2. Caminhos metodológicos

Optou-se pela realização das entrevistas em profundidade sob a forma de histórias de vida resumida e depoimentos como estratégia para compreender as diversas dimensões da formação, da prática artística e do universo profissional do grupo de músicos selecionados. Segundo Maria Isaura Pereira (Queiroz, 1991, p.5), a história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas destes também recolhe tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no grupo . . . , na verdade, tudo quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo . . . . A história de vida se define como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu.

Foi elaborado um roteiro prévio, cujas questões transitam entre a formação e a atuação laboral dos pianistas, a rotina de estudos com o instrumento, conciliações das expectativas dos planos pessoais, artísticos e profissionais, bem como a possibilidade de atuação em outras atividades que possam compor sua renda financeira. No presente texto, acatam-se as reflexões em torno das motivações para a prática e das rotinas de estudo no instrumento, bem como as expectativas em torno da atividade pianística. O projeto de pesquisa foi submetido, via Plataforma Brasil6., ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) em setembro de 2019 e aprovado em outubro do mesmo ano.

A amostragem abrange dezoito interlocutores. Cada pianista convidado a participar obedeceu aos seguintes critérios: eles/elas deveriam estar em atividade profissional na cidade de São Paulo e/ou nas cidades vizinhas de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul; deveriam dedicar-se à música de concerto como objeto de estudo e trabalho; deveriam possuir reconhecimento profissional em suas áreas de atuação e, finalmente, ter disponibilidade e interesse em participar da pesquisa. Trata-se, portanto, de uma amostragem intencional, na qual são selecionados participantes que possam informar uma compreensão do problema de pesquisa (Creswell, 2014).

Foram considerados profissionais os músicos que se autodenominam como tal e que possuem formação especializada, trânsito no repertório com o qual prioritariamente trabalham, bem como uma dedicação contínua ao instrumento. São esses os parâmetros adotados, por exemplo, por Dilma Pichoneri, 2006, p. 11) e Camila Bomfim, 2017, p. 216) ao considerarem, em suas análises, músicos de orquestra profissionais. No entanto, no caso do universo pesquisado pelas autoras, é notável a centralidade da orquestra sinfônica como catalisadora das possibilidades de emprego para músicos, característica que não se aplica aos pianistas. O mais comum é que o pianista atue em mais de um segmento, com experiência profissional como freelancer e também como funcionário de instituições públicas, privadas e do terceiro setor. Leva-se ainda em conta a observação de Freidson, 2019, p. 55):

Não se tenta determinar o que é profissão num sentido absoluto mas, sim, como as pessoas de uma sociedade determinam quem é profissional e quem não o é, como eles “fazem” ou “constroem” profissões por meio de suas atividades e quais são as consequências da maneira como eles se vêem e realizam seu trabalho.

Procurei contatar pianistas que trabalhassem por conta própria, em centros de ensino públicos e privados, corpos artísticos, empresas vinculadas ao terceiro setor, projetos sociais, entre outros espaços. Essa medida foi adotada com objetivo de captar diferentes experiências a respeito do fazer pianístico em âmbito profissional e, assim, acatar também as disparidades nas relações contratuais de trabalho e de criação musical verificadas nas esferas das artes, em especial da música de concerto.

3. Conhecendo os interlocutores

O grupo de interlocutores é formado por dez homens e oito mulheres com idades que variavam, à época da entrevista, de 25 a 72 anos. As entrevistas tiveram início em 22 de outubro de 2019 e se estenderam até 10 de maio de 2021. Cinco delas ocorreram face a face, enquanto as outras treze foram realizadas pela plataforma de videoconferência Zoom. Os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos profissionais, evitando transtornos de diversas ordens. São eles (Tabela 1):

Tabela 1 Entrevistados pela pesquisa (nome fictício, idade e data da entrevista) 

Dentre as áreas de atuação, o pianista profissional muito provavelmente irá trabalhar em mais de um segmento, com experiência em iniciativas por conta própria, em parceria com outros artistas ou como funcionário de instituições públicas e privadas, em vínculos de trabalho formais e, em grande maioria, informais. Na Tabela 2, é possível visualizar as áreas em que cada entrevistado informou trabalhar7., identificado pela letra informada na Tabela 1.

Tabela 2 Áreas de atuação profissional dos pianistas entrevistados 

A apresentação dos resultados a seguir recorre amplamente à citação de trechos das entrevistas. Para a clareza do texto, pequenas adaptações precisaram ser realizadas nas falas transcritas dos entrevistados. Além disso, algumas edições foram realizadas para preservar a identidade tanto dos interlocutores como de pessoas citadas: nomes de pessoas foram substituídos por nome; nomes de instituições foram substituídos por instituição; nomes de empresas foram substituídos por empresa; nomes de cidades e países foram substituídos por local.

4. O trabalho do pianista ao piano

São variados os cenários em que o trabalho de um pianista que se dedica à música de concerto é demandado: o professor em aula com um aluno, com uma turma de alunos ou com uma série de alunos ou de turmas; o pianista que acompanha aulas de canto ou de dança; o ensaio do coro ou da orquestra; concertos os mais variados; um recital solo ou de câmara, presencial ou online; uma gravação; o pianista em interação com o público pelas redes sociais. De modo geral, são demandas que acontecem em espaços determinados e previamente reconhecidos, incluídos aí os ambientes digitais. O sujeito, pianista, normalmente se coloca em relação a outros indivíduos e, muitas vezes, a instituições. Podemos pensar em cada uma dessas situações como momentos de entrega de trabalho, seja ele uma aula, um acompanhamento pianístico, uma performance, um recital ou um concerto, uma live. O pianista, nesses casos, desempenha uma função em relação a uma exterioridade: a entrega de seu trabalho a outrem. No entanto, para que muitos desses cenários característicos da atuação profissional possam ocorrer, o desempenho do pianista quase sempre depende de uma atividade prévia essencial, também um trabalho, que irá prepará-lo musicalmente para tais situações: a prática ou, conforme se habituou chamar no Brasil, o estudo do piano. Essa atividade específica é um dos modos, talvez o mais recorrente, com os quais os pianistas falam do contato, quase sempre solitário, entre eles e o instrumento8..

Em linhas gerais, a prática e/ou o estudo, considerados então como a etapa preparatória à entrega de um trabalho, são resultados de uma série de ações desempenhadas pelos indivíduos em direção à realização musical. Cada tipo de realização irá demandar um conjunto de ações a serem levadas em consideração pelo músico 9 - pode-se imaginar a performance de uma ou mais obras musicais como a alternativa de realização musical que primeiro vem à mente, mas é plausível considerar também uma situação de aula, por exemplo, sem esquecer que a performance de determinadas obras tende a ser o principal objetivo de uma aula de instrumento. De todo modo, nas atividades planejadas e realizadas especialmente para um evento específico estão contidas também diversas informações complementares, saberes, competências e experiências acumuladas durante a trajetória de vida dos músicos. As diferentes temporalidades inerentes a essas ações se afetam e se complementam continuamente 10.

Ao tratar da realização musical instrumental sob a ótica do movimento humano, (Vezzá, 2013, p. 15), afirma que “o corpo do músico posiciona-se para produzir um movimento que contenha em si as características da música - sonoridade, afinação, melodia, ritmo, expressividade, sentimento”. Os movimentos, por sua vez, são padrões bastante complexos de ativação do corpo e se relacionam a diversos fatores, como “à percepção do ambiente, à interação com seus aspectos materiais e conceituais e às emoções que surgem neste processo” (Vezzá, 2013, p. 20). Nessa perspectiva, podemos pensar no estudo de piano também como uma exemplar manifestação do trabalho humano, uma vez que, como tal, promove o “dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos”, assim como formulou Marx (2017, p. 121).

