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Motricidade

versão impressa ISSN 1646-107Xversão On-line ISSN 2182-2972

Motri. vol.18 no.4 Ribeira de Pena dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.6063/motricidade.27830 

RECENSÃO

Recensão a Cristóbal Villalobos Salas. “Futebol e Fascismo”. Lisboa, Edições 70, 2021, 203 pp.

Review of Cristóbal Villalobos Salas. “Futebol e Fascismo”. Lisbon, Editions 70, 2021, 203 pp.

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho – Braga, Portugal


RESUMO

Neste trabalho apresenta-se uma recensão à obra “Futebol e Fascismo” de Cristóval Villalobos Salas (2021), livro originalmente publicado em Espanha, pela Altamareca Ediciones com o título “Fútbol y Fascismo”. A leitura assentou na versão portuguesa, editada pelas Edições 70 (Edições Almedina) que contou com a tradução de Manuela Parada Ramos e Revisão de Ana Breda. O autor é professor de História, escritor e colunista de imprensa com colaboração em vários títulos de diversos países.

PALAVRAS-CHAVE: futebol; fascimo; manipulação

Abstract

This work presents a review of the work “Football and Fascism” by Cristóval Villalobos Salas (2021), book originally published in Spain, by Altamareca Ediciones with the title “Fútbol y Fascismo”. The reading was based on the Portuguese version, published by Edições 70 (Edições Almedina) and translated by Manuela Parada Ramos and revised by Ana Breda. The author is a professor of History, writer and press columnist with collaboration in various titles in several countries.

Keywords: soccer; fascism; manipulation

Uma evocação de Jorge Luis Borges, escritor argentino que detestava, sem desprezar, o pontapé na bola, coloca o leitor na rota de uma realidade insofismável: falando de futebol, estamos perante um fenómeno que a nada e a ninguém escapa, muito menos a escritores e intelectuais como os nobel Mário Vargas Losa, Albert Camus e Gabriel Garcia Marquez ou os não menos célebres Eduardo Galeano, Javier Marias, Roberto Bolaño, Ryszard Kapuściński ou Peter Hanke. Essa condição extraordinária de múltiplo e intenso abraço dos que fazem da dependência coletiva uma adesão tribal que liberta o humano “do peso das responsabilidades individuais” (Salas, 2021, p. 16), também subsidia a inspiração para a compreensão do mundo. A importância atribuída a um jogo suportado na exigência do adestramento dos membros inferiores, superiorizou-se de tal modo, ao ponto de convocar os interesses centrais da política. A aparente vida desligada dos seus executantes e a adesão dos humildes ao espetáculo, depressa convocou os mecanismos de fomento de ideologias através da manipulação das multidões. Estes despojados dedicadas à simplicidade do jogo prestam-se, inconscientemente, à manipulação dos poderes instituídos.

O futebol constituiu-se num fenómeno de adesão popular, cujas regras simples permitem a participação de todos, às vezes, como praticantes, outras como assistentes de um espetáculo cujo objetivo principal se limita a fazer uma bola entrar numa baliza, vigorando a lei dos mais audazes — porque mais fortes. A partir da década de 1930 o jogo de onze contra onze viu-se invadido por atravessamentos de natureza política, estranhos à sua lógica de entretenimento. Particularmente, o fascismo, nas suas variadas vertentes, foi das mais eficazes ideologias políticas na captura do futebol para centro de produção e manifestação das suas divisas e juízos filosóficos. Ora para manipulação das massas, ora com o objetivo de fabricar resultados, ora apropriando-se ou capturando os clubes mais importantes para difusão de ideias e da noção de poder, ora submetendo jogadores e clubes a dilemas éticos e/ou escolhas entre a vida e a morte, o fascismo não se poupou à criatividade para se afirmar através do futebol.

A exaltação “dos seus valores supremos, a juventude — como, por exemplo, o hino fascistas italiano, Giovinezza, a ação, a força e a violência em si” (Salas, 2021, p. 19), encontrou na promoção da prática desportiva enquanto “forma de educar os jovens com vista a cumprirem melhor os deveres patrióticos, e como fórmula para promover o carácter e a disciplina que era suposto um «bom» fascista ter” (Salas, 2021, p. 19). Como se tratasse de marcar uma oferta cronográfica ao leitor, Alemanha, Espanha e Itália, países que fomentaram e experienciaram os valores do fascismo até ao limite, configuram as três realidades fornecedoras de histórias que ilustram o ponto de partida da obra.

Na origem fascista estão três figuras que advogaram o autoritarismo, impuseram o poder total, reprimiram oposições e submeteram tudo e todos à nação. Ao contrário dos seus congéneres Francisco Franco em Espanha e Adolf Hitler na Alemanha, Benito Mussolini, popularizado como “o Duce desportista”, explorava a sua figura de praticante de vários deportos, a que não se furtava de afirmar ser o desporto o seu “único prazer” (Salas, 2021, p. 20). E, embora a memória apenas o localize visualizando um único jogo de futebol, o seu regime dedicou-se a erguer novos estádios, a que não faltou um complexo desportivo a si dedicado, o “Benito Mussolini de Turim” (Salas, 2021, p. 21).

Por essa altura, na década de 1930, o futebol passa a ombrear com outros espetáculos produzindo a sua imprensa especializada e as suas estrelas Mais do que “exemplos a imitar” estes tornam-se “embaixadores do país e do fascismo” suportados por uma comunicação social sustentada “numa linguagem bélica” (Salas, 2021, p. 21) com vista à consolidação de prestígio internacional. O futebol transforma-se num veiculo de transmissão da ideia de “pátria que o fascismo equipara à identificação com o regime; enaltece-se a pertença ao grupo, a fidelidade, a disciplina e a subordinação dos interesses pessoais aos coletivos” (Salas, 2021, p. 21) obrigando, inclusive, alguns clubes a submeterem-se aos seus valores e lógicas ideológicas de onde sobressai o caso paradigmático do Internazionale de Milão, obrigado a mudar de denominação para Società Sportiiva Ambrosiana, para assim fazer desaparecer a palavra evocadora da “Terceira Internacional Comunista de Estaline” e afastar qualquer alusão, imaginária que fosse, ao movimento comunista (Salas, 2021, p. 21-22).

Cristóbal Villalobos Salas (1985-), autor da obra, é professor de História na Universidade de Málaga e escritor. O reconhecimento através dos prémios Jérez Perchet e Málaga Crea 2015, como que certificam a sua colaboração com a imprensa, em especial a coluna no jornal SUR. Salas recorre aos três casos clássicos para introduzir a relação do fascismo com o desporto em geral e o futebol e particular. Enquanto o caso do “calcio fascista frente ao mundo” ilustra a realidade italiana, a vivência do “super-homem nazi” mostra a relação da Alemanha nazi com o desporto. Por sua vez, o dissecar de “um nacionalismo banal e futebolístico” ilustra o modo como a Espanha franquista se aproveitou do fenómeno futebolístico para se consolidar e chegar às massas.

A obra ganha dimensão e profundidade com o mergulho do autor nos restantes quadro capítulos, que mais do que detalhar, ilustram de forma bastante profusa a expressão de poder de “Mussolini e Hítler atrás do esférico” (Salas, 2021, p. 35-75), “a malograda conversão ao fascismo” pela Espanha (Salas, 2021, p. 79-153) e “o futebol nas mãos das ditaduras americanas” (Salas, 2021, p. 157-193). É nesse corpo do livro, com recurso a quarenta e duas short stories, de acontecimentos por vezes já retirados para as brumas da memória, que se pode contactar com realidades que comprovam a tendência do fascismo no seu apego e consolidação e afirmação através do futebol.

Este conjunto de rememorações permitem trazer à superfície particularidades cuja notação histórica, em algumas circunstâncias ainda presentes, fazem perdurar idiossincrasias passadas em particularidades e ações visíveis na hodiernidade. Um pequeno resumo, não exaustivo, de algumas dessas short stories pode demonstrar a pertinência do atravessamento da cultura fascista no desporto-rei. O caso italiano surge como o suporte primário do fascismo:

  • O roubo ao Génova, clube que só recuperou o seu nome original depois da morte de Mussolini — Genoa Cricjet and Athletic Club, em vez do postiço fascio Genoa 1893 Circolo del Calcio — demonstra como os resultados podiam ser determinados à partida, assim fabricando um campeão, no caso o Bolonha, clube protegido pelos camisas negras — grupo paramilitar fascista (Salas, 2021, p. 35-36);

  • A estratégia de naturalização de jogadores de diversas nacionalidades, pagos a peso de ouro, para construir uma seleção italiana campeã do mundo em 1934, é o resultado de uma batalha futebolística do fascismo, cujos métodos, amplos e ilimitados, demonstram a tendência de jogo em todos os tabuleiros. O uso da violência atingiu o seu apogeu numa partida contra a Inglaterra, país então considerado superior na cultura futebolística levara Mussolini a disputar e demonstrar a superior cultura futebolista fascista (Salas, 2021, p. 41-46);

