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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA

A Grande Guerra e a ascensão da Ásia – a China e o Japão

The Great War and the rise of Asia: China and Japan

Raquel Vaz-Pinto* 1

 

* Professora auxiliar da Universidade Católica Portuguesa e Presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política. Tem trabalhado sobre estratégia e política externa chinesa, religião nas relações internacionais, Grande Estratégia dos Estados Unidos e a Ásia-Pacífico.

 

RESUMO

A Grande Guerra é geralmente analisada pelo prisma das grandes potências e, em especial, dos Estados Unidos, França e Grã-Bretanha. Os três aliados não partilhavam os mesmos objectivos e a mesma visão do que deveria ser a ordem do pós-guerra. Esta divisão era também visível noutras partes do globo e, em especial, na Ásia Oriental. Este artigo tem como finalidade analisar os objectivos de dois países asiáticos: a China e o Japão. Enquanto a China considerou a entrada na Guerra como um meio para a sua verdadeira autodeterminação inserida no espírito wilsoniano, o Japão viu uma oportunidade de ver consagrado o seu estatuto de grande potência imperial. Apesar de ambos terem saído deste conflito – e, em especial, do Tratado de Versalhes – insatisfeitos, a Grande Guerra confirmou a ascensão da Ásia enquanto actor das relações internacionais.

Palavras-chave: Grande Guerra, China, Japão, autodeterminação.

 

ABSTRACT

The Great War is generally analysed from the perspective of the great powers and, in particular, of the USA, France and Great Britain. The three allies did not share the same goals and isions of the post-war order. This division was also manifest in other parts of the globe and, most notably, in East Asia. This article has the goal of analysing the goals two Asian countries: China and Japan. Whilst China considered its entry in the War as a means to achieving its true self-determination within the Wilsonian spirit, Japan saw an opportunity to be recognized as a great imperial power. Although both countries were unsatisfied with the outcomes and, in particular, with the Treaty of Versailles, the Great War confirmed the rise of Asia as an actor of international relations.

Keywords: Great War, China, Japan, self-determination.

 

Nos dias de hoje é-nos difícil compreender de forma cabal o impacto da Grande Guerra. Não apenas pelo facto de terem passado cem anos desde o deflagrar da Guerra, mas sobretudo devido à magnitude da II Guerra Mundial. Não só pelo envolvimento das sociedades e economias dos países beligerantes mas também pela tragédia humana. Esta foi uma guerra total, industrial e profundamente desumana como atesta o Holocausto ou o cerco a Leninegrado. Do ponto de vista tecnológico, Hiroxima e Nagasáqui quase que nos fazem esquecer a importância da força aérea ou dos submarinos na I Guerra Mundial. No entanto, 1914 foi, do ponto de vista intelectual e conceptual, a «Grande Guerra». Na perspectiva das relações internacionais este foi um conflito verdadeiramente revolucionário em que foram testadas ideias que mais tarde dariam o seu fruto: desde a autodeterminação à criação de uma organização com o objectivo de gerir as questões internacionais. Neste sentido, foram muitas as lições retiradas sobretudo em relação à preparação do pós-guerra. Os Estados Unidos da América, de Franklin Delano Roosevelt, aprenderam muito com os erros cometidos por Woodrow Wilson. Por último, há ainda um aspecto relativo à Grande Guerra que foi igualmente revolucionário: a integração de países não-ocidentais na qualidade de actores nas relações internacionais.

A ascensão de potências não-ocidentais foi, de facto, um aspecto importante desta Grande Guerra em especial quando essa ascensão foi meteórica. O Japão participou neste conflito com o objectivo de ser confirmado como uma grande potência. De modo a compreendermos as posições e a sua visão do pós-guerra temos que ter em consideração as várias fases de integração do Japão na v sociedade internacional. O Japão foi uma «potência imperial tardia» cujos objectivos colidiam com os da China2. A República da China procurou nesta guerra um resultado que lhe permitisse revogar os Tratados Desiguais e as concessões das potências estrangeiras. Mais ainda, a China tinha receio de que o Japão se expandisse à custa do seu território e da sua soberania. Deste modo, alinhou com Woodrow Wilson e as suas pretensões de aplicação internacional e concertada do princípio da autodeterminação. Pelo contrário, o Japão entrou na I Guerra Mundial com a vontade explícita de lhe ser reconhecido um império em igualdade com as demais grandes potências.

 

A Grande Guerra, Wilson e Power Politics

Os anos que precederam o deflagrar da I Guerra Mundial foram de grande intensidade intelectual. Por um lado, encontramos uma convicção no progresso moral da humanidade potenciado pela inovação tecnológica e pela possibilidade de controlar e, talvez um dia erradicar, a violência enquanto instrumento de política externa. O espírito de Haia e as conferências de 1899 e 1907 são disso um exemplo. Também é possível descortinar uma corrente que defendia a ideia que uma guerra seria curta e traria uma paz duradoura. Esta ilusão – «the war to end all wars – percorreu as principais capitais europeias e fez com as potências que iniciaram a Grande Guerra não estivessem preparadas para um conflito longo e desgastante. Ao entusiasmo sentido pelas elites políticas e populações seguiu-se a descrença e a inutilidade de uma guerra de trincheiras que teve um preço muito elevado no número de mortos e feridos. Esta sensação de sacrifício sem sentido foi muito bem descrita pelo poeta Wilfred Owen, que morreu em França a 4 de Novembro de 1918, no seu poema «Anthem for a doomed youth»3. Para além da tragédia humana a Grande Guerra teve consequências muito importantes ao nível do mapa mundial. Pela primeira vez os Estados Unidos desempenharam um papel activo num conflito europeu e no seu pós-guerra. A posição económica e financeira de Washington tinha saído muito reforçada com este conflito estando os Estados Unidos na posição confortável de maiores credores mundiais. No entanto, os vencedores tinham objectivos e visões diferentes sobre o pós-guerra e como deveria ser a ordem mundial4. A defesa do Presidente Woodrow Wilson do princípio da autodeterminação e a necessidade de criação de uma Liga das Nações foram dois «Pontos» subversivos da ordem internacional. Para os aliados britânicos e franceses a universalização da autodeterminação foi vista com desconfiança e levou a tensas negociações. A dificuldade de conciliar um «imperialismo liberal»5 com as expectativas nacionalistas ficou patente na sua aplicação selectiva, nomeadamente, aos impérios derrotados da Áustria-Hungria e Otomano e a colocação de muitas dessas regiões sob um sistema de mandatos da Liga das Nações, que de facto embora não de jure, aumentou a influência de Londres e Paris. Mais a leste, a Grande Guerra reforçou a percepção de que o declínio dos Romanov era inexorável. O esforço de guerra e o enorme descontentamento sentido pelas forças armadas e pela população foram cruciais para a desagregação do Império Russo. Se compararmos um mapa mundial de 1914 com um de 1919 verificamos que a Guerra potenciou ou causou directamente profundas alterações.

Mais ainda, o apelo de Woodrow Wilson para uma aplicação articulada e internacional da autodeterminação dos povos foi fortemente sentido por movimentos nacionalistas de várias partes do globo, em particular, na Ásia. Esta ideia que era um símbolo de uma Nova Ordem Mundial encontrou enormes dificuldades práticas de implementação mas também uma forte resistência de potências imperiais «antigas» como a França e a Grã-Bretanha ou newcomers como o Japão6. Para a forte adesão ao apelo de Wilson muito contribuiu a participação das populações colonizadas no esforço de guerra. Do lado britânico, podemos destacar a presença de um forte contingente indiano que quase chegou a 1,2 milhões e que combateu em França e, em particular, no Médio Oriente7. No final da guerra encontramos cerca de 950 mil tropas indianas fora do seu território, tendo sofrido baixas significativas entre os 62 mil e 65 mil soldados8. Esta participação expressiva da Índia faz parte daquilo a que C. Raja Mohan apelidou de «tradição expedicionária», uma tradição reforçada mais tarde na II Guerra Mundial. Esta tradição, no entanto, seria secundarizada durante o período de Nehru, embora não por muito tempo. A derrota humilhante face à China na guerra de 1962 fez ver à liderança de Nova Deli a importância do poder militar. Esta lição seria posta em prática por Indira Gandhi e, particularmente, na guerra de 1971 que levaria à independência do então Paquistão Oriental. Na verdade, durante a Grande Guerra a «Jóia da Coroa» foi um contribuinte importante não só do ponto de vista militar, mas também para a manutenção da máquina administrativa colonial, já que muitos funcionários foram chamados para combater na Europa. Deste modo, a I Guerra Mundial foi sentida em muitos territórios asiáticos como uma bênção, pois permitiu às elites locais reforçarem o seu papel na administração e governação também devido ao facto de as atenções das potências imperiais estarem concentradas naquele que foi o teatro de operações fundamental, ou seja, a Europa. Para os indianos a I Guerra Mundial teve um impacto importante nas expectativas de autodeterminação, que, no entanto, acabariam por não ser cumpridas. Logo em 1919 temos dois símbolos de maior repressão: as Leis Rowlatt e o massacre de Amritsar. Para a resistência indiana fica claro que é necessária uma estratégia articulada e uma liderança capaz de lidar com a metrópole. Este é o lugar que vai ser ocupado por Gandhi9. A ideia da autodeterminação seria central também para Nehru como podemos ver ainda antes da independência formal da Índia com a organização da Conferência das Relações Asiáticas em Nova Deli em Março de 194710.