Em um estudo a respeito da aprendizagem da performance musical, com propostas para a fundamentação da prática de instrumentos e de canto, Cerqueira, Zorzal e Ávila (2012, p. 94) descrevem o trabalho dos instrumentistas como

semelhante à profissão do artesão, que trabalha individualmente [...] a matéria-prima, moldando-a cautelosamente até a elaboração do produto final. Este tipo de ofício requer contato íntimo com o objeto, dedicação de tempo, atenção a detalhes, cuidados estéticos, e por assim ser, é dotado de um viés artístico, personificando uma identidade cultural.

Estudar piano, portanto, é uma atividade incontornável ao pensarmos no trabalho de pianistas profissionais. E é também verdade que, a depender do repertório e da situação nas quais as diversas atuações dos pianistas estão inseridas, o estudo será sempre diferente. Os procedimentos pianísticos adotados em torno dessa prática, em grande medida pessoais nas maneiras como são abordados, figuram como dos mais importantes componentes preparatórios em um processo que visa à performance musical11. (Rink, Gaunt & Williamon, 2017). Mesmo no caso dos músicos que se dedicam exclusivamente à docência do piano, esses procedimentos tendem a concentrar boa parte das atenções dos professores em aula ou fora dela.

Para além do convívio muitas vezes intenso e disciplinado com o instrumento - representado, no caso dos interlocutores dessa pesquisa, pelo acúmulo de tempo dedicado a atividades de aprendizagem das obras musicais -, a manutenção de uma constância da prática envolve também fatores sociais e motivacionais, tais como tempo disponível, acesso à infraestrutura, professores, demandas externas, entre outros (Sloboda, 2000; Harder, 2008; Wagner, 2010). Assim, uma análise sobre o ato de estudar piano que acate não apenas as demandas estritamente sonoras, estilísticas ou técnico-instrumentais, mas que também leve em consideração outras questões relacionadas ao universo laboral do músico, ganha contornos ainda mais complexos. Como e por que estudar piano em meio a uma agenda profissional que sobrepõe compromissos diversos? Quais tipos de demandas pianísticas determinados trabalhos requerem? Como viabilizar meios de ganhar a vida tocando piano? No escopo desta investigação, pretende-se avizinhar esses universos com objetivo de avaliar possíveis impactos e transformações mútuas.

5. O estudo pelo estudo?

Durante a leitura das transcrições das entrevistas, pode-se perceber uma valorização do momento do estudo pianístico. As falas demonstram a importância desta atividade que, de certa maneira, parece ultrapassar o sentido profissional do estudo, como se representasse apenas algo “desinteressado”, ou como se a prática fosse explicada somente pela prática, ou ainda uma extensão da personalidade de alguns dos interlocutores.

Aos 72 anos, Bárbara questiona: “Você já encontrou um artista que fez 70 anos e resolveu se aposentar? Não existe, porque o amor pela profissão é mais forte do que querer ter tempo para a natação, para a ginástica. Eu não quero fazer essas coisas, eu quero estudar piano”. Pode-se destacar, também, a maneira com que Gustavo, aos 27, posiciona a rotina de estudo no centro de sua vida produtiva: “estudar piano é o principal e, só aí, trabalhar”.

Quando perguntados a respeito de suas vivências com o piano, alguns entrevistados destacam o prazer e a satisfação que sentem ao estudar o instrumento. De modo geral, nesses casos, os relatos posicionam essa experiência com relativa autonomia em relação às obrigações e eventuais realizações profissionais. Nota-se ainda que, diferentemente de um eventual prazer na performance musical destinada a um público, por exemplo, os pianistas aqui enfatizam uma fruição proporcionada pela prática do piano nas etapas de aprendizagem de obras musicais e, em certas falas, da manutenção da técnica pianística.

Carlos e Rosângela, por exemplo, dizem gostar especialmente do momento em que reconhecem as demandas técnicas solicitadas por determinada peça e os eventuais desafios a serem superados, visando o aprendizado de obras para serem tocadas em ensaios e recitais.

Acho fantástico “entrar” em qualquer obra. É até mais gostoso quando pego uma peça nova, porque vou conhecer a obra naquele momento. Não gosto muito de ouvir antes e depois tocar. Primeiro eu toco, estudo… e o mais gostoso é “entrar” na obra e descobrir que mecânica eu posso usar para que eu leia o mais rápido possível. Isso me deixa alucinado. Eu curto muito. (Carlos)

A melhor coisa do mundo é fazer alguma coisa que você gosta: você se diverte e ainda ganha dinheiro. Mas não é dinheiro que a gente quer… a gente quer se aprimorar e conseguir cada vez mais agilidade, não sei explicar. [...] Estava estudando Rachmaninoff, a Rapsódia [sobre um tema de Paganini]. Tinha um trecho com acordes estendidos, desdobrados… uma nota e depois o acorde, mudando de lugar. Peguei o Beringer 12 e inventei um estudo para resolver o problema. Eu gosto muito do Beringer. Inventei qualquer coisa… eu modifico o estudo para ficar parecido com a dificuldade que eu tenho lá na peça. Você tem um problema qualquer para algo que não está saindo e você inventa um jeito de fazer. (Rosângela)

A principal fonte de renda de Adriano é fruto de seu trabalho como pianista colaborador em um coro lírico sediado em São Paulo. No entanto, ele afirma que seu estudo pianístico vai além do repertório para o qual tem responsabilidade de montar e ensaiar cotidianamente. Ele diz que recorre à infraestrutura da instituição na qual trabalha para se dedicar ao instrumento.

Gosto de ficar trabalhando o dia inteiro. Geralmente, chego às dez da manhã, tenho ensaio, almoço, tomo café, pego uma salinha e fico até às dez da noite. É um lugar mais tranquilo, não tem telefone, televisão, não tem distração. Às vezes, o repertório do coro é tão complicado que saio do ensaio e já vou estudando a obra que vai ser feita em seguida, mas também estudo outras peças. [...] Sempre gosto de estar lidando com música. Por exemplo, estudar uma sonata de Beethoven, de Mozart… porque se você ficar tocando só redução [orquestral] por muito tempo, você acaba perdendo detalhes de refinamento. Acho bom voltar a fazer um Bach para estudo de polifonia… é importante, uma gasolina para o trabalho com o coro, também. Uma coisa ajuda a outra: encarar um repertório solo depois de trabalhar com uma redução orquestral enriquece, e vice-versa. (Adriano)

Boa parte das relações entusiasmadas e afetuosas entre os pianistas e suas atividades no instrumento parecem permanecer ao longo da trajetória pianística dos entrevistados. Ainda que possam haver dúvidas e dificuldades de ordens artística, econômica, administrativa, familiar, entre outras, os pianistas reiteradamente expressaram admiração e respeito por seu ofício. É o caso de Adriano, quando reconhece o valor que ele confere às obras musicais e a possibilidade de conviver com elas por meio da prática pianística. Carlos, por sua vez, reforça a prioridade do estudo pianístico no dia a dia, independentemente dos desafios de organização enfrentados cotidianamente.

Todo trabalho tem os “perrengues”, dissabores, mas na hora em que eu estou tocando ou estudando, é engraçado, eu vou para “dentro da obra”, seja qual for. Para mim, para valer a pena, tem que ter essa relação, essa “viagem”, em todos os momentos. [...] Eu gosto muito de música, a gente aprende muito com “esses caras” [os compositores] fazendo uma ópera, ou fazendo música de câmara… tem muita coisa e a gente vai morrer sabendo dez por cento do que eles sabiam. [...] É um privilégio ter contato com essas obras de Beethoven, Verdi, Bach, qualquer um desses. A gente aprende muito e melhora como ser humano, como músico e como artista. (Adriano)

O mundo pode estar caindo e a necessidade de estudar piano não se altera. Já estudei em meio à tempestade pessoal, com meu irmão morando comigo, tendo que dividir espaços e eu pensava: “como vou fazer um recital nessas condições?” E foi terrível, foi muito difícil montar repertório. Mas montei, tocamos e foi um desbunde. Aprendi que não interessa se chove canivete, faz sol, a tua obrigação tem que ser feita. [...] Pode cair o mundo, eu vou ter que estudar o concerto de Bach… então deixa eu estudar o concerto de Bach e deixa o mundo cair. Acho que isso não se altera não… para mim, acho que sou eu quem define: isso é mais importante do que o que está acontecendo. (Carlos)

Leonardo comenta como ele mesmo organiza suas tarefas diárias, de modo que sua agenda contemple, todos os dias, um período dedicado ao piano. Em suas palavras, ele pratica o instrumento “por prazer”. E, para isso, afirma bloquear qualquer assunto externo ao estudo do piano para garantir sua prática.