  • A evocação da resistência de Matthias Sindelar, vedeta austríaca autor de um dos golos que sentenciou o jogo de despedida da Áustria enquanto nação, contra a Alemanha anexadora e que, mais tarde, se furtou a representar a seleção Alemã — tendo, por isso, sido proibido de jogar — e que apareceu morto, juntamente com a esposa, numa intoxicação fruto de uma fuga de gaz (Salas, 2021, p. 51-54);

  • A mostra das contradições humanas, expressa na cedência dos jogadores polacos, que por via da divisão do seu território entre União Soviética e Alemanha passaram a representar a Alemanha. Mais tarde viram a sua sorte mudar quando, a partir de 1942, na já notória derrapagem alemã, passaram a ser apontados aos campos de concentração, enquanto alguns, por aparecerem em fotografias da seleção alemã dominadas pela suástica, ficaram impedidos de regressar à Polónia natal (Salas, 2021, p. 63-64);

  • O dilema ético no caso do árbitro e do jogo de Sarnano, que bem podia ter inspirado John Huston no filme Fuga para a Vitória. O jogo, realizado a pedido dos alemães para levantar o moral das suas tropas deixou a equipa de jovens italianos sem saber o que fazer. Depois de marcarem um golo, e perante a manifesta inoperância do adversário, os italianos tudo fizeram para “ajudar” os alemães a marcarem um golo, num jogo que nenhum italiano queria vencer para não ofender o ego germânico e, desse modo, convocar o real poder bélico teutónico (Salas, 2021, p. 69-71);

  • A construção política de uma rivalidade em Roma entre AS Roma — clube nascido de uma fusão de vários agremiações imposta por Mussolini, e a Lazio — clube resistente à fusão e do qual o Duce se tornaria associado gerou duas idiossincrasias. De um lado o diverso e incluso AS Roma, capaz de albergar a diferença, inclusive um setor comunista. Do outro, a Lázio, clube com “fama de fascista” cuja claque, os Irredutible, a “mais fascista, racista, homofóbica e antissemita”, capaz de, num jogo contra o rival, cantar em coro “Auschwitz é a vossa pátria” (Salas, 2021, p. 73-75);

O caso espanhol, resultante das consequências da Guerra Civil e da instituição de um ditador militar nacionalista que se havia imposto pela força das armas (1936-1939), coloca em cena não só a realidade do poder do generalíssimo Francisco Franco, mas também da resistência ao ditador que, através do futebol, vai aqui e ali pontuando a sua presença. Porém, tal como em Itália, o futebol vai revelar-se um ótimo instrumento de manipulação das massas. Na ação do quadro espanhol, não faltam alguns encontros com as linhas da ditadura portuguesa em algumas das pequenas histórias coligidas pelo autor:

  • A forma como a sobrevivência através da comédia transforma a personagem na pessoa. Travestido de “cruel Gálvez” para sobreviver numa Madrid dividida pela guerra civil, o poeta Pedro Luíz Galvez, usando atitude e voz de autoridade, conseguiu libertar o Ricardo Zamora, o excelso guarda-redes e “grande jogador internacional de futebol” que lhe havia dado muitas vezes de comer pela Madrid da boémia. Libertado, sob beijos do poeta, Zamora pode sair de Espanha e terminar a sua carreira em França. O poeta morreria fuzilado após julgamento por um tribunal que tomou por verdadeira a sua inventiva biografia de criminoso (Salas, 2021, p. 83-86);

  • A odisseia da seleção basca denominada “equipa de futebol da República de Euskadi”, errante pelo mundo em missão de propaganda, após a queda basca nas mãos franquistas, cuja digressão por países como França, Checoslováquia, Polónia, Suécia, Noruega e Finlândia acabou por dar visibilidade à causa basca. Após infligir danos na imagem da Espanha nacionalistas, os franquistas não descansaram até conseguir duas deserções da seleção “Eukadi”. Com o declínio deu-se o fracasso, apesar da equipa acabar os seus dias a disputar o campeonato mexicano onde terminaram vice-campeões na época 1938-1939 (Salas, 2021, p. 91-93);

