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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.11 no.2 Porto dez. 2015

https://doi.org/10.15667/laborealxi0215aj 

DISCURSOS SOBRE VIVENCIAS EN EL TRABAJO

 

El síntoma en el trabajo: ¿una disfunción o una invención?

O sintoma no trabalho: uma disfunção ou uma invenção?

Le symptôme au travail: un dysfonctionnement ou une invention?

The symptom at work: a dysfunction or an invention?

 

 

Admardo B. G. Júnior [1] & Daisy M. Cunha [2]

[1] Grupo de estudos trabalho, ergologia e desenvolvimento Faculdade de Políticas Públicas Universidade do Estado de Minas Gerais (FaPP/UEMG). Rua São João Evangelista, 525/101 - Santo Antônio 30330-150 Belo Horizonte – MG -Brasil

admardo.junior@uol.com.br

 

[2] Grupo de estudos trabalho, ergologia e desenvolvimento Faculdade de Educação Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901– Belo Horizonte – MG

daisy-cunha@uol.com.br

 


RESUMEN

Este artículo presenta una discusión sobre la actividad del profesional “psi” en la escucha y conducción clínica de casos de sufrimientos en el trabajo, la necesidad de establecer el nexo causal entre la enfermedad y el trabajo, sus acciones derivadas y los problemas que el tema encuentra en el campo de la salud mental. Buscamos localizar brevemente la discusión en torno de la causalidad psíquica, social y orgánica, problematizando el tema de la causalidad en el campo de la salud y, específicamente, de la salud mental. Nuestro segundo paso es presentar un caso clínico clásico de la literatura de la psicopatología del trabajo en Brasil, donde el nexo causal es cuestionado con riqueza de datos. Se contrastan y problematizan en sus divergencias dos versiones del mismo caso. Finalmente, planteamos problemas para la actividad de los profesionales “psi” en el campo del trabajo, entre las cuales se destaca y localiza un importante punto de investigación: el impasse entre considerar el síntoma como disfunción o como un modo de funcionamiento

Palabras-clave: Trabajo, Síntoma, Nexo causal.


RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão sobre a atividade do profissional “psi” na escuta e condução clínica de casos de sofrimento no trabalho, a necessidade do estabelecimento do nexo causal do adoecimento com o trabalho, suas ações decorrentes e os problemas que a questão encontra no campo da saúde mental. Buscamos localizar brevemente a discussão em torno da causalidade psíquica, social e orgânica, problematizando a questão da causalidade no campo da saúde e, especificamente, da saúde mental. Nosso segundo passo é apresentar um caso clínico já clássico da literatura da psicopatologia do trabalho no Brasil, onde o nexo causal é questionado com riqueza de dados. Duas versões do mesmo caso são contrastadas e problematizadas em suas divergências. Ao final, levantamos problemas para a atividade dos profissionais “psi” no campo do trabalho, entre as quais uma se destaca e permite localizar um importante ponto de investigação: o impasse entre tomar o sintoma como disfunção ou como um modo de funcionamento.

Palavras-chave: Trabalho, Sintoma, Nexo causal.


RÉSUMÉ

Cet article présente une discussion sur l'activité du professionnel "psy" dans l'écoute et la prise en charge clinique des cas de souffrance au travail, la nécessité d'établir le nexus causal entre la maladie et le travail, leurs actions résultantes et les problèmes que la (cette) question trouve dans le domaine de la santé mentale. Nous cherchons à situer brièvement une discussion autour de la causalité psychique, sociale et organique, en mettant en problématique la question de la causalité dans le domaine de la santé et plus particulièrement de la santé mentale. Notre deuxième étape consiste à présenter un cas clinique déjà classique dans la littérature psychopathologie du travail au Brésil, où le nexus causal est remis en question avec une richesse de données. Deux versions du même cas clinique sont mise en contraste et problématisées dans leurs différences. Finalement, on pose les problèmes relatifs à l'activité des professionnels "psy" dans le domaine du travail, dont celui qui se démarque nous permet de situer un important point d'investigation: l'impasse entre la prise du symptôme comme un disfonctionnement et un mode de fonctionnement.

Mots clés: Travail, Symptôme, Nexus causal.


ABSTRACT

This article presents a discussion about the activity of the "psi" professional in listening and in the clinical management of cases of suffering at work, the need to establish the causal relationship between illness and work, the subsequent actions and the problems that lie in the field of mental health. We seek to briefly place the discussion around the psychological, social and organic causality, arguing the issue of causality in the health field and, specifically, the mental health field. Our second step is to submit a clinical case of work psychopathology, a classic in Brazilian lit erature, where the causal connection is questioned with the richness of the data. Two versions of the same case are contrasted and discussed in their differences. At the end, we raise problems for the professional activity of the "psi" in the work field, including one that stands out and allows us to spot an important point of investigation: the deadlock between taking the symptom as dysfunction or as an operating mode.

Keywords: Work, Symptom, Causal connection.

 

 


1. O SOFRIMENTO NO TRABALHO E O NEXO CAUSAL

Doença é também a saúde das palavras. O equívoco as dilacera? Feliz equívoco, sem o qual não haveria diálogo. O mal-entendido as desvirtua? Mas este mal-entendido é a própria possibilidade do nosso entendimento. O vazio as penetra? Esse vazio é seu próprio sentido (Blanchot,1997, p. 300).

O sofrimento psíquico no trabalho não é algo novo, mas sua manifestação na civilização parece ser sempre renovada. A recorrência das queixas leva-nos a reconhecer sua presença no conjunto do mal-estar na civilização contemporânea. Vários são os nomes que, hoje, ele recebe: neurose profissional, neurastenia, estresse pós-traumático, episódios depressivos, alcoolismo crônico relacionado ao trabalho, burnout, etc. Multiplicam-se também as formas de compreender e tratar suas manifestações sintomáticas nos indivíduos e na cultura.

