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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.78 Lisboa June 2023  Epub June 30, 2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.78r01 

Recensão

W. Bush, as más companhias e o ditador de Bagdade

Rui Henrique Santos1 

1 IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa, Portugal | ruihenriquesantos@fcsh.unl.pt

Leffler, Melvyn P.. 2023. ., Confronting Saddam Hussein: George W. Bush and the Invasion of Iraq. ., Oxford: ,, Oxford University Press, ,, 368 páginasp. .


Melvyn Leffler construiu uma reconhecida carreira académica com obras dedicadas às origens da Guerra Fria, enquadrando-se na vaga pós-revisionista que atende às dinâmicas securitárias entre Moscovo e Washington como causas primárias da competição e rivalidade bipolar. Em Confronting Saddam Hussein, o autor analisa a política externa norte-americana posterior ao 11 de Setembro de 2001, para compreender as razões que conduziram à Guerra do Iraque em 2003. À semelhança de trabalhos anteriores, Leffler, há décadas referência da abordagem realista neoclássica1, procura integrar os três níveis de análise waltzianos, destaca a relação complexa e contingente de fatores domésticos e sistémicos no comportamento dos Estados Unidos da América (EUA), e recorre a um extenso leque de entrevistas com decisores coetâneos e à reconstrução cronológica dos acontecimentos. Se os objetivos primordiais nas pesquisas de Leffler são perceber e explicar «why policymakers acted as they did»2, o argumento que dá corpo a este volume não é exploratório, nem depende de hipóteses a comprovar ou refutar. Leffler apresenta-nos nove capítulos que evidenciam e corroboram, a seu ver, como Bush recorre ao conflito em ultima ratio, num ambiente estratégico de ameaças iminentes, ampliadas pela disfuncionalidade e incompetência da sua Administração e pelo comportamento agressivo de Saddam Hussein.

A natureza humana

Leffler ocupa os dois capítulos iniciais com o traçar da biografia pessoal e política dos contendores principais da narrativa. No primeiro, Saddam é-nos apresentado como recorrendo desde cedo à utilização da violência, para sobreviver e alcançar o poder. O envolvimento de Saddam na volátil política iraquiana ocorre em finais da década de 1950, progride pelo aparelho de segurança até que, em 1979, assume o poder total. O perfil que Leffler compõe do líder iraquiano consolidará dúvidas que condicionaram estrategicamente os EUA e levam Bush a confirmar preconceitos estabelecidos. O homem forte de Bagdade é sequioso de poder e pragmático na sua obtenção. Enquanto negoceia recursos petrolíferos com o Ocidente para investir e desenvolver o país, anseia protagonizar a unidade árabe, ameaça Israel, apoia terroristas e almeja um programa de armas de destruição maciça (ADM) que lhe confiram estatuto e dissuasão. Os conflitos com o Irão, em 1980, e a anexação do Kuwait, em 1990, que resultam em ruína humana e económica, traduzem erros de cálculo e ambições regionais de Saddam, a sua natureza agressiva e um regime tirânico que se mantêm apesar da humilhação na Guerra do Golfo. Já George W. Bush, centro do segundo capítulo, é um filho do privilégio, em tudo oposto a Saddam. Leffler sublinha como o futuro 43.º presidente transporta o seu «renascimento cristão» para a retórica e a prática políticas. Governador republicano do Texas em 1995, Bush ganha as presidenciais de 2000, com uma agenda doméstica de compassionate conservatism e com qualidades pessoais, que Leffler faz questão de sublinhar, em franco contraste com os responsáveis de foreign policy e segurança nacional, nomeadamente, Cheney, Rice, Powell e Rumsfeld, que em rivalidades e divergências várias cedo iniciam erros de análise que impactam Bush. O tratamento avulso de temas como a Coreia do Norte, a tensão no Médio Oriente e o sistema antimísseis balísticos na Europa ocupam uma Casa Branca sem uma política externa coerente, até que terroristas suicidas utilizam aviões comerciais nos ataques do 11 de Setembro. O terceiro capítulo do volume, que nos situa nos dias subsequentes aos atentados, sublinha dois aspetos que Leffler percorre abundantemente. Primeiro, as prioridades de Bush em evitar novos ataques e combater o terrorismo, mesmo que assoberbado por uma torrente de dados com urgência e contradições fornecidos pelos serviços de informações. Segundo, as múltiplas lutas intestinas na Administração, desde personalidades a objetivos. Quando os talibãs rejeitam as exigências para entregarem o grupo de Bin Laden, Bush ordena uma campanha militar que rapidamente consegue remover um problema, mas não resolver um fenómeno.

