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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.17 no.1 Porto jun. 2021  Epub 01-Jul-2021

https://doi.org/10.4000/laboreal.17555 

Datário

Março de 2021: 300.000 mortes por Covid-19 no Brasil. A gestão da pandemia à luz das contribuições de Foucault

Marzo de 2021: 300.000 muertos en Brasil. La gestión de la pandemia a la luz de las contribuciones de Foucault

Mars 2021: 300 000 morts au Brésil. La gouvernance de la pandémie à la lumière des apports de Foucault

March 2021: 300,000 dead in Brazil. The governance of the pandemic in accordance with Foucault’s contributions

1 Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Rua Esteves Jr 605. Ap 1414, Florianópolis SC Brasil. CEP: 88015-130 sandracaponi@gmail.com


No mês de março de 2021, um ano depois da aparição da pandemia, o Brasil superou o número de 300.000 óbitos por Covid-19. Nesse marco o presidente Bolsonaro, em uma de suas muitas lives, falou sobre a inutilidade do distanciamento social, acrescentando dados de um suposto estudo alemão referente às consequências indesejadas do uso de máscaras, particularmente por crianças. O presidente afirma: “Eu tenho a minha opinião sobre máscaras, que cada um tenha a sua. Mas a gente aguarda um estudo mais aprofundado sobre isso por parte de pessoas competentes” ( Carta Capital, 25/2/2021). O estado de Santa Catarina, onde vivo, atingiu no mês de março o pior momento da pandemia, uma situação definida pelo Secretário de Saúde do Estado como sendo de calamidade pública. A cidade de Florianópolis, capital do estado, encontra-se em risco gravíssimo, com hospitais lotados, todos eles com ocupação entre 99% e 100%, com sobrelotação de equipamentos da área de saúde, com falta de respiradores e anestésicos, com pessoas jovens morrendo em suas casas pela ausência de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), com médicos tendo que fazer a difícil escolha sobre quem será e quem não será atendido, isto é, quem deverá morrer e quem poderá viver.

Nesse marco de incerteza, não podemos deixar de questionar que estratégias biopolíticas (Foucault, 2008) foram postas em prática desde o início da pandemia até hoje. Inicialmente observamos com satisfação como o governo do estado de Santa Catarina e o prefeito de Florianópolis implantavam medidas de isolamento, insistiam na importância de manter o distanciamento social e o uso de máscaras. Falavam de grandes investimentos em saúde e da importância de higienizar as mãos para evitar o contágio. Argumentos sustentados na solidariedade e na necessidade de cuidar-nos entre todos, destacando a importância de ficar em casa para proteger aqueles que deviam sair. Porém, lamentavelmente esse discurso foi rapidamente abandonado (Caponi, 2020).

Tudo parece indicar que existe uma aceitação imaginária de que a pandemia já foi controlada, de que não existe mais risco de contágio, de que é possível circular sem problemas. Trata-se de garantir a livre circulação, mesmo que isso signifique mais vidas em risco, uma estratégia que se mostrou muito eficaz para garantir a reeleição do prefeito.

Em todo o mundo, paralelamente ao surgimento da pandemia, foi possível observar o recrudescimento de discursos e práticas racistas, xenófobas e misóginas. Mas também se multiplicaram as críticas a essas práticas, seja pela divulgação de artigos científicos que deixaram em evidência as desigualdades de raça e classe dos mortos por Covid (Azria et al., 2020), seja pelas manifestações de movimentos antirracistas, como Black lives Matter Movement, e grupos de defesa dos direitos humanos.

A atitude crítica, e não o negacionismo, era defendida por (Foucault 1995) como sendo a tarefa própria do intelectual. Sabemos que para Foucault tal atitude está vinculada à pergunta kantiana pelo esclarecimento. Ele se questiona: “Que é esse presente no qual estamos e a partir do qual nos constituímos como sujeitos?” (Foucault, 1995, p. 7). Dirigir essa atitude crítica à nossa atualidade significa pensar no contexto de exceção imposto pela pandemia de Covid-19. Implica formular a seguinte pergunta: de que modo estão sendo construídas estratégias de governo, instituídos ou negados discursos e saberes, em tempos de pandemia?

