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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.44 Lisboa dez. 2014

 

RECENSÕES

 

Repensar as origens da emergência económica da Europa moderna

 

Luís Mah

Investigador de pós-doutoramento no Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CESA) do ISEG. É doutorado em Estudos de Desenvolvimento pela London School of Economics (LSE) e tem como áreas de investigação atuais o papel do Estado nas economias emergentes e as relações económicas Ásia-áfrica. É coautor, com Enrique Martinez Galan (Banco Asiático de Desenvolvimento), do blogue «O Retorno da Ásia».

 

Kenneth Pomeranz, A Grande Divergência: A China, a Europa e a Construção da Economia Mundial Moderna, Lisboa, Edições 70, 2013, 624 páginas

 

Até 1820, diz-nos Angus Maddison, a Ásia, com a China à cabeça, liderava a economia global1. Mas a partir desse momento, a Europa Ocidental ultrapassa a Ásia, e a China em particular. A Grande Divergência: A China, a Europa e a Construção da Economia Mundial Moderna, de Kenneth Pomeranz, é uma obra fundamental da história global porque nos oferece uma nova visão sobre as razões que levaram, no século xix, a Europa (Ocidental) a ultrapassar a China e a transformar estruturalmente a sua economia. Graças a esta obra, Pomeranz recebeu em 2000 o maior prémio da Associação Americana de História (AHA), o Prémio John K. Fairbank, e no ano seguinte foi um dos vencedores do Prémio para o Melhor Livro da Associação Mundial de História. Este trabalho de Pomeranz, publicado pelas Edições 70 e com direitos reservados para todos os países de língua portuguesa, chega treze anos depois da publicação do original em língua inglesa em 2000. Integra a Coleção História e Sociedade coordenada por Diogo Ramada Curto (unl), Miguel Bandeira Jerónimo (ics/ul) e Nuno Domingos (ics/ul) e que são também os autores do excelente estudo introdutório que acompanha esta edição de língua portuguesa. Neste estudo, os historiadores destacam a necessidade de olhar para o trabalho de Pomeranz como uma tentativa de «pensar a existência de uma humanidade comum, fundamentalmente separada por razões de índole material» (p. xxv). Esta tentativa parece, de facto, fazer parte de uma missão assumida por Pomeranz de questionar o «excepcionalismo europeu» para explicar a ascensão económica da região a partir do século xix2. A grande novidade deste trabalho de Pomeranz passa por comparar a China e a Europa no século xix e justificar porque, partindo ambas do que demonstra serem condições similares, acabaram por divergir, em termos de desenvolvimento.

Para Pomeranz, a justificação é essencialmente uma de índole ecológica. Ao contrário da China, a Europa, e a Inglaterra em particular, beneficiou do acesso a recursos ecológicos importantes. Primeiro, através do rápido aumento da extração e utilização do carvão inglês, conseguiu substituir a crescente escassez de madeira. E segundo, e claramente mais importante, através dos territórios coloniais ultramarinos, teve acesso a recursos minerais abundantes e novos mercados de consumidores, e para o qual contribui o uso da coerção e força bélica desenvolvida a partir da crescente competição militar dentro e fora das fronteiras europeias.

 

DE UMA HISTÓRIA EUROCÊNTRICA PARA UMA HISTÓRIA GLOBAL

A obra de Pomeranz está dividida em três partes e seis capítulos. Nas duas primeiras partes, que correspondem aos capítulos 1 a 4, Pomeranz questiona os argumentos que encontram justificações endógenas – e desta forma promovem uma «história eurocêntrica» – para a transformação industrial e ascensão económica da Europa no século xix em relação ao resto do mundo. Entre estas justificações endógenas estão desde especificidades demográficas (como melhor qualidade de vida ou maior longevidade), vantagens tecnológicas (ao nível da agricultura e transporte), existência de economias de mercado mais perfeitas e a emergência do capitalismo e do «consumismo». Olhando para os casos da China e do Japão, Pomeranz mostra como também aqui se encontravam estas condições que se pensavam ser únicas e endógenas à Europa e que por isso:

«fará talvez mais sentido ver a Europa Ocidental deste período como uma economia relativamente vulgar; só se tornou numa bizarria feliz quando, em finais do século xviii e em, especial, no século xix, um conjunto de descontinuidades inesperadas e significativas lhe permitiu romper as limitações fundamentais da utilização de energia e disponibilidade de recursos que tinham limitado os horizontes de toda a gente» (pp. 348-349).

