SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue77The relevance of economy for Portugal’s strategic autonomy author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.77 Lisboa Mar. 2023  Epub Mar 31, 2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.77r01 

Recensão

Recensão: Saudades da hegemonia ocidental, alias Ordem Liberal Internacional

Andrés Malamud1 

1 Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Prof. Aníbal Bettencourt, n.º 9, 1600-189 Lisboa, Portugal | amalamud@ics.ulisboa.pt

Parsi, Vittorio Emanuele. ., 2021. ., The Wrecking of the Liberal World Order. ., Londres: ,, Palgrave MacMillan, ,, 325 páginasp. .


Vittorio Emanuele Parsi não é um politólogo qualquer. Antigo jogador de râguebi, é capitão-de-fragata (na reserva) da Marinha italiana, tendo participado em missões internacionais de segurança marítima e manutenção da paz. Professor de Relações Internacionais na Universidade Católica de Milão, onde dirige a Alta Scuola di Economia e Relazioni Internazionali (ASERI), participa ativamente no debate público do seu país quer na televisão, quer na imprensa. Neste seu livro mais recente, Parsi reconstrói, com metáforas náuticas, a origem, o apogeu e o «naufrágio» da ordem liberal internacional. Fá-lo com grande conhecimento da literatura e tem boas razões para isso: não só lê como conhece os seus principais autores, muitos deles seus amigos pessoais. Alguns, como John Ikenberry, Michael Mastanduno, Matthew Evangelista, Michael Cox e Joseph Grieco, visitam a ASERI todos os anos como professores convidados e endossam este livro.

Livro The Wrecking of the Liberal World Order 

A tese de Parsi é simples: a ordem liberal internacional é um arranjo global com uma base doméstica, que consiste na combinação da democracia com a economia de mercado. Em breve, não haverá mundo liberal sem Estados liberal-democráticos a construí-lo e sustentá-lo. A crise deriva, segundo o seu argumento, da quebra do equilíbrio em detrimento da democracia e a favor do mercado.

O colapso do «pacto social» entre capital e trabalho, verificado gradualmente a partir dos anos 1970, deixou à vista as contradições internas do capitalismo e deu lugar ao que ele chama de «ordem neoliberal internacional». Na sua imagem náutica, isto implicou o desvio de rota do navio no qual o Ocidente viajava desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesse desvio, sugere, a ordem liberal abalroou um icebergue com quatro lados, capaz cada um deles por si só de afundar o Titanic (na sua metáfora, a ordem liberal internacional). Esses quatro lados são a crise de liderança internacional dos Estados Unidos combinada com a emergência das potências autoritárias Rússia e China, a fragmentação das ameaças derivadas do terrorismo jihadista, o próprio revisionismo interno dos Estados Unidos, e o desencanto generalizado com a democracia, atenazada como está pelo populismo de um lado e a tecnocracia do outro. Como pano de fundo, acrescenta, subjaz a crise europeia, e tudo isto resultou ainda agravado pela pandemia. A ordem liberal internacional, poderia dizer-se, esbarrou contra um quadruple icebergue no meio da tormenta perfeita.

Parsi esclarece que a ordem liberal internacional foi duas coisas ao mesmo tempo: uma estrutura de poder e um projeto ideológico. A estrutura derivou da configuração resultante do segundo pós-guerra, caracterizado pela hegemonia estadunidense. O projeto consistia na combinação o mais harmoniosa possível da soberania estatal com o livre comércio - ou, como mencionado previamente, da democracia (nacional) com o mercado (agora internacional). É assim que nasceu a globalização, e foi assim que se deslizou desde a sua origem liberal até ao seu presente neoliberal. É neste contexto que surge o trilema de Rodrik, o economista turco-americano que afirma não ser possível realizar ao mesmo tempo a democracia popular, a soberania estatal e o livre comércio internacional, aliás globalização: a realidade força-nos a escolher duas das três opções.

A ordem liberal internacional como máscara da hegemonia americana

Parsi reconhece que a ordem liberal internacional é «a forma particular que a hegemonia dos Estados Unidos da América assumira depois de 1945», baseada num projeto político que reclamava princípios wilsonianos (pelo Presidente Woodrow Wilson, que conduzira os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial e as negociações que se seguiram) e toda a tradição do pensamento liberal. O objetivo imediato era a criação de uma arena internacional regida não pela força, mas pela lei, embora o objetivo final fosse recriar o sistema internacional à imagem do sistema democrático doméstico. Isso exigia proteger a ordem social de cada país das influências disruptivas provenientes do exterior, sobretudo da guerra. Os cinco pilares da nova ordem seriam: um mercado internacional aberto, que contivesse os excessos da soberania nacional tanto quanto os da anarquia internacional; a utilização da soberania nacional para pôr limites aos excessos do mercado; a ereção de uma arquitetura internacional que tornasse possível, e vantajosa, a cooperação interestatal; a inclusão política, económica e cultural das classes trabalhadoras, a fim de reforçar as instituições liberais da economia de mercado e a democracia representativa; e, finalmente, a criação de uma sólida classe média, que seria a coluna vertebral dos sistemas político e económico domésticos. O resultado esperado era um compromisso, conforme idealizado por Franklin Delano Roosevelt e Winston Churchill, entre o realismo político e as aspirações transformadoras do liberalismo.

