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Laboreal

On-line version ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.2 Porto Dec. 2022  Epub Dec 30, 2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19585 

Pesquisa empírica

Atividade de trabalho em cena: estratégias de pesquisa↔intervenção em saúde com trabalhadoras1 de uma escola pública

Actividad de trabajo en escena: estrategias de investigación ↔intervención en salud con trabajadoras de una escuela pública

L’activité de travail en scène: stratégies de recherche↔intervention en santé auprès des femmes qui travaillent dans une école publique

Work activity on scene: research↔intervention strategies in health with women workers from a public school

1Departamento de Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis - Bloco N - Campus Gragoatá - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 24.210-201 myale@uol.com.br

2Departamento de Saúde e Sociedade, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rua Marquês do Paraná, 303, 3º andar, prédio anexo ao HUAP - Centro, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 24.030-210 amandaornela@id.uff.br

3Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) - Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 302 - Manguinhos - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 21.041-210 jussara@ensp.fiocruz.br

4 Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)- Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 302 - Manguinhos - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 21.041-210 leticiamasson@ensp.fiocruz.br

5Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 302 - Manguinhos - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil - CEP: 21.041-210 simone@ensp.fiocruz.br


Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir acerca das estratégias metodológicas de uma pesquisa↔intervenção, com ênfase nas relações entre saúde e trabalho, desenvolvidas em conjunto com trabalhadoras de uma escola pública de ensino fundamental, localizada em um município do estado do Rio de Janeiro. O percurso investigativo está estruturado em duas etapas: i) realização de conversas sobre o trabalho com trabalhadoras e observações das atividades de trabalho; e ii) Encontros sobre o Trabalho, inicialmente, por segmento profissional, e, posteriormente, com o coletivo ampliado. A perspectiva era a construção de um observatório contínuo e permanente sobre as conexões entre saúde e trabalho, alimentado por uma comunidade ampliada de pesquisa↔intervenção - CAPI. O foco da análise empreendida são as potencialidades das estratégias metodológicas mobilizadas, bem como os obstáculos enfrentados. As transformações instauradas pelos processos concernentes à pesquisa↔intervenção abriram um campo permanente de negociação cotidiana, comprometido com melhores condições de vida, saúde e trabalho.

Palavras-chave: método; trabalho; saúde; saúde do trabalhador; escolas

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las estrategias metodológicas de una investigación↔intervención, con énfasis en las relaciones entre salud y trabajo, desarrolladas conjuntamente con trabajadoras de una escuela pública de educación secundaria, ubicada en un municipio del estado de Río de Janeiro. El recorrido investigativo está estructurado en dos etapas: i) realización de conversaciones sobre el trabajo con trabajadoras y observaciones de las actividades de trabajo; y ii) Encuentros sobre el Trabajo, inicialmente por segmento profesional y posteriormente con el colectivo ampliado. La perspectiva era construir un observatorio continuo y permanente sobre las conexiones entre salud y trabajo, alimentado por una comunidad ampliada de investigación↔intervención - CAPI. El foco del análisis son las potencialidades de las estrategias metodológicas utilizadas, así como los obstáculos enfrentados. Las transformaciones instauradas por los procesos de la investigación↔intervención inauguraron un campo permanente de negociación cotidiana, comprometido con mejores condiciones de vida, salud y trabajo.

Palabras clave: método; trabajo; salud; salud del trabajador; escuelas

Résumé

L´article a pour objectif d’instruire les stratégies méthodologiques d´une recherche↔ intervention ayant mis l’accent sur les relations entre la santé et le travail, qui ont été développées avec les travailleuses de différentes catégories professionnelles d´une école publique d´enseignement primaire, d´une ville de l´Etat de Rio de Janeiro. Le parcours d´enquête a été structuré en deux étapes : i) réalisation d´entretiens sur le travail et observations des activités de travail; ii) Rencontres du Travail, d’abord par catégorie professionnelle, et ensuite avec le collectif élargi. L´intention était de construire un observatoire permanent des relations entre la santé et le travail, alimenté par une communauté élargie de recherche↔intervention - CAPI. L´analyse souligne les atouts des stratégies méthodologiques mobilisées et les obstacles rencontrés. Les transformations assurées dans le cadre du processus de la recherche↔ intervention ont ouvert un champ de négociation quotidienne, permettant de meilleures conditions de vie, de santé et de travail.

Mots clés: méthode; travail; santé; santé du travailleur; écoles

Abstract

This article aims to reflect on the methodological strategies of a research↔intervention, with emphasis on the relations between health and work, developed together with women workers from a public elementary school, located in a city in the state of Rio de Janeiro. The investigative course is structured in two steps: i) conversations about the work and observations of work activities; and ii) Meetings about the Work, initially, by professional segment and, later, with the expanded group. The perspective was the construction of a continuous and permanent observatory on the connections between health and work, stimulated by an expanded community of research↔intervention - ECRI (or CAPI, in Portuguese). The main focus of the present analysis is the potential of the methodological strategies used, as well as the obstacles faced. The transformations introduced by the processes concerning research↔intervention opened a permanent field of daily negotiation, committed to better living, health and working conditions.