Medo, poder e húbris

Os capítulos quatro a sete parecem-nos os mais relevantes, os quais exibem e consolidam o argumento de Leffler, atribuindo ao medo, ao poder e à húbris americanos as determinantes essenciais que conduziram, no pós-11 de Setembro - coadjuvadas pela responsabilidade de Saddam e a inabilidade dos integrantes da Administração -, à invasão do Iraque. Leffler afasta, sem os analisar, fatores como um Bush marcial, fervores ideológicos neoconservadores ou meros ganhos de poder. No quarto capítulo, Leffler demonstra como logo após os atentados se equaciona no seio da Administração a participação de Saddam nos eventos e uma resposta militar a Bagdade, com Bush a afastar esses cenários. A ameaça percecionada pelo Presidente enreda-se em informação não confirmada e frágil, bem como nas fações que se digladiam na Casa Branca sobre como lidar com Saddam, com Cheney e Rumsfeld, adeptos do hard power, Powell, da diplomacia, e Condooleza Rice, numa terceira via, sentindo-se oráculo do pensamento presidencial. No capítulo quinto, Leffler reconstrói a planificação militar para o conflito, destacando as incongruências e hesitações do Pentágono. Bush, que para Leffler aposta na diplomacia coerciva, caminha para uma ambiguidade perigosa, dado que de forma a pressionar Saddam a aceitar o regresso dos inspetores da Organização das Nações Unidas (ONU) para avaliarem o desarma- mento, tem de permitir a preparação do conflito, para ser credível. A Casa Branca move-se, ao mesmo tempo, entre objetivos díspares, sanções, contenção e regime change. A sexta parte do livro é dedicada à special relationship entre Bush e o primeiro-ministro britânico Blair. O líder trabalhista reconhece a dificuldade doméstica para uma eventual aliança militar com os americanos, mas acredita no regime change devido à natureza de Saddam. Garantindo que o Reino Unido acompanharia, a seu tempo, os EUA, Blair sublinha a necessidade de se agir no quadro do Conselho de Segurança das Nações Uni- das (CSNU), de forma a não marginalizar Berlim, Paris, Moscovo e a opinião pública internacional, não inclinados a concordar com as preemptive actions que passam a constar do léxico americano para lidar com o eixo do mal. Em maio de 2002, novos relatórios dos serviços de informações sobre o Iraque ampliam a ameaça, dão como certos programas de ADM, e confirmam a presença de membros da Alcaida em Bagdade. O sétimo capítulo coloca-nos no processo de decisão da guerra. Segundo Leffler, é um Bush que, sempre prudente, «resisted the pressure from the hawks» (p. 160), nomeadamente Cheney e Rumsfeld, dá ainda (mais) tempo à pressão diplomática, equaciona a manutenção de Saddam no poder, e possibilita, em novembro de 2002, com a Resolução 1441 do CSNU, uma oportunidade final a Bagdade. Estes quatro capítulos consubstanciam em Leffler um Presidente que se encaminhou, involuntariamente para a guerra, desejando a segurança absoluta e a paz.

A vitória e o fracasso

O capítulo oitavo, coloca-nos perante as ponderações de Saddam, de procrastinar as inspeções, de semear discórdia no CSNU e de manter-se no poder, não acreditando no suposto bluff americano, crente que os serviços de informações de Washington saberiam que Bagdade não detinha qualquer programa efetivo de ADM. Mas Saddam não poderia per se expor essa evidência. Se transparente, diminuiria capacidades de dissuasão, doméstica, regional e internacional. Não o sendo, ameaçava retribuição militar americana. De dezembro de 2002 a finais de janeiro de 2003, avanços e recuos das inspeções coincidem com novas ameaças em solo americano e contínua desarticulação política na Casa Branca, como visível na preparação da intervenção de Powell na ONU. Sem apoio russo, francês e alemão para a intervenção, a 17 de março, Bush dá quarenta e oito horas para que Saddam e família saíssem do Iraque. O nono e último capítulo do livro remete-nos já para um Iraque libertado. A mission accomplished e a promessa de um futuro democrático e prós- pero esbatem na realidade do «Estado natureza», do colapso do regime e do país, desprovido de serviços básicos e terreno de saques e mortandade. Leffler reforça a impreparação da Casa Branca, em particular de Rumsfeld, na planificação da fase de estabilização. A nomeação de Bremer, para impor ordem na anarquia, faz com que a libertação seja substituída pela ocupação. Os iraquianos, marginalizados ou saneados, crescem em ressentimento, espoletando ataques a tropas dos EUA e a missões internacionais, reforçando assim, para o autor, a perda de credibilidade norte-americana em garantir um futuro sem Saddam. Em nossa análise, as falhas de Bush, para Leffler, subsumem-se a cinco razões. Primeiro, ausência de escrutínio e exigência com a sua Administração. Segundo, devido à natureza de Saddam. Terceiro, excesso de zelo, para que no seu «turno» não existisse novo ataque em solo americano. Quarto, por utilizar o poder americano em prol do bem, e até de forma insuficiente. Quinto, porque os dados dos serviços de informações, fornecidos como evidentes e robustos, eram esparsos e inconclusivos. Mesmo estas falhas são compartilhadas, no entender de Leffler, com o consenso bipartidário generalizado e a opinião pública, que aprovava o desempenho presidencial e favorecia a intervenção militar.