Estudo todos os dias de manhã… é a hora que eu mais gosto de estudar piano. Procuro não marcar aluno nesse horário para poder ficar no piano o tempo que der. Às vezes é uma hora, às vezes é mais, mas pelo menos uma hora no piano todo dia com certeza, e é por prazer, mesmo. Também vou para o piano por obrigação, quando tenho que aprender alguma coisa… se for o caso até cancelo aluno. (Leonardo)

Gilberto, por sua vez, sublinha a correspondência assimétrica entre a disciplina para o estudo do instrumento e a disposição para a realização dos demais afazeres. Nesse caso, o pianista relata que o prazer pelo estudo figura como um dos elementos determinantes para a realização da prática.

Sou muito desorganizado para a vida inteira, mas para o piano, pelo contrário, eu tenho uma capacidade de disciplina invejável. Como é uma coisa que eu faço com muito prazer, posso passar o dia estudando ou escutando música, se tenho tempo. (Gilberto)

Associando o estudo pianístico à esfera do bem-estar, outros entrevistados relatam uma espécie de necessidade pela prática pianística, que se traduz quase como um sintoma. Para Marcelo, além de um tipo de urgência pelo estudo, ele reconhece que a aprendizagem e/ou a manutenção da aprendizagem de obras musicais promovem uma comunicação entre intérprete e compositor não só por meio das ideias musicais, mas também pelos aspectos anatômicos que compõem a escritura da peça estudada. Sérgio, por sua vez, credita ao estudo pianístico uma importância basilar, a ponto de considerá-lo uma prática de autocuidado.

Sinto necessidade de estudar. É uma necessidade física e também uma necessidade espiritual . . . Tocar Chopin, Schumann, Bach, estar com esses mortinhos [risos]… Para mim, eles são enormes companhias. . . . Reproduzir com as mãos o que Beethoven fez, cada gesto, e descobrir o gesto que ele pensou, o dedilhado que ele pensou, a mão que ele pensou. Tudo isso é uma maneira do compositor se comunicar. Primeiro ele se comunica com você, com o teu corpo… acho muito maluco o seu corpo entrar em sincronia com a música e com o corpo de Beethoven e com a música dele. É uma coisa muito maluca, mas a gente vive isso. Acho que só um pianista consegue entender. (Marcelo)

Percebi que a rotina de estudos no piano é benéfica para a minha saúde mental mesmo que eu não tenha compromissos profissionais. Eu começo a ficar irritado e perder qualidade de vida quando me distancio… tem alguma coisa ali que está no princípio. Foi minha primeira escolha, eu gosto muito de tocar piano. (Sérgio)

As falas de Pedro e Joel, por sua vez, destacam a dificuldade de separar estudo e não estudo, vida pessoal e vida profissional. É interessante perceber como, nesse ponto, o trabalho se confunde com a vida do indivíduo. Nesses casos, os pianistas retratam o estudo pianístico como uma faceta do trabalho que exerce influência, por um lado, na atuação profissional - aulas, ensaios e performances, por exemplo - e, por outro, em momentos mais despretensiosos. Trata-se de um limiar entre vida e trabalho, em que a realização musical pode ser entendida não somente como um produto de seu trabalho, mas também como produtora de códigos, costumes e hábitos. Enquanto Pedro observa uma forte identificação de si como pianista, ao mesmo tempo em que afirma não gostar de tocar em público - uma das situações mais previsíveis quando pensamos sobre a atividade musical -, Joel relata possuir uma conexão existencial com a música, considerando-a mais abrangente do que uma atribuição profissional poderia, no senso comum, supor.

Estudo todos os dias… estou o dia inteiro em contato com música, ouvindo uma gravação ou lendo, ou dando aula, não sei que horas começa e termina o estudo, é misturado. Eu gosto de estudar, tenho uma veia meio pianista, gosto de tocar umas obras, mas sempre para mim… odeio tocar em público. (Pedro)

Considero que a minha vida pessoal e profissional são muito ligadas. Vamos supor que estou na minha hora de lazer… vou jogar videogame, ver um filme. Sou músico e fico muito sensível à música… fico ouvindo a trilha e pensando no modo, na instrumentação. Vou para o piano e tento achar a melodia… estou na minha atividade de lazer ou na atividade profissional? É um pouco difícil traçar esse limite se estou na minha atividade profissional ou não [...] Música é mais do que só minha atividade profissional. Tenho uma relação muito existencial com ela. (Joel)

Cada uma à sua maneira, as narrativas descrevem, muitas vezes lançando mão de recursos subjetivos e até mesmo poéticos, atividades cujo engajamento dos indivíduos parece ultrapassar as disposições que enquadram o trabalho e as atividades laborais em um sistema econômico, confirmando a possibilidade e o interesse em abarcar a esfera da prática e da atividade no mundo do trabalho. Verificada em boa parte das falas, a identificação do trabalhador com sua profissão, aliás, é característica presente nas ocupações que formam o complexo do “trabalho criativo” 13 (Huws, 2017). Sabe-se, no entanto, que os pianistas continuamente precisam equilibrar a busca por autoexpressão e por reconhecimento com a necessidade de ganhar a vida. É a partir desta imbricação entre arte e trabalho que aprofundamos a análise das entrevistas, a seguir.

6. Disparadores para o trabalho

Para além do reconhecimento, por parte de alguns entrevistados, da fruição e do bem-estar proporcionados pelo estudo, parece que a deliberação de objetivos específicos enquanto ação catalisadora em direção à prática pianística se sobressai como um consenso importante para a maioria dos interlocutores. Atitudes aparentemente “básicas” ou “banais”, como a) dirigir-se ao piano, b) garantir e adequar a infraestrutura e o ambiente necessários à rotina com o instrumento, c) ocupar ou mesmo abrir espaços na agenda para o estudo, tendem, ao mesmo tempo, a estimular e a refletir tal deliberação 14.

Nesses casos, firmar um compromisso para si parece ser uma das principais ações estipuladas pelos instrumentistas. “Se você tem um objetivo, vai em frente. Você tem que ter um método de organização mental e física”, aponta Rosângela. Ela conta como, à época da entrevista, estava se preparando para tocar com o seu grupo de câmara. Sua descrição leva em consideração, justamente, alguns dos procedimentos “básicos” apontados no parágrafo anterior: entre outras ações, a pianista se dirige ao instrumento em um ambiente favorável à prática; elenca dificuldades técnicas que poderá enfrentar na preparação para a performance; sistematiza as prioridades de estudo; reserva um tempo para organizar a partitura de modo a garantir a fluência das viradas de página durante o ensaio ou apresentação; trabalha diretamente nos trechos que elencou como prioritários.