Do lado francês, podemos destacar o esforço vietnamita durante a Grande Guerra. Devido ao facto de muitos trabalhadores franceses terem sido chamados para as frentes de batalha, Paris recrutou trabalhadores vietnamitas para ocuparem as fábricas vazias. Em 1911 o número de vietnamitas a viverem em França não ultrapassava a centena e eram sobretudo estudantes, mas em 1919 a comunidade rondava os 50 mil11. Não foi só a exposição a um modo de vida diferente, mas também a um enorme debate intelectual, particularmente em Paris. Este fervilhar intelectual e agitação política foram uma fonte de atracção para futuros revolucionários. Um deles, Nguyen Tat Than, levou a cabo várias tentativas de organizar politicamente os trabalhadores vietnamitas ao mesmo tempo que tentava elaborar uma plataforma que permitisse a autodeterminação do seu território. Nguyen, tal como muitos outros, respondeu positivamente ao apelo de Wilson12e, em 1919, escreveu uma petição com oito pontos apelando aos líderes aliados em Versalhes para aplicarem a autodeterminação aos territórios coloniais franceses no Sudeste Asiático13. Mais, decidiu entregá-la pessoalmente quer à Assembleia Nacional e ao Presidente francês quer às delegações em Versalhes, tendo para isso que alugar um fato escuro14. Nguyen conseguiu ainda que a petição fosse publicada no L’Humanité, um jornal radical ligado ao socialismo, de modo a obter o maior impacto possível. Apesar de ter suscitado controvérsia na Conferência a resposta das potências aliadas foi, na prática, uma não-resposta. Nguyen, que mais tarde adoptou o «nome de guerra» Ho Chi Minh, diria que tinha sido enganado pela «canção de liberdade» de Wilson15.

 

A China e a Grande Guerra: «O Império do Meio na Periferia»16

A China, ao contrário do Vietname, não era uma colónia e entrou na Guerra ao lado dos aliados a 14 de Agosto de 1917. E foi nessa condição que enviou uma delegação oficial a Versalhes para negociar o tratado de paz com a Alemanha. No entanto, apesar de formalmente ser um país soberano a China estava dividida entre várias zonas de influência administradas pelas grandes potências. Apesar de ter sido a primeira república asiática em 1912 a China era «soberana mas sem os direitos de uma potência soberana»17. Era esta a caracterização do antigo Império do Meio no âmbito da comissão criada pelo Presidente Wilson entre 1917 e 1919 com o objectivo de definir e encontrar formas de implementação da autodeterminação e que era conhecida simplesmente como «The Inquiry». Para além da ocupação do seu território por potências estrangeiras a república chinesa debatia-se ainda com uma enorme fragilidade interna provocada pela guerra civil e pela força dos senhores da guerra. Na verdade, a China não tinha ainda sido capaz de assimilar a queda do Império e do mundo sinocêntrico e de se transformar num estado membro da sociedade internacional.