A crítica

Existem três razões críticas para epistemológica e metodologicamente não colocarmos esta obra ao mesmo nível dos aprofundados e magistrais estudos que Leffler desenvolveu sobre a Guerra Fria. Primeiro, Leffler parte de um argumento principal - Bush pretendia evitar a guerra -, preenchendo capítulos que promovem essa asserção. A simplicidade analítica aqui evidenciada, que não é defeito em si, acaba por menorizar a obra que Leffler desenvolveu sobre as complexidades da bipolaridade, em que não se encontram respostas unidimensionais que reverberem um só argumento. Segundo, omite ou refere perifericamente, e reconhece-o (p. 98), bibliografia essencial para aquilatar hipóteses alternativas ou aprofundar a sua análise. É-nos incompreensível, a título de exemplo, a não inclusão de Porter3, no capítulo dedicado à relação Bush-Blair, ou uma solitária referência ao recente volume sobre o Iraque, de Mazarr4, e a omissão da edição de Thrall e Cramer5, com diversas análises teóricas sobre a inflação da ameaça no pós-11 de Setembro. Por último - e sabendo que Leffler não considera o 43.º presidente como agente de alterações radicais na estratégia norte-americana6 e de, neste volume, nos exibir um Bush com boas intenções e más companhias -, parece-nos que existe um esforço constante e bem conseguido (se lido desprovido de análise crítica) em enveredar por uma desresponsabilização compartimentalizada de decisões do comandante-em-chefe, com consequências que perduram globalmente.

Bibliografia

LEFFLER, Melvyn - «Bush’s foreign policy». In Foreign Policy. N.º 144, 2004, pp. 22-28. [ Links ]

LEFFLER, Melvyn - «Author’s response». In Passport. Vol. 49, N.º 1, 2018, p. 16. [ Links ]

MAZARR, Michael - Leap of Faith: Hubris, Negligence, and America’s Greatest Foreign Policy Tragedy. Nova Iorque: Public Affairs, 2019. [ Links ]

PORTER, Patrick - Blunder: Britain’s War in Iraq. Oxford: Oxford University Press, 2018. [ Links ]

RIPSMANN, Norrin; TALIAFERRO, Jeffrey; LOBELL, Steven - Neoclassical Realist Theory of International Politics. Nova Iorque: Oxford University Press, 2016. [ Links ]

ROSE, Gideon - «Neoclassical realism and theories of foreign policy». In World Politics. Vol. 51, N.º 1, 1998, pp. 144-172. [ Links ]

THRALL, Trevor; CRAMER, Jane, eds. - American Foreign Policy and The Politics of Fear. Nova Iorque: Routledge, 2009. [ Links ]

Notas

1 RIPSMANN, Norrin; TALIAFERRO, Jeffrey; LOBELL, Steven - Neoclassical Realist Theory of International Politics. Nova Iorque: Oxford University Press, 2016; ROSE, Gideon - «Neo- classical realism and theories of foreign policy». In World Politics. Vol. 51, N.º 1, 1998, pp. 144-172.

2 LEFFLER, Melvyn - «Author’s response». In Passport. Vol. 49, N.º 1, 2018, p. 16.

3 PORTER, Patrick - Blunder: Britain’s War in Iraq. Oxford: Oxford University Press, 2018.

4 MAZARR, Michael - Leap of Faith: Hubris, Negligence, and America’s Greatest Foreign Policy Tragedy. Nova Iorque: Public Affairs, 2019.

5 THRALL, Trevor; CRAMER, Jane, eds. - American Foreign Policy and The Politics of Fear. Nova Iorque: Routledge, 2009.

6 LEFFLER, Melvyn - «Bush’s foreign policy». In Foreign Policy. N.º 144, 2004, pp. 22-28.

Rui Henrique Santos Aluno de doutoramento na NOVA FCSH e no IPRI-NOVA.

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