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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

A política europeia e o furacão Euro. Trova do vento que (não) passa

European politics and the hurricane Euro: ballad of the wind (not) passing by

 

António Goucha Soares

Licenciado pela Faculdade de Direito de Lisboa e doutorado pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. Professor catedrático do ISEG–Universidade Técnica de Lisboa, onde é professor Jean Monnet de Direito Comunitário e presidente do Departamento de Ciências Sociais. Foi Visiting Professor na Brown University. Autor de A Livre Circulação de Pessoas na Europa Comunitária (1990), Repartição de Competências no Direito Comunitário (1996), A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2002), A União Europeia (2006), bem como de estudos e artigos sobre direito comunitário e política europeia.

 

RESUMO

Este artigo realiza um comentário breve sobre a situação política europeia, no rescaldo da crise profunda em que a União se encontra mergulhada, desde a chegada do furacão Euro. Perante a complexidade do tema, o texto concentra-se em dois assuntos que marcam a agenda europeia: por um lado, dá conta da afirmação gradual de uma diferente narrativa sobre a crise do euro, em contraste claro com aquela que tem dominado o discurso da Alemanha e dos principais países da União, assim como das instituições supranacionais; por outro lado, enumera dificuldades que se poderão colocar à política europeia no plano institucional, para o caso de os países da zona euro – ou um núcleo duro de estados-membros – decidirem empreender uma solução de aprofundamento do processo de integração.

Palavras-chave: narrativa da crise do euro, aprofundamento, cooperação reforçada, bloqueio institucional

 

ABSTRACT

In the current article a brief commentary is made on the European political situation, in the aftermath of the profound crisis in which the Union is immersed ever since the arrival of the hurricane Euro. In the face of the complexity of the theme, the article is focused on two subjects marking the European agenda: on the one hand, the gradual rising of a different narrative about the Euro crisis vis-à-vis that which has prevailed in Germany’s speech, as well as that of the main EU countries and the supranational institutions; on the other hand, the difficulties that may stand in the way of European politics at the institutional level, should the Eurozone countries – or a hard nucleus of member-states – decide to go ahead with a solution involving the furtherance of the integration process.

Keywords: Euro crisis narrative, deepening, enhanced cooperation, institutional blockade

 

A POLÍTICA EUROPEIA ESTÁ SOB EFEITO DO FURACÃO EURO

Desde a sua chegada na primavera de 2010, bastante terá mudado. No frenesim das cimeiras europeias, a União logrou adotar dois fundos de resgate provisórios, seguidos por um mecanismo permanente para socorro dos países com problemas de liquidez financeira. Concordou num «Pacto Euro Plus», e aprovou um pacote de medidas legislativas para fazer frente à crise do euro, o chamado «Six Pack». Assinou mesmo um novo tratado, o Pacto Fiscal. Abriu, ainda, caminho para uma união bancária. Last, but not the least, o Banco Central Europeu anunciou um programa eufemisticamente designado por «Outright Monetary Transactions», que lhe permitirá desempenhar a função de prestamista de última instância dos países da zona euro. Haverá que reconhecer o quanto foi feito para contrariar as deficiências de uma moeda mal concebida1.

Nos estados-membros, o furacão levou à remoção eleitoral dos governos da zona euro que embarcaram em programas de austeridade. Sendo certo que os países que cederam à pressão europeia para formarem governos tecnocráticos, supostamente destinados a adotarem com maior firmeza medidas de correção orçamental, enfrentaram consequências desastrosas nas eleições legislativas que se seguiram. Neste sentido, veja-se o sucedido nas eleições realizadas na Grécia, em 2012, bem como nas eleições para o Parlamento italiano, em 2013.

Os anos do furacão Euro têm sido, acima de tudo, demolidores para o processo de construção europeia. A solidez da União Europeia tem sido testada de forma prolongada, ao longo deste período de tempo. Com efeito, a crise atingiu dimensões que se julgariam inimagináveis no que seria suposto ser uma «União cada vez mais estreita», de acordo com a divisa do processo de integração.