Você se organiza e prevê que vai ter trabalho. Por exemplo, ontem eu estava lendo o Max Bruch que o pessoal escolheu. Cheguei na faculdade e não tinha aluno… fui para a sala e comecei a ler a partitura. A minha leitura é boa e já vai mais ou menos, vou “matando” o dedilhado e vendo algum problema que pode surgir. Começo a entender o negócio, tenho a música no ouvido. Faço uma leitura geral e já sei que tal pedaço vou ter que voltar. Fui almoçar, voltei, colei as partituras e organizei - tem as viradas de página, tem que preparar e saber onde é melhor virar. Organizo tudo e meu estudo já vai mais direcionado. Fiz uma leitura de manhã, voltei do almoço e fui direto nos problemas. Eles vão querer ensaiar logo mais e vou ter que estar com a música mais ou menos aprendida. (Rosângela)

Além da atuação como camerista, Rosângela é professora e pianista colaboradora em uma instituição de ensino superior. Nesse trabalho, sua função principal é ensaiar, orientar e tocar nos recitais que os instrumentistas e cantores realizam durante o curso, bem como acompanhar as aulas de regência. “Tenho doze horas semanais na faculdade, mas tenho sempre que estudar em casa… especialmente quando tenho alguma coisa programada com o trio”, relata. Ela vive conciliando o trabalho institucional com a pesquisa e com a performance de repertório voltadas para o conjunto de câmara que mantém com dois colegas. Segundo ela, a prioridade é trabalhar as peças que apresentam maior dificuldade técnica, tendo em vista as datas agendadas para aulas, ensaios e recitais, independentemente da demanda - proveniente tanto dos alunos da faculdade quanto do seu grupo instrumental. Na fala a seguir, ela descreve o volume de trabalho dedicado às colaborações com os alunos da faculdade de música:

Eles [os alunos da faculdade] têm música de câmara durante três anos e precisam apresentar, a cada seis meses, um programa em banca. Uma banca pública, normalmente no auditório, e eu acompanho todo mundo. Você pode ter um acompanhamento simples mas, de repente, tem uma sonata de Brahms. Toquei em duas formaturas no mês passado, [as obras foram:] Sonata de Brahms e Sonata de Grieg. . . . E tem os cantores: vou “salteando”, a cada 15 dias eu atendo ou cantor ou instrumentista, porque tem muita gente, não dá para atender todo mundo. . . . Acompanhar toda essa turma, eu sozinha, e ainda [as aulas de] Regência, que tem umas versões horríveis15. [...] Tenho muita coisa para fazer, não tem condição. Eu vou lá ensaiar mas, nos dias que estou em casa, preciso “malhar” porque, se não, eu não dou conta. (Rosângela)

De forma semelhante, Carlos afirma que, em sua experiência, a disciplina para o estudo surge apenas a partir do reconhecimento das tarefas a serem desempenhadas no instrumento. Segundo o músico, estabelecer um objetivo à sua frente é o primeiro passo para que ele consiga planejar e realizar a preparação para performances específicas em ensaios e recitais. Ele conta:

É uma coisa que repito sempre para mim: a disciplina só pode vir quando você tem uma meta pela frente. E não acho que seja uma questão de: “Ah, eu sou preguiçoso! Se eu não tiver uma meta eu não estudo”. Não, acho que quando você coloca a meta na frente, você sabe que você tem um tempo para cumprir. Você olha a obra e pensa: “É, vai ser complicado eu fazer isso, é melhor eu começar agora”. É isso que me move a sentar no piano e ter que estudar. Se eu tiver que tocar com alguém, vou ter que subir no palco. A “neurose” entra aqui [aponta para a cabeça] e eu tenho que estudar piano. A disciplina nasce na hora. Hoje, eu toco assim. Não sei como isso acontece com os outros pianistas mas, comigo, se eu não tiver a meta de sentar lá e tocar… tudo bem, um dia eu abro a tampa do piano, vou lá, dou uma lida em alguma coisa porque deu vontade, mas sentar e estudar mesmo, não, não vem. Comigo, hoje, funciona assim. (Carlos)

Todos os semestres, Carlos se apresenta com uma série de estudantes. São cantores e instrumentistas de cordas, sopros e percussão, em recitais que compõem o curso de uma escola de formação musical. Entre outras funções - nessa mesma instituição, Carlos também é professor de piano e de música de câmara -, ele cumpre uma carga horária semanal dedicada à colaboração com esses alunos. Atualmente, esses ensaios e recitais são as principais metas que o pianista identifica para manter seu estudo pianístico. “Faço os ensaios com eles durante o semestre para o recital. E aí, não adianta, os dedos precisam funcionar!”.

Para Regiane, que atua principalmente como professora de piano e empresária - ela dirige uma escola de formação musical privada em São Bernardo do Campo -, sua prática no instrumento se restringe, basicamente, ao repertório que irá trabalhar com seus alunos. “Consegui organizar a minha rotina para estudar uma hora por dia, pelo menos”, diz ela. “Busco estudar as peças que vou passar para os alunos, para ser um bom modelo para eles. A maioria é iniciante mas tenho também alunos mais avançados, que já tocam sonatas de Haydn, e Mozart, peças de Chopin… então eu preciso ter o repertório deles na mão para conseguir demonstrar”, continua.

Carolina atua, principalmente, como professora particular na cidade de São Paulo e, até 2019, mantinha frequente atividade como camerista em séries de concertos e como pianista colaboradora em festivais e concursos no Brasil e nos Estados Unidos, país onde realizou seu mestrado e estabeleceu vínculos profissionais. Ela também reconhece a importância da definição de objetivos para guiar seu estudo pianístico. Inclusive, compartilha uma situação em que a ausência dessas metas, intensificada pela paralisação das atividades presenciais decorrentes da pandemia da covid-19, a deixou, em suas palavras, “um pouco perdida”, e ela julga que tal circunstância comprometeu diretamente sua prática.

Eu só estou estudando, lendo… tudo sem objetivo, porque não tem o que fazer, não tem onde tocar e a rotina tem sido essa. Na vida inteira, fui movida a objetivo… nunca tive oportunidade de estudar aquilo que eu quis. Eu começava a ler uma sonata que eu queria e, de repente, aparecia uma coisa totalmente diferente para tocar. Acabava parando de ler a sonata, não dava para fazer tudo ao mesmo tempo… tem gente que consegue, mas eu não tenho essa capacidade. Preciso estudar muito para tocar, não tenho facilidades, para mim é muito esforço. . . . Pela primeira vez, tenho essa oportunidade de estudar o que eu quero e me sinto um pouco perdida. É muito estranho, tem um universo de repertório - e não sou mais criança, que tem uma vida inteira pela frente… fico me perguntando o que eu vou estudar. (Carolina)

Pode-se afirmar que, para a maioria dos entrevistados, os compromissos profissionais impulsionam as principais motivações para o estudo de piano e, portanto, também direcionam a escolha do repertório a ser trabalhado, a organização do tempo dedicado à prática e a sistematização das tarefas a serem realizadas no instrumento. As preparações para ensaios, concertos e recitais estimulam a rotina de estudo, com a possibilidade de eventuais adequações para conciliar essa rotina com outras atividades. Em boa parte dos casos, o estudo começa a tomar forma efetiva apenas após o estabelecimento desse compromisso. No caso dos pianistas que atuam como performers, esse fato fica bastante evidente nas seguintes falas de Rosângela e de Fabiana: “Hoje, meu estudo é baseado nos compromissos que tenho de trabalho, porque agora não estou com nenhum outro projeto objetivo”, informa a primeira. Já a segunda afirma:

Não tenho muito concerto porque eu dou aula e não dá tempo de fazer muita coisa. E o estudo vem a partir do que eu tenho para tocar. Não consigo manter um repertório na mão, ficar tocando a mesma coisa todos os dias. Se eu não tiver que apresentar novamente a obra, nunca mais volto a tocar. (Fabiana)

Gustavo também relata como a agenda de concertos e recitais o auxiliam na organização do estudo:

Os concertos me ajudam a estudar, de certa forma. Por exemplo: eu já sei que, para o ano que vem, tenho três concertos. São duas apresentações com orquestra e um recital solo. O programa é bem flexível - eu posso escolher os concertos que eu já toquei -, mas é importante que, na minha idade, eu aprenda outros concertos para tocar. Além disso, também estou em um processo seletivo de Mestrado, não sei ainda que demanda isso vai acarretar. Programo as datas e aceito as coisas da maneira que dá, e as que eu quero. Aceito, muitas vezes, para ir para o piano estudar, porque senão realmente não vou, com essa demanda de trabalho que atualmente eu tenho. (Gustavo)

