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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.41 Lisboa mar. 2014

 

RECENSÃO

Em Busca Das Fundações Intelectuais Do Renascimento Asiático

Luís Mah*

 

*É Investigador de pós-doutoramento no Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina (Cesa) do ISEG – Universidade de Lisboa. É doutorado em Estudos de Desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science (LSE) e tem como áreas de investigação: o papel do Estado nas economias emergentes e as relações económicas Ásia-África. E coautor com Enrique Martinez Galán (Banco Asiático de Desenvolvimento) do blogue «O Retorno da Asia».

 

Nos próximos quarenta anos, a opinião é quase unânime de que o centro da economia global se deslocará para a Ásia. Com mais de três mil milhões de pessoas a ver o seu rendimento crescer para níveis europeus, a região tornar-se-á responsável por metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Para muitos este novo cenário representa também uma nova ordem global. Mas há um facto que continua a ser conhecido por poucos. Até 1820 a Ásia, com a China à cabeça como nos mostra o trabalho de Angus Maddison, liderava de forma inequívoca a economia global1. Talvez os últimos quase dois séculos não tenham sido mais do que um «pequeno» acidente de percurso2. Mas o que esteve por detrás desse colapso económico da Ásia a partir de 1820? Impotentes perante a força militar e pressão comercial do imperialismo ocidental, e essencialmente europeu, do Egito à Turquia, passando pelo Médio Oriente até à Índia e China, as sociedades asiáticas entraram em crise profunda. Horrorizadas com a vulgaridade e materialismo dos «brancos bárbaros», as elites asiáticas viram-se obrigadas a repensar os seus sistemas políticos, económicos e sociais e a encontrar alternativas coerentes para fazer frente à humilhação causada pelas emergentes potências coloniais ocidentais. E hoje em dia, central às dinâmicas da política contemporânea asiática, mantêm-se os dilemas recorrentes do que se pode aceitar, adaptar ou rejeitar do chamado «Ocidente».

Em From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia, Pankaj Mishra oferece-nos uma história do imperialismo ocidental do século XX mas a partir dos olhares e vozes das suas vítimas na Ásia (que, para o escritor, compreende as fronteiras segundo a visão grega, i.e., com o mar Egeu a dividir a Ásia da Europa, e o Nilo como a fronteira entre a Ásia e a África). Neste livro original, ambicioso e desafiador, Mishra reflete sobre a forma como algumas das mentes intelectuais mais brilhantes da época no continente asiático tentaram responder à ameaça, sem precedentes, à existência, tradições e costumes das suas civilizações milenares. Mas talvez tão ou mais fascinante, o livro de Mishra revela também como foram destas mentes que saíram as fundações intelectuais que estão na base do atual renascimento do continente.

 

Crítica ao Eurocentrismo

Tal como Mishra nos diz na introdução: «para a maioria das pessoas na Europa e na América, a história do século XX é ainda largamente definida pelas duas guerras mundiais e o longo impasse nuclear com o comunismo soviético. Mas é agora claro que o evento central para a maioria da população mundial foi o despertar intelectual e político da Ásia e a emergência das ruínas de ambos os impérios asiático e europeu. Reconhecer isto é compreender o mundo não apenas como é hoje, mas também como é que está continuamente a ser refeito não tanto à imagem do Ocidente mas de acordo com as aspirações e desejos dos seus antigos súbditos» (p. 8).

Mishra, que escreve regularmente para publicações como o New Yorker, New York Times e London Review of Books, relembra-nos que a memória do imperialismo europeu permanece bem viva em muitas partes do mundo e que a subordinação da Ásia pela Europa não foi apenas económica, política e militar mas também intelectual, moral e espiritual e que as suas vítimas ainda mantêm feridas longe de estar saradas. Aqui, Mishra parece responder a um certo elogio académico das virtudes e feitos dos impérios europeus, especialmente o britânico. Ao contar as estórias de Jamal al-Din al-Afghani, Liang Qichao e Rabindranath Tagore, Mishra mostra a sua importância destes pensadores asiáticos para questionar este elogio porque nos diz como é que algumas vozes não ocidentais olhavam de forma muito preocupante para as bases intelectuais desta intrusão colonial e como estas se centravam numa nova hegemonia centrada em hierarquias de raças, religiões e civilizações.