  • O vermelho desapareceu em dois jogos de seleções realizados em 1937 e 1938 entre a Espanha e Portugal, o primeiro disputado em Vigo. Popularizou-se aí o “encarnado” para designar o Benfica e assim evitar conotações com os “vermelhos” comunistas. O segundo jogo ficou marcado pela desobediência de três jogadores da seleção portuguesa em fazer a saudação fascista: Quaresma manteve os braços em baixo enquanto Azevedo e Amaro cerraram os punhos lá no alto. Espanha perdeu os dois jogos mas o franquismo ganhou na propaganda (Salas, 2021, p. 97-99);

  • Além de submetida à esfera militar, a intromissão da política franquista nos clubes espanhóis seguiu a lógica de prémios. A lealdade de Navarra para com os rebeldes resultou na tentativa de subida de divisão do Osassuna. O Athletic de Madrid foi transformado em Atlético de Avianción, assim como o Recuperaction de Levante. Em 1941, tal como ocorrera na Alemanha nazi, a Delegação Nacional de Imprensa e Propaganda obrigou vários clubes a adotarem uma fórmula espanhola: “O Athletic passou a ser Atlético de Bilbao, o Sporting seria o Deportivo de Gijon, e o Fútbol Club de Barcelona, Club de Fútbol Barcelona” (Salas, 2021, p. 102-104);

  • Logo após a Guerra Civil, Espanha viveu um período necessitado de afirmação internacional. Um jogo contra a Inglaterra no mundial de 1950, jogado no Brasil e ganho pelo Uruguai no célebre Maracanazo, serviu para elevar o estatuto externo e animar as hostes internas espanholas. Uma vitória por uma bola a zero contra a “pérfida Albion”, segundo um “dirigente federativo” de então, animou o Caudillo. Franco acabou por telegrafar a felicitar “emocionante encontro e brilhantismo triunfo”. O quarto lugar obtido, considerado uma façanha, foi celebrado no filme España en Brasil que considerou a vitória sobre a Inglaterra “um novo episódio na luta histórica contra Albion” (Salas, 2021, p. 109-111);

  • A “forte comoção misturada com enorme sentimento de orgulho” provocada, em 1955, pela vitoria do Real Madrid na primeira edição da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Após cinco vitórias consecutivas na prova, o Real passava a ser o melhor embaixador de Espanha e do regime”. A receção dos madridistas em todo o mundo passou a ser “uma vitória publicitária do franquismo” (Salas, 2021, p. 117-118);

  • O debate sobre a identidade madridista e as suas ligações ao regime franquista encontram várias explicações. Desde a possibilidade da opções pessoais dos representantes históricos do clube se terem transformado na visão generalizada sobre o Real Madrid como representante do regime, ao facto do Caudillo e os seus dignitários se terem aficionado. Desde a circunstância de todos os clubes terem, de alguma forma servido para “centralizar as emoções dos trabalhadores e mantê-los afastados das reivindicações políticas”, levando-os em simultâneo a viver “entre o franquismo e os nacionalismos”. No caso do Real, apesar de marca internacional de “inquestionável prestígio”, não deixa de ser historicamente considerado “uma equipa do regime” (Salas, 2021, p. 121-123);

  • O cinema, a “cultura de evasão” e o futebol foram armas que o franquismo não poupou para espalhar a sua ideologia. Constituídos em modelos os futebolistas passaram a ser modelos de cidadãos. A história de Kubala, húngaro, transformado em espanhol, fugido do comunismo, chegou ao cinema em “Os Ases Procuram a Paz”. Um argumento anticomunista a evocar a “humildade, espírito de sacrifício, lealdade” em que Kubala “mostra o seu reconhecimento” pelo acolhimento de “uma Espanha idílica” (Salas, 2021, p. 125-126);

  • Apesar reconhecida política dos três efes, “futebol, fado e Fátima”, António de Oliveira Salazar, o ditador português, detestava futebol. Mas Eusébio, mais do que um jogador de futebol, convertera-se num valioso símbolo do país. Não tanto por ter sido o melhor marcador no mundial de 1966 mas pelo facto de poder ser apresentado como a prova da possibilidade da aquisição de estatuto pelos indivíduos oriundos das colónias. Numa possibilidade de transferência para o estrangeiro, o ditador comunicou a Eusébio que tal não podia ocorrer ser tendo em conta a sua condição de “Património do Estado” (Salas, 2021, p. 131-133);