Keywords: method; work; health; worker’s health; schools

1. Introdução

Uma experiência realizada entre meados de 2014 e final de 2017, no âmbito do “Programa de Pesquisas Vida, Saúde e Trabalho nas Escolas”, da Universidade Federal Fluminense (UFF), deu origem ao presente texto e às questões com as quais ele se ocupa, especialmente a reflexão acerca de estratégias metodológicas que favoreçam o protagonismo, a participação efetiva dos trabalhadores e trabalhadoras em investigações no campo da saúde do trabalhador (Brito, 2004; Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Assim, serão consideradas especialmente as potencialidades - bem como os desafios enfrentados - de uma pesquisa ↔intervenção, cuja ênfase está centrada nas relações entre vida, saúde e trabalho, a partir da construção coletiva - entre pesquisadoras profissionais e trabalhadores e trabalhadoras - de saberes e estratégias com vistas a compreender↔transformar positivamente as condições e formas de organização do trabalho, conforme preconiza a ergonomia da atividade (Daniellou, 2004; Teiger & Lacomblez, 2013).

Entendemos, portanto, que era preciso mobilizar uma perspectiva epistemológica e ética que nos permitisse transformar a realidade do trabalho e fortalecer as articulações coletivas já existentes, por meio de um dispositivo que instaurasse encontros com trabalhadores e trabalhadoras sobre as formas diferentes de trabalhar, a fim de que novos saberes, novas normas e formas de agir coletivamente pudessem ser construídos. Nesta direção, tem-se como premissa que analisar e intervir constituem-se em dimensões do mesmo processo (Neves et al., 2018; Raminger et al., 2013).

Tal experiência transcorreu em conjunto com profissionais, em sua maioria mulheres - professoras, cozinheiras, auxiliares de serviços gerais, zeladores escolares e técnicas administrativas -, que realizam suas atividades em uma escola pública de ensino fundamental em tempo integral, localizada em um município do estado do Rio de Janeiro.

Inicialmente, situaremos, de modo sucinto, epistemológica e teoricamente as estratégias metodológicas pensadas a partir do ponto de vista da atividade, do trabalho real (Daniellou, 2004), mobilizadas no desenvolvimento da pesquisa↔intervenção. Em seguida, apresentaremos as etapas do nosso percurso investigativo. E, por fim, compartilharemos algumas reflexões e desdobramentos a partir dessa experiência.

2. Fundamentos epistemológicos e teóricos

Lançando mão do seu modelo biomédico, Georges Canguilhem (2005) defende a ideia de que a saúde está associada à capacidade normativa do ser vivo para tolerar e travar disputa contra as infidelidades e agressões do meio (na medida em que este se constitui de variabilidades e flutuações). Ser saudável equivaleria, assim à competência para detectar, interpretar e reagir - ou seja, instituir novas normas de vida, bem como se pôr em risco, cair doente e se reabilitar. Para isso faz-se necessário um suporte societal. E uma vez constatada a variabilidade biológica, deposita-se no próprio indivíduo a responsabilidade de sublinhar o instante em que começa a doença ou a perda da capacidade normativa. Haveria uma dimensão do corpo humano, portanto, apenas acessível ao sujeito ele mesmo.

Falar sobre saúde é falar, portanto, sobre um cotidiano que demanda ininterrupta mobilização cognitiva, afetiva, corporal. O corpo-si, como afirmam Schwartz & Durrive 2021), quando refletem acerca das dramáticas de usos de si por si e por outros para gerir a defasagem entre o “trabalho prescrito” e o “trabalho real”, a tarefa e a atividade, à maneira do que determina a ergonomia da atividade (Daniellou, 2004; Guérin et al., 2001; Lacomblez & Teiger, 2007; Teiger & Lacomblez, 2013). O “olhar à lupa” da ergonomia evidenciou que o trabalho real, o efetivamente realizado, era sempre - em algum nível - diferente do trabalho prescrito. E para que as fábricas pudessem operar, evitando a emergência de panes e acidentes, era indispensável que os operários adaptassem as prescrições à realidade, realizando as regulações necessárias para que os objetivos designados fossem atingidos.

Articulando as contribuições de Canguilhem (2005) aos materiais da ergonomia da atividade (Daniellou, 2004), Schwartz e Durrive (2021) afirmam que, embora seja indubitável a (pre)existência de normas antecedentes (prescrições, valores, regras, procedimentos etc.), o trabalho nunca é tão somente um lugar de repetição - uma vez que os indivíduos renormatizam sua atividade, enfrentando as circunstâncias e os desafios singulares que se apresentam. Dessa forma, toda atividade humana está inserida dentro de uma ambiência que jamais deixa de endereçar perguntas às normas antecedentes e às renormatizações empreendidas no curso do agir (Durrive 2002). Entre o explícito e o não formulado, entre a história coletiva e a idiossincrasia de cada trabalhador - lá está a situação de trabalho. Importante compreender que a atividade de trabalho não corresponde apenas ao conhecimento sistematizado, mas também aos saberes conjugados no e pelo corpo-si e por narrativas singulares derivadas de experiências individuais surgidas no contexto laboral. Ainda de acordo com (Durrive 2002), o desempenho exigido dos trabalhadores requisita um tipo de inteligência alternativo àquele seguidor de protocolos e de demais medidas regulatórias; considerar tal investimento do corpo é admitir que, na atividade, há mais dimensões do que aquelas apreensíveis pela linguagem. Falar sobre o trabalho, aliás, “é complicado”, lembra-nos o autor. O trabalho é uma atividade e, como atividade, um núcleo perene de debate sobre normas atravessado por um mundo de valores. Tal núcleo, ultrapassando o mero cumprimento de tarefas, reivindica posturas ética e epistemológica por parte de trabalhadores diante da possibilidade de reconfiguração positiva do trabalho a partir do ponto de vista da atividade (Daniellou, 2004).