Na investigação das relações saúde-trabalho, é de suma importância o estabelecimento do nexo causal, ou seja, da relação causal entre determinado evento de saúde (como um dano ou uma doença) e o trabalho. Dessa identificação decorrem ações de tratamento e prevenção, individuais ou coletivas. O estabelecimento de uma relação etiológica tem “[…] implicações previdenciárias, trabalhistas, de responsabilidade civil e às vezes criminal, além de desencadear e orientar ações preventivas” (Ministério da Saúde, 2001, p. 31).

Segundo o Ministério da Saúde (2001, p. 27), a relação causal entre o evento de saúde e “[…] uma dada condição de trabalho constitui a condição básica para a implementação das ações de Saúde do Trabalhador”. O nexo serve à “identificação e controle dos fatores de risco para a saúde presente nos ambientes e condições de trabalho”, assim como ao “diagnóstico, tratamento e prevenção dos danos, lesões ou doenças provocados pelo trabalho, no indivíduo e no coletivo de trabalhadores”.

A questão do nexo causal e dos fatores de risco em saúde do trabalhador estende-se também ao âmbito legal. Para aqueles que trabalham sob subordinação e são vítimas de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, a lei prevê uma série de direitos. Para quem compra a força de trabalho, impõem-se várias obrigações. Direitos e obrigações de empregados e empregadores estão sempre, de certa forma, atrelados à compreensão que se tem da relação entre trabalho e saúde.

As perícias técnicas, realizadas por especialistas de diversos domínios do conhecimento, vão subsidiar, por exemplo, sentenças judiciais, quando a discordância entre o nexo causal é levada à discussão nessa instância. Exaradas pelos juízes da justiça do trabalho, elas devem ser sem ambiguidade, admitindo apenas duas posições, verdadeiro ou falso. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

São consideradas causas de adoecimento e morte de trabalhadores, segundo Mendes e Dias (1999), as “doenças comuns”, que não têm relação com o trabalho, e as relacionadas a ele. Essas últimas foram classificadas, seguindo Schilling (1984), em três grupos: doenças comuns que podem ser modificadas, aumentando a frequência de ocorrência ou a precocidade de seu surgimento sob determinadas condições de trabalho; doenças comuns que têm o espectro de sua etiologia ampliado ou complexificado pelo trabalho; agravos à saúde específicos ou típicos do trabalho – dentre os quais estão as doenças profissionais, em que o trabalho apresenta relação causal direta. Há, portanto, uma modalização do nexo causal, preservando-se a relação da doença com o trabalho em três categorias: trabalho como causa necessária; trabalho como fator contributivo, mas não necessário (causa possível); trabalho como provocador de distúrbio latente (causa contingente). No primeiro e no segundo grupos, estão doenças consideradas de etiologia múltipla, onde o trabalho é considerado a priori um fator de risco, não necessariamente o fator causal. Nas duas últimas categorias, por sua vez, a solução encontrada para a caracterização etiológica passa a ser de natureza essencialmente epidemiológica, pelo excesso de frequência em determinado grupo ocupacional ou pela ampliação quantitativa e/ou qualitativa do espectro de determinantes causais apontados pelos estudos dos ambientes e das condições de trabalho.

As doenças mentais estão na última categoria citada. Nesse campo, o patrimônio das disciplinas que contribuem na produção de saberes e ações sobre a relação entre trabalho e mal-estar psíquico apresenta constante debate entre três bases de compreensão etiológica, nem sempre excludentes. Billiard (2002), ao perpassar a história da fundação da psicopatologia do trabalho na França, demonstra que as discussões nesse campo remontam a um debate mais amplo, no campo do pensamento psiquiátrico, entre organogênese, psicogênese e sociogênese das patologias mentais.

De maneira certamente simplista, para introduzir o que nos interessa desse debate, vamos expor brevemente elementos dessas três orientações no campo da psicopatologia do trabalho. Na perspectiva organogênica, como o próprio termo indica, defende-se uma origem orgânica para os distúrbios mentais; o tratamento dado aos sintomas é feito frequentemente com medicamentos e as ações preventivas recaem principalmente sobre o meio agressor presente nos ambientes laborais. Em uma orientação psicogênica, os fatores psicológicos atribuídos ao indivíduo são ressaltados como prioritários e as ações, tanto preventivas quanto terapêuticas, dirigem-se frequentemente ao comportamento do trabalhador. Por fim, a orientação da sociogênese privilegia as condições materiais e sociais do trabalho como causa dos adoecimentos, denunciando aquilo que extrapola os limites morais de exploração e dominação; aqui, o foco do diagnóstico, da prevenção e do tratamento recai frequentemente sobre o trabalho.

Todas essas formas de abordar as relações entre trabalho e saúde mental e as maneiras como são conjugadas ou não (intervenções medicamentosas, ações sobre o meio físico e social, intervenções sobre o comportamento humano) apresentam resultados e eficácia reconhecida – mas não para todos.

O problema, segundo Minayo-Gomez e Lacaz (2005, p. 799), é que as produções científicas em saúde do trabalhador estão hegemonicamente centradas em uma perspectiva positivista e “[…] formulam articulações simplificadas de causa e efeito”. Além disso, saúde e doença são entendidas de forma dicotômica e o sofrimento, como uma das expressões possíveis do conflito no trabalho, acaba transformado em adoecimento a ser eliminado, como dizem Brant e Minayo-Gomez (2004), servindo muito bem aos interesses da produção. Quando entramos no âmbito da saúde mental, não só nos ambientes de trabalho, é comum a patologização de conflitos e seu correlato: o tratamento medicamentoso. Roudinesco (2000, p. 21) afirma que a psiquiatria clássica, ao tratar o real do sofrimento como o real da natureza, concebe-o como manipulável por fórmulas químicas, e os psicotrópicos só fazem “[…] normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação”.