Não por acaso, alguns estados-membros receberam ameaças veladas sobre a sua própria continuidade no processo de integração, enquanto outros países ponderam mesmo organizar um referendo popular sobre o seu estatuto político na União. O episódio recente do resgate a Chipre terá constituído um novo incidente na escalada de hostilidades entre países europeus. Neste sentido se entendem os motivos que terão levado o histórico presidente do Eurogrupo, Juncker, a afirmar quanto a atual crise da União se assemelha à atmosfera existente na Europa em 1913.

Na verdade, o furacão Euro, e o conflito que lhe está subjacente, provocaram fissuras no corpo constituinte da União que serão, porventura, difíceis de sarar.

De entre essas, a confiança entre os estados-membros. Não apenas a confiança entre os governos dos estados-membros, mas também a confiança entre os cidadãos de diferentes estados-membros, em virtude da leviandade com que alguns dirigentes nacionais geriram o discurso político sobre a crise do euro, não se inibindo de arrazoar contra certos países e povos da moeda única, por motivos que relevavam da agenda política interna.

A confiança entre países e povos europeus terá sido uma das maiores realizações do processo de construção europeia, paulatinamente alicerçada ao longo de seis décadas. Todavia, os danos causados neste capital político da União deixarão marcas profundas no relacionamento entre estados-membros e cidadãos europeus.

Este artigo pretende fazer um breve comentário sobre a situação política europeia, no rescaldo da crise profunda em que a União se encontra mergulhada, desde a chegada do furacão Euro. Face à complexidade do tema, o texto aborda apenas dois assuntos que marcam a agenda europeia: por um lado, pretende dar conta da afirmação gradual de uma diferente narrativa sobre a crise do euro, em contraste claro com aquela que tem dominado o discurso da Alemanha e dos principais países da União, assim como das instituições supranacionais; por outro lado, o texto enumera dificuldades que se poderão colocar à política europeia no plano institucional, para o caso de os países da zona euro – ou um núcleo duro de estados-membros – decidirem empreender uma solução de aprofundamento do processo de integração.

 

A NARRATIVA DA CRISE

Como é sabido, a União entrou no quarto ano da crise do euro. Tempo suficiente para o discurso oficial da União Europeia (UE) proceder a uma reavaliação do bem fundado da sua própria narrativa da crise, bem como das causas que lhe deram origem: a falta de disciplina orçamental dos países da periferia da zona euro. Tal discurso tem servido de fundamento para a adoção de políticas de austeridade no espaço europeu2.

Contudo, a resiliência do furacão Euro parece ter destapado dimensões explicativas da crise que vão para além da proliferação de dinheiros públicos nos países meridionais, e da irresponsabilidade na condução das suas políticas orçamentais. Na verdade, são cada vez mais as vozes que têm vindo a apontar os desequilíbrios macroeconómicos no seio da zona euro como causa profunda da crise que se abateu sobre a moeda única3. Em particular, a simetria quase perfeita dos desequilíbrios comerciais existentes entre países excedentários e países deficitários, verificada ao longo da última década, em termos que o superavit dos primeiros corresponderia ao défice destes últimos4.

Com efeito, na primeira década de funcionamento da união monetária o Banco Central Europeu estabeleceu uma taxa de inflação de referência de dois por cento, baseada sobretudo nas previsões sobre a evolução dos custos de trabalho na Alemanha. Todavia, as autoridades alemãs empreenderam nesse mesmo período uma política de reformas do mercado de trabalho visando o esmagamento dos custos de produção, para aumentar a competitividade das suas exportações, limitando a subida de preços e salários a um nível inferior ao estipulado pelo Banco Central Europeu.