São essas «descontinuidades inesperadas e significativas» que Pomeranz explora na terceira parte da obra e nos capítulos 5 e 6. Pomeranz não afirma que estas «descontinuidades» ou, por outras palavras, vantagens, foram «obrigatoriamente conducentes a um salto industrial», mas antes que «aumentaram bastante essa possibilidade e tornaram-no muito mais fácil de sustentar» (p. 353). Foram vantagens que ajudaram a resolver um problema crescente na Europa como os limites à capacidade de substituir terra por mão de obra e capital:

«com estes limites, era difícil manter o crescimento populacional, incrementar o consumo per capita e aumentar o grau de especialização industrial das regiões em simultâneo, e muito menos as taxas de crescimento aceleradas do século xix» (p. 353).

O capítulo 6 explica de forma clara como foi o Novo Mundo, a «periferia» que salvou e permitiu à Europa eliminar essas limitações da terra ao oferecer não só produtos agrícolas mas também metais preciosos.

Os produtos agrícolas vinham das Caraíbas e do Noroeste do Brasil e mais tarde dos Estados Unidos e eram principalmente cultivados por escravos. Em simultâneo, os próprios escravos tornaram-se num mercado importante para as importações europeias. Apesar da sua pobreza, as suas necessidades em termos de vestuário acabaram por representar uma parte importante das importações de bens manufaturados que vinham não só da Europa, mas também da Índia via Europa e que mais tarde foram substituídos por produções inglesas. Como afirma Pomeranz,

«a combinação da população com o repovoamento com escravos converteu a região circum-caribenha num mercado perversamente grande para as exportações (inglesas) e numa fonte de exportações (caribenhas) de produtos exigentes em terra. A região tornou-se, de facto, a primeira periferia a assumir o perfil hoje familiar de “Terceiro Mundo”: uma grande importadora de bens de produção (neste caso, andantes, falantes, raptados) e de produtos manufaturados para uso quotidiano, com exportações cujos preços foram descendo à medida que a produção se tornou mais eficiente, exigente em capital e disseminada […]. As plantações do Novo Mundo foram, pois, um novo tipo de periferia, uma periferia que importava o suficiente para manter relativamente equilibrado o seu comércio com o núcleo» (p. 447).

Para além dos produtos agrícolas, o Novo Mundo tornou-se também o fornecedor de um outro «maná»: metais preciosos. Grande parte destes metais preciosos servia de moeda para obtenção de produtos agrícolas e bens manufaturados na Europa Oriental, Próximo Oriente e Ásia Oriental. A venda dos produtos manufaturados ajudava a cobrir grande parte das despesas com a compra de escravos para as Américas. Para Pomeranz, a importância do Novo Mundo para a Europa não deve ser minimizada:

«A terra e a mão de obra que geravam as exportações de recursos do Novo Mundo eram frutos da coerção extra-mercado e foram necessários os esquemas singulares das plant ações caribenhas e das políticas mercantilistas no Novo Mundo para escapar a todas as forças que levaram à estagnação das trocas núcleo-periferia no Velho Mundo. Sem estas características e sem a prata que ajudou a pagar a administração colonial e possibilitou o transbordo de produtos asiáticos para África e para as Américas, é difícil ver como poderia o “maná ecológico” ter chegado à Europa em tamanha qualidade, nem é claro como poderia a Europa ter obtido tanto alívio ecológico do resto do Velho Mundo» (pp. 457-458).

 

DA GRANDE DIVERGÊNCIA PARA A GRANDE CONVERGÊNCIA?

Esta história inovadora de Pomeranz não tem, no entanto, deixado de ser sujeita a múltiplas críticas que a acusam de reduzir o desenvolvimento a uma visão puramente economicista, ignorando a complexidade do tema e a importância de outras variáveis como a cultura, a política ou a religião, tal como aponta o estudo introdutório. No entanto, se olharmos para a China atual e que o Fundo Monetário Internacional (FMI) indica ser já em 2014 a maior economia mundial segundo o critério da paridade de poder de compra, o mesmo argumento ecológico de Pomeranz poderia ser explorado para explicar a «grande» convergência económica da China com o continente europeu nas últimas décadas, principalmente a partir de 2001, quando o país acede à Organização Mundial do Comércio (omc).

