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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.41 Lisboa Mar. 2014

 

ELEIÇÕES EUROPEIAS 2014

As instituições da UE na ressaca de Lisboa, e da crise a quadratura do círculo

EU institutions in the aftermath of Lisbon, and the Crisis. Squaring the circle

António Goucha Soares*

 

* É Professor catedrático do ISEG, Universidade de Lisboa, onde é Professor Jean Monnet de Direito Comunitário e Presidente do Departamento de Ciências Sociais. Foi Visiting Professor na Brown University. Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutorado pelo Instituto Universitário Europeude Florença, é autor de diversos livros e artigos sobre direito comunitario e política europeia em publicações.

 

RESUMO

O Tratado de Lisboa definiu uma nova equação de poderes para o sistema político da União Europeia, através da chamada reforma das instituições. Todavia, o equilíbrio institucional previsto em Lisboa foi alterado em virtude da crise do euro, tendo o poder político no seio da União pendido para o lado dos governos nacionais. O maior protagonismo do Conselho Europeu na gestão da crise foi acompanhado por uma mudança nas relações de poder entre os estados-membros, com a afirmação de uma potência hegemónica, e de um grupo de países que tiraram dividendos políticos da gestão da crise. Neste contexto, se deverá também analisar o impacto que a crise teve no papel desempenhado pela Comissão no processo político da União, bem como a forma como aquela instituição interagiu com os novos equilíbrios gerados.

Palavras-chave: União Europeia, instituições, crise do euro, relações de poder

 

ABSTRACT

The Lisbon Treaty settled a new balance of power within the EU political process, through the so-called institutional reform. However, the Lisbon balance of power was changed by the Euro crisis, which saw the strengthening of member states’ influence within the Union. The greater role taken by the European Council on crisis management went along with a new balance of power between member states, with Germany acting as a hegemonic power, and a group of countries taking political benefits from the crisis. The article also focuses on how the Euro crisis impacted on the role of the Commission and how the institution interacted with the new balance of powers.

Keywords: European Union, institutions, Euro crisis, balance of powers

 

As eleições são o momento culminante da democracia em todo o sistema político. Através do voto os cidadãos são chamados a dar o seu aval à política realizada pelos seus representantes no período de governação cessante, confirmando os respetivos titulares, ou abrindo portas para a formação de novo grupo dirigente. A União Europeia (UE) – uma nova entidade política, com pouco mais de duas décadas – tem vindo a moldar o seu sistema de governo na cultura política comum dos estados-membros, conferindo importância crescente ao Parlamento Europeu no equilíbrio institucional de poderes. Todavia, a construção europeia é um processo conduzido pelos estados-membros, os quais dispõem não apenas sobre as regras do xadrez político da União, como tecem também pela sua atuação relações de poder que se vão estabelecendo entre diferentes países e atores políticos europeus.

Este artigo pretende fazer uma pequena reflexão sobre as alterações institucionais introduzidas pelo Tratado de Lisboa, o significado das eleições europeias no sistema político da União, a presidência da Comissão e a nova relação de forças que se estabeleceu entre os estados-membros de União na sequência da crise do euro.

 

Eleições Europeias

As eleições europeias de 2014 irão permitir concluir o ciclo de alterações institucionais realizado pelo Tratado de Lisboa. Como é sabido, o Tratado de Lisboa foi o expediente encontrado pelos estados-membros para recuperar o acervo da chamada Constituição Europeia. A Constituição Europeia resultou de um debate político promovido por um fórum alargado, visando completar o processo de criação da UE, estabelecida pelo Tratado de Maastricht, e dotá-la de um sistema institucional capaz de responder quer aos desafios do alargamento a leste, quer às exigências de reforço de legitimidade política e maior democraticidade de funcionamento decorrentes da transformação operada na natureza do processo de cons trução europeia.

A Constituição Europeia terá sido a síntese possível de um arrastado debate político europeu que se foi realizando ao longo das conferências intergovernamentais da década de 1990, da afirmação da posição das potências europeias na sequência do discurso do ministro dos Negócios Estrangeiros alemão Fischer, e no decurso da chamada Convenção europeia.

De entre as novidades da Constituição Europeia resultou um pacote de reforma das instituições visando reforçar a eficiência do funcionamento político da União, bem como melhorar a sua legitimidade aos olhos dos cidadãos. O conjunto de alterações ao processo político da União foi considerado como o ponto de encontro das várias posições dos estados-membros sobre o futuro da Europa, com o intuito de assegurar novo fôlego à política da União no século xxi.

Por tais motivos, e na impossibilidade da entrada em vigor da Constituição Europeia em virtude da sua rejeição nos referendos de 2005, os estados-membros deram prioridade ao resgate do acervo constitucional. Após um demorado período de reflexão, foi assinado o Tratado de Lisboa no final de 2007, o qual recuperou o grosso das inovações da malograda Constituição, sendo que reproduziu na íntegra o chamado pacote institucional.