Em simultâneo, nos países do Sul os custos de produção aumentaram a um ritmo superior a um ponto percentual, em relação ao nível de inflação anual definido. Assim, enquanto os custos unitários de mão-de-obra aumentaram apenas nove por cento na Alemanha, cresceram cerca de 35 por cento na Europa meridional, durante a década inicial da moeda única5. O que significa que nesse período a Alemanha conseguiu ganhos de competitividade dos seus produtos de cerca de 25 por cento, em comparação com os seus parceiros do Sul.

Para além disso, o forte aumento de competitividade da economia alemã, e em particular das suas exportações, não terá sido sequer atenuado por uma consequente valorização da taxa de câmbio, na medida em que a Alemanha é um país integrado na zona euro. O que fez com que a taxa de câmbio efetiva das transações comerciais alemãs se tenha situado num montante cerca 40 por cento inferior ao que teria tido, caso a moeda utilizada tivesse sido o marco alemão6.

Assim, a combinação de uma política salarial agressiva com os benefícios de uma valorização moderada do euro nos mercados cambiais, explicam como a Alemanha tenha conseguido um excedente na balança de transações comerciais na ordem dos 200 mil milhões de euros, no ano de 2011. Sendo certo que o montante global dos défices comerciais dos países da zona euro atingiu um valor próximo dos 200 mil milhões de euros, no mesmo período7.

Acresce que a acumulação de excedentes na balança comercial ao longo da última década gerou, em consequência, uma situação de excesso de capital. O que favoreceu a concessão de empréstimos aos países do Sul da Europa, com as consequências conhecidas no despoletar da crise do euro8. Assim, quando a Alemanha assumiu a fatia maior no capital dos empréstimos concedidos aos países da zona euro, beneficiários de programas de ajustamento, o seu governo estava também a fornecer fundos que iriam servir para resgatar as suas próprias instituições financeiras, as quais haviam investido excedentes de capital nos países periféricos9.

Pelo que, de certo modo, os países do Norte da Europa que concederam tais empréstimos deveriam partilhar da responsabilidade pelas dívidas acumuladas pelos países meridionais da zona euro, desde logo porque não haverá dívida sem a contrapartida da concessão de crédito, pressuposto da relação sinalagmática subjacente a qualquer contrato de mútuo. Situação que numa união monetária deveria implicar maior simetria na repartição dos custos de ajustamento dos países em dificuldade, ao contrário do que tem sucedido no âmbito dos programas de auxílio financeiro.

Tendo em conta o quadro descrito, poderia afirmar-se que a Alemanha tem feito no seio da moeda única algo de semelhante ao que a China vem fazendo no quadro do sistema comercial internacional: um país que mercê da contenção dos seus custos salariais, e beneficiando da subvalorização cambial da sua unidade monetária, obtém excedentes comerciais que lhe permitem acumular ingentes montantes de capital10. A diferença mais curiosa residirá em que a China tem sido apontada como paradigma de país com uma conduta económica desleal – em particular, pelos países ocidentais – ao passo que a Alemanha tem conseguido afirmar uma narrativa virtuosa do seu desempenho económico.

 

A TEIA POLÍTICA

À semelhança do sucedido em outras crises ocorridas desde o início da construção europeia, a tendência das elites políticas no debate sobre os cenários a considerar na política europeia, tendo em vista a superação da crise do euro, vai no sentido de clamar pelo reforço da integração. Ou seja, mais Europa. Numa espécie de continuada fuga para a frente, de uma realidade que parecem não compreender.

Maior integração no quadro atual passaria por ter a ambição de resolver algumas insuficiências estruturais da moeda única europeia, tal como tem sido apontado. Desde logo, permitir que a União Europeia – ou pelo menos a zona euro – pudessem evoluir para uma verdadeira união orçamental e para uma união bancária. Sendo certo que o tipo de medidas que essas respostas à crise do euro exigem teria repercussões profundas no processo político da UE11.

Na verdade, o reforço da integração orçamental seria entendido por alguns como obrigando a um acrescido controlo sobre o homólogo poder dos estados-membros, podendo implicar intervenções da União no próprio processo orçamental nacional – aspeto suscitado amiúde pela Alemanha. O que forçaria a reequacionar a questão da responsabilidade política do funcionamento das instituições europeias, bem como o reforço da legitimidade democrática da União12.