A reemergência da China como uma das principais potências económicas globais coincide com o seu papel primordial no mercado internacional de recursos minerais onde tem vindo a determinar de forma significativa os seus preços3. De acordo com a agência norte-americana para a Informação Energética (eia), e em resposta à sua necessidade de manter o rápido desenvolvimento económico do país, a China é, em 2014, simultaneamente, o maior produtor e consumidor de energia a nível global4. Não só é a maior produtora, consumidora e importadora de carvão como também a segunda maior consumidora de petróleo. E segundo os cálculos da Agência Internacional de Energia (aie), a China estará perto de se tornar um produtor considerável de petróleo, rivalizando com membros da OPEC como o Koweit ou os Emiratos Árabes Unidos, nos próximos anos devido aos investimentos que têm vindo a ser feitos fora das suas fronteiras pelas empresas petrolíferas nacionais5.

A nível internacional, são a África Subsariana, o Médio Oriente e a América Latina as regiões que mais têm beneficiado com esta procura energética (e alimentar) por parte da China6. E a importância desta presença chinesa no mercado internacional de recursos minerais começa-se a desenhar precisamente a partir de 2000 (acentuada com a sua entrada na OMC em 2001), por coincidência no mesmo ano de publicação desta obra de Pomeranz no seu original em língua inglesa, quando a liderança chinesa decide lançar a estratégia – «Vai Global» – de globalização das empresas chinesas (principalmente estatais) a investir no estrangeiro em setores energéticos, tecnológicos e agrícolas considerados estratégicos para o país.

E tal como a Europa Ocidental no século xix, em troca de exportações de recursos minerais, os mercados da África Subsariana, Médio Oriente e América Latina têm-se tornado progressivamente em mercados de consumo importantes (embora ainda longe de estarem ao nível de mercados com maior poder de compra como os norte-americano, europeus ou asiáticos) para os produtos manufaturados chineses como maquinaria elétrica, máquinas (incluindo computadores), têxteis, mobiliário ou produtos óticos e médicos7. Desde 2000, a transformação industrial da China tem sido de tal forma meteórica que em 2013 ultrapassou os Estados Unidos como a maior potência comercial do mundo com o valor total das suas exportações (2209 biliões de dólares) e importações (1949 biliões de dólares) a atingirem mais de quatro biliões de dólares8.

Para manter o seu crescendo comercial, a China tem procurado seguir uma política ativa de promoção de acordos de comércio livre em todo o mundo, em particular com países asiáticos: ASEAN (Associação dos Países do Sudeste Asiático), Paquistão, Chile, Hong Kong, Macau, Nova Zelândia, Singapura, Peru, Costa Rica e Islândia (o primeiro país europeu a ter este tipo de acordo com a China). E embora as negociações estejam agora suspensas devido a conflitos diplomáticos, desde 2012 que a China, Japão e Coreia do Sul começaram as negociações para um acordo de comércio livre entre estes três países. Ao mesmo tempo, a China tem apostado na criação de uma parceria económica regional na Ásia Oriental (que seria o maior bloco comercial livre com três mil milhões de pessoas e um PIB conjunto de 17 biliões de dólares) e já demonstrou interesse em negociar um acordo de comércio livre com a União Europeia, e, depois de uma hesitação inicial, em fazer parte da Parceria Transpacífica para a criação de uma zona de comércio livre no Pacífico e que tem sido liderada pelos Estados Unidos.

Talvez as melhores palavras para olhar para a «grande convergência» da China possam ser encontradas em Jonathan Spence, o famoso professor de História da China em Yale e com quem Pomeranz estudou, numa entrevista em 2010 à National Endowment for the Humanities na ocasião da sua Jefferson Lecture: «Quando eu ensinei sobre a China – tive a sorte de ter passado muitos anos a fazer isso – começava sempre no século xvii quando uma nova dinastia assumia o poder na China, a Qing. Eu queria que os estudantes começassem a ter uma ideia clara sobre uma China extremamente vigorosa, bem orquestrada, bem organizada que tinha passado por uma difícil guerra civil e uma invasão estrangeira e que depois tinha desenvolvido uma liderança excecionalmente boa, apesar de não ter sido escolhida de forma democrática.

No final do século xvii – e princípios do século xviii, os imperadores tinham um forte sentido de governo e um bom sentido da responsabilidade associada à liderança. Eles eram analiticamente muito astutos e tinham um bom enten dimento sobre finanças. Trabalhavam arduamente, 12-15 horas por dia, e tinham acesso a uma imensa documentação sobre o país em geral.