Neste artigo proponho analisar diferentes formas de gestão biopolítica em tempos de Covid-19. Isto é, analiso de que modo foram adotadas diferentes estratégias de governo sobre as populações; como essas relações de poder se articularam com saberes, discursos e enunciados científicos. Analiso também o impacto dessa forma de gerir a pandemia no mundo do trabalho.

1. Biopolítica e gestão das epidemias

Nos primeiros dias da pandemia, muitos tivemos a estranha sensação de estarmos inseridos em uma narrativa foucaultiana referida a quarentenas, isolamento e pestes. Em seus escritos sobre a imposição de quarentenas para controle da peste no século XVIII, Foucault mostra que o momento de exceção imposto por uma epidemia exige a organização de medidas sanitárias concretas, tais como: fechar as fronteiras, reorganizar o espaço, controlar a mobilidade, estabelecer registros, diferenciar doentes e não doentes, isolar os doentes e seus familiares, controlar a circulação de bens e populações. Sem dúvida, tais regulamentos não são os mesmos que os protocolos utilizados nos dias de hoje. Não aparece o mesmo espírito punitivo, nem a vigilância hierárquica. Porém, e inevitavelmente perante à ausência de estratégias imunitárias efetivas, como as vacinas, observamos que muitas estratégias definidas ontem e hoje para evitar o contágio permanecem idênticas. Lembremos que Foucault, referindo-se ao dispositivo disciplinar como forma de gestão das epidemias, afirma: “À peste que é desordem, responde a ordem, cuja função é desemaranhar as confusões provocadas pela doença que se transmite quando os corpos se misturam. (...) Contra a peste que é confusão a disciplina faz valer seu poder de análise” (Foucault, 1999, p. 201). Esse dispositivo de imposição de normas de isolamento e quarentena opõe-se à estratégia de expulsão dos leprosos. Neste último caso se operava uma divisão binária entre uns e outros, o que configurava um verdadeiro abandono, um desterro, uma prática de exílio-clausura, onde os exiliados constituíam um grupo indiferenciado de excluídos considerados impuros, fossem eles leprosos, loucos, prostitutas. Essa exclusão perseguia o sonho de purificar a cidade expondo esses sujeitos à morte.

Quando a pandemia apareceu, muitos levantaram sua voz contra o abuso desse poder disciplinar que pretendia, segundo entendiam, registrar, controlar e punir. Agamben (2020) falou que era um modo de naturalizar um estado de exceção que já existia antes da pandemia, Han (2020) destacou seu temor a uma disciplina informatizada generalizada, dentre outras vozes de alarme. Por outro lado, já no início da pandemia apareceram com força os discursos negacionistas de presidentes como Trump e Bolsonaro, os gritos alterados dos defensores da liberdade individual, os que argumentavam contra o uso das máscaras e contra a existência da pandemia, que muitos consideram como uma simples gripe sem consequências. Essas vozes derrubaram rapidamente as estratégias de isolamento que, timidamente e longe das caraterísticas autoritárias que caracterizaram as grandes quarentenas do século XVIII, foram estabelecidas para controlar a pandemia. Os opositores a uma gestão racional da pandemia não conseguem entender que estamos sim em uma situação de exceção. Uma situação que exige a criação de estratégias de governo destinadas a preservar a vida das populações, pois, como afirma Foucault, em tempos de peste “contra um mal extraordinário, o poder se faz visível, inventa engrenagens, compartimenta, reticula, imobiliza” (Foucault, 1999, p. 208).

Foucault 2008 retomará a referência às epidemias no marco dos estudos dedicados à biopolítica. O modelo analisado já não é o da exclusão do leproso, nem o dispositivo disciplinar para gerir a peste, mas o modelo da varíola. Uma epidemia cujo controle exige uma nova configuração das relações de poder, uma estratégia biopolítica centrada no dispositivo de segurança e antecipação de riscos. Neste terceiro modelo aparece um novo elemento, a variolização e a vacinação, isto é, a conquista da imunidade numa população como forma de se antecipar ao risco de contágio. Foucault insiste em afirmar que esses modelos não se substituem, mas permanecem e se articulam. De modo que, perante a ausência de vacinas, as estratégias biopolíticas que devem ser implementadas, certamente com mudanças, alterações e adaptações, são aquelas velhas estratégias de isolamento que permitem garantir o distanciamento físico para evitar o contágio. Foucault entende por biopolítica “o conjunto de mecanismos por meio dos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais pode fazer parte de uma política, de uma estratégia geral de poder” (Foucault 2008, p. 16).