Apesar do expediente encontrado para recuperar o conteúdo da Constituição, contornando a realização de referendos nos países que a haviam recusado, não foi possível evitar a realização de consulta popular para ratificação do novo tratado na Irlanda, cujo resultado foi negativo. Após as costumeiras negociações usadas no trato com países periféricos para conter os danos do voto popular, foi realizado novo referendo naquele Estado-membro, o qual permitiu a entrada em vigor do Tratado de Lisboa no final de 2009. Por isso, as eleições do próximo maio serão o primeiro ato eleitoral da União realizado após a entrada em vigor do pacote de reformas institucionais introduzido pelo Tratado de Lisboa.

Tendo em conta o tempo entretanto decorrido desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, e as modificações entretanto operadas no funcionamento do processo político da União, as eleições europeias de 2014 irão assim permitir completar o quadro de mutações institucionais ambicionado pela Constituição Europeia.

Nos termos das alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa, o Parlamento Europeu (PE) terá sido a instituição mais beneficiada no quadro do equilíbrio de poderes da ue. Com efeito, o pe passou a exercer o poder legislativo da União em conjunto com o Conselho, o que acarretou um alargamento considerável do chamado processo de codecisão. Acresce que a função orçamental passou também a ser partilhada entre o PE e o Conselho. Pelo que, em termos do exercício dos poderes legislativo e orçamental, o PE passou a ser uma instituição com elevado protagonismo, desde o final de 2009. O único poder introduzido pelo Tratado de Lisboa que o PE ainda não teve oportunidade de exercer de pleno respeita ao processo de nomeação da Comissão, em particular, à eleição do seu presidente. Com efeito, o Tratado de Lisboa consagrou a solução que havia sido afirmada pela Constituição, a qual previa que o PE elegia o presidente da Comissão, tendo em conta os resultados das eleições europeias.

Sendo as eleições de 2014 as primeiras que serão realizadas após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o PE irá ter oportunidade de inaugurar esta nova prerrogativa. A ideia subjacente seria conferir aos cidadãos a oportunidade de terem influência direta na escolha do presidente da Comissão, à semelhança do voto para as eleições legislativas nacionais onde decidem sobre quem será o próximo chefe de governo do país. Logo, o propósito de reforçar a legitimidade política do presidente da Comissão. Estaria, ainda, implícita nesta alteração o propósito de fazer os cidadãos compreenderem a utilidade do voto para o PE, no sentido de deixarem de olhar para este ato como eleições de segunda categoria, porque destituídas de consequência política imediata. Para além da arquitetura constitucional definida pelo Tratado de Lisboa, que pretendia completar o modelo de democracia parlamentar no sistema político da UE, interessa analisar o impacto que as alterações introduzidas por aquele tratado tiveram no funcionamento do processo político europeu.

 

Corpo Quebrado

Decorreram mais de quatro anos desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Nesse período, a Europa foi atravessada por um violento abalo sísmico, a crise do euro, que tudo ia deitando a perder. Por diversas ocasiões, ao longo dos últimos anos se receou que o agudizar da crise do euro pudesse levar ao final da moeda única e, em consequência, se degradassem as relações entre estados-membros ao ponto de fazer perigar todo o processo de construção europeia.

A fragilidade da construção europeia nunca havia sido testada com tamanha crueza como no último quadriénio, com o espetro da reversibilidade do processo de integração pairando sobre todo o continente. Entre a primavera do ano dez e o verão de doze – quando o presidente Draghi finalmente afirmou que o Banco Central Europeu estaria disposto a tudo fazer para salvar o euro – a ue viveu num carrossel de emoções, e aflições.

Os anos loucos da crise do euro forneceram uma pista de ensaio privilegiada para testar as reformas institucionais da ue introduzidas pelo Tratado de Lisboa que, como se referiu, pretendiam aumentar a eficiência do processo de decisão e reforçar a legitimidade democrática do funcionamento da União.

Como se viu, nos termos do Tratado de Lisboa, o PE elege o presidente da Comissão, tendo em conta os resultados das eleições europeias. Sendo embora um órgão colegial, compete ao presidente definir a orientação política da, Comissão. Pelo que o presidente da Comissão não é um membro entre iguais no seio do Colé-gio dos Comissários. Através das alterações realizadas nos tratados desde Maastricht, o presidente da Comissão conheceu um reforço do seu estatuto político no sentido de o tornar no chefe do Colégio dos Comissários. Com efeito, para além de lhe competir traçar a direção política da instituição, cabe também proceder à distribuição dos pelouros entre os membros do Colégio, nomear os vice-presidentes e solicitar a demissão dos comissários. Tendo em conta o papel da Comissão no sistema político da União, resulta evidente a importância da figura do presidente da Comissão, como líder incontestável da instituição. Pelo que a eleição do presidente da Comissão deveria ser um momento maior no processo político da União.

Será interessante recordar que a Comissão teve onze presidentes, desde a sua criação pelo Tratado de Roma de 1957. Curiosamente, de entre os onze presidentes apenas dois foram originários de países não fundadores da Comunidade Europeia (CE): o britânico Roy Jenkins, eleito em 1977; e Durão Barroso, eleito em 2004. Os demais presidentes eram todos provenientes do núcleo duro de estados-membros da CE, sendo que houve dois presidentes originários de Itália (Malfatti, 1970; Prodi, 1999), de França (Xavier-Ortoli, 1973; Delors, 1985) e do Luxemburgo (Thorn, 1981; Santer, 1995); um presidente com nacionalidade alemã (Hallstein, 1957) e um outro holandês (Mansholt, 1972). Sintomaticamente, os candidatos anunciados pelos principais partidos europeus ao lugar de presidente da Comissão – no quadro das eleições europeias de 2014 – são originários do Luxemburgo e da Alemanha. Pelo que a presidência da Comissão parece ser um cargo fadado para os países fundadores da integração europeia – ou seja, aqueles que teriam um compromisso excelso com a construção europeia – em cujo exercício se intrometeu apenas um presidente originário de uma grande potência – o Reino Unido – e um outsider proveniente de um país periférico – Portugal.

Quanto a este último particular, se a ue houver de resistir aos desafios do novo século, existirá uma probabilidade elevada de nenhum outro cidadão português atingir a presidência da Comissão, atenta quer a posição privilegiada do grupo de países fundadores da integração, quer o crescente número de estados-membros.

Por outro lado, e ainda em termos formais, apenas três presidentes da Comissão conseguiram ser reeleitos para um segundo mandato: o alemão Hallstein, o francês Delors e o português Barroso. Assim, de entre aqueles que conseguiram renovar o seu mandato na chefia da Comissão estão dois presidentes originários do eixo franco-alemão, no qual repousa a gestação do próprio processo de integração, bem como a sua condução ao longo do tempo. Terão sido esses, aliás, os presidentes que deixaram uma marca mais profunda na liderança da Comissão.

Walter Hallstein foi o primeiro presidente da Comissão – na altura, apenas Comissão da Comunidade Económica Europeia – tendo antes sido representante da RFA nas negociações que conduziram à assinatura do Tratado de Roma. Como presidente da Comissão pretendeu imprimir um cunho vincadamente político à instituição, tentando que funcionasse à imagem de um verdadeiro governo europeu. O seu protagonismo como putativo chefe do executivo europeu – não dispensando sequer a pompa protocolar da função – ao qual se juntou o intento de conferir novos poderes ao pe na vertente orçamental, levou a um confronto de vulto com o Presidente De Gaulle. Na sequência desse conflito – que no fundo refletia a clivagem existente entre uma visão federal da Comunidade, defendida por Hallstein, e a perspetiva mais intergovernamental do processo de integração europeia do velho herói da Resistência1– a França abandonaria as reuniões do Conselho, e do Coreper, originando a chamada «crise da cadeira vazia». Em todo o caso, tal não terá obstado a que a presidência de Hallstein seja recordada como o período em que a Comissão se afirmou como instituição política, não se confinando à função de mero órgão de apoio técnico ao funcionamento da Comunidade Europeia, de um vulgar secretariado.

A crise da cadeira vazia prolongou-se por mais de um semestre, tendo sido superada com o chamado «compromisso do Luxemburgo», que trouxe a França de volta às reuniões do Conselho. A contrapartida exigida consistiu em permitir que nos assuntos em que estivessem em causa interesses vitais do país, as negociações se prolongassem até que uma solução consensual fosse encontrada. A prática que se seguiu a este compromisso, adotado em janeiro de 1966, determinou que os estados-membros estendessem a regra da unanimidade no processo de decisão do Conselho, tornando-se no modo normal de deliberação. Como se compreenderá, o consenso de todos os países na tomada de decisões representava um retrocesso no sistema político da Comunidade Europeia, o qual previa a passagem progressiva ao voto maioritário. Para além disso, dificultava a aprovação de novas medidas comunitárias. Situação que se agravaria com o alargamento a novos países, desde logo com a entrada do Reino Unido. Por estes motivos, o período que se seguiu à crise da cadeira vazia, e se prolongou por quase duas décadas, ficou conhecido por euro esclerose.

Em paralelo com o recuo intergovernamental no processo de decisão, a Comissão iniciou também uma longa travessia no deserto, com lideranças caracterizadas por presidentes de fraco perfil político. A exceção terá sido o inglês Roy Jenkins, eleito presidente em 1997, que foi o grande impulsionador do projeto para um sistema monetário europeu. Todavia, o facto de ser um destacado dirigente do Partido Trabalhista britânico valeu-lhe a oposição da senhora Thatcher para a aguardada renovação do seu mandato. Seria com o início do consulado Delors que a Comunidade Europeia entraria numa fase de relançamento. A estratégia da conclusão do mercado interno por si apresentada permitiu granjear um renovado entusiasmo dos estados-membros e do mundo empresarial. Para concretizar o grande mercado, Delors convenceu os estados da necessidade de proceder a uma revisão do Tratado de Roma, tendo em vista agilizar o processo de decisão.

Com o regresso ao voto maioritário, e a queda em desuso do compromisso do Luxemburgo, a Comunidade Europeia ganhou uma nova dinâmica que permitiu ao presidente Delors afirmar-se como grande protagonista da integração europeia, para além de que a Comissão pudesse ser tida como instituição política fundamental no processo comunitário. Na verdade, Delors ficaria associado não apenas ao mercado interno, como também ao projeto da moeda única, sendo que teve ainda um papel determinante no enquadramento do processo de reunificação alemã pela Comunidade Europeia, bem como na convocatória das conferências intergovernamentais de que resultaria a União Europeia. Jacques Delors terá sido, porventura, o presidente da Comissão que maior influência teve na construção europeia.

Os sucessores de Delors na presidência da Comissão seriam, por força, vítimas do seu protagonismo. Em particular, o presidente Santer, que lhe seguiu. De referir que Santer teve que lidar com as alterações do Tratado de Maastricht, que modificaram o equilíbrio institucional de poderes a favor do Parlamento Europeu, em detrimento do papel da Comissão. Para além disso, Jacques Santer herdou uma máquina burocrática pesada - um legado da estratégia expansionista da década de Delors – com redes tentaculares de poder, forte arrogância, e baixos níveis de responsabilização política. Terão sido tais aspetos que pesaram no relatório de peritos independentes apresentado em 1999, e que precipitaram a sua demissão, para evitar a aprovação de uma moção de censura pelo Parlamento Europeu2.

Romano Prodi, eleito presidente da Comissão em 1999, tentou melhorar a situação encontrada, tendo tido maior influência na escolha dos membros do Colégio de Comissários – em resultado dos poderes entretanto conferidos pelo Tratado de Amesterdão – com a preocupação de conseguir uma formação dotada de alto nível técnico. Todavia, o facto de nunca se ter afastado de forma completa dos desenvolvimentos da política italiana, de não ter conseguido impor uma orientação clara na estratégia política da Comissão – como se tornou evidente no decurso da convenção europeia que preparou um projeto de Constituição para a Europa – e, sobretudo, por não ter conseguido romper a barreira da comunicação política, ainda mais exigente em outros idiomas, acabou por enfraquecer o desempenho do seu mandato. Este último aspeto tem sido o mais enfatizado na apreciação da presidência Prodi3.

Por isso, os estados-membros procuraram que o seu sucessor tivesse características distintas. Falhada a escolha inicial do eixo franco-alemão, que recaía no antigo primeiro-ministro belga Verhosdadt – em virtude do veto britânico que o considerava federalista, e de quem guardava ressentimento por causa da posição sobre a invasão anglo-ameri-cana do Iraque – a solução de recurso apontou para um primeiro-ministro no exercício de funções.

Durão Barroso, com um domínio irrepreensível da língua francesa e cuja auréola de comunicador remontava aos bancos da faculdade, teria contudo uma estreia acidentada, marcada pelo incidente parlamentar em torno da nomeação do comissário Buttiglione. A investidura do primeiro mandato do seu colégio seria concluída com um recuo perante a afirmação crescente do Parlamento Europeu. Este episódio, aliado à crise dos referendos sobre a Constituição Europeia em 2005, inibiu Barroso de mostrar iniciativa na agenda política europeia.

Na verdade, o seu primeiro mandato ficaria assinalado por um apagamento da Comissão perante a hegemonia crescente dos estados-membros dominantes, parecendo mais preocupado em não afrontar o poder dos grandes países, de modo a não comprometer o seu objetivo político particular – a reeleição para um segundo mandato. Tal propósito não terá estado ausente no pensamento de Barroso, por certo. Como se referiu, na liderança da Comissão apenas o alemão Hallstein e o francês Delors lograram a reeleição para um segundo período presidencial. Talvez por isso, Barroso conduziu o seu primeiro mandato com a preocupação de não alienar o apoio dos estados-membros para o que seria a recondução inédita de um dirigente oriundo de um país periférico. Sendo certo que o próprio governo socialista do seu país natal não hesitaria em o apoiar no momento da reeleição.

O Tratado de Lisboa entrou em vigor no final de 2009, escasso tempo decorrido sobre a investidura da segunda comissão Barroso. Como se viu, no pacote institucional reproduzido pelo Tratado de Lisboa, o Parlamento Europeu conheceu um acréscimo de poderes, que seria suposto aprofundar a natureza democrática do processo político da União. Como contrapartida, o poder dos estados-membros foi reforçado através da consagração de uma nova instituição – o Conselho Europeu – dotada de um presidente exercendo funções a tempo inteiro.

Donde resulta que no triângulo político Comissão – Parlamento Europeu – Conselho, se procedeu ao reforço de poderes dos dois últimos órgãos, situação que terá enfraquecido o papel da Comissão no equilíbrio institucional de poderes da União. Por outro lado, a criação de um segundo presidente da União em regime permanente condicionou o protagonismo único do presidente da Comissão, na sua atuação a nível dos chefes de governo dos estados-membros.

Foi neste contexto peculiar que a crise do euro rebentou, no início de 2010. Por um lado, um presidente da Comissão que havia exercido um primeiro mandato de forma discreta, assinalado por escassa iniciativa política, e acomodado aos interesses dos países mais poderosos com o fito de garantir a sua reeleição. Por outro, uma reforma das instituições que entrou em vigor no início do segundo mandato de Barroso, marcada por um reforço dos poderes do Parlamento Europeu e dos estados-membros, assim como a criação de uma nova figura política para sombrear o papel do presidente da Comissão.

Para além dos juízos de valor que se possam fazer sobre o bem fundado da gestão da crise do euro, certo é que a resposta da União foi centralizada no Conselho Europeu. A realização de um número insólito de cimeiras de chefes de governo na fase inicial – cerca de 20 cimeiras nos primeiros trinta meses – é eloquente no que à condução direta do processo político pelo Conselho Europeu diz respeito. Acresce que as sessões do Conselho Europeu foram dominadas, num primeiro momento, por um diretório político de facto franco-alemão, com o Presidente Sarkozy e a chanceler Merkel a concertarem soluções prévias, que seriam apresentadas para simples concordância dos seus homólogos dos outros estados-membros.

Sendo certo que Merkel foi ganhando clara ascendência sobre Sarkozy no decurso da crise do euro, tendo-se tornado a figura dominante de todo o processo de gestão da crise, mostrando ser capaz de impor as suas preferências e determinar os limites das concessões que estaria disposta a aceitar. A adoção do Pacto Orçamental ou a recusa da criação das chamadas euro bonds são exemplos expressivos da primazia alemã na gestão da crise da moeda única. Logo, em termos institucionais a crise do euro terá sido não apenas a oportunidade para uma derrapagem intergovernamental do processo político da União – em detrimento das instituições supranacionais como a Comissão – mas também para a afirmação de uma hegemonia germânica no seio do Conselho Europeu.

Importará recordar que a abordagem da União da crise do euro foi sendo construída no pressuposto de que a mesma havia resultado apenas da irresponsabilidade orçamental dos países afetados. Ou seja, a crise que afetava a moeda única devia-se à violação continuada das normas do Pacto de Estabilidade pelos países da periferia da zona euro. Mesmo quando se tornou claro que a crise das dívidas soberanas na Grécia e depois na Irlanda estava a produzir um efeito de contágio sobre outros países da moeda única, o qual estaria a ser explorado por especuladores que aproveitavam das vulnerabilidades estruturais da união monetária, a Alemanha e os países próximos mantiveram sempre a tónica da sua resposta na responsabilidade individual dos países afetados. Ou seja, seriam estes países que teriam de suportar por inteiro os custos de ajustamento necessários.

Martin Feldstein, considerado um dos economistas mais influentes em todo o mundo, alertou na década de 1990 que a criação da moeda única poderia provocar efeitos opostos àqueles para que havia sido adotada, podendo ser fonte de conflitos entre países europeus4. Em plena crise do euro, Feldstein apontava os desequilíbrios comerciais europeus entre as causas maiores dos problemas que se haviam criado no seio da união monetária, referindo que o montante do excedente comercial da Alemanha em 2011 era equivalente à soma dos défices comerciais dos países da zona euro5.

Interessará recordar que, durante anos, os estudos técnicos da Comissão haviam chamado a atenção para os desequilíbrios macroeconómicos existentes no seio da zona euro. Por isso, a Comissão estaria bem colocada para ter uma visão global dos problemas que afetavam a moeda única. Todavia, desde o início da crise das dívidas soberanas que a Comissão foi incapaz de apresentar uma compreensão da crise do euro diferente daquela imposta pela Alemanha.

Se a Alemanha tinha uma perspetiva da crise da moeda única determinada pela recusa em partilhar os custos de ajustamento dos países afetado6, o que numa lógica de contraposição de interesses nacionais no limite se poderia ainda entender, a Comissão, enquanto instituição encarregue de promover o interesse geral da União, não poderia anuir a uma narrativa determinada por motivos de pura conveniência política da chanceler germânica. Sob pena de ter de se acomodar à terapia que o diagnóstico alemão implicava.

É estranho que a Comissão tenha esposado a perspetiva da Alemanha sobre as razões da crise do euro. Que o tivesse feito no momento inicial, em que a situação afetava apenas a Grécia, teria sido ainda admissível. Mas que tenha mantido a mesma posição sobre os motivos da crise quando esta alastrou à Irlanda, seguida de Portugal, ameaçando de modo sério contagiar a Espanha e a Itália, parece menos aceitável. Sobretudo, porque a Comissão vinha de há muito seguindo a economia dos diferentes países da zona euro, por ser uma instituição apetrechada com competências várias, pelo que se presume pudesse ter uma visão abran-gente das grandes tendências que influen-ciam o comportamento dos mercados internacionais.

Por isso, a aceitação sem reservas que a Comissão fez da posição alemã sobre a crise do euro é reveladora da sua fragili-dade, na medida em que não esboçou qual-quer sinal de contestação perante uma tese que tinha como motivação principal fazer recair apenas sobre os países afetados pelo aumento dos juros da dívida pública um encargo que seria reportável a custos de ajustamento relacionados com deficiências estruturais da própria união monetária. Não terá sido, por certo, um momento de defesa aguerrida do interesse geral da União. Apesar de ter recusado apresentar uma compreensão sistémica própria da crise do euro, tendo alinhado com a posição preconizada pelos países mais fortes da união monetária, a Comissão teve um papel de relevo no processo de ajustamento dos países atingidos pela crise. Como é sabido, esses países viram-se obrigados a pedir auxílio financeiro internacional, o qual foi prestado pelos estados-membros, bem como pelo Fundo Monetário Internacional. As negociações em vista da celebração de programas de financiamento entre credores e beneficiários da ajuda foi confiada a um conjunto de instituições, composta pela Comissão, Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional – a chamada troika.

As funções da troika prolongam-se por todo o período de duração do financiamento externo, cabendo-lhe proceder a exames trimestrais de supervisão do cumprimento das condições estipuladas nos programas de ajustamento. Em função de uma avaliação positiva, a troika liberta a tranche sucessiva do montante global em que se desdobra o financiamento concedido a cada um dos países resgatados.

Todavia, a Comissão participa na troika na qualidade de agente dos estados-membros que providenciaram o programa de financiamento. Portanto, a Comissão não fiscaliza a implementação das medidas de ajustamento nos países intervencionados na qualidade de instituição independente. A Comissão atua por conta de terceiros, os estados-mem-bros da zona euro que participam na ajuda financeira aos países resgatados7. Tal posição decorre do facto de os instrumentos criados para a prestação de auxílio financeiro aos países da zona euro se situarem fora do âmbito dos tratados da União Europeia. Logo, a Comissão age com um estatuto inédito, na medida em que a sua participação na troika não é feita enquanto instituição independente da União. Pelo contrário, a Comissão como que se encontra numa posição de relativa subalternidade no confronto dos países credores, atuando por conta destes últimos. Assim, o papel da Comissão na troika é mais próximo de um secretariado técnico dos países credores, do que da função que desempenha no processo político da União. Não obstante o facto de os países assistidos terem sido objeto de financiamento externo, por ter sido posta em causa a sobrevivência do núcleo duro dos tratados da ue – a moeda única.

Para além da insólita situação de submissão em que se encontram os países resgatados, certo é que a Comissão se resignou à perspetiva imposta pela Alemanha e seus parceiros para a gestão da crise do euro, tendo-se acomodado ao desempenho de uma missão no âmbito dos programas de financiamento a estados-membros da zona euro que contrasta com a natureza de instituição independente no sistema político da ue.

 

Nova Relação De Forças

O Conselho Europeu foi, como se referiu, outra instituição favorecida pelas alterações do Tratado de Lisboa. A melhoria da posição do Conselho Europeu, que reúne os chefes de Governo de todos os países, no processo político da União representa um acréscimo de intergovernamentalidade no funcionamento institucional. Todavia, no plano conceptual o acentuar do poder dos estados-membros seria compensado pelo incremento de poderes conferidos ao pe, nos termos acima mencionados. Logo, as duas legitimidades em que se funda a União beneficiariam de um aumento da sua posição relativa no seio do sistema político da União. Acreditava-se que essa situação não afetaria o equilíbrio global de poderes no seio da União, em termos das lógicas subjacen-tes ao seu funcionamento, i.e., a lógica intergovernamental a que se contrapõe aquela supranacional.

Como se viu, o período subsequente à entrada em vigor do Tratado de Lisboa foi marcado pela erupção da crise da dívida soberana, que volveria em crise do sistema euro com o passar do tempo. Desde então, assistiu-se à proeminência do Conselho Europeu no processo político da União. O Parlamento Europeu tem sido um ator secundário no que à gestão da crise do euro diz respeito, não conseguindo desempenhar papel de relevo ao longo de toda a crise. De alguma forma, o Parlamento

Europeu terá sido mesmo outra das vítimas maiores da crise do euro, de par com os paí-ses com problemas de tesouraria, tendo não apenas sido incapaz de mostrar protago-nismo político como instituição supranacio-nal da ue, como tendo mesmo desaparecido do radar mediático.

Logo, o Conselho Europeu desfez o equilíbrio político que resultava das alterações institucionais introduzidas pelo Tratado de Lisboa, a seu favor. Na equação subjacente ao pacote de reforma das instituições estabelecido no âmbito da Constituição, e repristinado pelo Tratado de Lisboa, o elemento intergovernamental ganhou terreno de facto à vertente supranacional, reduzindo o espaço de manobra desta última. Assim, a ue sairá desta crise como uma entidade com um perfil mais intergovernamental de quando a mesma se iniciou, onde se acreditava piamente na manutenção dos equilíbrios políticos acordados ao tempo da Constituição Europeia.

Dizendo de outro modo: no papel, o Tratado de Lisboa, embora aumentasse a importância de duas instituições – Conselho Europeu e Parlamento Europeu –, mantinha o equilíbrio global de poderes entre instituições supranacionais e instituições que representam os interesses dos governos nacionais; na prática, o Conselho Europeu ocupou o palco central do processo político da União, relegando as instituições políticas supranacionais para plano secundário.

Para além da saliência do Conselho Europeu em resultado da crise do euro, que vai de par com o apagamento do Parlamento Europeu, a crise mudou também as relações de poder existentes no seio do próprio Conselho Europeu.

Na verdade, sendo o Conselho Europeu a entidade maior para a representação dos estados, é natural que as relações de poder inerentes ao funcionamento desta instituição projetem os equilíbrios que se vão construindo entre os diferentes países europeus. No início do processo de integração, as relações entre países tinham como ponto car-deal o chamado eixo franco-alemão. Desde logo, porque a ratio da construção europeia assentava na necessidade de apagar o passado belicoso que marcara o relacionamento entre essas duas potências.

Em virtude de a Alemanha ter saído da guerra numa situação de menoridade, coube à França assumir a liderança política da integração europeia, tendo a República Federal centrado os seus objetivos na reconstrução da economia, em particular, na reanimação do seu tecido industrial e no reabilitar da sua capacidade exportadora. Para além de que olhava para a Comunidade Europeia como veículo apropriado para conseguir o grande objetivo estratégico de longo prazo – a reunificação nacional.

A criação da ue, na sequência da reunificação alemã, foi realizada numa situação de quase paridade entre as duas nações fundadoras, se bem que a França ainda conseguisse ter mais protagonismo político. Todavia, o Tratado de Maastricht foi celebrado na base de uma permuta entre aqueles dois países nos termos da qual a França aceitava uma Alemanha maior, e por isso mais poderosa, se esta última abdicasse de algo em troca – a sua moeda nacional.

Os tratados seguintes registaram a pretensão de a Alemanha ser reconhecida como a maior potência no processo político da União. Em particular, na negociação do Tratado de Nice houve uma forte contenda franco-alemã sobre o peso da nova Alemanha. Essa questão seria resolvida pela Constituição, através de um expediente que reconhecia expressão política superior à Alemanha uni-ficada, contornando as exigências francesas de paridade absoluta.

Convirá recordar, todavia, que representação nacional dos grandes países na ue, e liderança política do processo de integração pelas grandes potências, são conceitos distintos. Na verdade, a crise do euro foi o cenário que viu a Alemanha emergir como potência hegemónica incontestável da UE8. A assunção da liderança pela Alemanha ocorreu num momento em que os tratados lhe tinham reconhecido maior peso no funcionamento do processo político da União, por comparação com as outras potências. Na perspetiva germânica, a crise do euro atingiu o cerne da integração europeia: a política monetária. Recorde-se que a Alemanha dominava de forma incontrastada a política monetária europeia, desde o início da década de 1970. Porventura, não teria havido nunca moeda única, se não tivesse acontecido a reunificação alemã. Tendo o objetivo da moeda única resultado de uma imposição europeia, a Alemanha tratou de moldar a construção do euro à imagem do marco alemão, blindando quaisquer veleidades da futura política monetária europeia se afastar da homóloga política germânica. Por isso, quando a crise do euro emergiu a Alemanha não hesitou em assumir o controlo do processo político. A atitude europeia teria de ser formada com base na perspetiva alemã, consagrada vinte anos antes no dispositivo do Tratado de Maastricht, e completada no Pacto de Estabilidade.

Por outro lado, a afirmação incontroversa da Alemanha na liderança da ue terá sido facilitada pela ausência das grandes potências na gestão da crise. A França teve algum protagonismo durante o primeiro ano da crise do euro, tentando temperar a intransigência das soluções germânicas, para mais tarde se acomodar à orientação de Merkel. O Reino Unido entrou em fase de autoanulação no quadro do processo europeu, preferindo a via do alheamento. A Itália terá sido vítima de um vinténio político que diminui a sua credibilidade aos olhos dos parceiros da União, tendo estado ainda debaixo da mira dos mercados financeiros. Pelo que a hegemonia alemã foi, também, uma liderança alcançada por defeito: em resultado da desistência de uns, da demissão de alguns, ou ainda do desmoronar de outros.

A inflexibilidade germânica na resposta à crise do euro foi seguida por um pequeno grupo de países que comungam das preocupações da Alemanha em sede de política monetária. Depois de alguma hesitação inicial, a Alemanha e esses estados concederam que fosse prestado auxílio aos países em dificuldade, em troco de maior controlo europeu sobre as finanças públicas dos países da zona euro. Acresce, ainda, que acederam em prestar ajuda financeira aos países que deparavam com problemas de tesouraria, mediante severas condições impostas pelos chamados programas de ajustamento.

Assim, no seio da zona euro formou-se um grupo de países liderado pela Alemanha que determinou a resposta política à crise do euro. Para além disso, e tendo em conta a natureza intergovernamental dos fundos europeus de resgaste, esses países entenderam a sua posição de credores dos programas de financiamento de modo algo perverso, aproveitando o mecanismo da condicionalidade para subverter as relações de poder entre os estados da União.

Com efeito, a crise do euro veio estabelecer uma nova clivagem entre os membros da ue: países credores, de um lado; países devedores do outro9. Na medida em que os primeiros tomaram parte nos empréstimos concedidos aos segundos, aproveitaram para impor mecanismos contratuais que interferem com aspetos centrais da governação dos devedores, em particular, nos domínios das políticas económica e orçamental.

Donde, a gestão da crise do euro ter aberto caminho para uma alteração das relações de força existentes entre os diferentes países da União. No grupo dos países grandes, a Alemanha sobressaiu na liderança do processo político, afirmando-se de forma incontestada como potência dominante. A nível dos estados médios e pequenos, a situação também conheceu uma mutação relevante, com os países que tomaram parte na montagem dos programas de financiamento a cobrar um custo político que acresceu ao preço do crédito concedido, qual seja, ter a possibilidade de determinar as grandes linhas da política económica e orçamental dos estados assistidos.

A quadratura do círculo na alteração das relações de poder ocorrida na sequência da crise do euro tende a ser completada pela forma como o grupo de países beneficiários da nova situação implementou a posição de vantagem política conseguida por via dos programas de financiamento aos estados com problemas de tesouraria. Com efeito, a negociação dos programas de assistência que impunham medidas de ajustamento draconianas aos países assistidos, bem como, e sobretudo, a supervisão continuada da aplicação dessas condições foi conferida, em regime de outsourcing político, a uma instituição basilar da União – a Comissão – a qual agiria em ligação com o Banco Central Europeu.

Como se referiu, a Comissão não integrou a troika ao abrigo do seu estatuto político de instituição independente, a quem compete a função de guardiã dos tratados e que tem como propósito principal promover o interesse geral da União. A entrada da Comissão na troika relevou antes de uma missão que lhe foi confiada pelos fundos de resgate. Atenta a natureza destes veículos europeus de financiamento, a Comissão atua por conta das partes signatárias do capital disponibilizado no âmbito de tais instrumentos. Assim, a ideia que levou à participação da Comissão na troika poderia até servir de cobertura inteligente para uma operação de mutação dos equilíbrios de poder entre os países da União. Na verdade, a Comissão dispõe de um assinalável património político de independência em relação aos interesses dos estados-membros. Como é sabido, nos momentos mais delicados da integração europeia, a Comissão pretendeu sempre contrariar o poder dos países mais poderosos, assumindo por norma a defesa dos estados mais frágeis.

O que será, porventura, inédito no historial da construção europeia é ter a Comissão a agir como longa manus de um grupo de países que conseguiu alterar a relação de forças existente entre os estados-membros, liderado pela Alemanha, sendo certo que a sua missão no terreno teve consequências de monta ao nível da autonomia política dos países assistidos, e provocou estragos profundos no tecido social dessas nações.

 

Conclusão

O equilíbrio institucional de poderes introduzido pelo Tratado de Lisboa – que era suposto durar pelo período de uma geração – não resistiu à voragem política ocorrida na União na sequência da crise do euro. Com efeito, no período que se seguiu à emergência da crise o Conselho Europeu afirmou a sua ascendência sobre o processo político da União, de forma irrefutável. Por outro lado, a crise redesenhou as relações de poder entre os estados-membros, permitindo a emergência de uma potência hegemónica, secundada por um pequeno grupo de países.

Sendo a crise do euro uma crise que teve por base as insuficiências da união monetária, a atuação do grupo de países que retiraram mais proveitos da circulação do euro contribuiu para a criação de nova clivagem no seio dos estados-membros, entre beneficiários da moeda única – os quais acumularam excedentes – e países que enfrentaram dificuldades financeiras que os levariam a solicitar auxílio internacional. A divisão entre países credores e devedores no âmbito da zona euro está na base da nova relação de forças estabelecida entre os estados-membros.

Com efeito, o modo de gestão seguido durante a crise do euro permitiu que os países beneficiados com a moeda única adquirissem também uma situação mais favorável no processo político da União, tendo capacidade para determinar as grandes linhas de orientação dos países assistidos. Assim, os novos alinhamentos políticos instituídos no rescaldo da crise do euro foram realizados com base nas relações de poder económico entre os diferentes estados-membros.

Para além da entropia no relacionamento entre estados-membros que esta clivagem provocou, os países que dirigiram a gestão da crise do euro fizeram uso da instituição supranacional por excelência para materializar a posição dominante conquistada em virtude da crise. Neste sentido, a missão conferida à Comissão no âmbito da chamada troika constituiu uma perversão do status político da instituição no historial da integração europeia.

Por seu turno, o presidente cessante da Comissão terá conseguido um feito político pessoal em termos de longevidade na chefia da instituição, apenas comparável aos consulados de Walter Hallstein e de Jacques Delors, os quais terão sido porventura os presidentes mais carismáticos.

Hallstein enfrentou o general De Gaulle na primeira grande crise que atingiu o funcionamento da Comunidade Europeia, deixando o legado da união aduaneira. Delors venceu as relutâncias da senhora Thatcher sobre a reforma do processo de decisão, tendo sido obreiro do mercado interno e aberto caminho para a moeda única. Todavia, Barroso terá sido o presidente que assistiu ao apagamento do papel político da Comissão, a qual foi domesticada pela senhora Merkel durante a gestão da crise do euro.

 

Data de receção: 24 de março de 2014 | Data de aprovação: 18 de abril de 2014

 

Notas        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]        [ Links ]