Sob essa lógica, como aponta Viganò (2005, p. 75), “a causalidade não tem mais importância e é substituída pela incidência estatística mais homogênea”. Passamos “do incomensurável da relação subjetiva com o gozo” do sintoma particular e subjetivo, que é o real da doença, ao “cálculo do tratamento dos distúrbios”, sintoma social, tratável e mensurável que a epidemiologia encarna. Na lógica da epidemiologia:

Reconhecer o sofrimento passa, aqui, pela possibilidade de classificá-lo nos termos dos questionários e protocolos gerando diagnósticos de transtornos e sua consequente medicalização. Quando identificado, o sofrimento é enquadrado como um desvio dos padrões de comportamento e recebe um nome de doença. Assim, o que poderia vir a ser uma ocasião de elaboração para o sujeito torna-se algo a ser eliminado em prol do ideal de controle higiênico, que pretende regular tudo. Na posição passiva de doente, o trabalhador depara-se com a exclusão do caráter singular de sua subjetividade e de suas reações. Afastado do trabalho, que outrora presentificava seus conflitos, surge agora como portador de um transtorno mental, cuja esperança de restabelecimento está depositada nas mãos do saber médico. Resta-lhe a crença nas promessas terapêuticas da psicofarmacologia (Carvalho et al., 2006, p. 98-99).

Podemos perguntar se essa não seria também a perspectiva de parte das pesquisas em psicologia no âmbito da psicopatologia do trabalho, que centram seus esforços na descrição e na quantificação dos sintomas, relacionando-os unicamente a aspectos da organização do trabalho que o causariam. Reconhecemos nesses discursos deslocamentos de causalidades que vão, no máximo, de uma causa orgânica a uma causa social, mas que não se aventuram a articulá-las a uma causalidade psíquica.

Uma análise complexa das relações entre saúde e trabalho exige compreender, de maneira refinada, tanto as sutilezas e diversidades dos modos de gestão de cada trabalho quanto as singularidades da gestão de si mesmos que os trabalhadores desenvolvem para empreender o trabalho. A causa do adoecimento de nenhum trabalhador deve ser pensada sem levar em conta sua história, seu corpo e seu meio, enlaçados em uma forma singular de gozar da vida. O nexo causal com o trabalho não deve excluir nenhuma dessas dimensões (ver Gomes Júnior, 2013).

Que pese a importância e indiscutível contribuição das chamadas “Clinicas do Trabalho” (ver Bendassolli & Soboll, 2011), para compreensão e transformação das situações concretas de trabalho como elemento causal na determinação de patologias desenvolvidas com o trabalho, nossa opção aqui é solicitar à psicanálise de orientação lacaniana uma leitura sobre este mesmo mal-estar com o trabalho. Isso porque o que nos interessa discutir aqui é o que está em jogo nestas disfunções, o que remete-nos à uma discussão sobre sua noção de sintoma, que se funda no abandono de uma teoria do trauma como explicação dos sintomas psíquicos e do mal-estar que acomete os indivíduos.

Uma importante e atual contribuição neste campo vem da obra de Eric Laurent intitulada “Hijos del trauma” (Laurent, 2004). O que podemos depreender deste texto é que temos assistido ao aumento de novas teorias que reavivam a ideia de trauma sob nomenclaturas como estresse e síndrome pós-traumática, que os manuais internacionais de doenças (como o DSM IV) vêm descrever sob forma de distúrbios, de maneira generalizada e abstendo-se de um debate sobre a causa. Essa generalização da noção de trauma acontece, diz Laurent (2004), quando a ciência, colocando o foco na descrição e no cálculo preciso dos riscos a que estamos expostos, faz existir uma causalidade programada. Ela concebe o trauma como pura exterioridade localizável, o que não está na norma, no previsto, criando o aval necessário à ideologia da vitimização, do dano, da assistência, da compensação, da restituição e da reparação.

Quintais (2001), contribuindo com essa discussão, argumenta que as avaliações empíricas realizadas por profissionais na área da psiquiatria e psicologia clínica, pautadas na noção de trauma, acabam por apresentá-lo como um tempo integralmente irresgatável, inegociável, onde nenhuma escolha se faz presente. O autor conduz-nos a pensar que os “percursos de vida” dessas populações amostradas acabam por se pautarem em um histórico sintomatológico psiquiátrico antes mesmo da ocorrência de qualquer acontecimento traumático, fazendo uma escolha que, com o aval das autoridades médicas, apresentaria o atrativo de localizar a origem dos sintomas unicamente em circunstâncias exteriores, não considerando falhas pessoais ou fraquezas.

Essa forma de pensar leva à questão se os quadros sintomáticos atuais dos transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho não são em parte uma escolha, mesmo que forçada, de um “[…] modo de reorganizar os mundos da experiência à luz da inteligibilidade narrativa e redescritiva” (Quintais, 2001, p. 330). Ao compreendermos parte do sintoma como uma decisão ou um assentimento do sujeito, não estaríamos ampliando a potencialidade de uma negociação, abrindo as saídas de expressão do conflito que se localiza no trabalho? Quais seriam as possíveis implicações clínicas, conceituais e políticas do resgate da responsabilidade do sujeito pela escolha, mesmo que de certa forma forçada, de uma representação sintomática no âmbito da relação da saúde mental com o trabalho? Nosso objetivo não é por em causa a predominância etiológica da atividade de trabalho, mas levantar questões sobre a complexa imbricação que há entre o social, o corporal e o subjetivo neste domínio.