As estratégias de governo sobre as populações, referidas aos processos biológicos de nascimento, doenças, epidemias, reprodução e morte, implicam determinada “política da verdade”, isto é, determinado modo de articular as relações de poder e os discursos, sejam eles verdadeiros ou falsos. Discursos que, em um determinado momento histórico, aparecem enunciados pelos saberes instituídos, pela população em geral ou pelas autoridades.

No modelo de controle das epidemias os cálculos de risco e as estratégias de antecipação ocupam um lugar central na construção da biopolítica. Desse modo, é possível antecipar um perigo futuro (real ou imaginado) sobre a vida e a saúde, dotando de legitimidade e aceitabilidade as intervenções sobre as populações, vistas da perspectiva biológica. Esses cálculos permitem identificar as regiões e os locais que apresentam maior perigo de contágio, calcular a quantidade de pessoas infectadas, o nível de imunidade existente e, desse modo, determinar que regiões ou cidades devem ingressar em um esquema de isolamento maior e indicar quando é possível flexibilizar as medidas. Os cálculos de risco constituem, enfim, um elemento indispensável para organizar as políticas de saúde em tempos de epidemias (Foucault, 2008).

As reflexões que Foucault dedica à saúde pública como espaço privilegiado de exercício da biopolítica aparecem de modo recorrente em diversos textos. Essa recorrência parece indicar que a saúde pública pode ser pensada como uma estratégia biopolítica fundamental para que os Estados modernos possam garantir o governo e a gestão das populações. Pois ela permite, ao mesmo tempo, administrar os fatos biológicos de uma multiplicidade humana, a população, e gerir a saúde de cada indivíduo. Essa biopolítica exige a construção de um campo de saber referido às populações composto por: estatísticas populacionais; estudos dos higienistas, primeiro, e dos sanitaristas, depois; os saberes médicos e biológicos; as ciências sociais e a epidemiologia. Deve fazer uso de instrumentos quantitativos e de estudos demográficos a partir dos quais serão definidas as taxas de mortalidade e natalidade existentes e desejáveis, o número de crimes, de suicídios, de alcoolismo e de loucura que cada sociedade deve gerir. No caso específico de uma pandemia, será necessário construir curvas de casos e mortes que permitam realizar comparações entre diversas regiões de um mesmo país e entre os diversos países afetados. Também, dados e estatísticas que permitam mostrar que nem todas as pessoas adoecem e morrem do mesmo modo pois, como ocorre em outras epidemias, existem taxas diferenciais de mortalidade entre ricos e pobres, entre brancos, pretos e indígenas, que precisam ser conhecidas e consideradas para que se possa minimizar essas assimetrias (Ramos, 2020).

A partir desses saberes e discursos, desses cálculos de risco e curvas de normalidade, a partir da identificação de casos e da definição de circunstâncias que implicam maior perigo de contágio, foram legitimando-se diversas estratégias biopolíticas de intervenção sobre a saúde das populações. O que torna aceitáveis essas intervenções, muitas vezes impositivas, poderia ser definido como algo próximo a uma promessa de recompensa. Essas práticas cientificamente legitimadas pelos saberes aceitos em cada momento histórico, independentemente de serem ou não invasivas, se apresentam como perseguindo o único objetivo de maximizar e melhorar a saúde das populações.