Para a China o início da I Guerra Mundial foi sentida com alívio. Tal como em outras regiões a Grande Guerra ditou que as atenções das grandes potências estivessem centradas na Europa. Este desviar de atenção e recursos atenuou a forte pressão sentida pelos chineses no seu território. No entanto, este maior vazio de poder ocidental foi sendo sucessivamente preenchido pelo Japão, um vizinho cada vez mais próximo e com pretensões imperiais. Ao contrário da China, o Japão entrou na guerra logo a 23 de Agosto de 1914 tendo como objectivo imediato o combate às tropas alemãs na província de Shandong e, em especial, o controlo pela base naval de Tsingtao. Esta operação anfíbia das tropas japonesas foi bem-sucedida e teve um grande impacto no modo como o Japão foi inicialmente percepcionado pelas grandes potências. Para a China este sucesso militar japonês que levou ao controlo da província de Shandong foi entendido como mais um ataque à sua soberania. Esta percepção estava correcta e o governo japonês continuaria a manter a pressão sobre a China. Tendo como pano de fundo esta ameaça nipónica a China entrou na I Guerra Mundial com um duplo objectivo: não só tentar estancar esta ameaça como reverter a sua situação de inferioridade resultante dos tratados desiguais, ou seja, atingir a soberania plena. O antigo Império do Meio estava a tentar dar os seus primeiros passos na sociedade internacional vestefaliana e não deixa de ser paradoxal que o principal obstáculo tenha sido uma potência não-ocidental e até há poucas décadas claramente inferior: o Japão.

Esta inversão de papéis na Ásia Oriental tem o seu momento marcante em 1895 quando o Japão, após derrotar a China, impõe o Tratado de Shimonoseki. Para os chineses, este não foi o primeiro tratado desigual mas pelo facto de ter sido imposto por uma potência não-ocidental considerada inferior pelos manchus, foi o tratado que pôs fim ao mundo sinocêntrico. Os japoneses já não podiam mais ser apelidados de «escravos anões» ou «piratas anões»18. A vontade nipónica de expansão já tinha dado sinais quando, em 1870, o Japão tinha solicitado à Coreia um tratado de amizade e comércio. Para a China, a Coreia era a «Jóia da Coroa» do sistema sinocêntrico e, por isso mesmo, um alvo crucial para o Japão. Acresce que, do ponto de vista geográfico, era fundamental controlar a península coreana para defender o território japonês e também permitir a expansão continental de Tóquio. O Tratado de Shimonoseki reconheceu a independência da Coreia, a cedência da península de Liaotung e a perda de Taiwan e do arquipélago Ryukyu. Apesar do sistema sinocêntrico só ter formalmente terminado em 1911 e de a última missão tributária ter sido realizada pelo Nepal em 1908, a partir de 1895 o sistema estava moribundo. A relação com o Japão continuou a agravar-se com a intervenção internacional para pôr fim à Revolta dos Boxers em 1901 e na qual participou o exército nipônico. No início do século XX, o Império do Meio era objecto de uma colonização parcial e múltipla e o ressentimento gerado por esta humilhação influenciou Sun Yat-sen e Mao Zedong19. A proclamação da República da China em 1912 não diminuiu em nada o apetite expansionista de Tóquio sendo as «21 Exigências» apresentadas a 25 de Maio de 1915 o melhor exemplo. Este ultimato obrigava a China a reconhecer a hegemonia do Japão e os territórios já sob a sua influência, bem como o controlo de indústrias de aço e ferro na Manchúria e Mongólia Interior. No fundo, tornava a China uma espécie de «protectorado» do Japão20.

A liderança chinesa compreendeu que era fundamental participar no esforço da Grande Guerra de modo a evitar ser representada pelo Japão. Os aliados já tinham solicitado ao Governo chinês que fosse possível recrutar trabalhadores chineses para o esforço de guerra na Europa. Assim, a China centrou o seu apoio no fornecimento às potências europeias de trabalhadores que pudessem, à semelhança dos «voluntários» vietnamitas, manter as fábricas de armamento a funcionar. De igual modo, os trabalhadores chineses foram usados em tarefas variadas nos campos de batalha como, por exemplo, a abertura de trincheiras. A selecção destes voluntários começava num centro de recrutamento na província de Shandong sendo depois enviados numa viagem de barco épica até à Europa. Esta participação na guerra fez com que no final de 1918 o número de trabalhadores chineses na Europa chegasse aos 96 mil, tendo o número de baixas rondado os 250021. A vitória dos Aliados na guerra permitiu à China manter as expectativas de que seria possível reintegrar Shandong e também reverter a situação de colonização de facto. Para tal o Governo chinês enviou uma delegação composta pelos seus diplomatas mais experientes e, em particular, os seus embaixadores nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, Wellington Koo e Alfred Sze. No entanto, comprovando a sua posição de país «pequeno» e periférico foram atribuídos à China dois lugares na Conferência de Paz, um lugar a menos que outros países como o Brasil22. A exposição inicial da delegação chinesa comprovou os seus objectivos e a sua visão do que deveria ser o pós-guerra: o fim da ocupação do seu território simbolizado pela devolução de Shandong. Shandong era para a China um território muito importante não só pela sua posição geográfica face a Pequim, mas porque é considerado o berço da civilização chinesa e a terra natal de Confúcio e Mêncio. A república chinesa procurou através da Grande Guerra resolver os problemas que assolavam o seu território desde a imposição dos primeiros tratados desiguais em 1842. Há vários factores que determinaram o falhanço da proposta chinesa. Não só a sua entrada foi tardia como o seu esforço de guerra quando comparado com outros países não foi determinante. Mas sobretudo a China enfrentou um rival que não estava disposto a abdicar do que considerava serem despojos de guerra legítimos: o Japão. Para além de todos estes factores o Japão invocou a seu favor não só a aceitação das exigências de 1915 como também as Notas trocadas entre os dois governos em 1918. De nada valeu a defesa brilhante e o argumento da delegação chinesa de que esses documentos eram justamente um exemplo de acordos assinados sob coerção e impostos pela lei do mais forte. Devido à posição intransigente do Japão e com o receio de que Tóquio não participasse na Liga das Nações, o Presidente Wilson acabou por entregar Shandong aos japoneses.

O anúncio da decisão final sobre Shandong a 30 de Abril deixou a delegação chinesa em choque23. Mais em choque ficaram os estudantes e manifestantes chineses em Paris que acabaram por se reunir à porta do hotel onde estava a delegação chinesa impedindo-a de sair e, assim, de assinar o Tratado de Versalhes24. Em Pequim, o entusiasmo com Wilson e as suas propostas, que tinha levado, por exemplo, Chen Duxiu, mais tarde um dos fundadores do Partido Comunista da China, a afirmar que «a justiça e a razão já não podem ser mais negadas», esvaneceu-se e transformou-se em raiva25. As manifestações na Praça Tiananmen repercutiram-se em outras cidades chinesas e deram origem ao Movimento do 4 de Maio. Para os chineses a devolução de Shandong era uma questão de justiça evidente já que a China pedia a devolução de um território que era seu. A China acabou por ser a única delegação que não assinou o Tratado de Versalhes.

 

Japão: Potência Imperial tardia e a Cláusula da Igualdade Racial

A participação do Japão na I Guerra Mundial foi o corolário de uma ascensão meteórica na sociedade internacional. Esta ascensão teve três grandes fases26. A primeira vai desde a «abertura» em 1853 pelos navios norte-americanos até à Missão Iwakura entre 1871-1873, que implicou o envio de diplomatas japoneses pelo mundo fora de modo a aperfeiçoarem os seus conhecimentos e capacidades. Nesta primeira fase os japoneses, confrontados com a superioridade tecnológica militar ocidental, viram-se obrigados a aceitar a imposição de tratados desiguais. Beneficiaram ainda do maior interesse comercial pela China por parte das potências ocidentais o que permitiu ao Japão aprender com os erros cometidos pela China e ter tempo para o fazer27. Ao contrário da China que optou por confrontar os ocidentais e resistir à imposição do chamado «padrão de civilização», o Japão decidiu «aprender» e integrar-se na sociedade internacional. Neste período foram levados a cabo traduções de textos importantes de direito internacional e reformas internas de modo a negar às potências estrangeiras o argumento subjacente à imposição da extraterritorialidade. Na segunda fase que durou até 1911, a política externa do Japão foi dominada pela procura de igualdade entre as potências e a revogação da extraterritorialidade imposta pelo Ocidente. Um marco importante foi o acordo assinado com a Grã-Bretanha em 1894 com esse objectivo. Igualmente importante como já vimos foi a imposição do Tratado de Shimonoseki à China e as concessões territoriais que marcam o início da expansão imperial japonesa. Mas foi sobretudo a aliança com a Grã-Bretanha em 1902 e a derrota do Império Russo na Guerra de 1904-1905, que elevaram o Japão a nível internacional. Pela primeira vez, uma potência não-ocidental tinha derrotado uma potência ocidental e de forma clara e inequívoca. Os ecos desta vitória cujo tratado de paz acabou por ser negociado pelo então Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, foram muito importantes. Para os povos não-ocidentais a vitória do Japão significou que era possível derrotar o Ocidente e que, afinal, o colonialismo poderia não ser eterno. Para as grandes potências, se por um lado a admiração pelo sucesso nipônico era genuína, por outro a capacidade militar do Japão tornava-o cada vez mais um rival. Do ponto de vista regional, o Japão continuou com a sua expansão e, em 1910, anexou a Coreia cumprindo assim o sonho de Toyotomi Hideyoshi.

A participação do Japão na Grande Guerra insere-se na terceira fase da sua ascensão que tem o objetivo claro de ser reconhecido como grande potência28. No final da Guerra o Japão chega a Versalhes com três propósitos: a concessão alemã de Shandong, as colónias alemãs no Pacífico a norte do equador e a aceitação de uma cláusula de igualdade racial entre as grandes potências. Destes três foi o último que mais controvérsia e tensão gerou entre os Aliados29. Com esta proposta Tóquio adicionava uma nova dimensão à definição de grande potência30. A maior resistência a esta proposta nipónica veio de Wilson e Lloyd George. Do lado britânico, Londres estava inquieta com a posição regional do Japão que tinha ocupado o vazio deixado pelo Império Russo e tinha fortes reservas em matéria de imigração no âmbito do seu império. A maior contestação veio da Austrália e do seu primeiro-ministro Billy Hughes, cuja política restritiva da imigração, conhecida pela «White Australia» de 1901 chocava frontalmente com o cerne desta proposta japonesa. Os EUA tinham igualmente muitas questões internas em matéria de imigração sobretudo nos estados do Pacífico como a Califórnia31. Aliás, a questão «racial» estava ainda muito longe de estar resolvida nos EUA, particularmente nos estados do Sul. Do ponto de vista de Tóquio, a introdução de legislação discriminatória na Califórnia em 1913 levou a que a questão «racial» fosse cada vez mais um «assunto».

Apesar de o Japão ser uma «história de sucesso antes de 1914 tendo sido a única nação asiática a resistir e a associar-se aos imperialistas ocidentais»32, a rejeição desta cláusula reforçou a percepção da elite japonesa de que o Japão, apesar de cumprir todos os requisitos formais de grande potência, não estava ao mesmo nível que os Estados Unidos, a França ou a Grã-Bretanha. Esta percepção foi também cimentada em Versalhes. Apesar de ter o mesmo número de cinco delegados que os Aliados, a discussão dos grandes assuntos era efectuada entre as três grandes potências e a Itália (Conselho dos Quatro), deixando o Japão de fora33. Nem mesmo a entrega das colónias alemãs a norte do equador sob o sistema de mandato foi capaz de atenuar esta percepção de «dois pesos e duas medidas». Mais ainda, para Tóquio era evidente que o Japão tinha o direito de desenvolver a sua expansão imperial em igualdade com as outras grandes potências. O facto de ser uma potência imperial tardia e não-ocidental condicionou de facto as suas opções.

 

A Ascensão da Ásia e o Século XX

A proposta japonesa de uma cláusula de igualdade racial não tinha um objectivo universalista. O objectivo de Tóquio era a sua aplicação entre as grandes potências. No entanto, ao fazê-lo de forma instrumental o Japão acabou por alicerçar o apelo universal da autodeterminação, que daria frutos mais tarde34. Aos olhos dos vietnamitas e apesar da desilusão sofrida em Versalhes o exemplo dos Estados Unidos continuaria a entusiasmar vários movimentos nacionalistas. Ho Chi Minh, em Setembro de 1945, começaria a declaração unilateral de independência do seu Vietname citando as famosas palavras de Thomas Jefferson de 177635. Apesar do apoio à descolonização nos anos imediatos a 1945 e à independência das Filipinas em 1946, o capital anticolonialista de Washington seria mais tarde diluído na lógica da Guerra Fria.

O Japão foi igualmente pioneiro ao demonstrar que era possível derrotar potências ocidentais tendo o seu exemplo servido de inspiração a muitas regiões asiáticas. No entanto, o resultado final da participação japonesa na Grande Guerra e, em especial, relativo ao Tratado de Versalhes foi para o Japão o início da transição de uma potência imperial tardia para uma potência revisionista36. O objectivo de integração na sociedade internacional começou a ser, cada vez mais, questionado e iria marcar decisivamente o percurso do Japão até Pearl Harbour.

Para a China, a participação na I Guerra Mundial foi igualmente importante. A entrega de Shandong ao Japão levou à chamada humilhação de Versalhes e ao Movimento 4 de Maio de 1919. Cerca de três mil estudantes reuniram-se na Praça Tiananmen, naquela que é considerada a primeira manifestação genuína do nacionalismo chinês, em protesto contra a decisão das potências ocidentais em Versalhes. Esta manifestação expandiu-se para outras cidades chinesas e levou também a um boicote de produtos japoneses37. Este protesto foi de tal forma marcante que a sua herança continua a ser reivindicada pelo Partido Comunista da China e pelo Guomindang, mas também por dissidentes como os que assinaram a Carta 0838. A República da China acabou por aderir à Liga das Nações como um dos seus membros originais e, em 1920, foi mesmo eleita membro não-permanente do Conselho da Liga. A província de Shandong seria mais tarde devolvida pelo Japão no âmbito dos tratados assinados na Conferência de Washington em 1921-1922, mas o apetite expansionista pela China continuaria. De qualquer modo, e apesar da participação chinesa nas instituições internacionais, Versalhes deixara uma marca muito importante: para reerguer a China era necessário uma visão articulada entre a força das ideias e a força das armas.

Em 1914, a Europa deu início de forma clara ao fim do mundo eurocêntrico. A Grande Guerra abriu caminho para a liderança norte-americana que se consumaria em 1945, mas também à partilha de poder por regiões não-ocidentais. Hoje em dia é muito debatida a possibilidade de uma potência asiática, a China, ascender a superpotência e do século XXI ser o século do Pacífico. Mas para sermos verdadeiramente capazes de compreender este percurso asiático nas relações internacionais temos que regressar ao seu ponto de partida e olhar para a Grande Guerra.

 

Data de recepção: 15 de Abril de 2014

Data de aprovação: 18 de Maio de 2014

 

Notas

1A pedido da autora o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2Best, Anthony Best et al. International History of the Twentieth Century and Beyond. Londres: Routledge, 2008, p. 59.         [ Links ]

3Owen, Wilfred – The War Poems. Jon Stallworthy (ed.). Londres: Chatto & Windus, 1994, p. 12.         [ Links ]

4Best, Anthony Best et al. International History of the Twentieth Century and Beyond, p. 40.         [ Links ]

5Winter, Jay – Dreams of Peace and Freedom, Utopian Moments in the 20th Century. New Haven e Londres: Yale University Press, 2006, pp. 50-51.         [ Links ]

6Para um excelente exemplo da dificuldade de implementação do conceito de autodeterminação no território do Império Austro-Húngaro ver Mazower, Mark – Dark Continent, Europe’s Twentieth Century. Londres: Penguin, 1999, p. 43: «If you ask me what is my native country,’, wrote the playwright Odon von Horvath, author of Tales from the Vienna Woods, ‘I answer: I was born in Fiume, grew up in Belgrade, Budapest, Pressburg, Vienna and Munich, and I have an Hungarian Passport; but I have no fatherland. I am a typical mix of old Austria-Hungary: at once Magyar, Croatian, German and Czech: my country is Hungary, my mother tongue is German».

7Metcalf, Barbara D., e Metcalf, Thomas R. – A Concise History of Modern India. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 163.         [ Links ]

8Mohan, C. Raja – «The return of the Raj». In The American Interest, Verão (Maio-Junho) 2010, pp. 4-11.         [ Links ]

9Para a tensão entre autodeterminação e direitos individuais ver Khilnani, Sunil – The Idea of India. Londres: Penguin, 2003, pp. 25-28.         [ Links ]

10Guha, Ramachandra – India after Gandhi, the History of the World’s largest Democracy. Basingstoke e Oxford: Pan Books, 2008, pp. 153 e 154.         [ Links ]

11Duiker, William J. – Ho Chi Minh, a Life. Nova York: Hyperion, 2000, pp. 54 e 56.         [ Links ]

12Macmillan, Margaret – The Uses and Abuses of History. Londres: Profile, 2010, p. 102.         [ Links ]

13Duiker, William J. – Ho Chi Minh, a Life, p. 58        [ Links ]

14Herring, George C. – From Colony to Superpower, US Foreign Relations since 1776. Oxford e Nova York: Oxford University Press, 2008, p. 418.         [ Links ]