Durante o outono de 2011, numa crítica no London Review of Books ao livro Civilização: O Ocidente e os Outros (Civilização Editora, 2012), de Niall Ferguson, Mishra não se mostrou rogado acusando implicitamente o famoso historiador britânico de ser racista nesta sua tentativa de explicar a supremacia «Ocidental» no princípio do século XX. Nas semanas que se seguiram, Ferguson ameaçou processar Mishra por calúnia, e a publicação britânica tornou-se um campo de batalha feroz entre os dois intelectuais3. Com este livro, Mishra parece clarificar a sua crítica a Ferguson afirmando que não pretende substituir nenhuma visão centrada na Europa ou Ocidente por uma outra não menos problemática centrada na Ásia. O que ele diz querer é antes «abrir múltiplas perspetivas sobre o passado e o presente, convencido de que as suposições sobre o poder ocidental – crescentemente insustentável – já não são mais pontos de vista de confiança e que podem até ser perigosamente enganadores» (p. 8).

 

Três Olhares Asiáticos

Mishra conta-nos a estória de três intelectuais impressionantes do continente asiático que através de um percurso de vida itinerante, reflexões e debates sem fim questionavam, por vezes em profunda agonia, entre muitas outras questões, o imperialismo, a reforma, a religião, a civilização, o progresso ou o nacionalismo. Numa vivência ambígua com o Ocidente, odiavam-no em simultâneo com a crença de que era necessário, em parte, aprender com o inimigo. E foram estes os pensadores que ultimamente influenciaram através das suas ideias poderosas, movimentos e indivíduos que estariam na génese do Partido Comunista Chinês, do nacionalismo indiano, egípcio e turco, da Revolução Iraniana ou da Irmandade Muçulmana. Todos eles lutaram para encontrar um caminho para a modernização política e económica sem se ficar completamente ocidental e como forma de evitar uma cidadania de segunda classe no novo mundo.

Embora os factos sobre as origens de Jamal al-Din al-Afghani (1838-1897) sejam escassos e obscuros, sabe-se que nasceu no Noroeste da Pérsia, estudou em Teerão e na Índia. Viajou pelo fragmentado mundo muçulmano dos seus dias à procura de formas de debilitar o domínio britânico e ajudar à modernização da região. Al-Afghani é conhecido como um dos símbolos maiores do pensamento pan-islâmico alimentado ao longo dos anos pelas ligações construídas com círculos intelectuais no Irão, Afeganistão, Índia, Rússia, Egito e Império Otomano. Se, por um lado, preocupado pela forma como os jovens muçulmanos estavam a perder as suas tradições, al-Afghani estimava o papel da religião, por outro, instigava também os muçulmanos a interessarem-se pela ciência moderna e política. O seu grande desafio era criar um islão reformado que se tornasse compatível com a abertura económica e política e que talvez se assemelhasse ao que se tenta construir hoje na Indonésia, Turquia ou Malásia. No entanto, nos seus últimos tempos, al-Afghani seguiu outra via, tal como muitos muçulmanos da atualidade, alienando-se do Ocidente e de sociedades altamente materialistas e afirmando que a única forma de se evitar a assimilação total passaria por abraçar uma fé mais radical. O seu grande legado foi ter usado, pela primeira vez, os conceitos «islão» e «Ocidente» como sendo violentamente opostos, embora nunca tenha incitado à violência terrorista.

Liang Qichao (1873-1929) representava todas as complexidades da reforma, renovação e transição na China durante o último período da dinastia Qing até ao início da República4. Nas palavras de Mishra, Liang foi o «primeiro e icónico intelectual da China moderna» e que através do seu jornal Novo Cidadão viria a inspirar futuras gerações de líderes chineses incluindo Chiang Kaishek e Mao Tsé-Tung. Originalmente um estudioso dos clássicos chineses e admirador de Confúcio, Liang viria a ser depois a primeira figura pública chinesa a argumentar que para que a China renascesse era preciso destruir totalmente a sua tradição cultural que considerava ser a responsável pela falta de progresso do país. Em seu lugar, através do seu jornal e influenciado fortemente pela linguagem do darwinismo social e do liberalismo ocidental, propunha a criação de uma nova consciência nacional e de um novo cidadão. E se Liang, nos primeiros tempos, acreditava que a democracia era um caminho crucial para o fortalecimento da nação chinesa, a sua viagem aos Estados Unidos acabou por levá-lo a mudar de opinião. Chocado com as desigualdades raciais e a corrupção política que presenciou, Liang passou a acreditar que a melhor forma de se alcançar um Estado mais forte e centralizado e que unisse o novo cidadão chinês seria uma autocracia benigna. O que talvez possa explicar o facto de Liang ser apontado como tendo influenciado fortemente o atual modelo de desenvolvimento chinês liderado por um partido único.

Finalmente, o terceiro intelectual, Rabindranath Tagore (1861-1941), foi o primeiro não europeu a ganhar o Nobel da Literatura em 1913, muito lido e conhecido pelo mundo ocidental, ao contrário de al-Afghani e Liang. Tagore tornou-se um dos mais clarividentes observadores e fortes críticos da europeização da Índia. O longo período que viveu no campo influenciou o seu pensamento e Tagore permaneceu convencido da superioridade moral da Índia pré-capitalista e industrial face à civilização mecanizada e que a regeneração espiritual do país teria que começar nas suas aldeias. Para Tagore, um crítico do nacionalismo, não havia razões para acreditar que construir nações à imagem do padrão europeu era o único de civilização e objetivo do homem.

Mishra examina ainda os percursos destes três intelectuais, tendo como pano de fundo dois períodos críticos da primeira metade do século XX. Primeiro, 1919 com a Conferência de Paz em Paris. Um evento que poderia ter redesenhado o sistema internacional de forma a torna-lo mais global e equitativo. Contudo, não só não se convidou a China para se sentar à mesa como se decidiu reter os impérios, renegociar o controlo de territórios e negar a autodeterminação de múltiplos países sob o jugo colonial. A atitude claramente racista dos organizadores da Conferência de Paz, diz Mishra, acabou por expor a hipocrisia do Ocidente aos olhos das populações asiáticas e o nacionalismo amargo que, esporadicamente, explode na China não pode ser dissociado da forma como o país foi tratado na altura.

O segundo período crítico, 1942, corresponde ao momento em que as forças militares japonesas invadiram e ocuparam grande parte da Ásia-Pacífico como um dos passos para cumprir a estratégia de criação de uma Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, que colocava o Japão no centro da região numa tentativa similar ao sistema tributário chinês dos séculos anteriores. Mas o que parecia ser uma forma benigna de império rapidamente deu lugar à exploração dos recursos naturais e das populações dos países ocupados (muitas vezes com o apoio de colaboradores locais), corroendo o espírito pan-asianista que o Japão tinha promovido como forma de expressão de solidariedade com o resto da Ásia5.

Para Mishra, o Japão desempenha um papel central nesta história complexa porque aos olhos de muitos asiáticos é não só o único país no continente que consegue escapar ao domínio ocidental mas também afirmar-se perante as potências coloniais ocidentais após a abertura do país forçada pela missão militar norte-americana liderada pelo almirante Perry em 1854 e a restauração Meiji de 1868. Depois de se ter modernizado rapidamente seguindo o modelo ocidental, o Japão veio chocar o mundo e animar os povos asiáticos subjugados ao afundar a marinha russa em Tsushima em 19056. A sua vitória na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) veio desafiar o poder colonial ocidental e branco e, como diz Mishra, «acelerar o processo irreversível da descolonização intelectual, ainda que não política» (p. 6). Esta última aconteceria, ironicamente, apenas com a derrota do Japão na II Guerra Mundial. No entanto, Mishra sugere, e de forma que não pode deixar de ser controversa tendo em conta os recentes conflitos com a China e Coreia do Sul, que, apesar dos abusos cometidos pelo Japão durante a guerra, este país foi crucial para «profundamente minar o poder europeu que mantinha os nativos num permanente estado de submissão» (p. 250). Para o escritor, ao ter exposto as fraquezas das potências coloniais europeias com as suas rápidas vitórias durante o conflito e depois de ter colocado elites locais em lugares de liderança, o Japão acabou por «involuntariamente ou deliberadamente» libertar o nacionalismo asiático do pós-guerra.