2. Uma biopolítica bem-sucedida

Se retornamos para a situação específica criada ao redor do mundo pela pandemia de Covid-19, podemos observar a aparição de diversos obstáculos que interferem e interagem com a construção das estratégias biopolíticas de controle da doença. Observamos dificuldades econômicas, políticas e sociais, vinculadas à produção de conhecimento, que impediram o estabelecimento de um modelo integrado de gestão da pandemia em todo o mundo. Neste sentido, mesmo existindo diretrizes unificadas da Organização Mundial da Saúde (OMS), cada país montou suas estratégias de controle da pandemia de acordo com as possibilidades econômicas e com as lutas de poder existentes em cada caso. É verdade que são poucos os países que podem considerar-se bem-sucedidos nesse esforço de controle, mas quase não restam dúvidas de que o modelo biopolítico mais adequado implantado na pandemia foi o escolhido pela Nova Zelândia (Lowy Institute, 2021).

A Nova Zelândia é um país que conta com algumas vantagens em relação a outros, por sua condição geográfica e sua população. Por ser uma ilha, o controle de ingresso e fechamento de fronteiras é mais simples, facilitando o isolamento. Por outra parte, a densidade populacional do país é baixa, com pouco mais de 5 milhões de habitantes, o que facilita o controle e seguimento de casos. No dia 28 de fevereiro de 2021, quando o Brasil superava o número de 250.000 mortos, a Nova Zelândia contava com 65 casos ativos, e com um total, desde o início da pandemia, de 2.376 casos de Covid-19. As mortes reportadas, desde a primeira, ocorrida no dia 21 de março, até o dia 28 de fevereiro, atingem o número de 26 óbitos (New Zealand Government, 2021b) por Covid-19.

A gestão da pandemia na Nova Zelândia reitera muitos elementos das velhas estratégias biopolíticas narradas por Foucault, articuladas com novos conhecimentos científicos hoje existentes. No dia 19 de março de 2020 o país fechou as fronteiras e criou um sistema de 4 níveis de alerta para controlar o risco de contágio, com muitas das características identificadas por Foucault no dispositivo de segurança que caracteriza a biopolítica contemporânea (New Zealand Government, 2021a).

Esse sistema de alerta foi introduzido com o objetivo de gerenciar e minimizar o risco de contágio por Covid-19, como um modo de instruir a população sobre o nível de gravidade da pandemia no território e de divulgar as restrições que devem ser seguidas. O sistema de alerta notifica que as medidas podem ser atualizadas com base em dois critérios: (1) novos conhecimentos científicos sobre Covid-19; (2) novas informações sobre a eficácia das medidas de intervenção na Nova Zelândia e em outros lugares. Esses níveis de alerta podem ser aplicados em uma cidade, município, território. Podem ser aplicados em nível regional ou nacional, de acordo com as necessidades e de acordo com o nível de risco. Existem medidas gerais de saúde pública que se referem a todos os aspectos: higiene, como lavagem de mãos e desinfecção de superfícies; realização de testes; rastreamento de casos e autoisolamento das pessoas com sintomas.

Nos últimos dias do mês de fevereiro de 2021, com 26 mortos e 65 casos ativos, a Nova Zelândia passou do nível mais baixo de risco, correspondente ao Alerta 1, a um nível de risco maior, correspondente ao Alerta 2, depois de ter tido um pequeno aumento de casos (de 50 em novembro de 2020 para 65) e um pequeno aumento no número de mortos (de 25 para 26). Isso significa que se deve reforçar o estado de atenção e cuidado para evitar que exista aumento de casos. As medidas atuais são muito simples: uso de máscara, distanciamento de dois metros entre as pessoas, manter uma boa higiene de mãos e desinfeção de produtos, realização de testes e isolamento de 14 dias por pessoas que ingressam no país. Considera-se que no nível de Alerta 2 existe o risco dos casos de Covid-19 aumentarem e, por esse motivo, incentiva-se a continuar registrando onde a pessoa esteve e quem encontrou, para ajudar no rastreamento de contatos em caso de necessidade. Pode ser utilizado um aplicativo chamado NZ COVID Tracer em locais públicos, espaços de trabalho e lojas que permitam fazer o registro. Por fim, no nível de Alerta 1, existe um completo sistema de ajuda econômica para indivíduos, comércios e empresas, que inclui um auxílio a estrangeiros residentes no país.

Até atingir o nível de Alerta 1, a Nova Zelândia atravessou os outros estágios iniciais e mais graves, quando a pandemia aparecia com alto risco de contágio.