Marcelo, atuante como professor universitário, pesquisador acadêmico e concertista, descreve o panorama de seus compromissos de trabalho, de modo a evidenciar como seus estudos ao piano estão inteiramente associados a eles. Quando perguntado de qual maneira ele determina o repertório que irá trabalhar, ele explica que as obras selecionadas são decorrência ora de uma escolha pessoal, ora de uma encomenda. Ele conta que, no ano anterior à entrevista - realizada em junho de 2020 -, gravou um disco de música de câmara e solou três concertos para piano e orquestra. Sobre a gravação, ele relata, sucintamente, que a ideia foi concebida a partir da percepção de que o repertório de um determinado compositor poderia atrair interesse de alguma instituição cultural disposta a patrocinar a gravação:

Começou esse projeto pelo seguinte: faço um trabalho de piano e voz com um um cantor já há alguns anos. No último recital que a gente fez, no Rio de Janeiro, em 2018, surgiu a vontade de gravar alguma coisa. Fiquei com aquilo na cabeça e, depois de alguns meses, vi que, no ano seguinte, seria o centenário do nome [compositor], seria uma data importante. Acho que a gente precisa ver o que o mercado vai valorizar. Aí começou… fiz o contato com a família do nome [compositor] e comecei a conversar para discutir o repertório. . . . Depois, oferecemos o projeto para uma instituição, que gostou muito da ideia, “bancou” e a gente gravou. (Marcelo)

No momento da entrevista, Marcelo se prepara para dois projetos distintos: uma série de recitais de música de câmara programados para acontecer em uma sala de espetáculos paulistana e um recital solo, a ser realizado no Rio de Janeiro. Ele explica que, no caso da série de recitais de câmara, a idealização do repertório foi feita por outras pessoas e ele simplesmente aceitou participar, levando em consideração o repertório, em primeiro lugar. “É um privilégio poder estudar e apresentar a integral das sonatas para piano e violino de Beethoven”, comenta. Já para o recital solo, as obras foram escolhidas por ele mesmo. A pandemia da covid-19, vale dizer, acabou afetando os dois trabalhos. Sobre os recitais de São Paulo, ele explica que já havia sido decidido uma adaptação: “Vamos fazer uma gravação em vídeo, com recitais transmitidos. Uma tentativa de manter a programação de concertos”. Já o recital na capital fluminense estava em aberto. “Ainda não sei se está mantido ou não”, explica.

Se as performances e as respectivas preparações decorrem, normalmente, de compromissos agendados com instituições e/ou com outros instrumentistas, Marcelo relata ainda que procura conciliar esses trabalhos com sua atividade como docente universitário. Em sua trajetória, ele posiciona o trabalho de professor e a produção acadêmica como resultados da pesquisa e da realização artística.

A gente precisa escrever artigos e ter ideias, parar para escrever... demora... é uma atividade difícil colocar em palavras, ler, fazer um parágrafo bem feito, tudo isso demora muito tempo. Fora a própria atividade pedagógica. Você tem que ter as aulas, as atividades de extensão, mas o que toma muita energia é a escrita, produção de artigos que, inclusive, sempre relaciono com a minha prática. Isso aconteceu também como decorrência, foi espontâneo, não foi porque eu previ que iria fazer assim. O que ocorre é eu estudar uma obra e, desse estudo, sair um artigo acadêmico, um livro, mas sempre parte de um resultado artístico. A minha tese de doutorado foi uma sistematização do trabalho prático que eu fiz durante o mestrado, nos Estados Unidos. O meu pós-doc foi sobre as canções de nome [compositor] que eu havia gravado. Por aí vai... [...] Quando você toca a peça e a estuda diariamente, você tem todo o processo de análise, comparação, análise histórica. [...] Esse relacionamento da carreira artística com a acadêmica eu tento fazer... não consigo fazer tudo, claro. (Marcelo)

Também Sérgio informa que seu estudo de piano, voltado principalmente para o repertório solista e de câmara, é norteado pelos compromissos profissionais realizados como performer. No entanto, sua rotina de trabalho mudou drasticamente há pelo menos dez anos, quando o pianista assumiu um cargo de coordenação em um relevante equipamento cultural, prestigiado financeira e artisticamente, sediado na cidade de São Paulo. Segundo ele, a dedicação para o estudo do piano que, até então, era habitual e frequente, mudou de forma significativa. “É mais fácil manter uma rotina de estudo quando se é mais jovem e você tem um objetivo principal, no meu caso, ser um pianista solista: você sabe que vai acordar e tocar piano”, afirma. “Fora que, mesmo com esse objetivo principal, eu sempre tive outros trabalhos e outras obrigações”, ele continua.

Sempre tive alguém para acompanhar em uma prova, um coro para tocar, às vezes era o coro de natal da igreja no fim do ano e tinha que preparar repertório . . . , recital de câmara, acompanhar cantores. Tudo isso me ocupava o dia a dia: eu acordava e olhava para a pilha de partitura que eu tinha que estudar para o próximo mês. Nesse período, também dava aulas [em várias instituições], tinha alunos particulares… e nos outros horários eu sabia que sempre tinha que estudar piano para preparar alguma coisa, um ensaio para fazer. Isso me ocupou durante muitos anos. No momento em que eu entrei para a gestão, isso já não ficou tão óbvio, . . . e aí meu estudo passou a ser pautado pelos compromissos profissionais. O problema disso é que, por exemplo, ano passado [2020] eu não tive nenhum compromisso profissional. Cheguei a ficar semanas resolvendo problemas administrativos, passando reto pelo piano. (Sérgio)

É possível deter-se nas últimas falas de Sérgio para ilustrar boa parte das características conflitantes presentes no trabalho artístico. Seu relato confirma um desafio quase paradoxal vivenciado por ele e por outros músicos entrevistados: ao mesmo tempo em que reconhece a importância do estudo pianístico, independentemente de um compromisso para uma performance agendada, Sérgio também reafirma que, nos dias atuais, são justamente esses compromissos que norteiam a frequência de sua prática. Em um contexto em que possa haver pouca demanda profissional pelo estudo, quais são as outras motivações a serem mobilizadas para a prática? O que mantém o pianista disposto a trabalhar no instrumento? Até que ponto são criadas estratégias para enfrentar essa dificuldade estrutural? Pode-se verificar até que ponto elas são efetivas? Toca-se, afinal, o que se é pago para tocar? As situações narradas a seguir mais estendem do que respondem essas perguntas, uma vez que retratam alguns dos desafios existentes na análise do ato laborativo desses músicos.

Giovana, cuja principal ocupação remunerada se dá como professora de piano particular, nos conta que seu primeiro objetivo com a prática pianística é manter o estudo do repertório solo, mesmo sem a perspectiva de curto prazo para uma apresentação pública presencial. Diferentemente dos pianistas anteriores, ela relata que, à época da entrevista - abril de 2021 -, sua meta de estudo não é necessariamente um concerto ou um recital, mas sim o aprendizado de determinada obra. “Tenho algumas metas, algumas peças eu quero tocar por realização própria, . . . até porque, no momento, a gente não tem muita perspectiva de se apresentar. Então, eu estudo, nem que seja para gravar e ter uma recordação, alguma coisa para mim”, diz ela.

A pianista conta ainda que, no decorrer da pandemia, seus compromissos profissionais relacionados à performance - concertos e recitais - foram cancelados. No ano de 2020, ela cursava o último ano da graduação em Música e tinha acabado de se desligar de uma formação voltada à prática colaborativa. “Precisava arrumar algum jeito de me manter na motivação e criei um Instagram para começar a postar alguns vídeos”, conta.