 

2. O CASO DO HOMEM DO RELÓGIO

Escolhemos trazer esse caso clínico da literatura brasileira do campo da “Psicopatologia do Trabalho” pela singularidade de ter sido tratado por duas diferentes abordagens, o que nos permite contrastá-las e apontar especificidades da orientação clínica em psicanálise em relação a uma abordagem sociogênica dos transtornos mentais. Trabalhamos o caso tendo como referência dois textos, um publicado na coletânea “Saúde mental e trabalho: leituras” com o título “Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho” (Lima, Assunção & Francisco, 2002); outro, que recebeu o título “O homem do relógio” (Carvalho & Macedo, 2007).

Os dois tipos de atendimento foram ofertados no mesmo serviço público de saúde. O intuito era tanto o estabelecimento do nexo com o trabalho e a consequente emissão do Comunicado de Acidente de Trabalho, instrumento com o qual o trabalhador poderia recorrer juridicamente sobre os danos causados, quanto o tratamento terapêutico. Durante os anos de 2006 e 2007 tivemos a oportunidade de participar ativamente de um grupo de pesquisa sobre “Trabalho e sintomas mentais” com a psicanalista que realizou o atendimento psicanalítico do sujeito em questão, discutindo e contribuindo com a elaboração do texto “O homem do relógio”. Tal texto, foi apresentado no XV Encontro Internacional do Campo Freudiano, em agosto de 2007 com a presença de Judith Miller (filha de Lacan) então Presidente da Fundação do Campo Freudiano. A discussão clínica apresentada, por sua qualidade, foi escolhida para compor o número 25 da revista Curinga de 2007.

Além da riqueza de duas abordagens tratando de um mesmo sujeito, temos também o fato singular, na literatura brasileira do campo da Psicopatologia do Trabalho, da apresentação de um caso clínico. Nesse campo, a tendência dos estudos é a de apresentar casos de “categorias de trabalhadores”, não de sujeitos. Aqui, diferentemente, encontramos descrições e dados tanto da atividade de trabalho quanto da história de vida e das vivências do sujeito. Temos também a sorte de contar com as elaborações que tiveram como base o tratamento psicanalítico a que esse mesmo sujeito se submeteu, de janeiro de 2001 a outubro de 2004, com a Psicanalista Bernadete Carvalho, no antigo Ambulatório de Doenças Profissionais do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ADP/HC/UFMG).

Como relatam Lima, Assunção e Francisco (2002), Carlos (nome fictício atribuído pelos autores) procurou o ADP em dezembro de 1998, tendo sido encaminhado por um psiquiatra ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS) com o diagnóstico de transtorno de adaptação e suspeita de nexo com o trabalho. À época com 48 anos, tinha trabalhado nos últimos cinco anos como porteiro noturno em regime de turno fixo e jornada de doze horas em dias alternados, em um condomínio no centro da cidade de Belo Horizonte. Seu trabalho consistia em controlar a entrada e a saída de veículos, atender a chamadas de telefone e interfone, bem como receber jornais e revistas. O local de trabalho, de 1,20 por 0,80 metros, descrevem os autores, continha “um relógio, um telefone, um interfone, uma campainha, uma cadeira e um painel onde ficavam os cartões com os números das vagas, e que eram entregues aos usuários” (Lima et al., 2002, p. 222). As garagens ocupavam seis andares do edifício, com o total de 301 vagas.

Um importante dado sobre o trabalho realizado ali é que, das 20h às 7h, uma das rampas de acesso ao segundo andar era fechada, o que exigia do porteiro a constante atenção ao fluxo de carros para evitar a entrada consecutiva na rampa e uma possível colisão de veículos. Isso exigia dos porteiros noturnos não só o controle das entradas, como no turno da manhã, mas também das saídas. Os autores informam:

Quanto ao trabalho propriamente dito, Carlos diz que chegava ao local aproximadamente às 18h e, às 18h35min, batia o ponto. Depois, percorria todo o prédio e conversava com a equipe do dia para verificar ocorrências de anormalidades. Às 19h, ia para o seu posto, onde deveria permanecer até o final da jornada de trabalho. Até às 20h, cuidava apenas da entrada de veículos e, depois disso, cuidava da entrada e da saída (Lima et al., 2002, p. 222).

A atividade de Carlos é descrita da seguinte forma:

Os carros buzinavam ao chegar em frente ao prédio e Carlos abria uma janelinha no portão para verificar se era realmente um usuário; caso ficasse confirmado, ele abria o portão e levantava a cancela para o carro passar. Em seguida, dava o cartão para o usuário subir e acionava um botão vermelho para indicar a entrada do veículo. Ele controlava os sinais luminosos do segundo andar, acendendo uma luz vermelha para indicar a subida de carros e uma luz verde para a liberação da saída. Para ser acionada a luz verde, é necessário que, ao chegar ao segundo andar, o motorista buzine para avisar ao porteiro que está descendo. Caso nenhum carro esteja subindo, o porteiro acende a luz verde e o usuário estará liberado para sair. Se estiver subindo algum carro, quem estiver descendo deve aguardar. A atividade mais importante do porteiro é, portanto, controlar a entrada e a saída de veículos, evitando colisões. Os botões que acionam as luzes do segundo andar, acionam igualmente a placa PARE, localizada na portaria da garagem, alertando aos pedestres sobre o tráfego de veículos. Nesse momento, é acionada também uma campainha com o mesmo objetivo (Lima et al., 2002, p.222-223).

Nos seis primeiros meses de trabalho de Carlos nesse condomínio, a jornada era de 20h às 7h da manhã. O então síndico permitia que os porteiros ouvissem rádio e que levassem uma pequena televisão; fornecia uniforme, vale transporte e dinheiro para refeição sem descontar do salário e permitia que os funcionários fizessem café e recebessem lanche no local de trabalho. Além disso, havia o hábito de, nos finais de ano, ser feita uma “caixinha de natal”, coleta de doações em dinheiro dos usuários do estacionamento como forma de contribuição para o natal dos trabalhadores. Com a troca do síndico, todos os “benefícios” foram cortados, a jornada de trabalho foi estendida para 12h (de 19h às 7h) e os trabalhadores foram proibidos de conversar no trabalho e de ler jornais e revistas. O novo síndico introduziu também um relógio nos postos de trabalho, que deveria ser acionado pelos trabalhadores a cada 25 minutos, como forma de garantir que estavam presentes e despertos em seus postos. Uma câmera de vídeo foi instalada, permitindo ao síndico observar os trabalhadores de seu escritório. Não se contentando com tais formas de controle, o novo síndico também telefonava várias vezes durante a noite para advertir os funcionários. Dois trechos do depoimento de Carlos demonstram sua insatisfação inicial com a nova forma de controle introduzida no ambiente de trabalho e sua posterior resignação:

Durante os 6 primeiros meses, não tinha relógio. Aí, esse senhor chegou e instalou os relógios. Mas não tinha jeito de dormir por conta que a noite inteira saía carro e entrava carro. Então, não tinha como dormir […] porque eu estava na portaria e a noite inteira chegava jornais, revistas. Aí, é sacanagem o relógio, porque não necessitava e eu não deixava a equipe minha dormir: conversava, soltava piada, falava no interfone… Mas ele não aceitou e disse que quem não aceitasse que fosse embora. Como seria difícil arranjar outro emprego, fui tolerando, fui tolerando.

[…] às vezes, tinha dia que ele esquecia de ligar o relógio e eu falava: “oh, liga esse relógio aí”. Porque não adianta nada, eu ficava olhando só pra ele. Ligar ou não ligar, eu digitava ele na mesma. Às vezes, que ele saiu e esqueceu de ligar, e eu não tinha acesso à chave e nem queria também, eu digitava ele sem funcionar, sem estar ligado. E eles (os colegas) me gozavam. Quando chegava na hora, eu ia e digitava (Lima et al., 2002, p.223 e 224).

Sobre o uso da câmera de vídeo, o sindico dizia que ela ficava ligada somente até 21h. A esse olhar vigilante, Carlos reagia dizendo:

Pra mim, ficava ligada a noite inteira, porque eu não sei se estava me filmando à noite ou não. Mas eu ficava com isso na cabeça. Pra mim, estava ligada. Quando eu tirava o rádio que levava escondido, eu dava as costas pra ela (câmera) e colocava assim embaixo, como se estivesse colocando minha sacola, com medo dela filmar eu (Lima et al., 2002, p.224).

O adoecimento de Carlos deu-se de forma gradativa. Dois anos e meio depois de trabalhar nessas condições, começou a perder a atenção, ter insônia, se assustar muito com as buzinas e campainhas e apresentar episódios de ausência: “quando voltava desses desligamentos, já estava quase na hora de acionar o relógio” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 56). Com o tempo, passou a se assustar também com as buzinas na rua, a ter sensações de arrepios, enjoo, dor no estômago, canseira e episódios de diarreia. Carlos relata, demonstrando seu sofrimento, a única vez que deixou de acionar o relógio:

Foi susto, nervoso, fiquei nervoso demais! Desceu um sem buzinar e eu fiquei nervoso demais! Deu problema de dor de barriga em mim e não deu tempo de chegar no banheiro, me borrei (chora). Aí, meu relógio apitou. Passei a não correr mais para o banheiro. Se eu tivesse que fazer alguma coisa, quando dava dor de barriga, fazia na rua, eu não ia no banheiro. Urinar eu podia apertar e esperar; chamava um colega e corria para o banheiro […], o meu relógio só apitou uma vez. Dos outros (colegas), apitou várias vezes. O meu só apitou uma vez porque deu problema de dor de barriga em mim. Eu tinha medo de deixar apitar. Dão advertência quando o relógio apita. Essa advertência, quando fazem, tem de assinar. Se não assinar, chamam duas testemunhas e assinam pra gente (Lima et al., 2002, p. 226).

Após três anos no trabalho, Carlos começou a ingerir bebidas alcoólicas como forma de induzir o sono. Segundo ele, duas cachaças e uma cerveja eram suficientes. Em 1997, por duas vezes sentiu-se mal durante o expediente e foi internado, primeiro por dezesseis dias e depois, ao sentir dores no peito, por mais quinze dias. Pouco depois de seu retorno ao trabalho após a segunda internação, deram-lhe o aviso prévio de dispensa dos serviços, sobre o qual Carlos comenta:“mas eu cumpri o aviso direitinho, fui trabalhar como se não tivesse aviso, não chegava atrasado nem deixava o relógio apitar” (Lima et al., 2002, p. 226). Segundo relato da sobrinha de Carlos, entrevistada por um dos integrantes da pesquisa, a primeira internação foi por conta de uma pancreatite, e a segunda por um princípio de derrame (Lima et al., 2002, p. 218).

No momento em que procura o ADP, em dezembro de 1998, o paciente apresenta sintomas como crise de ansiedade, insônia e susto com buzinas, telefones e campainhas, além de dificuldade de sair sozinho. Passa a desenhar um relógio igual ao de seu antigo trabalho e a simular a mesma operação que executava a cada 25 minutos, principalmente à noite, como forma de lidar com a insônia:

O desenho do relógio foi depois que parei de trabalhar. Quando eu trabalhava eu dormia pouco, mas não desenhava ele não. Desenhava assim de brincadeira, em casa, mas eu não chegava a operar ele não… Agora, eu desenho e fico operando ele, depois rasgo. Desenho de novo, rasgo, desenho (Lima et al., 2002, p. 233).