Dizemos que o processo de compreender↔transformar situações localizadas entre a vida, a saúde e o trabalho demanda o entendimento de certas estratégias metodológicas de aproximação. O campo da Saúde do Trabalhador no contexto brasileiro (que dialoga com o patrimônio da Educação Popular) vai preconizar a cooperação crítica entre pesquisadores(as), profissionais da saúde e trabalhadores(as); todos(as) comprometidos(as) com a não sujeição dos corpos às prescrições e às antecipações do agir (Brito, 2004; Neves et al., 2018). Também se defende que a diversidade daquelas situações, a exemplo das mudanças tecnológicas e organizacionais sofridas pelas atividades de trabalho, exige que a identificação das circunstâncias patógenas (mas não só!) seja feita de forma continuada, com a participação efetiva de trabalhadores(as), sujeitos portadores da experiência do trabalhar (Neves et al., 2015; >; Neves et al., 2018; Raminger et al., 2013; Seligmann-Silva, 2022).

Nesse movimento, foi decisiva no campo da Saúde do Trabalhador a influência das formas de pesquisa desenvolvidas a partir do Modelo Operário Italiano (MOI) de produção de conhecimento e de luta pela saúde (Oddone et al., 2020), arroladas em um determinado regime de produção de saberes para compreender↔transformar as relações entre saúde e trabalho (Brito & Athayde, 2020; Masson et al., 2020; Muniz et al., 2013; Neves et al., 2018). O MOI recomendava mudanças cruciais na maneira como profissionais da saúde e trabalhadores cooperariam entre si, o que levou Oddone e colaboradores (2020) a conceberem um dispositivo caracterizado pela parceria entre saberes distintos - tanto os acadêmicos quanto os gerados a partir da experiência de trabalhadores -, com vistas à elaboração de instrumentos de intervenção em saúde nos locais de trabalho.

Nova visada teórica, reconfigurada por (Schwartz 2000, Durrive 2002) a partir da experiência italiana, apresenta o “dispositivo dinâmico de três polos” (DD3P) como um arranjo analítico capaz de favorecer diálogos sinérgicos entre conhecimentos variados; tornados possíveis exatamente em razão da constituição de um DD3P. Tal dispositivo, um modo de intervenção e produção de conhecimento que faz convergirem os princípios do MOI e do campo da Saúde do Trabalhador (Brito, 2004; Masson et al., 2020; Neves et al., 2018) remataria as circunstâncias exigidas pela transformação do trabalho (Schwartz 2002). Para (Schwartz 2000), os polos são três: (I) as disciplinas científicas; (II) os saberes investidos na atividade e (III) as exigências éticas e epistemológicas, espécie de eixo regulatório de interações fecundas, comprometidas com o mútuo desenvolvimento dos saberes implicados. Posto que a perspectiva ergológica (Schwartz & Durrive, 2021) é, ela própria, um encaminhamento ético-epistemológico, trata-se o DD3P de uma via para a mútua aprendizagem, operacionalizado por intermédio de “encontros sobre o trabalho” (EST) (Schwartz & Durrive, 2021; Durrive, 2021) que, proporcionando também situações de confronto, podem contribuir para legitimar ou contestar informações que, porventura, venham a ser apresentadas e debatidas (Schwartz 2000).

Os encontros sobre o trabalho, conceituados por Schwartz e Durrive 2021), têm como um dos focos a dificuldade dos protagonistas do trabalho e profissionais, analistas e pesquisadores do trabalho em construir o ponto de vista da atividade. Os encontros guardam o objetivo de estimular seus participantes, em um trabalho de “co-análise”, a considerar a atividade desde a dupla perspectiva da prescrição e da experiência. Pois nossa tendência geral é embaralhar os conceitos de “tarefa” e “atividade”, descrevendo o trabalho a partir de procedimentos antecipados, à maneira de normas e prescrições. E, quando sugerimos perguntas à própria atividade, fomentamos a construção do ponto de vista da atividade, qual seja o recrutamento de sinergias entre pessoas - porque o trabalho é sempre coletivo - para um entendimento mais abrangente da atividade tal qual.

Para apreender e intervir no meio e nas situações de trabalho (Oddone et al., 2020) e, mais especificamente, na relação entre as atividades desenvolvidas e a saúde de trabalhadores e trabalhadoras, empregamos nossos esforços na construção de um dispositivo de pesquisa↔intervenção, mediante principalmente à constituição de EST, dedicada a engendrar uma “comunidade ampliada de pesquisa↔intervenção” - a CAPI (Brito & Athayde, 2003; (Brito et al., 2011; Masson et al., 2020; Neves et al., 2015, 2018). Nesta CAPI circularia, ainda, uma comunidade dialógica de pesquisa (França, 2006) comprometida com ações cotidianas de promoção da saúde a partir das situações de trabalho (Silva et al., 2009).

Regimes de produção de saberes não se organizam como corpo ordenado e sistematizado de maneira espontânea; é preciso, em todo caso, recuperar, por meio da experiência, as vivências individuais e coletivas tornadas válidas pela CAPI. Dito isto, o artigo está dedicado principalmente à análise das estratégias de investigação acerca das atividades de trabalho em uma escola pública de ensino integral, mas precisamente ao modo como as trabalhadoras lidam com normas antecedentes e prescrições ( Schwartz & Durrive, 2021) e com o conjunto de dificuldades que implica sofrimento, desgaste e/ou culmina em processos de adoecimento (Dejours, 2012; (Seligmann-Silva, 2022). Importante frisar que a salvaguarda da profissão, da saúde e da afirmação da vida é parte do processo de trabalho, que, neste bojo, revela-se uma cadeia complexa de nós, cuja imbricação apenas se torna possível pelo próprio movimento do real. Daí a exigência de dispositivos metodológicos pertinentes para a escuta e para o desenvolvimento de meios de proteção e enfrentamento apreendidos no transcorrer da pesquisa e intervenção.

3. Estratégias e etapas do percurso da pesquisa↔intervenção

A experiência em questão teve como objetivo circunscrever um espaço de discussão e reflexão ao redor das condições e formas de organização do trabalho, bem como suas implicações na saúde do conjunto de profissionais, que garantisse o ponto de vista da atividade. Logo, a partir do pressuposto de que o trabalhar sempre envolve a mobilização subjetiva e ações inventivas. Portanto, o maior desafio é promover a circulação de saberes que coloquem tais aspectos em evidência, com a devida atenção à tendência de não reconhecimento da complexidade das atividades e das possíveis associações com as questões de saúde.

A produção de demanda pela pesquisa e intervenção foi se construindo gradativamente, em meados de 2014, por ocasião dos estágios supervisionados de graduandos do Curso de Psicologia da UFF. Inicialmente, estabelecemos contato com representantes de uma das regionais do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE/RJ) para que indicassem uma escola pública de ensino fundamental onde pudéssemos propor o desenvolvimento de tal experiência, à medida que estudos anteriores por nós desenvolvidos em conjunto com trabalhadoras de escolas, acerca das suas condições de trabalho e saúde, dariam suporte a essa produção (Neves et al., 2015). Feito o contato, duas sindicalistas acompanharam o grupo de pesquisa até uma escola de ensino integral, circunstância em que apresentamos a proposta à equipe de direção e, posteriormente, em visitas à escola, aos diferentes segmentos de trabalhadoras, enfatizando o caráter voluntário da sua participação. As trabalhadoras, em sua maioria, se dispuseram a participar. Nos anos subsequentes, novos estagiários e estudantes de iniciação científica e de doutoramento uniram-se ao grupo de pesquisa.

A experiência foi estruturada em ciclos que respondiam a necessidades prementes. Assinalamos a frequente inserção de novas participantes devido à rotatividade de trabalhadoras que eram substituídas em razão de transferências e/ou término de contratos precários de trabalho; além também da inserção de novos graduandos, a cada semestre letivo, e de uma doutoranda. O diálogo continuado com as profissionais que participaram do processo desde sua deflagração foi acontecimento que, somado aos demais, tornou imperativo o repetido retorno, por parte do grupo de pesquisa e das trabalhadoras, às anotações e análises relativas ao trabalhar e as condições de saúde. Cada novo ciclo, por sua vez, correspondia às seguintes etapas: (I) realização semanal de conversas sobre o trabalho com trabalhadoras específicas e de observações assistemáticas - inspiradas na ergonomia da atividade (Guérin et al., 2001) - das atividades de trabalho; e (II) Encontros Sobre o Trabalho (EST), por segmento profissional, em diferentes momentos da pesquisa - com o objetivo de (in)validar consensualmente (Guérin et al., 2001; Oddone et al., 2020) os materiais produzidos e sistematizados a partir das conversas e das observações assistemáticas, além de disparar novas discussões.

De modo geral, a experiência esteve comprometida com uma lista de recomendações construída coletivamente por trabalhadoras e pesquisadoras para a melhoria das condições de saúde e trabalho. Cada novo grupo de trabalhadoras de cada um dos segmentos disparava o início de um novo ciclo que reproduzia, com especial atenção para as singularidades, as etapas já apresentadas, conforme se vê na ver (Figura 1) abaixo. Tínhamos como perspectiva a realização de Encontros Sobre o Trabalho com o coletivo ampliado de profissionais, com vistas à consolidação de um observatório contínuo e permanente sobre as relações entre vida, saúde e trabalho nas escolas (Brito & Athayde, 2003; Neves et al., 2015).

Figura 1: Etapas previstas em cada ciclo da pesquisa↔intervenção naescola 

3.1. Encontros Sobre o Trabalho, por segmento profissional

No campo da Saúde do Trabalhador, a participação efetiva dos trabalhadores e trabalhadoras no enfrentamento das situações geradoras de comprometimento da saúde é absolutamente mandatória. Do ponto de vista metodológico, apenas com os implicados e implicadas na atividade industriosa que se pode apontar os elementos que, concatenados, insuflam vivências de sofrimento, desgaste e processos de adoecimento (Dejours, 2012; Neves et al., 2018; (Seligmann-Silva, 2022).

Então, antes da realização dos Encontros Sobre o Trabalho - EST na escola, foi disponibilizado para as trabalhadoras de cada segmento um relatório analítico preliminar realizado pelo grupo de pesquisadoras, para leitura e discussão. Ali foram feitas: a descrição dos pontos identificados e sistematizados pelo grupo de pesquisa a partir dos materiais produzidos em conjunto com as trabalhadoras e o compartilhamento de conceitos mobilizados pelas clínicas do trabalho (Clot, 2010; Daniellou, 2004; Dejours, 2012; Guérin et al., 2001; Schwartz &Durrive, 2021) voltados para o adensamento do debate de questões. Por fim, a já sinalização de algumas recomendações para mudanças nas situações de trabalho. Em nosso entendimento, o compartilhamento com as trabalhadoras de conceitos oriundos dos materiais referentes ao referencial teórico-metodológico adotado é fundamental para propiciar o diálogo entre saberes, expondo as perspectivas que assumimos.