Isso foi tomando uma proporção muito maior do que eu imaginei… criei uma conta só para o piano, diferente da minha conta pessoal. Comecei do zero e, quando eu vi, em menos de um ano, tinha sete mil e quinhentos seguidores. A coisa foi tomando uma proporção muito maior e eu fui postando, vendo gente chegando, e comecei a sentir um compromisso com isso. Comecei a conversar com muita gente que estava morando na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil todo, pedindo dicas, elogiando e falando para eu tocar mais. Foi quando eu comecei a ter uma outra perspectiva. Muita gente começou a me pedir aula, recebia mensagem para tocar junto. Por causa disso, me descobri e me vi de um jeito que fazia tempo eu não me via. (Giovana)

Para Giovana, investir na interação pelas redes sociais, especificamente pelo Instagram, permitiu que ela pudesse dar uma “reviravolta”, segundo suas palavras, em sua vida profissional. “Eu era aquela pessoa que morria de medo de não ter o que fazer e hoje estou com a agenda de alunos lotada”, comenta.

A internet me permitiu dar essa reviravolta. . . . Estou com metade dos alunos presencial, metade online. Gente que eu nunca vi, alunos de outras localidades do Brasil e mesmo fora daqui. . . . Me descobri dando aula online e vi que funciona muito bem, muito melhor do que imaginava. (Giovana)

A respeito da interação entre o trabalho como professora e o trabalho no piano, ela conta de que modo busca um equilíbrio entre os dois universos:

Não recebo mais aluno porque ainda quero manter um lado artístico mais ativo. Foi essa possibilidade que eu vi de conseguir me sustentar e me sentir realizada financeiramente. E isso faz diferença. Ninguém vive de vento, a gente precisa ter uma realização e isso me possibilitou continuar com a música e com o piano, de uma forma que eu gosto e consiga estudar. Consigo organizar meus horários de aula e estudo e não mato meu lado pianístico. Dar aula me ajuda a me sentir motivada… se eu cobro meus alunos, eu também preciso estar em dia, dar o exemplo. Minha intenção é continuar estudando, tenho alguns concertos marcados para o semestre que vem e para o próximo ano. Dessa maneira ficou bom para mim, consigo ter meu trabalho com o piano e me organizar. Consigo ter planejamento e, ao mesmo tempo, consigo estudar as coisas que eu quero e desejo para mim. (Giovana)

Pensando em um panorama um pouco mais ampliado e não somente em sua trajetória, Gilberto pondera a respeito das expectativas artísticas e da realidade material do mercado de trabalho para os músicos. O entrevistado atua principalmente como professor, mas também procura manter projetos que envolvam a performance musical.

Às vezes a gente entra em um pouco de crise, fica pensando como seria essa produção, se tivéssemos uma vida diferente… mas tento olhar o lado cheio do copo e não o vazio. Acho que a gente consegue fazer bastante coisa, apesar de tudo, dos instrumentos que a gente tem para trabalhar, tanto em casa como nas salas de concerto, que às vezes são super limitantes. Você pode ter um repertório bem trabalhado e chega lá e tem um piano sem condição… é, de certa maneira, uma frustração tão grande que você já tem que sublimar pra poder fazer o concerto com o mínimo de bom humor. Sim, nós temos muitos limites, você precisa dar muita aula para ganhar o mínimo para sobreviver e com isso você tem menos tempo para se preparar para a atuação artística, e não só, pra você ter tempo de lazer e leitura, reflexão. (Gilberto)

Em sua experiência, ele procura calibrar, em um exercício recorrente, as responsabilidades profissionais e a autonomia de sua produção pianística. Além disso, ele aponta para o perigo de acatar apenas uma versão glamourizada da profissão.

Muito cedo eu percebi que essa glamourização da vida de pianista solista era algo falacioso para mim. Uma coisa de engodo… porque eu vejo que a pressão para que você seja o performer de alto rendimento, excursionar em turnê, nunca estar em casa… nunca pensei que isso fosse algo gostoso, ou uma vida invejável. Gosto muito desse tipo de coisa que eu faço: dar aula, estudar, fazer concertos com menos frequência, mas com repertórios que me interessam. Obviamente que eu tenho muita preocupação, no sentido da situação do país, porque a gente depende de uma educação musical, de incentivos e condições para trabalhar, de que haja cachês, e essas coisas me parecem cada vez menos valorizadas e quistas pela estrutura inteira. Se não formarmos, por exemplo, bons ouvintes, para quem a gente vai tocar? (Gilberto)

7. Sem tempo para estudar

Alguns dos músicos relatam que o contato com o instrumento se dá, por vezes quase que exclusivamente, fora de um ambiente de estudo solitário e já in loco, em interação com outros indivíduos, espaços e instituições. Nestas situações, a realização de muitas atividades profissionais - musicais e/ou extramusicais - acabam por ocupar inteiramente o tempo produtivo na rotina desses pianistas. Os relatos evidenciam uma frustração em não conseguir alinhar a prática no instrumento com os respectivos anseios artísticos, ainda que o desempenho profissional seja considerado satisfatório.

Igor, por exemplo, trabalha como professor de piano em um conservatório privado localizado na capital, onde também exerce os cargos de regente e de pianista ensaiador de um coro amador. “Como dou muita aula, só consigo estudar no conservatório, naquele pouco tempo disponível, normalmente quando o aluno falta. Já tentei criar uma rotina de estudo, que seja para manutenção técnica, mas é muito difícil”. Morador de uma cidade localizada a 35 quilômetros do centro de São Paulo, ele cita o tempo de deslocamento entre sua residência e o conservatório como um fator determinante para esse contato mais solitário com o piano. “Moro relativamente longe e perco muito tempo no deslocamento… mesmo quem mora por aqui perde esse tempo no trânsito”.

Segundo ele, os meses de isolamento, por conta da pandemia, o deixaram mais próximo do instrumento. Ele conta que conseguiu tocar mais e se dedicar a atividades que nunca havia realizado. “Pude fazer lives! Fiz live solidária, usei uma coisa que eu gosto tanto para arrecadar fundos para uma instituição”. No entanto, ele explica que escolheu um repertório mais fácil, que não apresentava muitos desafios técnicos, e que fosse mais “palatável” para o público, em suas palavras. Ele ainda reconhece as dificuldades de se dedicar a um repertório que, para ele, demanda maior planejamento e organização da prática. “Infelizmente, não consigo ter uma rotina de estudo… A não ser que a pessoa seja pianista mesmo, que ela só faça isso, aí eu acredito que ela consiga estudar. Quem trabalha dando muita aula tem muita dificuldade para conseguir tempo”.

Denise, por exemplo, trabalha como pianista em uma igreja evangélica na cidade de São Paulo. O piano e a música, no entanto, não são suas únicas ocupações profissionais. Segundo ela, seu tempo com o instrumento é bastante curto. “Basicamente, não consigo estudar em casa. Atualmente, estudo o que preciso para resolver os principais problemas do repertório”, explica. “Mas, normalmente, trabalho no ensaio mesmo ou, às vezes, quando é uma coisa nova, levo para estudar em casa. Atualmente, estudo muito pouco… tenho outras atividades. É uma pena, porque eu gostaria de ter uma rotina diária. Sei das minhas dificuldades”. De acordo com a pianista, seu dia a dia com o instrumento não contempla suas expectativas - expectativas, essas, que ultrapassam o sentido profissional da atividade.

Não consigo fazer algumas coisas, sabe? Por exemplo… quero tocar aquela música do Chopin [cantarola a Fantasia-Improviso op. 66] e eu não consigo. Isso é técnica [...]. Sou frustrada porque eu queria ter estudado fora, queria ter sido pianista mesmo e não tinha condição para isso. Buscar isso, hoje, não é mais minha prioridade, mas o piano e a música ficaram. Para o repertório que toco, me resolvo tecnicamente. (Denise)

Renata, por sua vez, transita entre o piano erudito e popular, com uma atuação que se espalha por muitas áreas, a saber: trabalha como pianista colaboradora em corais, em grupos formados em instituições artísticas e de educação musical, com experiência em festivais de música; ela também é professora particular de piano erudito e popular, assim como dá aulas de disciplinas teóricas, como harmonia e contraponto. À época da entrevista, ela desenvolvia uma pesquisa de doutorado na área de Análise Musical e estava matriculada em um curso de cravo. Além dessas atividades, Renata tem se voltado para a criação de arranjos para coro e de composições de peças autorais, em variadas formações, notadamente para coro e para orquestra.