Logo, as presumíveis respostas europeias para enfrentar a crise da moeda única implicariam não apenas um avanço em sede de união orçamental e de união bancária, mas também um concomitante progresso em termos de união política. Tudo isto no pressuposto que existiria inequívoca vontade política para a superação da crise, algo que está ainda por demonstrar.

Certo é que não se afigura verosímil pretender encontrar uma solução para a crise do euro no quadro global de uma UE a 27 estados-membros.

Desde logo, porque a crise do euro afeta de modo predominante os países da moeda única, tendo na base as conhecidas insuficiências do próprio Tratado de Maastricht. Na medida em que mais de um terço dos estados-membros da União está fora da zona euro – uns países porque assim quiseram, outros porque não puderam integrar – não será razoável considerar que a resposta para a crise do euro poderia ser conseguida no quadro alargado da União.

Por isso, será mais plausível pretender resolver a crise do euro no seio de um grupo restrito de países, que poderia corresponder àqueles que integram a zona euro, ou dos países do euro mais outros estados-membros que desejem partilhar as soluções que venham a ser adotadas.

Como é sabido, ambos os cenários referidos poderão ser objeto de prossecução no âmbito da UE. Na verdade, a União dispõe de um preceito no Tratado sobre o Funcionamento da União que permite aos países da zona euro adotarem medidas específicas em termos de política orçamental e de política económica, para além de que o Tratado da União Europeia prevê um instituto específico para os estados-membros que desejem aprofundar o processo de integração europeia – o chamado mecanismo das cooperações reforçadas.

Assim, diferentes respostas para a crise do euro que possam vir a ser adotadas por um grupo de estados-membros – os países da zona euro; ou estes últimos juntamente com outros estados-membros que receiem ser relegados para uma espécie de segunda divisão da UE – podem ser tomadas dentro do quadro jurídico da União, por tais situações se encontrarem previstas pelos tratados.

Logo, numa perspetiva jurídica a União disporia dos instrumentos que consentem a um grupo de estados-membros tomar as medidas que considerassem adequadas em vista da superação da crise do euro, dentro do quadro de funcionamento da própria UE. O que permitiria que esse núcleo mais ousado de países pudesse beneficiar das estruturas de funcionamento existentes, em particular, das instituições europeias e dos procedimentos decisórios seguidos.

Paradoxalmente, o sistema institucional da União poderá constituir uma inibição para os estados-membros mais voluntaristas apostarem na via do aprofundamento como estratégia de superação da crise. Há muito que o discurso sobre a flexibilização do processo de integração vem ganhando corpo no debate europeu, sob várias designações como Europa a duas velocidades, Europa a várias velocidades, Europa de geometria variável, Europe à la carte, núcleo duro europeu, vanguarda europeia, ou outras.

Como é sabido, o princípio que permitiria a alguns estados-membros tomarem a iniciativa de aprofundarem o seu nível de integração no quadro da União foi consagrado pelo Tratado de Amesterdão, através das chamadas cooperações reforçadas. As cooperações reforçadas poderão ser despoletadas por um grupo de apenas nove estados-membros. A decisão que autoriza uma cooperação reforçada é tomada pelo Conselho, por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, e após aprovação do Parlamento Europeu.

Na medida em que as cooperações reforçadas envolveriam um número de participantes inferior ao de estados-membros da União, o Tratado da União Europeia prevê que no quadro de cada cooperação reforçada todos os membros do Conselho podem participar nas suas deliberações, mas só os membros do Conselho que representam os países participantes numa cooperação reforçada terão direito de voto. Situação que se afigura razoável, na medida em que não exclui os demais estados-membros da União do debate político sobre as matérias objeto de cooperação reforçada, mas limita aos países participantes o direito de voto no respetivo processo de decisão.

Este mesmo princípio foi seguido, também, para o caso específico de os estados-membros cuja moeda seja o euro decidirem aprofundar a sua cooperação no âmbito da política orçamental, ou da política económica, consentindo o direito de voto apenas aos países da moeda única.

Logo, em ambos os cenários que permitiriam a um grupo de países tomarem medidas de reforço da integração europeia, o direito de voto estará confinado aos estados-membros que participem nessa forma de cooperação reforçada.

Como se referiu, a instituição do princípio da cooperação reforçada correspondeu à necessidade de flexibilizar o processo de integração numa União composta por um número alargado de estados-membros, onde nem todos partilham dos mesmos objetivos sobre o futuro da Europa. Em todo o caso, subjacente à consagração da cooperação reforçada esteve a ideia de desenvolver no quadro dos mecanismos de funcionamento da União, maxime, do sistema institucional e dos procedimentos decisórios.

Na medida em que, nos termos dos tratados, o Conselho é a instituição que representa os estados-membros no processo de decisão, nas deliberações por si tomadas no âmbito das cooperações reforçadas o direito de voto é restringido aos países participantes.

 

INSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS

Pelo contrário, não foram previstas disposições especiais para a atuação das demais instituições políticas europeias no quadro das cooperações reforçadas. Desde logo, porque quer a Comissão, quer o Parlamento Europeu são instituições que atuam em representação dos interesses que lhes foram definidos pelos tratados.

Todavia, a ideia de que a Comissão representa o interesse geral da União – enunciada pelo Tratado da União Europeia – tem sido contrariada de forma abundante pela acesa disputa política dos estados-membros relativa à sua composição. Na verdade, a acentuada identificação entre os estados-membros e os respetivos comissários, que não se têm inibido de veicular interesses e posições dos seus países de origem, fragiliza a função de defesa do interesse geral da União, e subverte a essência do funcionamento supranacional da Comissão. Colocando em risco, sobretudo, o princípio da independência da instituição. Do mesmo modo, a maneira de funcionamento do Colégio dos Comissários, a qual tem servido de forma crescente como antecâmara das sessões do Conselho, tem feito com que a alegada independência dos seus membros se tornasse numa espécie de ficção contrariada pela realidade13.

No entanto, quer as disposições dos tratados relativas à cooperação reforçada, quer o caso da adoção de medidas específicas pelos estados-membros do euro, não preveem quaisquer disposições distintas no que à intervenção da Comissão diz respeito.

Ou seja, no caso de uma cooperação reforçada, ou de adoção de medidas específicas para os países do euro, a Comissão mantém as mesmas prerrogativas que dispõe no processo político da União. Desde logo, o direito de iniciativa legislativa.

Acresce, que a aprovação de uma proposta da Comissão no âmbito de uma cooperação reforçada, ou no caso particular dos estados-membros da zona euro, é tomada pelo Colégio dos Comissários, na sua configuração normal. Ou seja, com comissários oriundos de todos os estados-membros da União.

Uma vez que existe inequívoca ligação entre a atuação dos diferentes membros da Comissão e os interesses dos respetivos países de origem, o facto de a Comissão intervir no procedimento político relativo às cooperações reforçadas poderá constituir obstáculo à utilização deste mesmo instituto.

Na verdade, a cooperação reforçada, assim como a figura específica para o caso dos países da zona euro, não tem sido aproveitada pelos estados-membros com propósitos mais integracionistas.

Desde logo, porque os países potencialmente interessados receiam que os estados-membros não participantes possam interferir no procedimento de formação das decisões através dos constrangimentos políticos que caracterizam o funcionamento do Colégio dos Comissários. Ou seja, na medida em que uma proposta de decisão tem de ser aprovada pela maioria de membros da Comissão, os países não participantes numa cooperação reforçada encontrariam espaço suficiente para exercer a respetiva influência política na definição inicial das propostas de deliberação.

Do mesmo modo, no que toca ao papel do Parlamento Europeu. O tratado dispõe que os seus membros representam os cidadãos da União, exercendo um mandato europeu. De acordo com este princípio, não foram previstas disposições específicas para a sua intervenção nas situações de cooperação reforçada, ou no caso de medidas específicas para os países da zona euro.

Como é sabido, o Parlamento Europeu exerce, juntamente com o Conselho, a função legislativa e orçamental. Nesse sentido, o Parlamento Europeu teria de aprovar as medidas legislativas que fossem adotadas no âmbito de uma cooperação reforçada, ou no caso de medidas específicas para os países do euro. E seria o Parlamento Europeu na sua composição plena.

Na medida em que os membros do Parlamento Europeu, apesar de alinhados em grupos políticos de inspiração ideológica, mantêm um vínculo político não despiciendo com o seu país de origem, o facto de os deputados eleitos pelos estados-membros não participantes numa cooperação reforçada poderem votar medidas legislativas aplicáveis a uma cooperação reforçada seria motivo de apreensão por parte dos países que desejassem prosseguir essa via. Na verdade, seria conceder a sujeitos políticos oriundos de países alheios à cooperação em causa a possibilidade de influenciarem o sentido final das medidas legislativas aprovadas.

Assim, as cooperações reforçadas, ou o caso especial das medidas adotadas para os países da moeda única, estão prisioneiras do processo político da UE, que prevê uma participação triangular de Comissão, Parlamento Europeu e Conselho na formação das suas decisões, mas que apenas no caso deste último regula de forma específica o direito de voto dos membros de cada instituição.

Talvez por isso, a cooperação reforçada tenha sido objeto de utilização residual na UE.

Assim sendo, que alternativas restariam para países que desejem aprofundar o processo de integração iniciado com a UE, de forma a não ficarem condicionados pela domesticação efetiva que os estados-membros exercem sobre o funcionamento das instituições políticas de natureza supranacional?

Tendo em conta que os tratados determinam que a Comissão e o Parlamento Europeu participem no processo político das cooperações reforçadas na sua composição plena, a primeira alternativa seria proceder à alteração dessas normas. Todavia, as normas dos tratados implicam um procedimento de revisão rígido, que obriga à unanimidade de todos os estados-membros, e sucessiva ratificação nacional.

Ora, seria pouco provável que algum estado-membro abdicasse da possibilidade conferida pelos tratados no tocante ao modo de votação, e de funcionamento, do mecanismo da cooperação reforçada. Nem seria necessário invocar sequer o risco acrescido de marginalização que tal poderia provocar para os países não participantes, bastaria simplesmente argumentar com o facto de a Comissão e o Parlamento Europeu serem instituições supranacionais na filosofia dos tratados, pelo que não faria sentido segmentar o seu modo de funcionamento em tais casos de acordo com uma lógica nacional.

Na verdade, o problema de fundo nesta situação deriva da progressiva contaminação dos interesses nacionais no funcionamento da Comissão – questão que terá sido potenciada pelo debate sobre a sua composição – bem como pelo facto de os membros do Parlamento Europeu, embora disponham de um mandato europeu, estarem dependentes de um sistema de eleição realizado numa base puramente nacional. Ou seja, as listas de candidatos ao Parlamento Europeu são definidas pelos partidos políticos nacionais, sem qualquer interferência dos grupos políticos europeus. Logo, em casos mais delicados, os deputados europeus tendem a privilegiar o vínculo nacional, quanto mais não seja por motivos de ordem prática, relacionados com a possibilidade de reeleição.

 

A VIA EXTERNA

Resultando improvável a alteração das normas dos tratados relativas à cooperação reforçada, a única alternativa que restaria aos estados-membros interessados em aprofundar o nível de integração europeia, para fazer face à crise do euro, seria encarar a possibilidade de o fazer fora do quadro geral de funcionamento da UE. Em concreto, através da celebração de um tratado entre países apostados em encontrar uma solução para os problemas14.