No dia 25 de março de 2020, quatro dias após ser notificada a primeira morte por Covid-19, a Nova Zelândia ingressa no nível de Alerta 4, que foi mantido até o dia 27 de abril. Esse nível recebe a denominação de estado nacional de emergência sanitária. Nesse momento, existe a possibilidade de que a doença não seja contida, avalia-se que uma transmissão contínua e intensiva está ocorrendo na comunidade, com surtos generalizados. As medidas impostas nesse período de exceção são muito semelhantes àquelas descritas por Foucault: as pessoas são instruídas a ficar em casa “em sua bolha”; as viagens são severamente limitadas; todas as reuniões são canceladas e todos os locais públicos fechados; os comércios ficarão fechados, exceto para serviços essenciais; centros educacionais também fechados; racionamento de provisões; imposição de isolamento e quarentena; priorizando, ao mesmo tempo, o fortalecimento dos serviços de saúde. A essas medidas biopolíticas clássicas, onde se articula o dispositivo disciplinar próprio da gestão das pestes do século XVIII com o dispositivo de segurança e antecipação de riscos, devemos acrescentar três novas estratégias. Elas são: a garantia de auxílio financeiro, para que as pessoas possam permanecer em suas “bolhas”; as medidas de testagem, com testes aleatórios para a comunidade e com testes nos Centros de saúde para as pessoas com sintomas; e um sistema de rastreamento de casos, com uso do aplicativo NZ Covid Tracer. Os códigos de rastreio QR, emitidos pelo governo da Nova Zelândia devem ser exibidos nos locais de trabalho, comércio e transporte público para permitir a captação do NZ COVID Tracer. Essas medidas permanecem de maneira muito semelhante no nível de Alerta 3, que se inicia em 27 de abril e persiste até o dia 13 de maio.

Vemos assim que ao longo dos meses iniciais da pandemia as medidas de gestão utilizadas foram as mais clássicas: quarentena e isolamento adequados aos cálculos de risco, pois essas são as únicas medidas possíveis perante a inexistência de uma vacina eficaz. Desde junho até hoje as medidas de controle foram adequando-se aos diferentes níveis de risco nas diferentes regiões do país, passando alternativamente do nível de Alerta 2 ao nível de Alerta 1, e retornado ao nível 2, quando necessário. É possível observar um diálogo permanente e bem-sucedido entre as estratégias de governo e as novas informações e conhecimentos científicos, um tipo de gestão que longe de negar os conhecimentos que possam ser de utilidade para salvar vidas, se compromete com uma tarefa educativa para que a população entenda os riscos existentes e a necessidade de cuidar-se entre todos, oferecendo suporte financeiro quando necessário.

Já não se trata das medidas violentas, impositivas de controle dos corpos, como o encarceramento e a punição utilizadas para controlar as pestes do século XVIII. É possível organizar uma gestão biopolítica que maximize a vida e minimize a exposição ao contágio e à morte com medidas educativas claras, avaliando e divulgando os riscos, considerando os conhecimentos científicos adquiridos, não só de infectologistas e de sanitaristas, mas também de sociólogos, antropólogos e cientistas sociais que contribuam para minimizar a desigualdade perante a morte. A consigna que perpassa esta biopolítica bem-sucedida é a da solidariedade coletiva. Parece não existir dúvidas de que é preciso uma gestão coletiva que envolva toda a população para conter a pandemia, neste estado de exceção que, de um modo ou outro, afeta o mundo todo. Essa biopolítica articula-se na Nova Zelândia em torno da ideia de que não existe salvação individual, de que a pandemia é um fato coletivo, por isso as consignas adotadas são: “Unidos contra a Covid-19”, e “Proteja-se você e proteja aos outros contra a COVID-19” ” (New Zealand Government, 2021b).