Eles eram também duros como ninguém e dispostos a tomar decisões que podemos considerar cruéis. A minha principal premissa para as aulas era ‘Vamos começar com uma China forte, que olha para o mundo e que também é expansionista. É um período em que a China aumenta a sua extensão em 80-90 anos, um período no qual a China incorpora Taiwan e envia forças para o Tibete’. Conquistou muito no seu extremo ocidental, o que lhe deu uma vasta população muçulmana. Havia o seu próprio domínio na Manchúria, o estabelecimento de fronteiras com a Rússia, e a contenção do Ocidente, particularmente britânico, francês e outros estados europeus que comercializavam na China. Se olharmos para a China a partir dessa perspetiva, parece-se cada vez menos com o século xix.

O período fraco parece mais uma aberração. E a China nos últimos vinte e cinco ou mais anos parece ter voltado aquele caminho anterior: vigorosa, pragmática e por vezes impiedosa, por vezes determinada a fortalecer o controlo sobre as áreas fronteiriças, muito atenta em relação a qualquer tipo de manifestação de massas, extremamente atenta com a palavra escrita que possa ser crítica em relação ao Governo, extremamente cautelosa sobre qualquer tipo de multidão que se constitua»9.

 

NOTAS

1 Cf. Maddison, Angus – Chinese Economic Performance in the Long Run, Second Edition, Revised and Updated, 960-2030 AD. Development Studies Centre. Paris: ocde, 2007.

2 Ver, por exemplo, o projeto pedagógico em conjunto com o seu colega Bin Wong e intitulado «China and Europe 1500-2000 and beyond: what is “modern”?». Disponível em: http://afe.easia.columbia.edu/chinawh/index.html

3 Sobre o modelo de desenvolvimento chinês, cf. Mah, Luís – «A emergência do modelo de desenvolvimento chinês». InRelações Internacionais. N.º 38, junho de 2013, p. 38. [Consultado em: 16 de novembro de 2014]. Disponível em: http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?pid=S1645-91992013000200005&script=sci_arttext. Para uma análise recente do impacto da entrada da China no mercado internacional de recursos minerais, cf. Economy, Elizabeth C., e Levi, Michael – By All Means Necessary: How China’s Resource Quest is Changing the World. Nova York: Oxford University Press, 2014.

4 Cf. «China country analysis brief», US Energy International Administration. Washington: Departamento de Energia, 4 de fevereiro de 2014. [Consultado em: 16 de novembro de 2014]. Disponível em: http://www.eia.gov/countries/cab.cfm?fips=CH

5 Cf. Makan, Ajay, e Hook, Leslie − «China’s foreign oil output surges». In Financial Times, 20 de fevereiro de 2013. [Consultado em: 16 de novembro de 2014]. Disponível em: http://www.ft.com/intl/cms/s/0/60e4474e-7aad-11e2-9c88-00144feabdc0.html#axzz3JH8frSYq. Ver também o trabalho que a aie tem vindo a desenvolver desde 2011 sobre as empresas petrolíferas chinesas. Cf. «Chinese national oil companies’s investments: going global for energy», 3 de novembro de 2014. [Consultado em: 16 de novembro de 2014]. Disponível em: http://www.iea.org/ieaenergy/issue7/chinese-national-oil-companies-investments-going-global-for-energy.html

6 Para o caso das relações entre a China e África, cf. Sun, Yun – «Africa in China’s foreign policy». Washington: The Brookings Institute, abril de 2014. Disponível em: http://www.brookings.edu/research/papers/2014/04/10-africa-china-foreign-policy-sun. Ver também: «Africa-China trade». Tralac. Disponível em: http://www.tralac.org/resources/our-resources/4795-africa-china-trade.html

7 O lado negativo destas trocas comerciais entre a China os países em desenvolvimento na África Subsariana, América Latina e Médio Oriente é o impacto de um abrandamento da economia chinesa. Cf. Tyson, Judith, Kennan, Jane, e Hou, Zhenbo – «Shockwatch Bulletin: developing countries and the slowdown in China». In ODI Working Paper 404. Londres: Over-seas Development Institute, setembro de 2014.

8 Cf. Anderlini, Jamil, e Hornby, Lucy – «China overtakes us as world’s largest goods trader». In Financial Times, 10 de janeiro de 2014. Disponível em: http://www.ft.com/cms/s/0/7c2dbd70-79a6-11e3-b381-00144feabdc0.html#axzz3JH8frSYq. Ver também Cf. «China Trade Profile», WTO, setembro de 2014. Disponível em: http://stat.wto.org/CountryProfile/WSDBCountryPFView.aspx?Language=E&Country=CN

9 «Jonathan Spence Interview», National Endowment for the Humanities. Disponível em: http://www.neh.gov/about/awards/jefferson-lecture/jona-than-spence-interview