Face à natureza dos problemas que afetam a União, o aprofundamento que um tal grupo de estados-membros procuraria teria de passar por maior integração a nível económico, através da constituição de uma verdadeira união orçamental entre os países da zona euro, e de uma união bancária. No fundo, os estados-membros tratariam de completar a obra iniciada em Maastricht, a qual visava construir uma união económica e monetária.

Como se referiu, o funcionamento da união orçamental pode colocar um conjunto de questões, em termos da existência de maior solidariedade financeira entre os estados-membros, o que obriga ao aumento do controlo sobre a definição e execução da política orçamental a nível nacional. Em concreto, poderia implicar uma intervenção europeia em aspetos vitais da soberania orçamental dos estados-membros. Sendo que a questão orçamental é um aspeto nevrálgico do funcionamento do sistema político democrático de cada país. Pelo que certo tipo de interferências na gestão dos dinheiros dos contribuintes terá de ser equacionado em termos de legitimação democrática de tal intervenção.

Assim, uma eventual iniciativa de um grupo de estados-membros fora do quadro da União, através da celebração de um tratado intergovernamental, teria de ser suportada por estruturas de funcionamento de natureza institucional. Estruturas essas que não seriam muito distantes do triângulo político que enquadra a atuação da União, formado pelo Conselho, Comissão e Parlamento Europeu.

Se um órgão representativo dos governos dos países signatários dessa iniciativa não seria difícil de conceber, porque se trataria de uma versão restrita do Conselho aos estados participantes, no tocante às demais instituições seria mais problemático de concretizar.

Com efeito, qual seria a entidade que desempenharia a função que a Comissão tem na União Europeia, no quadro de semelhante iniciativa intergovernamental? Onde funcionaria a nova entidade, com que recursos humanos contaria, de que meios de ação disporia, como se financiaria? E como se articularia com a Comissão, de modo a não se sobrepor ao funcionamento desta última?

De igual modo, qual seria a origem e composição da nova entidade parlamentar? Obrigaria a eleições para um órgão novo? Seria apenas uma espécie de reunião restrita aos membros do Parlamento Europeu eleitos pelos países participantes? Ou seria formado por deputados dos respetivos parlamentos nacionais? Que tipo de apoio técnico-administrativo necessitaria para exercer de forma adequada as suas funções, as quais poderiam comportar a intervenção em matérias que relevam dos orçamentos nacionais?

Como se vê, as questões institucionais que se poderiam suscitar a propósito de uma iniciativa de um núcleo duro de estados-membros fora do quadro da UE para resolver a crise do euro são múltiplas e, eventualmente, de solução mais complicada que os problemas suscitados pelos constrangimentos ao funcionamento das cooperações reforçadas.

Na verdade, se uma das chaves do sucesso do processo de construção europeia terá sido a visão de Jean Monnet da necessidade de se fundar em instituições sólidas, e independentes da vontade dos estados-membros, não é menos certo que a evolução recente que o processo de integração assistiu se caracteriza pelo reforço da dimensão intergovernamental, que ameaça contaminar o bom funcionamento das próprias instituições supranacionais.

Por outro lado, a iniciativa de uma vanguarda europeia de países que pretendesse superar o presente estado de coisas não teria viabilidade, se não fosse acompanhada de um forte quadro institucional, compatível com a ambição do respetivo projeto.

Na ausência de um tal dispositivo institucional, tal iniciativa de um núcleo duro de estados-membros estaria condenada a soçobrar perante os equilíbrios de força entre os países participantes e, com certa probabilidade, assistir à afirmação da lei do mais forte.

 

CONCLUSÃO

O turbilhão causado pela crise do euro veio colocar a descoberto duas situações relativas ao lugar das instituições supranacionais no processo de construção europeia.

Por um lado, o apagamento crescente das instituições supranacionais, mormente a Comissão e o Parlamento Europeu, na condução do processo político. Na verdade, constituindo a crise do euro um acontecimento político maior no historial da integração – pelo potencial destrutivo da própria construção europeia – é inquietante notar como o posicionamento destas mesmas instituições não tem diferido de forma substancial da orientação assumida pelas potências dominantes da União.