  • Em 1960 Francisco Franco mandara a seleção espanhola faltar a uma eliminatória, contra a União Soviética, para a fase final da Taça Europeia das Nações. Não queria a sua seleção a disputar com “comunistas”. Com os soviéticos campeões europeus, o Pravda escreveu que “o regime fascista espanhol temia a equipa do proletariado soviético”. Quatro anos depois, em 1964, Franco reparou a sua decisão e a Espanha, inclusive, não só organizou o então campeonato europeu de seleções, como chegou à final, exatamente contra a União Soviética. Na final ganhou por duas bolas a uma. O momento, comemorativo dos 25 anos da Guerra Civil, serviu para exortar, não os jogadores campeões mas “o verdadeiro artífice da vitória e da paz” (Salas, 2021, p. 139-145);

  • Em 1975, o fuzilamento de cinco membros da ETA provocaria uma onda de indignação em todo o mundo. Com o vislumbre do fim da ditadura alguns jogadores manifestaram-se com símbolos de luto. Já com o Generalíssimo morto, em dezembro de 1976, o jogo entre o Athletic de Bilbao e a Real Sociedad de San Sebastian teve um quadro que inusitado: as duas equipas entraram em jogo segurando a ikurriña, “rompendo-se aí o tabu” da proibição da bandeira Basca (Salas, 2021, p. 151-153).

A manipulação do futebol não escapou às mãos de particamente todas as ditaduras americanas. O cariz pátrio e as características da mais simples forma de evocação nacionalista encontradas no futebol constituíram motivação mais do que suficiente para a apropriação do futebol pelas ditaduras.

  • Cunhado pelo jornalista polaco Ryszard Kapuściński, “Guerra do Futebol” é o modo como ficou conhecido o conflito entre as Honduras e El Salvador ocorrido em 1969. A verdade é que o futebol não foi causa de nenhum conflito. Mas foi a eliminatória para o mundial de 1970, no México, jogado em três jogos entre os dois países, que recebeu o cognome de um conflito entre vizinhos com uma desestruturação demográfica e económica. Donos de cerca de metade das propriedades agrícolas hondurenhas, os salvadorenhos ali residentes viram-se expropriados por uma reforma agrária e expulsos para a sua terra debaixo do grito “Hondurenho, pega num lenho e mata um salvadorenho” (Salas, 2021, p. 160) Nasceu aí a “guerra das 100 horas” na qual as duas partes se acusavam sobre a responsabilidade da sua origem, o que implicou o exacerbar dos nacionalismos e uma ativa participação dos adeptos dos dois países. Cortadas as relações, estas foram reatadas dez anos depois, “como não podia deixar de ser, com a organização de um amigável de futebol” (Salas, 2021, p. 157-160);

  • O “jogo fantasma” é a história de uma eliminatória de apuramento de uma das 16 equipas finalistas do Mundial de 1974 jogado na Alemanha. Os chilenos pretendiam dar um ar de normalidade enquanto no seu país, em pleno Estádio Nacional em Santiago se dava a tortura de mais de 40 mil pessoas. Na União Soviética, perante adversário comunista, nas antípodas de Pinochet, o jogo da primeira mão terminou empatado a zero. Para o jogo da segunda mão os soviéticos desenvolveram esforços para que a partida se realizasse em espaço neutro. Com a recusa da FIFA, a eliminatória iria sentenciar-se no Estádio militarmente vigiado onde se acredita estarem milhares de presos detidos nas caves. Os soviéticos optaram pela não comparência e o jogo terminou com a vitória chilena com um golo simbólico, marcado por pelo capitão Chamaco Valdés, para sempre conhecido como o golo marcado contra ninguém (Salas, 2021, p. 167-169);

  • A história do Mundial da Argentina em 1978, carregada de manipulações, suspeitas, contradições, repressões, ausências é um perfeito libelo da ação da ditadura militar na qual, inclusive, não faltou a vitória da Argentina, na final contra a Holanda. Foi uma vitória de um país de presos políticos, esforçando-se por parecer normal através de uma comunicação e propaganda e capacidade de manipulação do regime. Anos depois, o treinador Menotti, ou os jogadores Oswaldo Ardiles e Ricardo Villa, reconhecem como foram “usados” como “elementos de distração do povo” (Salas, 2021, p. 176). A manipulação teve inclusive a colaboração da FIFA ao aceitar que o último jogo entre o Brasil e a Polónia, decisivo para apurar o finalista, se jogasse horas antes, dando possibilidade dos argentinos de saberem da necessidade de marcarem seis golos ao Peru e assim chegarem à final. Nesse dia, o balneário da Argentina teve a visita do General Videla acompanhado de Henry Kissinger e, mais, tarde, a imprensa denunciou o descongelamento de créditos peruanos no Banco Central Argentina (Salas, 2021, p. 173-178);