3. Necropolítica e negacionismo científico

Nas últimas décadas do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, as estratégias biopolíticas analisadas por Foucault, preocupadas essencialmente com a estatização da vida, isto é, realizadas por estruturas do Estado, começaram a ser substituídas por estratégias de governos derivadas das exigências do neoliberalismo. Essa nova configuração política e econômica terá como resultado fundamental um deslocamento no modo de administração e gestão da vida: sem deixar de ser eixos de intervenção e controle dos governos, a vida e a saúde passarão a transformar-se em assuntos em relação aos quais cada um de nós é considerado “responsável”. Seja pelos processos crescentes de privatização da saúde, ou como consequência de demandas sociais recorrentes, o cuidado com a saúde e a antecipação dos riscos parece ter ficado em nossas mãos. É justamente essa a consigna utilizada pela prefeitura de Florianópolis em sua página de informação sobre a situação da pandemia. Longe das consignas mencionadas utilizadas pelo governo da Nova Zelândia, “Unidos contra a Covid-19”, e “Proteja-se você e proteja aos outros contra a COVID-19”, a Prefeitura de Florianópolis utiliza a consigna “O controle em nossas mãos” (Prefeitura de Florianópolis, 2021), como se uma pandemia fosse um problema de gestão individual e não coletiva.

As premissas neoliberais parecem ir em uma direção oposta às da biopolítica implementada na Nova Zelândia, centrada na solidariedade e na proteção coletiva. Pelo contrário, em países como Estados Unidos e Brasil, os dois países com maior número de óbitos, o que predomina na gestão da pandemia é uma lógica neoliberal de defesa das liberdades individuais sobre todas as coisas, liberdade de circular, de vender e comprar, de se expor e de expor os outros ao contágio.

É verdade que essa lógica de defesa de uma liberdade individual a qualquer preço, contradizendo as exigências de um pacto social básico de respeito à vida, não é um fenômeno exclusivo desses países. Mas, o certo é que a biopolítica adotada por países como o Brasil aproxima-se do que Achille Mbembe identificou como Necropolítica (Mbembe, 2011). Como Foucault afirma em diversos textos, o direito soberano de matar permanece inscrito entre os mecanismos de biopoder dos Estados modernos, uma inscrição que ocorre, fundamentalmente, pelo que denomina racismo de Estado. A obsessão mítica por proteger uma suposta pureza da raça, encontrou no nazismo o exemplo, perverso e extremo, de um Estado exercendo o direito de matar. O nazismo tornou-se o arquétipo, afirma Achille Mbembe, “de uma formação de poder que combinava o Estado racista, o Estado assassino e o Estado suicidário” (Mbembe, 2011, p. 19). Mbembe dá um passo a mais nessa direção, antes enunciada por Foucault, quando afirma que as premissas do extermínio nazista podem ser encontradas no imperialismo colonial. Assim, aquilo que para Foucault constitui o limite extremo e indesejável do biopoder, o que denomina tanatopolítica, será considerado por Mbembe já não como limite extremo, mas sim como uma prática frequente e não excepcional, de expor certos indivíduos à morte. Considera que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte e que é necessário falar de necropolítica para indicar a sistemática exposição de certos indivíduos a mortes evitáveis.

À diferença do que ocorre na Nova Zelândia, o governo nacional e muitos governos estaduais no Brasil sustentam uma política de minimização e negação dos riscos apresentados pela pandemia, desconsiderando a gravidade da doença, expondo a população à desinformação, ao contágio e à morte. Quando falamos de negacionismo, geralmente pensamos em negacionismo científico sem estabelecer as articulações necessárias que esse discurso tem com a negação dos direitos humanos. Ora, na medida em que o negacionismo implica o sistemático ocultamento da realidade, interfere diretamente no direito à verdade, que é um direito humano fundamental. Está associado também a movimentos que negam situações concretas de desapreço aos direitos, por exemplo quando se desacredita a existência do Holocausto, o racismo estrutural, ou as mortes provocadas pela ditadura militar.