Desde logo, pelo facto das instituições políticas europeias apresentarem, ao nível do seu discurso político, larga conformidade com a narrativa da crise adotada pelos países credores. Sobretudo, quando a realidade vem contrariando de forma ostensiva a retórica oficial da União.

Com efeito, a Comissão não tem sido capaz de se afirmar como contraponto das pretensões dos estados mais poderosos, tendo antes ido a reboque dos países hegemónicos ao longo de toda a crise, com prejuízo manifesto do interesse geral da União.

Por seu turno, o Parlamento Europeu não revelou capacidade para afirmar a representação dos interesses da cidadania europeia, no seu todo. Em particular, dos cidadãos mais afetados pela crise. A este título, o que se poderá dizer do silêncio do Parlamento Europeu perante o discurso paternalista, senão mesmo xenófobo, de responsáveis nacionais no confronto de outros países e povos da zona euro; ou sobre como permaneceu mudo diante da ameaça de exclusão de alguns estados-membros da moeda única; ou ainda, quando membros proeminentes do Conselho Europeu incentivaram a substituição de governos nacionais formados com base em eleições, por executivos tecnocráticos. Por certo, não teria sido em semelhante Parlamento Europeu que os pais fundadores da integração pensaram em 1948, no Congresso de Haia.

Por outro lado, a Comissão e o Parlamento Europeu poderão ainda resultar como elo mais fraco da política europeia, caso uma vanguarda de estados-membros decida prosseguir o esforço de aprofundamento através de um tratado intergovernamental, fora dos mecanismos institucionais e dos procedimentos de decisão da União.

Se tal viesse a acontecer, em virtude do conteúdo dos tratados, seria por certo uma amarga ironia para as instituições supranacionais, que não obteriam qualquer recompensa pela postura contemporizadora no confronto dos poderes fortes.

 

Data de receção: 20/02/2013 | Data da aprovação: 04/03/2013

 

NOTAS

1 Garton Ash, Timothy – «The crisis of Europe».In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 5, 2012, p. 6.         [ Links ]

2 Beck, Ulrich – A Europa Alemã. De Maquiavel a «Merkievel»: Estratégias de Poder na Crise do Euro. Lisboa: Edições 70, 2013, p. 77.         [ Links ]

3 Moravcsik, Andrew – «Europe after the crisis». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 3, 2012, p. 58.         [ Links ]

4 Krugman, Paul – Acabem com esta Crise, Já!. Lisboa: Editorial Presença, 2012, p. 187.         [ Links ]

5 Ibidem.

6 Moravcsik, Andrew – «Europe after the crisis», 2012, p. 59.

7 Feldstein, M. – «The failure of the euro». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 1, 2012, p. 121.         [ Links ]

8 De Grauwe, Paul, e Yuemei, Ji – «What German should fear most is its own fear», mimeo, setembro de 2012, p. 10. Disponível em: http://www.econ.kuleuven.be/ew/academic/intecon/Degrauwe/PDG-papers/Discussion_papers/Target2%20and%20German%20Breakup%20Risk.pdf.         [ Links ]

9 Garton Ash, Timothy – «The crisis of Europe»,p. 8.

10 Moravcsik, Andrew – «Europe after the crisis», p. 59.

11 Chopin, Thierry, Jamet, Jean-François, e Priollaud, François-Xavier – «A political union for Europe». In Robert Schuman Policy Paper. N.º 252, 2012, p. 2.         [ Links ]

12 Darvas, Z. – «The Euro crisis: ten roots, but fewer solutions». In Bruegel Policy Contribution. N.º 17, 2012, p. 8.         [ Links ]

13 Piris, Jean-Claude – The Future of Europe. Towards a Two-Speed EU?. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 117.         [ Links ]

14 Ibidem, p. 121.