O acompanhamento psicológico de Carlos no ADP deu-se no âmbito das pesquisas sobre adoecimento mental e trabalho, coordenadas por Elizabeth Antunes Lima. Com os dados coletados e as descrições apresentadas no artigo, fica claro que os recursos de Carlos para lidar com a tirania do novo síndico e suas novas imposições na forma de organizar o trabalho são bastante diferentes de seus colegas. Não resta dúvida também sobre o uso abusivo que o síndico faz de sua posição hierárquica. Parece, além disso, que havia uma boa qualidade nas relações dos funcionários entre si e deles com os usuários.

As investigações de Lima, Assunção e Francisco (2002) estenderam-se também à história de vida de Carlos, sua infância, vida familiar, vida adulta e história ocupacional pregressa. Os pesquisadores lançaram mão de entrevistas com a irmã de Carlos, com sua sobrinha e um colega de trabalho, além de observações do posto de trabalho. Como não foram encontrados indícios, em seu passado, de algo que justificasse o adoecimento, os autores concluem que o trabalho provocou, e não precipitou, seus transtornos mentais. A distinção parece fundamental para os pesquisadores na caracterização do nexo causal. Ao final do artigo, eles escrevem:

Em outras palavras, seu senso aguçado de responsabilidade, seu comportamento disciplinado e sua grande dedicação ao trabalho, só se revelaram perniciosos, quando foi trabalhar como porteiro, naquele condomínio, isto é, quando se expôs a uma organização patogênica de trabalho. Estes valores que, parecem ter sido positivos, durante toda a sua vida, nesta circunstância específica, favoreceram a eclosão do seu quadro. Em suma, nos outros contextos de trabalho, suas características de personalidade não tiveram grande relevância, pelo menos no sentido de provocar um transtorno maior, mas, o último emprego, pelas suas particularidades, exacerbou tais características, contribuindo, de forma decisiva, para o seu adoecimento. Portanto, parece-nos que é, sobretudo, para a organização do trabalho que devemos dirigir o nosso olhar. Ou melhor, o que devemos tentar compreender é o modo pelo qual se articulam as características pessoais e certas condições de vida e de trabalho, sem jamais desconsiderar a prioridade ontológica das últimas sobre as primeiras (Lima et al., 2002, p. 245-246).

A diferença entre “provocar” e “precipitar”, para os autores, está na prioridade ontológica na determinação da doença, retomando a discussão entre sociogênese, organogênese e psicogênese dos sintomas mentais, que pode parecer exclusivamente teórica, mas que impactou diretamente na compreensão diagnóstica e na condução clínica do caso. Lima, Assunção e Francisco (2002, p. 244), apesar de afirmarem que a motivação maior “[…] não foi a de estabelecer um diagnóstico preciso sobre o quadro apresentado por Carlos, mas sim a de verificar as possíveis relações entre suas queixas e sua experiência de trabalho”, não deixam de apresentar hipóteses diagnósticas como “[…] um quadro de comorbidade, caracterizado por sintomas obsessivo-compulsivos, por transtorno de ansiedade e por um possível alcoolismo” (Lima et al., 2002, p. 244).

Tais fatos não são sem consequências na condução do tratamento, como vemos no artigo de Carvalho e Macedo (2007). A questão que se estabelece é a seguinte: “qual seria a especificidade da psicanálise na abordagem de casos com sintomas vinculados ao trabalho?” O caso clínico de Carlos é então tomado para demonstrar “[…] a perspectiva da psicanálise em seu campo próprio, isto é, aquele que concerne ao sujeito e a seu gozo” visando às “[…] respostas do sujeito mais do que às tendências de população” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 55). O tratamento dado aos sintomas pela psicanálise exige muito mais uma aposta na singularidade das respostas do sujeito do que nos condicionamentos sociais. O privilégio atribuído ao singular em relação ao universal não implica, contudo, em “[…] subtrair esses sintomas do contexto das relações sociais que o produziram” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 55). Essa introdução já deixa clara uma báscula, em relação à perspectiva anteriormente apresentada, naquilo que é posto em primeiro plano para o tratamento dos sintomas.

Pretendeu-se discutir “[…] os limites de uma condução do tratamento que se ampara no assistencialismo, ou no ideal social” em contraste com “uma perspectiva clínica que inclui o sujeito e valoriza suas invenções” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 55). Com uma leitura do caso à luz da psicanálise, indicou-se como a causalidade psíquica entra em jogo na realidade experimentada de maneira singular por um sujeito:

Para a psicanálise, não há encontro traumático que se deva apenas ao contexto social e material, ou, ao contrário, que prescinda do sujeito. À série de acontecimentos do mundo devemos somar a história do sujeito, modo pelo qual podemos situar algo do real de sua solução sintomática (Carvalho & Macedo, 2007, p. 56).

A apresentação do caso clínico informa que, no início de seu tratamento psicanalítico, em janeiro de 2001, Carlos chega com um discurso estruturado sobre os acontecimentos, associando com clareza seus sintomas às mudanças ocorridas no trabalho, o que ele sempre repetia a todos com as mesmas palavras (Carvalho & Macedo, 2007). Com o tratamento anterior, as autoras afirmam que Carlos pôde construir uma versão mais suportável de seu adoecimento, que ainda guarda, porém, a marca de um comportamento estereotipado. Segundo Carvalho e Macedo (2007), o que a tentativa de normalização da pesquisa sociogênica não foi capaz de reconhecer foram os recursos próprios do modo de funcionamento do sujeito.