Se a ordem liberal internacional foi a hegemonia norte-americana por outros meios, a fraqueza doméstica e a retração internacional dos Estados Unidos são a causa principal da sua crise. A Administração de Donald Trump veio alimentar ambos os défices, o interno e o externo. Na perseguição do seu estreito interesse nacional, a superpotência desistiu do sistema internacional que tinha criado. É aqui, assevera Parsi, que entra a China, suplantando com a sua infraestrutura material - a Belt and Road Initiative - a infraestrutura ideológica que sustentava a ordem mundial. Neste trecho expõe-se nitidamente a matriz idealista do autor, que considera que é a solidez ou a timidez dos valores o que permite o avanço ou o recuo dos interesses materiais. A emergência da China aparece assim como consequência de erros de critério ocidentais, e não como produto do desenvolvimento das suas forças produtivas ou materiais - nem, certamente, da superioridade dos seus valores.

Este é o momento em que se transluz a dificuldade do Ocidente para perceber o seu declínio relativo. O livro cita poucos autores que não sejam ocidentais e não faz um grande esforço para compreender como é que a ordem liberal internacional, assumidamente moldada pela hegemonia americana, é vista noutras regiões do mundo. Assim, embora o diagnóstico sobre a frente ocidental seja certeiro, muito ignora sobre a frente oriental - e tudo sobre a frente austral. No Ocidente, a insegurança económica combinada com a ansiedade cultural alimentou o extremismo político, enfraquecendo os pilares da ordem liberal internacional: certo. Mas no resto do mundo, essa ordem nunca foi vista como um bem público, mas no máximo como um bem de clube. Se um bem público beneficia todos os que desejam consumi-lo sem importar se participaram na sua produção, um bem de clube só beneficia aqueles que são aceites no grupo - permitindo, portanto, a exclusão daqueles indesejados pela comissão diretiva. Boa parte dos países asiáticos e africanos, mas também alguns latino-americanos, estão pouco interessados em importar ideologias ocidentais ou em aceitar as condicionalidades impostas pelas instituições supostamente comuns. Para muitos destes países, o que está em crise é a ordem liberal ocidental - e ainda bem, acrescentam.

O futuro da ordem liberal internacional, entre desejos e limites

A associação entre a ordem liberal internacional e o Ocidente é explícita, conscientemente ou não, ao longo de todo o livro. Parsi acredita que a China não rejeita «a nossa» globalização desde que possa liderá-la. «Nós», portanto, temos a tarefa de reconciliar a democracia com a economia de mercado no século XXI, «o que apenas pode ser conseguido mediante uma renovada parceria transatlântica». O protagonismo da Europa é assim reclamado a par da liderança americana. Esta análise passa por alto as causas estruturais da transição do poder em curso para a Ásia-Pacífico, nomeadamente o peso demográfico e o crescimento económico. Disclaimer: para que esta crítica ao eurocentrismo não seja adjudicada à proveniência do autor da recensão, destaco que a irrelevância crescente da Europa no cenário internacional só fica atrás da latino-americana1.

A alternativa à reconstrução da ordem liberal, assevera Parsi, é o relançamento de um globalismo tecnológico alla chinesa, em que as tradições nacionais se sobreponham ao liberalismo e à democracia em nome de uma falsa prosperidade comum. O autor não vislumbra a possibilidade de que a ordem mundial seja substituída por várias ordens regionais (ou por uma desordem global), mas teme simplesmente que a ordem neoliberal, produto do naufrágio da ordem liberal, venha a ser sucedida por uma ordem iliberal. Trata-se então de lutar pelo adjetivo (liberal ou não), porque o nome (ordem) estaria assegurado. O naufrágio da ordem liberal não conduziria à anarquia, mas à sua substituição pelo nacionalismo tóxico - leia-se «Trump» - ou pelo globalismo tecnocrático - leia-se «China».

O grande contributo deste livro é a sua proposta de reenquadramento. Sem negar a existência de interesses e incentivos, o autor pensa - e interpela-nos - em função de valores. Parsi afirma que não é apenas possível mudar o mundo, mas que a direção da mudança depende de nós. Os intelectuais e académicos têm não só o dever, segundo ele, de ajudar a compreender, mas, sobretudo, de arengar para a ação: yes, we can! Esta obra não foi escrita, diria Gramsci, com o pessimismo da razão, mas com o otimismo da vontade - e o autor seguramente concordaria.

Bibliografia

MALAMUD, Andrés; SCHENONI, Luis L.; PAES, Lucas de Oliveira - «L’America Latina è diventata irrilevante?». In Vita e Pensiero. N.º 3, 2022, pp. 29-37. [ Links ]

Notas

1 MALAMUD, Andrés; SCHENONI, Luis L.; PAES, Lucas de Oliveira - «L’America Latina è diventata irrilevante?». In Vita e Pensiero. N.º 3, 2022, pp. 29-37.

Andrés Malamud Investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons