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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

Fragmentação e divergência na América Latina

Andrés Malamud[*]

 

 

A América Latina tem sido palco, ao longo das últimas década, de um conjunto de transformações sociopolíticas. Neste artigo, argumentamos que as continuidades têm sido tão significativas como as mudanças. Para fundamentá-lo, serão analisados, por um lado, três elementos de continuidade: o nacionalismo, o populismo e a estrutura económica baseada na exportação de matérias-primas. E, por outro, três elementos de mudança: a introdução expansiva da democracia, a mobilização política de identidades étnicas, e a adopção de estratégias de inserção internacional cada vez mais discrepantes.

Palavras-chave: América Latina, nacionalismo, democracia, integração regional

 

Fragmentation and Divergence in Latin America

Since last years, Latin America has been characterized for some sociopolitical changes. In this article, we defend that the continuities has been so relevant as the changes. To demonstrate it we will analyze three continuity elements: nationalism, populism and economic structure based on raw material exportations; and three change elements: democratization, political mobilization of ethnic identities and adoption of international insertion strategies even more distinct.

Keywords: Latin America, nationalism, democracy, regional integration

 

 

Durante as últimas décadas, a América Latina tem passado, em larga escala, por uma série de transformações sociopolíticas. No entanto, a natureza e profundidade dessas mudanças são frequentemente exageradas ou mal interpretadas. Neste artigo, argumentamos que as continuidades têm sido tão significativas quanto as mudanças. Para fundamentá-lo, começamos por examinar três elementos de continuidade: o nacionalismo, o populismo e a estrutura económica baseada na exportação de matérias-primas. Em segundo lugar, analisamos três elementos de mudança: a introdução expansiva da democracia, a mobilização política de identidades étnicas, e a adopção de estratégias de inserção internacional cada vez mais discrepantes. As conclusões sugerem que, dada a existência de uma distribuição heterogénea tanto das continuidades quanto das mudanças entre os diferentes países, as perspectivas para a região são de crescente fragmentação e divergência.

 

NACIONALISMO

Nos últimos anos, candidatos situados à esquerda do espectro ideológico venceram a maioria das eleições presidenciais na América Latina. Após uma década de políticas que favoreciam o «capital», muitos observadores não acreditam que essa viragem para um discurso mais sensível às necessidades dos menos favorecidos seja surpreendente. No entanto, tem-se tornado bastante claro que este refluxo ideológico não possui somente uma variante mas, pelo menos, duas. Por um lado, existe um grupo de países governado por partidos internacionalistas, de perfil social-democrata e tom moderado, e, por outro, um grupo de governos mais orientados pelo nacionalismo do que pela esquerda, considerando que prometem representar a nação ou o povo como um todo, com um perfil mais conflituoso e tom radicalizado. Não por acaso, os exemplos mais conhecidos são caracterizados por uma bonança nos preços dos seus recursos naturais exportáveis»[2].

Exemplos do primeiro incluem o Brasil, o Chile e o Uruguai; exemplos do segundo são a Bolívia, o Equador e a Venezuela. Em 2006, os peruanos tiveram de escolher entre uma opção social-democrata, representada por Alan García, e uma nacionalista, liderada por Ollanta Humala. A vitória de um ou de outro implicaria a alteração do equilíbrio de forças entre as duas versões da esquerda latino-americana. Nos meses que antecederam a eleição, a opinião pública tendeu para uma avaliação positiva do Governo do então Presidente Alejandro Toledo no sentido de uma visão menos positiva da Bolívia e da Venezuela e mais identificada com os Estados Unidos. Esta «viragem à direita» foi parcialmente o produto do prolongado crescimento económico, embora a incontinência verbal de Humala e da sua família, e as interferências de Hugo Chávez, também tenham colaborado para tal. O resultado das eleições peruanas provocou um duro golpe no bloco nacionalista. A vitória de García deixou bem claro que o eixo Chávez-Morales e a sua capacidade de exercer uma atracção regional tinham atingido o limite. Não se deve ignorar também o facto de que políticas como as adoptadas na Venezuela e na Bolívia são possíveis em países que exportam gás e petróleo, mas não tão adequadas naqueles que precisam gerar riqueza ao invés de retirá-la do subsolo.

Conforme decidido pelo Presidente boliviano Evo Morales, a nacionalização das reservas de hidrocarboneto não produz mas reflecte uma transformação importante. Há poucas décadas, a «maldição» da América Latina era «a deterioração dos termos de intercâmbio». Isto significava que os recursos naturais que a região exportava estavam sempre a desvalorizar, enquanto os preços dos bens da indústria importados aumentam a um ritmo constante. Esta situação já não é comum: a «Revolução Bolivariana», se é que existe, está baseada nos altos preços internacionais do gás e do petróleo. Exportar mercadorias significa, a curto prazo, uma vantagem. No entanto, a longo prazo, torna-se o oposto. O que os economistas chamam de «a maldição dos recursos» sugere que países que contam com um único recurso natural predominante não são bem-sucedidos no seu desenvolvimento económico. Outro facto histórico é que possuir petróleo como principal fonte de rendimento nacional não é compatível com as instituições fortes, muito menos com as liberdades civis. Não existem democracias petrolíferas reconhecidas[3].