Os aspectos concernentes à causalidade psíquica são localizados à partir de dois eixos que permitem investigar as condições de estabilidade de Carlos e o que se apresentou como insuportável para ele. O primeiro diz respeito às “relações do sujeito com o Outro: a convivência com o novo síndico e com a tirania de suas normas”. O segundo eixo, “as modalidades de relação de objeto, especialmente sua relação com o olhar, presente nos aparatos de vigilância e controle, mas também a relação entre o objeto olhar e a imagem do corpo” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 57).

Para a psicanálise nossas relações com o Outro, assim como nossas relações de objeto (anal, oral, fálica, vocal e escópica), apresentam aspectos cruciais de nossa estruturação psíquica (ver Lacan, 2003). Por isso as autoras (Carvalho & Macedo, 2007) optam por destacar no caso dois pontos: um, o das relações de Carlos com o grande Outro do trabalho, que é representada pela figura do síndico, e outro, da presença maciça em suas seções de análise de relatos que retomam a questão do olhar.

O fato de Carlos desenhar o relógio e acioná-lo, seu sintoma, é lido como uma invenção a partir daquilo que lhe é possível fazer para lidar com a angústia que o invadia. Seu sintoma é acima de tudo uma estratégia que de certa forma regula, dentro do recurso de um quadro psicótico, o mal-estar de ter que atender aos caprichos da exigência do Outro. Esse ponto do diagnóstico e da compreensão do que está em jogo é importante de ser destacado, pois em uma psicose, como demonstra Morel (1999, p. 6), “[…] se retirarmos de um sujeito seu sintoma sem certa precaução pode-se desencadear a pulsão de morte e causar efeitos catastróficos”.

A expressão de seu pai, “certeiro como uma machadinha”, parece sintetizar para Carlos o ideal da imagem de homem que ele tem que sustentar sem nenhuma falha, sem dialetização, sem meio termo, com o rigor que é próprio da psicose e que expressa um superego “[…] cuja ferocidade ele só consegue aplacar por meio dessa entrega, também desmedida, aos ordenamentos do mundo” (Carvalho & Macedo, 2007, p 58). Nessa total obediência, colado às normas, operar com a falha da construção imaginária quando ela é abalada é algo insuportável. “Seu recurso é a repetição das sequências vividas, na tentativa de reconstituir a completude da imagem”. Dedicava parte do dia a reconstruir, passo a passo, sua rotina de se arrumar para o trabalho, vendo-se como em um filme. No mesmo sentido, podemos entender seu gesto de acionar a imagem desenhada do relógio como forma de produzir um alívio momentâneo da angústia.

Podemos legitimamente perguntar: se Carlos se adere tão bem às normas do Outro, o que se passou na relação com o novo sindico? A resposta passa pela compreensão de que o síndico encarna um Outro feroz, cruel, insaciável. Por mais que Carlos atendesse a seus pedidos, a falha estava lá para ser sempre apontada. Sua imagem frente a esse síndico é fatalmente maculada.

Sobre a hipótese diagnóstica, Carvalho & Macedo (2007) trabalharam com a ideia de um neodesencadeamento, termo que tem sido utilizado no “Campo Freudiano” para designar as novas formas de desencadeamento do que tem sido nomeado de psicose ordinária. Em contraponto às psicoses clássicas, extraordinárias, Miller (2012) cunha o termo para incluir toda a sorte de casos de estrutura psicótica que mantêm certo funcionamento, enlaçando, mesmo que precariamente, os registros real, simbólico e imaginário:

Seu lento e gradual adoecimento, deflagrado pela perda da cobertura imaginária que o estabilizava, remeteu-nos à hipótese de um neodesencadeamento. Em outras palavras, o sujeito em questão se servia de um funcionamento melancólico que o mantinha estabilizado por meio de “uma suplência intercrítica”, ou seja, através de uma “superidentificação a um papel social”, – ao papel de vigia noturno, “certeiro como uma machadinha” – confundida com os traços compulsivos dos obsessivos (Carvalho & Macedo, 2007, p. 56).

A identificação aqui não é da ordem de um “ideal do eu”, ou seja, não aponta para uma orientação de realização futura, funcionando como um valor, um ideal que mantém o desejo. Ela é da ordem de um “eu ideal” que impõem um valor inflexível e feroz, expondo o sujeito à precariedade e aos abalos que o fazem sofrer e compromete a fruição do desejo em sua vida. O funcionamento pré-melancólico de Carlos, atrelado a sua superidentificação a seu papel social de trabalhador, parece não se sustentar quando um dos traços de sua identificação imaginária não responde ao ideal da norma social. Nos casos de psicose, mesmo naquelas contemporaneamente nomeadas de “ordinárias”, são exatamente os recursos simbólicos do sujeito, que permitiriam impor certa ordem ao mundo, que se apresentam escassos. Sem a solidez dos recurso simbólicos para lidar com a realidade, um tipo de identificação predominantemente imaginária toma a cena com construções de ordem precárias e instáveis, como no caso em questão. De uma psicose estabilizada exatamente pela identificação à função social que o trabalho exercia imaginariamente para Carlos, passamos a uma quadro onde a angústia só pode ser brevemente contida com o gesto bizarro de desenhar o relógio.

O reconhecimento do modo de funcionamento do sujeito em questão conduz as autoras a afirmarem que “enquanto a abordagem sociogênica se coloca como guardiã do ideal coletivo, tentando normalizar a verdade, o desejo e o gozo, o analista intervém tomando como base o que há de real no sintoma” (Carvalho & Macedo, 2007, p. 59). Do nosso ponto de vista, defendemos que com as contribuições da abordagem sociogênica podemos abrir espaços de diálogo para uma leitura atenta à singularidade das invenções presentes no sintoma como saídas construídas pelo sujeito.

