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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.48 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

A Guerra Sino-Japonesa e o fim da República da China

Raquel Vaz-Pinto*

 

* Investigadora integrada do IPRI-UNL e professora convidada da FCSH/NOVA onde lecciona Estudos Asiáticos. E, desde 2012, presidente da Associação Portuguesa de Ciência Politica. Entre outros, publicou A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen, a China e os Direitos Humanos (Tinta-da-China) e o ensaio Os Portugueses e o Mundo (Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

A 8 de Dezembro de 1941 Chiang Kai-shek suspirou de alívio com a reacção norte-americana ao ataque nipónico a Pearl Harbour. A China ia finalmente ter ajuda a combater o Império do Sol Nascente numa guerra que durava desde 7 de Julho de 1937. A República da China, fundada em 1912, estava no limite mas de forma surpreendente resistia e sobrevivia há quatro anos. Para os europeus este era claramente um conflito secundário face às suas preocupações de, em primeiro lugar, evitar a guerra com a Alemanha e depois, a partir de Setembro de 1939, de combater de forma eficaz a Blitzkrieg. Para os japoneses, a resistência chinesa foi de facto uma total surpresa e a expectativa das suas tropas era a de que se repetisse o que tinha acontecido com a invasão da Manchúria em 1931. No fundo, Tóquio esperava que a República da China aceitasse esta nova realidade e que tal como em relação ao Estado-fantoche de Manchukuo a resistência fosse fraca. Na realidade, aconteceu o oposto pois a China de Chiang Kai-shek não só deu luta como nunca pensou em render-se.

 

 

No entanto, mesmo depois de Pearl Harbour, o nível de ajuda que Chiang Kai-shek tinha em mente acabou por não se materializar e a China não foi um teatro de operações das tropas norte-americanas. O objectivo de Washington foi o de manter a China na guerra de modo a dividir o esforço militar japonês que manteve no antigo Império do Meio cerca de 500 mil homens (p. 387). E esse objectivo foi conseguido.

A China sobreviveu até à rendição incondicional de Tóquio mas pagou um preço muito alto: ainda hoje é difícil chegar a uma contagem definitiva mas pelo menos 14 milhões de mortos e 80 milhões de refugiados, ou seja, 15 por cento da população (pp. 6 e 118). Esta foi uma guerra muito violenta e dura da qual se destacam pelas piores razões a conquista da capital Nanjing a 13 de Dezembro de 1937, seguida de seis semanas de massacre de mais de 200 mil pessoas, violações e tortura em massa (pp. 119-140) ou a campanha de bombardeamento de Chongqing, a nova capital da China Livre, e em especial no dia 4 de Maio, uma data simbólica e importante para os chineses (p. 4). De igual modo a guerra levou a dilemas e decisões terríveis como a que foi tomada por Chiang Kai-shek, em Junho de 1938, de rebentar os diques do Rio Amarelo para atrasar o avanço das tropas japonesas que pareciam imparáveis (pp. 155-162). O impacto humano foi devastador e levou à morte de cerca de meio milhão de pessoas e ao agravar da fome nesta região tão importante (p. 161).

No entanto, a Guerra Sino-Japonesa é uma das páginas menos conhecidas da História e também da Segunda Guerra Mundial e, ao mesmo tempo, crucial para compreendermos a implantação da República Popular da China em 1949. Este é o argumento central de Rana Mitter neste seu excelente livro. Para além da guerra contra o Japão a China, apesar da «Segunda Frente Unida», continuava em guerra civil. Mesmo nos períodos mais difíceis de resistência ao Império do Sol Nascente a cooperação que existiu entre os dois lados chineses era encarada com prudência e desconfiança. Mais ainda, algumas partes do território eram controladas por senhores da guerra o que tornava as decisões militares ainda mais complexas.

 

A China entre iguais

No entanto, o impacto a nível internacional foi claramente positivo (p. 377). É a Chiang que se deve a internacionalização da questão chinesa e o início do fim dos Tratados Desiguais em matéria de extraterritorialidade e concessões estrangeiras. Mais ainda, a China tornou-se revelante a nível externo como podemos ver pelo lugar que lhe foi atribuído no Conselho de Segurança da recém-criada Organização das Nações Unidas. Tudo isto se deve aos esforços diplomáticos de Chiang Kai-shek que nunca deixou de lembrar aos Aliados a posição «inferior» da China enquanto país soberano e a necessidade imperiosa de reverter esta situação. Esta reivindicação beneficiou muito do enorme esforço de guerra chinês ao enfrentar e combater a máquina de guerra nipónica durante oito longos anos. Rana Mitter diz-nos mesmo que se não fosse a China o avanço das forças armadas japonesas teria sido mais rápido e quem sabe até mesmo a Índia, a jóia da coroa britânica, teria sucumbido ao Império do Sol Nascente (p. 388).