Os encontros percorriam o seguinte itinerário: primeiro, a rememoração dos objetivos da pesquisa↔intervenção e, em seguida, o debate dos materiais produzidos ao longo da investigação - em especial, observações e conversas, com vistas à sua (in)validação consensual. Mas, diante de infidelidades do meio todo tempo renovadas (cancelamento de conversas devido à dificuldade de agenda, rotatividade de pessoal em determinados segmentos...), foi preciso sempre renormatizar. O que justifica dizer que cada EST - realizado na escola e durante a jornada de trabalho - era um evento único.

Foram realizados, em cada ciclo (que variou de acordo com a rotatividade dos grupos de trabalhadoras), de três a cinco encontros com cada segmento profissional. No caso das professoras, com menos rotatividade, por exemplo, apenas poucas delas, de um total de 32, não participaram de um ou outro encontro, tendo alegado excesso de tarefas por realizar, a exemplo da correção de exercícios dos alunos. Os locais que sediaram as dinâmicas foram indicados pelas trabalhadoras e tiveram duração variável entre uma hora e meia e duas horas. No primeiro encontro com cada segmento, reapresentávamos e debatíamos a proposta de pesquisa - a temática, os objetivos, a abordagem metodológica e seus procedimentos. No segundo e terceiro encontros, o levantamento de novas questões e a discussão sobre os temas identificados ao longo das conversas e observações, problematizando-os a partir dos conceitos formulados no âmbito dos saberes acadêmicos das clínicas do trabalho (Clot, 2010; Daniellou, 2004; Dejours, 2012; Guérin et al., 2001; Schwartz & Durrive, 2021). No quarto encontro, a (in)validação consensual dos materiais produzidos em conjunto. Verificávamos, então, junto às trabalhadoras, se a sistematização apresentada pelo grupo de pesquisa correspondia à experiência coletiva vivenciada por elas. A reformulação das questões julgadas importantes instalava discussões inflamadas no grupo. No quinto e último encontro, também chamado “devolução”, ocorria um debate a partir do relatório e da pauta de recomendações que fora construída coletivamente. Uma leitura exploratória do material gerava as primeiras pontuações sobre os comentários feitos pelas trabalhadoras; fato que tornava possível tanto uma análise inicial imediatamente ulterior ao levantamento de informações quanto o encaminhamento de novas questões; o que nos conduzia de volta à temática, aos objetivos e à proposta metodológica, favorecendo um retorno parcial às descobertas e ampliando os elementos implicados e a acuidade da análise.

O primeiro encontro da série foi agendado com as cozinheiras da escola e, por ordem cronológica de realização dos encontros, com as auxiliares de serviços gerais, as professoras, os zeladores e as técnicas-administrativas em educação. Para os encontros com as professoras, foi necessário um agendamento prévio com a coordenação pedagógica. Os dias e horários acordados correspondiam àqueles previstos para as reuniões pedagógicas, já que as famílias estariam cientes de que em tais dias as crianças seriam liberadas mais cedo.. As trabalhadoras vinculadas à administração escolar (secretária e auxiliares de secretaria e de ensino) exigiram uma estratégia de pesquisa habilitada para lidar com inúmeras variabilidades, especialmente, porque nenhum EST foi possível, pois, com o término de seus contratos precários, eram desligadas da escola, sem sua substituição imediata por intermédio da contratação de novas trabalhadoras. Para tanto, foram realizadas somente conversas específicas com cada uma das secretárias e auxiliares de secretaria e de ensino que desenvolveram suas atividades, na referida escola, ao longo da pesquisa↔intervenção.

Debateram-se em todos os segmentos os materiais relativos às condições e formas de organização do trabalho, especialmente voltadas para as particularidades de uma escola em tempo integral; o que afeta a saúde nas situações de trabalho e as transformações possíveis. Falou-se sobremodo da inadequação do espaço físico da escola e das dificuldades com as quais se defrontavam no âmbito das relações intersubjetivas na unidade de ensino. Ao longo dos encontros os grupos de trabalhadoras validaram a maioria das análises, ampliando-as, e nos conduzindo, mais de uma vez, a ver in loco as questões apontadas.

Os encontros eram gravados e, posteriormente, todo o material produzido analisado através da perspectiva dialógica do discurso. Entende-se que os comentários das trabalhadoras sobre seu próprio trabalho e sua saúde, no interior de uma cadeia dialógica, representam o principal material de análise desta pesquisa↔intervenção. Neste caso, o pesquisador é visto em diálogo com as protagonistas das atividades de trabalho em análise, sendo ambos os(as) produtores(as) de uma obra-proposta, uma vez que as trabalhadoras participantes são sujeitos ativos que desenvolvem suas próprias ações (França, 2006).

Uma vez concluídos os EST com cada segmento profissional, reformulamos os relatórios e incluímos os ajustes apontados pelas trabalhadoras. Com as novas versões dos relatórios, elaboradas após esses EST, agendaram-se reuniões com a direção escolar para apresentação das mudanças sugeridas principalmente pelas trabalhadoras e com vistas à melhoria das condições de trabalho e saúde. Vale destacar que algumas já haviam sido acatadas e implementadas pela direção ao longo do processo, tais como a redistribuição de tarefas entre auxiliares e cozinheiras (o que até então era motivo de conflito), além da compra de equipamentos e da construção de novas bancadas de trabalho na cozinha.