A multiplicidade de atuações profissionais impacta diretamente seu contato com o instrumento - a musicista, aliás, se mostra insatisfeita com seu rendimento. “O que estudo, atualmente, é o que eu tenho que estudar”. Ela afirma procurar manter uma atitude pragmática em relação à prática pianística, de modo a identificar os desafios técnicos que podem surgir no repertório. “Tento entender bem rápido o que precisa ser resolvido para chegar [no ensaio ou na apresentação] pronta para tocar”. Segundo a pianista, são raros os momentos em que ela consegue estar sozinha ao piano. “Não consigo reservar um horário para estudar. Às vezes, é no horário de almoço, ou quando sobra uma hora ou outra”, revela.

Dou um jeito para tocar as coisas com a técnica que eu tenho, sendo bem honesta. Não falo para você que dou conta de tudo que eu gostaria, mas faço umas coisas na “cara de pau”. Não vou parar de trabalhar! Graças a Deus, tenho o privilégio de fazer coisas que eu gosto. Se eu parar de trabalhar, vou ficar desmotivada. Tem esse lado também: se eu tiver o dia inteiro livre, acabo não fazendo nada! Parece que as coisas rendem mais quando eu estou com a agenda apertada, cumprindo mil tarefas. (Renata)

8. Considerações finais

Como é possível observar ao longo das falas destacadas desses pianistas, portanto, a prática instrumental - o trabalho ao instrumento - parece ocupar um grau de autonomia relativa em relação ao emprego do pianista, seja ele estável ou não, e também aos eventuais projetos e ocupações com as quais o músico se envolve. Ao mesmo tempo em que se observa uma separação bastante demarcada entre o estudo no instrumento - na maior parte das vezes não remunerado 16 - de outras ocupações remuneradas, as narrativas tratam igualmente de uma preocupação permanentemente extramusical relacionada ao estudo pianístico, tensionando essa separação. Alguns destaques das falas dos pianistas retratadas ao longo do artigo mostram isso:

“Meu estudo passou a ser pautado por compromissos profissionais” (Sérgio); “Nunca tive oportunidade de estudar aquilo que eu quis” (Carolina); “a gente precisa ver o que o mercado vai valorizar” (Marcelo); “nós temos muitos limites” (Gilberto)

.

De qualquer forma, as maneiras como as práticas e as pesquisas artísticas de cada entrevistado se relacionam com outros compromissos profissionais, muitas vezes considerados pelo senso comum, incluindo a comunidade musical, como “menos artísticos” 17, refletem justamente o fator performático e narrativo da própria ideia acerca da profissão que cada pianista irá perpetuar para si e para os outros 18.

Além disso, é possível observar como o hábito de estudar piano com regularidade pode não ser uma condição essencial para o exercício de atividades profissionais, ainda que seja considerado desejável pela maioria dos interlocutores da pesquisa. Um professor como Igor, por exemplo, não se depara com essa necessidade para dar conta de suas funções, assim como Denise e Renata são aptas a exercer suas tarefas com desempenho considerado satisfatório. Evidentemente, leva-se em conta, nestes casos, o acúmulo de experiências que cada um deles absorveu ao longo de suas trajetórias. Aliás, são justamente essas experiências, tão logo vivenciadas desde os primeiros reconhecimentos profissionais, que possibilitaram aos três se identificarem enquanto artistas e se desenvolverem em suas carreiras.

Integradas a um mercado de trabalho artístico heterogêneo, no qual “as desigualdades de sucesso e de remuneração são simultaneamente consideráveis, sujeitas à mais viva das fascinações, socialmente aceites e vigorosamente encenadas” (Menger, 2005, p. 73), a vida profissional dos pianistas pode conhecer diversos afastamentos nas relações entre o estudo de piano e demais atividades laborais com os quais os músicos ganham a vida19. O que esses afastamentos podem nos ensinar? Vejo ao menos duas frentes de trabalho, complementares entre si. A primeira diz respeito à formação dos pianistas: quais as ênfases desejáveis numa eventual profissionalização de estudantes, de modo a aguçar a reflexão e a ação sobre as contradições inerentes ao objeto artístico e a forma como mobilizamos, no tempo e no espaço que habitamos, aspectos relacionados à beleza, às sensações, às emoções e ao prazer estético? A segunda diz respeito à criação de demanda para o trabalho - e aqui estou falando tanto da prática instrumental quanto da geração de renda necessária ao sustento da vida - que, ao aproveitar o potencial do objeto musical enquanto uma “constelação de mediações” heterogêneas, como colocou (Born, 2015), possa estreitar e potencializar tanto o contato entre músico e instrumento quanto criar soluções coletivas de sobrevivência, visando ainda não reproduzir as desigualdades e opressões tão características do meio artístico, bem como da sociedade.

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1(Born, 2015, p. 359) atesta para uma alternativa que compreende o objeto musical enquanto uma “constelação de mediações”, de modo que seja possível explicitar suas inúmeras formas de existência: “traço sonoro, exegese discursiva, notação, prótese tecnológica, performance social e corporificada”. Segundo a autora, a música pode ser estudada como um "tipo de objeto cultural extraordinariamente difuso: um agregado de mediações sonoras, sociais, corporais, discursivas, visuais, tecnológicas e temporais - uma colagem musical, entendida como uma constelação característica de tais mediações heterogêneas" (Born, 2015, p. 359, tradução nossa).

2 (Segnini, 2006) aponta que a análise do trabalho do artista precisa considerar o fato que ele significa ao mesmo tempo expressão artística, realização de uma obra e o exercício de uma profissão. Ao priorizar a relação que se pretende traçar entre o trabalho do pianista ao piano e o pianista no mercado de trabalho, faz-se oportuna a descrição dessas duas acepções. A primeira refere-se à relação direta entre músico e instrumento, sua pesquisa técnica e artística, suas estratégias de estudo, sua abordagem prática e reflexiva em torno do repertório. Em alguma medida, trata-se da atividade de esforço ou realização, que (Williams, 2007, p. 396) denominou como o sentido fundamental para trabalho. Pode-se pensar nas horas em que pianistas se dedicam ao instrumento, nas possibilidades técnicas, afetivas e estruturais dessa relação, bem como em eventuais dificuldades e impasses. Trata-se de uma atividade de relativa autonomia, conduzida em alguma privacidade, que pode estar vinculada ou desvinculada a um emprego remunerado. É nesse sentido que se pode dizer que alguém está trabalhando na Sonata op. 26 de Beethoven, por exemplo, ou que esteja trabalhando arpejos e escalas. Já a segunda acepção diz respeito à inserção laboral do músico na sociedade, uma atividade realizada na esfera pública ou social, “solicitada, definida e reconhecida útil por outros além de nós e, a este título, remunerada” (Gorz, 2003), p. 21). É nesse sentido que se pode dizer que alguém está trabalhando como pianista do coral da cidade, por exemplo, ou que trabalha como professor de piano - nestes casos, ocupa-se um cargo, um emprego. Pode-se ainda pensar na figura do pianista colaborador freelancer ou mesmo do pianista solista, estes inseridos em determinados circuitos de concertos e/ou recitais.

3Para uma discussão em torno do trabalho do pianista frente a outras formas de ocupação, voltado à produção cultural, gestão, coordenação educacional e administração, por exemplo, ver (Capuzzo, 2022).

4 (Latour, 2011) analisa, de forma simultânea, a profissão do cientista em duas dimensões: o lado interno e o lado externo do processo de produção do conhecimento científico. De acordo com o autor, há uma “relação direta entre as dimensões do recrutamento externo de recursos e a quantidade de trabalho que pode ser executado internamente” (Latour, 2011, p. 239). Do lado de fora, observa-se uma visão mais empresarial da atividade, uma mistura de política, negociação de contratos e relações públicas. Do lado de dentro, a visão clássica do cientista que se veste de branco e trabalha incansavelmente, absorto em suas experiências. “No primeiro caso, estaríamos em constante movimento fora do laboratório; no segundo, estaríamos indo mais para dentro do laboratório. Quem está realmente fazendo pesquisa? Onde é que a pesquisa está de fato sendo feita?” (Latour, 2011, p. 244). De acordo com o autor, “quanto maior, mais sólida, mais pura a ciência é lá dentro, maior a distância que outros cientistas precisam percorrer lá fora. É por causa dessa retroalimentação que quem entra num laboratório não vê relações públicas, políticos, problemas éticos, luta de classes, advogados; vê ciência isolada da sociedade” (Latour, 2011, p. 246).

5A título de exemplo, a função de pianista de orquestra existe principalmente para cumprir um cargo específico e reservado para um profissional - da mesma forma, em São Paulo, não é tão comum encontrarmos empregos altamente especializados e reservados para um pianista tal como os que existem dentro de um teatro de ópera localizado em um centro europeu.

6A Plataforma Brasil (https://plataformabrasil.saude.gov.br/login.jsf) é uma base unificada, criada pelo Governo Federal, para registros de pesquisas que envolvem seres humanos nos Comitês de Ética em todo o país.

7 Durante o preenchimento dos dados da Tabela 2, foram consideradas apenas as áreas informadas pelos interlocutores como sendo as mais representativas na atuação de cada um deles no momento da entrevista.

8Para os ítens "Pianista colaborador (música instrumental)" e "Pianista colaborador (música vocal)", foram também incluídos os pianistas que travam parcerias mais longevas.

9O estudo de (Ericsson, Krampe e Tesch-Romer, 1993) estabeleceu as bases do que se entende por prática deliberada e sua importância na aquisição de proficiência na performance. Em resumo, “a prática deliberada é uma atividade altamente estruturada, cujo objetivo explícito é melhorar o desempenho. Tarefas específicas são elaboradas para superar inconsistências, e a performance é cuidadosamente monitorada de modo a proporcionar caminhos para melhorá-la ainda mais. [...] a prática deliberada não proporciona recompensas financeiras imediatas e gera custos associados ao acesso a professores e a ambientes de treinamento” (Ericsson, Krampe e Tesch-Romer, 1993, p. 368, tradução nossa). Como demonstraram ( Zorzal, 2015), (Wise, James e Rink, 2017)) e (Gomes, 2019), esta noção de prática deliberada, juntamente com os desdobramentos dela decorrentes, têm balizado boa parte da pesquisa acadêmica acerca da prática musical que objetiva uma performance satisfatória.

10[10] O estudo de (Gomes, 2019) acerca do desenvolvimento da expertise do pianista intérprete-arranjador-improvisador verificou que, dentre 18 pianistas de diferentes níveis de expertise, “não foram encontradas hierarquizações detalhadas tanto para as habilidades quanto para as estratégias pertinentes ao desenvolvimento da expertise dos músicos estudados” (Gomes, 2019, p. 217). Com isso, fica evidente um processo de construção de uma personalidade artística e musical altamente dinâmico, em que a valorização dos atributos musicais e de determinadas estratégias de estudo se modificam ao longo da vida dos músicos em questão.

11No dia 18 de fevereiro de 2022, a pianista russa Yulianna Avdeeva, vencedora do primeiro lugar do XVI Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin, em 2010, publicou em sua conta no Instagram um vídeo no qual a principal proposta é elencar seis passos que ela considera importantes para a organização do estudo de uma nova obra musical. O vídeo mescla imagens bem-humoradas de sua rotina - uma caminhada pela cidade com fones de ouvido; a leitura de um livro; cenas da pianista manipulando uma partitura, realizando anotações de dedilhado e, finalmente, praticando piano. Em meio às imagens e com a trilha da Sinfonia nº 2 de Leonard Bernstein (“The Masque, Extremely fast”), ela lista, de forma textual, as seguintes etapas: “1) ouça a música; 2) pesquise sobre a obra e se inspire; 3) trabalhe na partitura; 4) comece a estudar passagens individuais; 5) faça suas anotações; 6) pratique, pratique, pratique”. Atualmente, a pianista mantém uma expressiva carreira internacional como concertista, ao mesmo tempo em que também se expõe em redes sociais como Instagram e Facebook, nas quais compartilha parte de sua rotina com as obras que está estudando. Link para o vídeo em seu perfil no Instagram: https://www.instagram.com/reel/CaHdCVRAAlF/. Acesso em: 19 ago. 2023.

12Rosângela faz referência ao livro Exercícios Técnicos Diários, de Oscar Beringer (1844-1922).

13 (Huws, 2017), p. 269) ilustrou algumas maneiras como estilistas descrevem sua atividade: “para mim, a moda é uma continuação de mim mesmo”, constatou um; “quando você é um estilista, isso mexe com suas entranhas”, disse outro; “é um trabalho que você tem de amar, porque colocamos pra fora nossas entranhas”, afirmou um terceiro.

14Nota-se, no entanto, que essas ações deixam de ser “básicas” ou “banais” no momento em que outras demandas profissionais, seja por seu acúmulo e/ou pela precariedade dos vínculos de trabalho, distanciam o pianista da prática instrumental.

15A pianista trata, neste ponto, das reduções para piano de obras orquestrais.

16Nesse ponto, vale a pena registrar que os poucos empregos que contam com vínculos empregatícios formais, como grandes corpos artísticos estáveis (corais, orquestras e balés custeados, em grande parte, pelo poder público), remuneram parte do trabalho a ser feito no instrumento, prevendo a demanda de estudo pianístico.

17Em sua pesquisa sobre os “mundos artísticos”, (Becker, 2008) desafia o senso que tende a separar atividades consideradas artísticas de outras que tendem a não receber o mesmo prestígio. De acordo com o autor, toda atividade artística tem como base a divisão do trabalho e a interação de diversos agentes, normalmente um número grande de pessoas. A obra, ainda segundo o sociólogo, sempre carregará traços que refletem essa cooperação. A partir dos links que reforçam essa coletividade - que acabam por se tornar rotineiros - e das convenções - acordos estabelecidos ao longo da história -, elementos esses que regulam as relações entre artistas e audiência, são produzidos certos padrões de atividade coletiva, chamados pelo autor de mundos artísticos. “As obras de arte, a partir deste ponto de vista, não são produtos de realizadores individuais, ‘artistas’ que possuem um dom raro e especial. São, antes, produtos comuns a todas as pessoas que cooperam por meio de convenções características do mundo da arte” (Becker, 2008, p. 35, tradução nossa).

18A esse respeito, um cruzamento entre os eventuais empregos e as posições que os músicos ocupam dentro do campo musical poderia explicar ainda mais as aproximações e os distanciamentos entre o trabalho do pianista ao instrumento e as experiências desse mesmo pianista no mercado de trabalho.

19Se a pesquisa de campo foi o material principal em torno do qual essa investigação se organizou, buscando ouvir pianistas de gerações distintas e com atuações igualmente pulverizadas, há ainda limitações evidentes. Não foram contemplados no roteiro de entrevista, por exemplo, recortes sociais específicos, como de renda, raça ou mesmo aprofundamentos acerca de questões familiares, de gênero e orientação sexual, informações que, certamente, abririam novas possibilidades de resultados. Parece essencial, portanto, aproximar essas intersecções de futuros estudos, justamente por reconhecer a complexidade e a riqueza de elementos que elas podem proporcionar às investigações. Tendo em vista a diversidade de narrativas que integram o meio pianístico contemporâneo, essas investigações podem iluminar o caminho que ainda se mostra longo até um cenário com maior equidade entre os profissionais da área.

Recebido: 22 de Agosto de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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