Já a nível interno o impacto desta guerra foi bastante diferente e amplamente dissecado na segunda parte deste livro. O conflito contra o Japão deitou por terra o esforço de modernização económica iniciada a partir de 1928, a chamada Década de Nanjing. De igual modo, a guerra contribuiu para a militarização da sociedade chinesa e para a centralização do poder ao mesmo tempo que, devido aos constantes raides aéreos, as pessoas passaram a viver e trabalhar no mesmo sítio para não terem que fazer grandes viagens, um aspecto que mais tarde foi transformado em regra com as comunas. O «excepcional» passou a ser «normal».

Paralelamente, a agressão japonesa e a crueldade da sua ocupação foram cruciais na construção da nação chinesa. Este processo não teria sido o mesmo sem este factor agregador. Igualmente Rana Mitter relembra-nos que durante os anos da invasão japonesa a China tinha três vozes: a nacionalista e oficial de Chiang Kai-shek, a comunista de Mao Zedong e a colaboracionista com vários actores em Beiping e Nanjing, sendo esta a mais conhecida até pelo seu líder, Wang Jingwei. As três reivindicavam a herança e o legado de Sun Yat-sen (pp. 228-229) e a ascensão e a queda de Wang Jingwei é uma das histórias melhor conseguidas deste livro.

A construção da nação chinesa foi acompanhada de outro factor importante: a alteração do «mapa mental». A decisão de instalar a capital em Chongqing alterou o centro da China que se cingia à sua zona leste, a zona mais desenvolvida, e assim obrigou à maior consciência da geografia de um imenso território (p. 114). Dito de outra forma, o centro do antigo Império do Meio deslocou-se para ocidente, uma área com menos recursos e infra-estruturas.

Por último, foi o exército de Chiang que combateu a melhor máquina militar asiática e por isso sofreu um enorme desgaste. Esta realidade contrasta com os comunistas de Mao Zedong e a sua guerrilha já que cerca de um terço destes «guerrilheiros» não combateu directamente os japoneses (p. 188). Depois de tantos anos de guerra o Guomindang não foi capaz de resistir à etapa final da guerra civil.

 

O nascimento do Partido Comunista de Mao Zedong

A invasão japonesa permitiu ao Partido Comunista da China (PCC) respirar de alívio em relação à perseguição implacável levada a cabo por Chiang e pelo temível Dai Li. Ao mesmo tempo possibilitou a Mao consolidar a sua liderança e o papel do Exército de Libertação Popular. A guerra exigiu a mobilização total da sociedade que continuaria a partir de 1949 e permitiu a Mao ensaiar as suas campanhas de mobilização baseada na força dos camponeses em detrimento dos centros urbanos. O melhor exemplo foi a campanha de rectificação, em 1942, o Fórum sobre Arte e Literatura e a sua subordinação às necessidades da guerra e da revolução, que na prática é entendido como o nascimento do Partido Comunista de Mao (pp. 293-294 e 296). Os números falam por si. Em 1937, o PCC tinha 40 mil membros e o exército 92 mil militares (p. 193). Em 1945, o Partido tem mais de um milhão de membros e o seu exército cerca de 900 mil sendo complementado por um número igual de milicianos (p. 354).

No fundo, é irónico que tenha sido a invasão do Japão a alavanca para a sobrevivência e sucesso do PCC e uma peça fundamental para o seu triunfo em 1949. Mais ainda, analisar a guerra entre a China e o Japão também nos permite compreender as razões profundas e dolorosas de uma relação bilateral que tarda em verdadeiramente normalizar.

O excelente livro de Rana Mitter insere-se na linha da biografia de Chiang Kai-shek escrita por Jay Taylor que tem permitido uma reavaliação da actuação do líder nacionalista neste período tão conturbado1. Ao contrário da imagem passada pelo general Joe «Vinegar» Stilwell e que perdurou durante décadas, Chiang deixou de ser «apenas» o líder de um regime corrupto, degenerado, incapaz de combater e que acabou por «perder» a China. Chiang enfrentou muitos dilemas e foi capaz de resistir às tropas nipónicas ao mesmo tempo que se debatia com a resistência interna comunista e o papel ainda crucial de senhores da guerra. Rana Mitter tem o condão de nos fazer reviver o período da Guerra Sino-Japonesa e o seu impacto externo e interno. Ficamos a conhecer melhor as várias Chinas neste período e os factores que levaram à vitória dos comunistas de Mao em 1949.

Há muito que não lia um livro assim.

 

Notas

* A pedido da autora o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

1TAYLOR, Jay – The Generalissimo: Chiang Kai-shek and the Struggle for Modern China. Cambridge, MA: Belknap Press, 2007.         [ Links ] 

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