15Duiker, William J. – Ho Chi Minh, a Life, pp. 59-61.         [ Links ]

16Zhang, Yongjin – China in the International System, 1918-1920, The Middle Kingdom at the Periphery. Oxford e Londres: MacMillan/St. Antony’s College, 1991.         [ Links ]

17Winter, Jay – Dreams of Peace and Freedom, Utopian Moments in the 20th Century. New Haven e Londres: Yale University Press, 2006, p. 66.         [ Links ]

18Dikötter, Frank – The Discourse of Race in Modern China. Londres: Hurst and Company, 1994, p. 62;         [ Links ] e Howland, Derek – Borders of Chinese Civilisation: Geography and History at Empire’s End. Durham e Londres: Duke University Press, 1996, p. 22.         [ Links ]

19Gittings, John – The World and China, 1922-1972. Londres: Eyre Methuen, 1974, pp. 37 e 43.         [ Links ]

20Fairbank, John K., e Goldman, Merle – China, a New History. Cambridge, Mass e Londres: The Belknap Press, 2006, p. 266.         [ Links ]

21Spence, Jonathan – The Search for Modern China. Nova York e Londres: W. W. Norton, 1999, pp. 286-289.         [ Links ]

22Zhang, Yongjin – China in the International System, 1918-1920, The Middle Kingdom at the Periphery. Oxford e Londres: MacMillan/St. Antony’s College, 1991, p. 52.         [ Links ]

23Macmillan, Margaret – Peacemakers, the Paris Conference of 1919 and Its Attempt to End War. Londres: John Murray, 2002, pp. 348-349.         [ Links ]

24Spence, Jonathan – The Search for Modern China. Nova York e Londres: W. W. Norton, 1999, pp. 288-289.         [ Links ]

25Cit in Westad, Odd Arne – Restless Empire, China and the World since 1750. Londres: The Bodley Head, 2012, p. 152.         [ Links ]

26Suganami, Hidemi – «Japan’s entry into international society». In Bull, Hedley, e Watson, Adam (eds.) – The Expansion of the International Society. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 185.         [ Links ]

27Moulder, Frances W. – Japan, China and the Modern World Economy: Toward a Reinterpretation of East Asian Development, ca. 1600 to ca. 1918. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 96.         [ Links ]

28Suganami, Hidemi – «Japan’s entry into international society». In Bull, Hedley, e Watson, Adam (eds.) – The Expansion of the International Societ y, pp. 191-193.         [ Links ]

29Para uma extraordinária análise sobre as razões que levaram o Japão a apresentar esta proposta ver Shimazu, Naoko – Japan, Race and Equality, The Racial Equality Proposal of 1919. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1998 e que enforma este parágrafo.         [ Links ] Para a proposta ver p. 20: Artigo 21: «All nationals of all members of the League of Nations should receive equal and just treatment in every respect making no distinction, either in law or in fact, on account of their race or nationality.»

30Para uma análise exaustiva dos factores que permitem caracterizar uma grande potência ver Bull, Hedley – The Anarchical Society, A Study of Order in World Politics. Londres: MacMillan, 1995 (1.ª ed. 1977), pp. 193-222.         [ Links ]

31Shimazu, Naoko – Japan, Race and Equality, The Racial Equality Proposal of 1919. Londres e Nova York: Routledge, 1998, p. 9.         [ Links ]

32Macmillan, Margaret – Peacemakers, the Paris Conference of 1919 and Its Attempt to End War, p. 319.         [ Links ]

33Ibidem, p. 315.

34Shimazu, Naoko – Japan, Race and Equality, The Racial Equality Proposal of 1919, p. 188.         [ Links ]

35Cit. in Vatikiotis, Michael R. J. – Political Change in Southeast Asia, Trimming the Banyan Tree. Londres e Nova York: Rout-ledge, 1996, p. 86.         [ Links ]

36A este respeito ver Akira, Iriye - The Origins of the Second World War in Asia and the Pacific. Londres e Nova York: Longman, 1996.         [ Links ]

37Fairbank, John K., e Goldman, Merle – China, a New History. Cambridge, Mass. e Londres: The Belknap Press, 2006, pp. 257-278.         [ Links ]

38Vaz-Pinto, Raquel – «A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen». In Relações Internacionais. N.º 23, Setembro de 2009, pp. 93-100.         [ Links ]