O novo discurso negacionista, que se difunde pelas redes, questiona o valor do conhecimento científico, dos argumentos racionais, da experiência adquirida ao longo dos anos, considerando-os como uma ameaça desestabilizadora. Independentemente de que esses argumentos se refiram a questões de saúde, direitos humanos ou à preservação do meio ambiente, a ideia que prevalece é que todas as opiniões têm igual valor. Desse modo, o discurso conservador se opõe ao mesmo tempo aos enunciados científicos e aos direitos humanos, aos que os conservadores consideram como verdadeiras ameaças aos valores tradicionais que defendem: nacionalismo, misoginia, desrespeito às minorias, exigência de subordinação de trabalhadores e desempregados à lógica empresarial. Hoje, as notícias falsas e mentiras, que se propagam no whatsapp e pela boca de nosso presidente, aumentam o medo das mudanças e o ódio aos opositores, levando à perda de uma realidade compartilhada, que chega a negar inclusive o número de mortos por Covid.

4. O trabalho na pandemia: estratégias necropolíticas

A principal premissa do negacionismo científico em relação à Covid-19 é a falaz oposição entre “defender a vida” ou “defender a economia”, apresentadas como polos antagônicos. Para entender a força dessa aparente oposição entre economia e vida, é preciso lembrar que a pandemia surge no contexto do neoliberalismo, agudizando ainda mais a precariedade laboral e as iniquidades sociais já existentes. Para entender como se naturalizou essa lógica que defende a manutenção do mercado, mesmo que isso possa custar a vida de nossos entes mais queridos, é preciso lembrar que o neoliberalismo não produz apenas serviços e bens de consumo. Ele produz também modos de ser sujeito, e o tipo de sujeito que produz é o “capital humano”, o empresário de si, alguém que está fundamentalmente preocupado com a competição e o lucro. Nesse marco devemos situar-nos para entender por que motivo se repete essa “oposição entre vida e economia”, como se de fato fosse possível imaginar conquistas econômicas edificadas sobre cadáveres. A pandemia nos coloca perante à debilidade dessa razão neoliberal centrada na meritocracia, no sucesso e na construção do “capital humano”.

Para alertar sobre essa falácia, podemos revisar os isolamentos voluntários daqueles que dirigiam empresas onde os trabalhadores que foram infectados e morreram foram substituídos, para continuar produzindo sem, é claro, esses benefícios atingirem a todos igualmente (Vallejo, 2020).

Os defensores do neoliberalismo acreditam que se beneficiarão com menos Estado, com menos impostos, com menos dinheiro público, com menos investimento em educação e saúde pública, agora transformados em espaços de disputa de mercado. Cabe a cada um de nós gerir e antecipar os riscos, pagar por um plano de saúde, por uma aposentadoria, ter um Capital-saúde de reserva (Bihr, 2020). Quando essa lógica neoliberal se confronta com um fenômeno dramático como a pandemia de Covid, ficam em evidência as fragilidades do modelo de saúde regulado pelo mercado. Mesmo no contexto de precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) e do aumento de contágios e mortes por Covid-19, Bolsonaro e seus seguidores continuam propagando informações falsas sobre os efeitos mágicos da cloroquina para prevenção e terapêutica, uma droga que já foi excluída de todos os protocolos médicos do mundo. Tal insistência tem uma funcionalidade ideológica e política muito clara pois, existindo uma droga eficaz, não haveria nenhuma justificativa para não retomar as atividades ou negar-se a voltar a trabalhar.

Comecei este texto referindo-me à situação calamitosa que vivem o estado de Santa Catarina e a cidade de Florianópolis, com uma curva ascendente de contágios e mortes, e com uma situação caracterizada pelo Secretário do Estado como de calamidade pública, sem que isso tenha levado as autoridades a modificar significativamente as estratégias de gestão da pandemia. Esse é o resultado de um estado e de uma cidade que se obstinam em negar, seguindo os ensinamentos do presidente, a existência de um problema dramático de saúde pública e a desconsiderar a importância das poucas medidas que estão a nosso alcance para conter a pandemia. A situação de Florianópolis replica o que ocorre em muitas outras cidades do Brasil.