 

3. A GUISA DE CONCLUSÃO: QUESTÕES PARA A ATIVIDADE DO PROFISSIONAL “PSI” NO CAMPO DO TRABALHO

Vimos, no caso do homem do relógio, que os autores ressaltam a importância da distinção entre “provocar” e “precipitar” os sintomas mentais. Ela apontaria para uma prioridade ontológica dos fatores relacionados ao trabalho na determinação da doença:

Parece-nos que é, sobretudo, para a organização do trabalho que devemos dirigir o nosso olhar. Ou melhor, o que devemos tentar compreender é o modo pelo qual se articulam as características pessoais e certas condições de vida e de trabalho, sem jamais desconsiderar a prioridade ontológica das últimas sobre as primeira (Lima et al., 2002, p. 245-246).

Nessa perspectiva, há uma prioridade na determinação do meio sobre as respostas do indivíduo. A escolha pelo termo “provocar” quer apontar exatamente para a força do elemento causal (meio de trabalho) na determinação do evento (o sintoma) como sua consequência. O termo “precipitar” conotaria que o meio de trabalho como elemento causal não passaria de um entre outros na determinação do sintoma, não tendo a força necessária para ser considerado causa do evento.

Essa é uma questão de primeira importância. Para onde dirigir o olhar? O que deve ser priorizado na compreensão da relação entre trabalho e sintomas do sofrimento psíquico? O que os sintomas apresentados no caso de Carlos expressam? Eles apontam a determinação do meio? Quais as consequências, sobre o diagnóstico e a condução clínica, de priorizar a determinação do meio sobre as respostas do indivíduo?

Como vimos, há divergências entre as duas leituras realizadas sobre o caso do homem dos relógios. Carvalho e Macedo (2007) criticam a condução dada ao caso pela pesquisa de orientação sociogênica, vendo ali uma tentativa de normalização. Enfatizam que a prioridade da visão psicanalítica é o modo de funcionamento do sujeito, que diz do sintoma como resposta ao meio. Por outro lado, não devemos de forma alguma desconsiderar as contribuições que a pesquisa de orientação sociogênica empreendeu sobre o meio de trabalho que causou os sintomas do sujeito.

A intervenção proposta pela orientação psicanalítica toma de partida o ponto real do sintoma, visto prioritariamente em sua dimensão singular, como invenção, construção possível do sujeito naquele meio e não como simples determinação do meio. Aqui a inventividade está presente no sujeito. Com a psicanálise é possível advogar pela singularidade do sintoma e com ela sustentar que o que há de mais real nele é exatamente a tentativa de fugir às prescrições normativas do meio que sufocam o sujeito. O que a psicanálise nos ensina é a conceber o sintoma como um modo de funcionamento que se desdobra na relação com o meio e com ele compõe um modus operandi que é próprio de cada um. Esta é a relação estabelecida entre o meio e as respostas do indivíduo.

Isso de forma alguma destitui as contribuições das leituras empreendidas pelas disciplinas clínicas que buscam descrever e intervir sobre as formas de governo do trabalho e o sofrimento que delas decorrem. Seria um erro colocar em oposição as formas de intervenção sobre os quadros normativos que criam o contexto social de tais patologias no trabalho e as perspectivas individualizadas de leituras diagnósticas e terapêuticas (como classicamente propostas pelos psicanalistas). Insistir nesta oposição é fechar os olhos para as raízes que as articulam o psíquico e o social. É importante reconhecermos que as análises das atividades humanas dão visibilidade a contextos sociais de trabalho que causam verdadeiros estragos na subjetividade e na saúde hoje. Neste campo a psicanálise também tem buscado contribuir com palavras, não só no encontro com aquele que sofre e relata sua dor no divã, mas também intervindo naquilo que hoje se produz na ordem social e simbólica (ver Doguet-Dziomba, 2012).

Se acordarmos com Canguilhem (2005, 2009, 2012) que a saúde não é o ajustamento completo entre organismo e meio ambiente, posto que ela exige a conservação de uma margem de transcendência e de infidelidade do organismo em relação ao meio, somos obrigados assim a empreendermos uma investigação sobre os modos de funcionamento dos sintomas. São também eles que permitem ao organismo não sucumbir à primeira modificação do meio. Com essa concepção de saúde, afirmar uma primazia da determinação do meio, como a exemplo aqui do Outro do trabalho nas doenças mentais que com ele se apresentam é tão inútil “[…] quanto continuar o velho debate entre causalidade somática e causalidade psíquica, entre organogênese e psicogênese” (Safatle, 2011, p. 01). Não seria este o caminho para um passo adiante no avanço da compreensão da saúde e superação dos discursos que cindem o orgânico, o psíquico e o social, em nome de uma tal prioridade [1]?

 

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Manuscrito recebido em: agosto/2014

Aceite após peritagem: julho/2015

 

¿COMO CITAR ESTE ARTÍCULO?

Júnior, A. B. G., & Cunha, D. M. (2015). O sintoma no trabalho: uma disfunção ou uma invenção? Laboreal, 11 (2), 53–62. http://dx.doi.org/10.15667/laborealxi0215aj

 

NOTAS

[1] Este trabalho é fruto de parte da pesquisa de doutoramento cuja tese foi defendida pelo 1º autor, sobre orientação de Daisy Cunha e Yves Schwartz, em agosto de 2013 com o título “O uso de si e o saber fazer com o sintoma no trabalho”. Uma cotutela entre Fae/UFMG (Brasil) e AMU (França). Agradecemos ao CNPq e a Capes as bolsas concedidas para os trabalhos no Brasil e na França, respectivamente.

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