 

Por Uma Nova História Intelectual Mundial

Com este livro, Mishra lembra-nos que em tempos de grandes transformações políticas, económicas e sociais globais talvez seja tempo de refletir sobre a fraqueza das fundações da ordem mundial moderna. Porque decisões, principalmente territoriais, que foram tomadas após as duas guerras mundiais para combater a crise dos impérios e responder às exigências anticoloniais não foram seriamente refletidas e continuamos hoje a sofrer os seus efeitos. Este livro serve, pois, como uma excelente leitura de contextualização histórica para se desenvolver um verdadeiro diálogo sobre questões globais comuns da humanidade e que ultrapasse a narrativa obsoleta sobre distinções civilizacionais essenciais, opondo uma Ásia espiritual a um Ocidente material.

Tal narrativa é particularmente dominante nas discussões em torno, por exemplo, da «questão muçulmana/islâmica» ou da «ameaça chinesa»7. Mishra ajuda de forma brilhante a desmistificar a obsessão com a ameaça muçulmana ao nos dar a conhecer como as origens modernas das ideias pan-islâmicas coincidiram com desenvolvimentos intelectuais em sociedades não ocidentais também elas sofrendo a pressão colonial do «Ocidente». Desta forma, Mishra demonstra bem como é preciso uma nova história intelectual e internacional não eurocêntrica se quisermos ter uma conversa séria sobre os desafios globais contemporâneos.

No entanto, este livro estimulante acaba num tom sombrio com Mishra lamentando-se porque «não existe uma resposta universal convincente hoje em dia às ideias ocidentais sobre política e economia, apesar destas serem crescentemente perigosas e inadequadas em largas partes do mundo» (p. 306). Para o escritor, «muito do mundo “emergente” presta-se a repetir, numa escala ameaçadoramente larga, a própria experiência torturada e muitas vezes trágica do “desenvolvimento” moderno ocidental». E isto, conclui Mishra, «condena o ambiente global a uma destruição prematura e parece destinado a criar reservatórios de fúria niilista e de frustração entre centenas de milhões que nada têm – o resultado amargo do triunfo universal da modernidade ocidental que torna a vingança do Oriente em algo obscuramente ambíguo, e todas as suas vitórias verdadeiramente pírricas» (p. 310).

 

Notas

1Cf. Maddison, Angus – Chinese Economic Performance in the Long Run, Second Edition , Revised and Updated, 960-2030 AD. Development Studies Centre. Paris: OCDE, 2007.         [ Links ]

2Para uma nova histórica económica da reemergência asiática cf. Arrighi, Giovanni, Hamashita, Takeshi, e Selden, Mark (eds.) – The Resurgence of East Asia: 500, 150 and 50 year Perspectives. Oxon: Routledge, 2003.         [ Links ]

3Cf. Mishra, Pankaj – «Watch this man». In London Review of Books. Vol. 33, N.º 21, 3 de novembro, 2011. Disponível em: http://www.lrb.co.uk/v33/n21/pankaj-mishra/watch-this-man        [ Links ]

4Ver também Schell, Or ville, e Delury, John – Wealth and Power: China’s Long March to the Twenty-First Century. Nova York: Random House, 2013.         [ Links ]

5Cf. Saaler, Sven, e Szpilman, Christopher W. A. – «Pan-Asianism as an ideal of Asian identity and solidarity, 1850-Present». In The Asia-Pacific Journal. 9.17.1, 25 de abril de 2011. Disponível em: http://www.japanfocus.org/-Sven-Saaler/3519        [ Links ]

6Cf. Krebs, Gerhard – «World War Zero? New literature on the Russo-Japanese War 1904/1905». In The Asia-Pacific Journal.10.21.1, 21 de maio de 2012. Disponível em: http://japanfocus.org/Gerhard-Krebs/3755        [ Links ]

7Cf. Hirono, Miwa, e Suzuki, Shogo –«Why do we need ´Myth-Busting’in the-study of Sino-African relations?». In Journal of Contemporary China. 23:87, 2014.         [ Links ]