Na última semana de fevereiro de 2021, com uma situação de caos sanitário, com pessoas morrendo em seus domicílios, com UTI lotadas e falta de insumos nos hospitais, o governador do estado de Santa Catarina apresentou medidas muito tíbias de combate à pandemia. As medidas consistem na restrição de atividades depois da meia-noite e na adoção da necessária medida de lockdown, porém só por 48 horas, no final de semana. Ainda que todos saibamos que essa é uma medida ineficaz, ainda que profissionais da área da saúde e da educação, cientistas e epidemiologistas advirtam que essa medida não servirá para conter o caos sanitário, a pressão empresarial, dos comerciantes, dos setores de turismo e transporte, inviabilizou qualquer possibilidade de estabelecer um lockdown por um tempo de 15 dias ou mais, como seria necessário - paralelamente à implementação de um auxílio emergencial, para que os trabalhadores possam realizar o isolamento, e à agilização da compra e distribuição de vacinas no estado. No mês de março as medidas foram alteradas e as restrições praticamente deixaram de existir, após diversas negociações e pressões dos empresários locais.

Sabemos que as medidas de isolamento e distanciamento não podem ser adotadas por todos, que o transporte público é uma fonte efetiva para o contágio e a propagação do vírus. Obviamente, muitas pessoas não podem parar de trabalhar, nem realizar suas tarefas de maneira remota. Por esse motivo, é preciso que sejam garantidas medidas de assistência econômica e de proteção às populações vulneráveis até o fim da pandemia.

5. Considerações finais

As estratégias biopolíticas analisadas por Foucault em relação a outras epidemias permitem entender os motivos pelos quais, no contexto de exceção imposto pela Covid-19, muitos países se viram obrigados a impor restrições a suas populações, muitas vezes enfrentando situações de oposição e resistência. Essas estratégias, destinadas a preservar a vida e diminuir as mortes, estão centradas no controle da circulação, uso de máscaras, isolamento e lockdown. Trata-se de intervenções que aparecem como inevitáveis até que possamos contar com uma distribuição e aplicação eficaz de vacinas, único modo de garantir a imunidade da população. Alguns países tiveram mais sucesso na implantação dessas biopolíticas, outros menos. Analisamos aqui o exemplo da Nova Zelândia, pela excelente forma de gerir a pandemia que foi adotada nesse país. O estudo publicado pelo Lowy Institute (Lowy Institute, 2021), de Sidney, destaca o exemplo da Nova Zelândia como sendo o modelo mais eficaz de controle, ao mesmo tempo que considera a gestão da pandemia no Brasil como sendo a pior do mundo.

No mês de março de 2021 o Brasil atingiu o número de 300.000 mortos por Covid-19. Todos sabíamos que chegaríamos a esse número macabro, assim como todos sabemos que esse número continuará aumentando, pois pouco está sendo feito para controlar a pandemia. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas com ações concretas que já eram conhecidas por todos. O certo é que essas mortes evitáveis não aconteceram por acaso, ocorreram pelas decisões equivocadas adotadas pelo governo federal e pelos governadores e prefeitos alinhados a suas ideias. O mundo inteiro está estarrecido com as manifestações do presidente contra o distanciamento social, contra o uso de máscaras e com sua lentidão para adquirir as vacinas. Observamos que a gestão da pandemia realizada pelo governo Bolsonaro tem todas as características daquilo que Achille Mbembe definiu como necropolítica, uma política de exaltação e de exposição sistemática à morte.

A desigualdade perante a morte é uma característica dessa necropolítica. No Brasil, mulheres e homens pretos perderam com maior frequência o emprego na pandemia, têm uma taxa de desocupação maior, e muitos se encontram em situação de vulnerabilidade, vivendo em moradias precárias e com dificuldade para aderir ao isolamento. As mortes por Covid-19 foram e continuarão sendo maiores na população negra e entre os trabalhadores mais pobres, permanentemente expostos ao contágio, obrigados a deslocar-se em transportes lotados e sem poder contar com um auxílio emergencial para poder realizar as medidas de isolamento, como ocorre em outros países.

A inexistência de uma política geral que estabeleça as medidas de controle da pandemia, a defesa da falsa oposição entre defender a vida ou a economia, o discurso negacionista que desacredita sistematicamente os argumentos científicos, a insensibilidade e falta de empatia dos governantes, a inoperância para comprar as vacinas, entre outras questões, tem contribuído para que a gestão da pandemia no Brasil possa ser definida como necropolítica.

Referências Bibliográficas

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