  • Também a ditadura militar no Uruguai, no poder desde o golpe de estado de 1973, teve o seu momento. Porém, o planeado saiu contraditado e, no final, as consequências foram paradoxais. Com um Mundialito, denominado Taça de Ouro, em que participaram todas as equipas até aí campeãs do mundo — à exceção da Inglaterra cuja recusa resultou no convite à Holanda, organizado para celebrar a vitória da ditadura num referendo convocado para substituir a constituição de 1967, os militares foram surpreendidos com a sua derrota no ato eleitoral. De repente os estádios tornaram-se “nas primeiras concentrações em massa autorizadas pelos militares”, cantando, “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar” (Salas, 2021, p. 186). Por ter constituído uma organização manipulada, a vergonha pelo Mundialito subsiste de tal modo, ao ponto de não aparecer “na web da FIFA”, nem na página web da Federação uruguaia (Salas, 2021, p. 183-186);

  • Adilson Monteiro Alves, sociólogo, pouco ou nada sabia de futebol. Mas a sua contribuição para a formação política de Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa Vieira de Oliveira, foi determinante para a sociedade brasileira compreender os princípios da democracia direta. A experiência deu-se no Corinthians, clube de futebol onde todas as decisões resultavam do voto. Aonde fosse, o clube de S. Paulo levava a mensagem “ganhar ou perder mas sempre em democracia”. Só em 1989 o Brasil passou a eleger um presidente através de sufrágio universal mas a “democracia corinthiana”, com o médico-futebolista doutor Sócrates à cabeça, tornou-se numa iconografia da afirmação política por cidadãos futebolistas (Salas, 2021, p. 187-190).

Para além da ideia básica de que se trata apenas de um espetáculo exclusivamente para entreter as massas, este livro constitui uma contribuição bastante pertinente para a compreensão do fenómeno futebolístico sob pontos de vista geralmente arredados das discussões. Sendo certo que existem várias dimensões ainda por explorar nos estudos sobre o futebol, a manipulação política do desporto futebolístico, embora conhecido, e várias vezes aventado em discussões avulsas, carece de trabalhos sistematizados através da recolha histórica. Os exemplos que Villalobos Salas (2021) recolhe e traz ao leitor, como que provêm de um fotorama que, passo a passo, vai lançando fragmentos que, por sua vez, compõem uma imagem nítida, sólida e geograficamente ampla, do modo como o fascismo se foi servindo do desporto-rei em várias partes do mundo.

Como referido logo no início, a obra convoca vários escritores e intelectuais que não se escudaram a olhar para o futebol como um dos fenómenos mais importantes graciosos do século XX. A leitura de “Futebol e Fascismo” convoca, no imediato, o trabalho de Franklin Foer (2004), ex-jornalista da prestigiada revista The Atlantic, cujo livro How Soccer Explains the World: An Unlikely Theory of Globalization1, também explora o fenómeno futebolístico, que mais do que um estilo de vida, se constitui num fenómeno sem fronteiras. Não só embrenha-se na construção da realidade, como explica ódios religiosos, mostra a sua força fazendo cair regimes políticos, convoca, por exemplo, a coragem das mulheres iranianas, resiste nas suas particularidades locais e identitários no desmembramento da ex-Jugoslávia (Foer, 2004). No fundo, o futebol, apesar da globalização, conseguiu manter as suas idiossincrasias regionais e fazendo prevalecer a sua cultura à volta de razões grupais e clubistas, de onde não faltam os seus apaixonados adeptos.

REFERÊNCIAS

Foer, F. (2004). How soccer explains the world: an unlikely theory of globalization. Nova York: Harper Collins. [ Links ]

Salas, C. V. (2021). Futebol e fascismo. Lisboa: Edições 70. [ Links ]

Financiamento: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

1O livro foi originalmente editado, em 2004, pela HarperCollins Publishers Inc. A tradução portuguesa tem o título “Como o Futebol Explica o Mundo” (Palavra Marca Branca, 2006).

Recebido: 24 de Junho de 2022; Aceito: 08 de Setembro de 2022

*Autor correspondente: Rua D. Nuno Álvares Pereira, 1294, 4810-781 – Pinheiro GMR – Matosinhos, Portugal. E-mail: esser.jorge@gmail.com

Conflito de interesses: nada a declarar.

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