3.2. Um grande Encontro: viver coletivamente a escola

Após o terceiro ano da pesquisa↔intervenção, no final de 2017, realizou-se o I Encontro Ampliado Sobre o Trabalho e a Saúde, planejado para inaugurar um espaço dialógico, coletivo e capaz de fazer circular os saberes produzidos com o conjunto de trabalhadoras. A inclusão desta etapa de pesquisa se deu no próprio processo de investigação, ao avaliarmos que o compartilhamento de saberes produzidos nos encontros realizados com as trabalhadoras dos diferentes segmentos levaria a novas possibilidades de compreensão e intervenção. Assim, a reunião dos diferentes segmentos profissionais pretendeu (re)apresentar as atividades e as condições de saúde de umas trabalhadoras para as outras, com o objetivo de aproximar suas demandas e implicá-las num projeto comum de transformação de toda a escola. A comunicação entre profissionais de áreas distintas - e a consequente identificação de lógicas variadas e dos constrangimentos enfrentados pelas demais - visou também contribuir para a resolução das dificuldades de cooperação (Scherer, Pires, & Schwartz, 2009). O EST ampliado exigiu um agendamento prévio, acordado com a direção escolar, para liberação das trabalhadoras que manifestaram o desejo de participar.

Tendo chegado o dia, cadeiras foram colocadas em círculo e disponibilizadas, sobre os assentos, pastas com alguns materiais. As participantes puderam socializar lanchando, percorrer o espaço, consultar as pastas e travar diálogos entre si. Nos arredores das cadeiras, foram instalados painéis com os resultados de outras pesquisas desenvolvidas pelo Programa Integrado de Pesquisas e informações como sobre o site “Encontros sobre Vida, Saúde e Trabalho nas Escolas Públicas” - página da internet por nós concebida, voltada para encontros virtuais entre interessados no tema da saúde de trabalhadoras da educação, além de repositório de materiais nesta temática (Brito et al., 2012). Por fim, um mural colorido intitulado “Em cena os(as) trabalhadores(as) da escola”, onde fizemos constar fotografias das trabalhadoras em situações as mais diversas - ao lado de alunas e alunos, durante as atividades de trabalho, em momentos de lazer e em festas promovidas pela escola. O uso de fotografias das trabalhadoras, cremos, beneficiou a coletivização das experiências e das atividades de trabalho. As trabalhadoras viam-se a si mesmas e umas às outras, comentavam as circunstâncias representadas pelas imagens, recuperando na memória os testemunhos de um tempo passado. A exposição fotográfica permaneceu no pátio da escola mesmo após o encontro, tendo sido mantida até o fim daquele ano letivo.

O EST ampliado foi aberto com a apresentação do histórico da pesquisa↔intervenção e do propósito de um encontro com o conjunto de trabalhadoras da escola. Baseados nos materiais produzidos em etapas anteriores, colocamos uma série de questões norteadoras, amparadas sobre: a escola e sua dinâmica; os valores comuns do trabalho circulantes na instituição; o viver-junto; a dimensão educativa presente no trabalho de todas; as condições de trabalho e os cuidados com a saúde para se manterem em atividade. Imediatamente, passou-se ao debate das características do trabalho de cada segmento; as especificidades das situações de trabalho e as sugestões de melhorias, sobretudo, a importância apontada por elas acerca do (não) reconhecimento do trabalho na escola. Toda questão ou imagem compartilhada suscitava discussões sobre quem disse o que foi dito, sobre (in)validação daquelas falas, concordâncias e discordâncias que ampararam, e, ainda, possíveis encaminhamentos para a promoção da saúde no trabalho daquela escola.

4. Horizontes das cenas: perspectivas analíticas sobre estratégias metodológicas e as condições de saúde e trabalho na escola

Cremos ser possível intervir no campo dos mundos do trabalho e da Saúde do Trabalhador, ainda que não se manifestem exigências explícitas por parte de trabalhadores ou gerentes/administradores. Ao longo das nossas experimentações anteriores (Brito & Athayde, 2003; Masson et al., 2020; Neves et al., 2015, 2018), em alguns casos, o sindicato se assumiu como solicitante da demanda por investigações e intervenções. Em outras ocasiões, assim como na escola em questão - em que o sindicato foi apenas mediador, indicando a unidade escolar e acompanhado as negociações com a direção -, a demanda foi sendo construída conjuntamente pelos investigadores profissionais e pelas trabalhadoras da unidade escolar, uma vez que os entraves diariamente enfrentados são eles próprios produtores de demandas.

As transformações instauradas pelos processos constantes da pesquisa↔intervenção abrem um campo permanente de negociação cotidiana comprometido com melhores condições de vida, saúde e trabalho. Daí a importância da realização, no caso da experiência em tela, de ciclos sistemáticos e contínuos estudos dedicados à atualização das questões e demandas acenadas pelas trabalhadoras implicadas desde o início da investigação, bem como daquelas que se engajaram posteriormente no processo. Devemos garantir algum destaque para o fato de que as etapas terem sido realizadas ao longo de um tempo maior de permanência na unidade escolar favoreceu o estreitamento dos laços de confiança entre as trabalhadoras e membros do grupo de pesquisa.

Tomando a reflexão e a análise - coletivamente conduzidas - como partes cruciais de uma pesquisa↔intervenção no campo da Saúde do Trabalhador, os encontros sobre o trabalho representam espaços privilegiados para a interlocução entre a realidade do cotidiano das trabalhadoras e o avanço nas discussões sobre a atividade, por meio da apropriação de conceitos e da dimensão ética nos locais de trabalho, com vista à construção de uma comunidade ampliada de pesquisa↔intervenção - CAPI ((Brito & Athayde, 2003; Masson et al., 2020; Neves et al., 2018). Ao colocar ênfase sobre a relação saúde e trabalho nas escolas, insistimos no protagonismo das trabalhadoras no dispositivo formativo e dialógico de compreender↔transformar que, no decurso do debate entre experiência e saberes das disciplinas, faz emergirem observações críticas sobre as condições e formas de organização do trabalho.

Os encontros previam a leitura crítica do trabalho desde o ponto de vista da atividade e, de acordo com análise ulterior, tornaram-se essenciais para o desenho de uma gestão do trabalho que afirmasse valores do bem comum tal qual a qualidade do trabalho realizado e a saúde daquelas implicadas na atividade industriosa (Daniellou, 2004; Oddone et al., 2020; Schwartz, 2000; Schwartz &Durrive, 2021). É (Clot 2010) quem, atento para a importância dos dispositivos dialógicos, acena na direção da construção de métodos indiretos que propiciem ao trabalhador viver experiências promotoras de outras experiências, engendrando uma zona de desenvolvimento potencial. Afirma o autor que, se empenhados em estudar o desenvolvimento, devemos produzi-lo no decorrer da própria pesquisa, no interior da qual os trabalhadores poderiam expandir seu poder de agir, a partir da discussão coletiva acerca das atividades desempenhadas (Neves et al., 2015). Eis a razão pela qual o vocábulo “encontros” faz referência também à aposta na potência das conversas e na busca conjunta por soluções e encaminhamentos beneficiadores das situações de trabalho - o encontro, por fim, um lugar de “dar com” e “pôr-se ao lado” de questões éticas, epistemológicas e políticas que ancorem a consolidação de uma comunidade ampliada de pesquisa↔intervenção.

Com o Encontro Ampliado Sobre o Trabalhado e a Saúde, deflagrador de uma nova fase da pesquisa em foco, reuniram-se diferentes segmentos profissionais com o objetivo de promover diálogos entre trabalhadoras para além da relação estritamente entre pares de um mesmo segmento profissional. A intenção era que o compartilhamento de ideias associadas ao temário levantado ao longo do processo evidenciaria e potencializaria a natureza complexa dos mundos do trabalho, por meio de uma coletânea de questões e problemas diversos que envolvem as mais variadas atividades e a saúde das trabalhadoras.

E uma professora, sentada ao lado de uma cozinheira, tendo folheado o material coletivamente produzido, fez comentários sobre a quantidade de alimento descascado, higienizado e cozinhado no período de um dia na cozinha da escola. A professora alarmada disparou: “a gente nem faz ideia de que seja tanto!”. A cozinheira, acenando em concordância, respondeu: “pois é, mais pessoas precisam ler isso!”. Ainda que nem todas as trabalhadoras tenham participado da experiência a partir da fala em voz alta, algumas delas se viam presentes em conversas paralelas durante a apresentação e discussão dos materiais e no intervalo do encontro ampliado, a exemplo dos comentários sobre as fotografias que ilustravam o mural. Mais de uma auxiliar, inclusive, procurou-nos para sugerir que as conversas - individualmente e/ou por segmento - continuassem, ainda que elas não quisessem se manifestar publicamente. O que demanda que continuemos permanentemente a discutir e avaliar as estratégias metodológicas experimentadas, buscando identificar os seus limites, com vistas a que melhor assegurem a efetiva participação de todas nas discussões. Cremos, todavia, que um primeiro gesto foi desenhado em direção à formação de comunidades ampliadas dedicadas à preservação das condições de saúde em atividades de trabalho.

A proposta de novos e regulares encontros com o coletivo ampliado foi aceita por todas as presentes, até mesmo com a recomendação, por parte das trabalhadoras, de que os materiais produzidos não permanecessem restritos ao âmbito da escola, já que como dito “essa realidade não é só dessa escola particular”. Elas indicaram ainda que os relatórios produzidos, com suas respectivas reivindicações e sugestões de melhorias, fossem discutidos junto ao Conselho Escola Comunidade (CEC) - que, por sua vez, realiza reuniões regulares entre pais, responsáveis e trabalhadoras da escola -, bem como entregues ao setor da administração municipal responsável pela saúde dos servidores da educação e ao sindicato dos profissionais da educação. A coordenação pedagógica, entretanto, declarou indisponibilidade de datas livres no calendário escolar, o que interrompeu a continuidade dos encontros coletivos ampliados. Frente à dificuldade do agendamento, algumas trabalhadoras reiteravam que a pesquisa↔intervenção fosse associada ao projeto político-pedagógico e ao planejamento anual da escola, possibilitando efeitos mais duradouros e maior implicação das trabalhadoras.

No início da intervenção, e sendo uma escola de ensino em tempo integral, depositamos nossas expectativas em uma investigação mais profícua. Notamos, entretanto, que a temporalidade naquela unidade se desdobrava de modo particular. O horário de funcionamento ampliado não culminou com um tempo de trabalho mais “vivível” (Schwartz et al., 2021) ou disponível por parte das trabalhadoras - principalmente das professoras - à pesquisa, visto realizarem suas tarefas no maior frenesi, mesmo com os intervalos previstos. Não havia, portanto, uma brecha de tempo possível no calendário escolar diante das diversas atividades extracurriculares, festas e eventos a serem realizados na escola e no ano de 2018 (Hyppolito, 2018).

Entre meados de 2014 e o final de 2017, a pesquisa↔intervenção coligiu conversas, observações da atividade e encontros sobre o trabalho, colaborando com a identificação, tantas vezes revista e atualizada, do cenário no interior do qual se desenvolviam as atividades das trabalhadoras. A elaboração do cenário, aliás, desde a performance discursiva, fez emergir relatos sobre vínculos empregatícios precários - sobretudo, por parte das auxiliares de serviços gerais; vivências de sofrimento e processos de adoecimento; formulação de defesas para a proteção da saúde e de modos de regulação e ressingularização do trabalho. As questões mais comuns ao conjunto de trabalhadoras da escola correspondiam, para além da natureza do vínculo, à sobrecarga de trabalho e a manifestações de questões de saúde como: dores de cabeça, nas costas e no estômago; desânimo e fadiga geral; ansiedade, irritabilidade e problemas osteomusculares. Algumas das estratégias de regulação do trabalho e de defesa, de proteção à saúde (Dejours, 2012), elaboradas, no caso das professoras, incluíam, por exemplos: “sair [da sala de aula] para respirar” e “dar um tempo [da atividade]”.

De acordo com a proposta original, como sinalizado, um dos desdobramentos apontados era de que os materiais produzidos em conjunto com as trabalhadoras subsidiassem um Observatório acerca das relações entre saúde e trabalho nas escolas com vistas a análises e intervenções mais sistemáticas que envolvessem num mesmo tempo-espaço o conjunto das trabalhadoras. Tal proposta visava a que o Observatório possibilitasse às próprias trabalhadoras, de forma autônoma, uma vigilância contínua, permanente e autônoma das suas condições e formas de organização do trabalho, tendo por objetivo a promoção da saúde a partir das situações de trabalho (Neves et al., 2015; Silva et al., 2009).

5. À guisa de conclusão

O constante processo de avaliação das etapas da pesquisa↔intervenção (visitas, conversas e observações das atividades e os encontros, por segmento profissional e do coletivo ampliado da unidade escolar), bem como a (in)validação consensual dos materiais produzidos no decorrer da experiência, tornou possível a reflexão acerca dos avanços, limites e desafios enfrentados. Percebemos que as formulações teóricas nem sempre apresentam de forma clara - e nem poderiam - quais os caminhos a serem trilhados para que as mudanças/intervenções ocorram durante e após os processos de pesquisa. Portanto, experimentações como essa são importantes para alimentar o debate a propósito das dificuldades de criação de um campo de negociação cotidiana a respeito das condições de vida, saúde e trabalho. Nesse sentido, destacamos alguns elementos do método que nos parece promissor:

O compartilhamento de conceitos e perspectivas teóricas com os grupos de trabalhadoras, que privilegiam o trabalho real, facilitando a intercompreensão relativa aos pontos tratados;

Um modo de produção de conhecimento que parte do “micro” (as atividades de cada segmento profissional) para articular o conjunto de saberes gerados através da reunião do coletivo ampliado (composto por trabalhadoras de diferentes segmentos);

A constituição de um espaço de discussão entre trabalhadoras de diferentes segmentos, como forma de proporcionar uma reflexão sobre o trabalho do outro - passo importante para a compreensão do processo de trabalho na escola de forma mais ampla e para o desenvolvimento dos vínculos, de relações de confiança e cooperação. Uma experiência que certamente modificou o modo de cada participante olhar seu próprio trabalho e os realizados pelas colegas.

É a partir desses elementos que podemos entender o desejo das trabalhadoras de que os materiais produzidos durante essa pesquisa↔intervenção não permanecessem restritos ao âmbito da escola, mas que também fossem discutidos junto ao Conselho Escola Comunidade (CEC) e entregues, tanto ao setor da administração municipal responsável pela saúde dos servidores da educação, quanto ao sindicato dos profissionais da educação. Isto porque parte das questões/problemas sinalizados, discutidos e enfrentados por elas também remete à realidade de profissionais de outras unidades escolares. Ademais, as profissionais sugeriram que a referida pesquisa↔intervenção fosse associada ao projeto político-pedagógico e ao planejamento anual da escola, para que as trabalhadoras permanecessem mobilizadas com carga horária prevista para a participação em atividades dessa natureza.

Por fim, cumpre destacar um dos desdobramentos da pesquisa↔intervenção que, quando da entrega do seu relatório final para o sindicato, fomos convidadas a assessorar na formulação e análise dos resultados de questionário a ser aplicado pelo núcleo sindical em todas as escolas da rede de ensino do município em questão. O objetivo era subsidiar a discussão em uma audiência pública na câmara legislativa sobre a saúde do coletivo de trabalhadores e trabalhadoras em educação, o que se apresentou como um aceno em direção às novas perspectivas abertas pela comunidade ampliada de pesquisa↔intervenção.

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1Desde já esclarecemos que, independentemente da regra gramatical (que se constitui ela mesma em uma produção social), estaremos nos referindo ao corpo de trabalhadores e trabalhadoras que compõe o Ensino Fundamental sempre no feminino - as trabalhadoras -, devido ao fato de sua composição ser majoritariamente de mulheres. Desse modo, procuramos tornar visível a divisão sexual do trabalho que é produzida histórica e socialmente (Neves et al., 2019).

Recebido: 11 de Abril de 2022; Aceito: 28 de Julho de 2022

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