O caso de Morales demonstra outra inovação. O sentimento contra os Estados Unidos é ainda muito forte na América do Sul, mas o novo imperialismo também é brasileiro e espanhol. Quando o Governo boliviano decidiu nacionalizar o petróleo, enviou tropas para cercar os escritórios da Petrobras e da Repsol-YPF. As companhias acusadas de explorar os recursos bolivianos e de pagar valores irrisórios por estes não eram a Exxon ou a Texaco. As vítimas da «decisão soberana» da Bolívia (segundo afirmação de Lula) são as companhias de dois países que estão entre os mais próximos da Bolívia. Os slogans de hoje – «españoles, fuera» e «brasileiros, vão para casa» – substituíram o «Yankee go home» do passado. Governos progressistas, como os de Lula e Rodríguez Zapatero, estão perplexos ao tentarem compreender como os seus países se tornaram exploradores imperialistas do Terceiro Mundo; mas esta é a maneira como os pobres – os alvos das suas políticas – os entendem.

A influência de Chávez foi evidente na decisão de nacionalização adoptada por Morales. A ironia é que, enquanto a Bolívia avançou com políticas que feriam os interesses das companhias de países amigos, a Venezuela continuou a vender a maior parte de seu petróleo aos Estados Unidos.

Na Europa, o nacionalismo promoveu a concentração territorial por meio da criação e consolidação dos estados nacionais. Na América Latina, onde as fronteiras têm sido, desde há séculos, substancialmente estáveis, o fervor nacionalista não contribui para a criação de novos estados, mas sim para o afastamento dos já existentes, mesmo se próximos ou amigos.

 

POPULISMO

Mussolini costumava dizer que «governar os italianos não é difícil, é inútil». Há um conceito político por trás desta referência irónica ao espírito caótico e rebelde dos italianos que pode ser aplicado a outros países latinos. A noção fundamental é que, se governar é inútil, as instituições do Governo são também inúteis.

Para quem assim pensar, parlamentos, eleições e partidos tornam-se adornos desnecessários. Mas quem está familiarizado com a história do fascismo e do seu símbolo fundador sabe que os fascistas não se rendiam à anarquia. O que apoiavam não era um governo, mas uma liderança. Era uma questão de levar o povo para um destino projectado pelo líder, e não de negociar acordos ou estabelecer regras compartilhadas. O fascismo foi uma versão extrema de um fenómeno amplo – o populismo –, que pode ser definido como uma estratégia ou regime político que postula uma relação directa e sem mediação institucional entre o líder e as massas[4].

O populismo voltou a ser referido na América Latina porque os líderes carismáticos estão de volta. Mas os países da região podem ser diferenciados de acordo com a sua performance durante a liberalização dos anos 1990. Por um lado, existem os que cresceram e se integraram de maneira eficiente na economia global. O Chile é um arquétipo, mas o Brasil também integra este grupo. Existem aqueles que obtiveram resultados medianos, como o México e o Peru, e finalmente aqueles que exibem resultados particularmente ruins, como a Argentina e a Venezuela.

É muitas vezes repetido, com alguma impunidade, que a América Latina está «a virar à esquerda». Mas precisamos de ser mais precisos. Tanto Chávez como Lula se intitulam progressistas, embora as suas posições na economia de mercado, nas relações com os Estados Unidos ou em relação ao poder nuclear iraniano sejam diametralmente opostas. Além do mais, quando se trata da continuidade institucional, as suas visões estão nos antípodas. Lula tem, inclusive, justificado o desenvolvimentismo dos anteriores governos militares e mantido as políticas económicas de Fernando Henrique Cardoso. Pelo contrário, Chávez alterou a Constituição, a bandeira e até mesmo o nome do país, rejeitando o passado e proclamando uma revolução continental. É raro alguém acusar Lula de populista. Já em relação a Chávez, tanto os que o apoiam como os que o rejeitam dizem que ele o é, seja para o elogiar ou para o criticar.

Qual é a diferença entre o centro-esquerda e o populismo? Este não é o contexto para entrarmos em debates conceptuais complexos; contudo, podemos considerar uma evidência empírica: onde se encontra o primeiro caso, geralmente o outro está ausente – e viceversa. Os partidos que governam a Bolívia, o Equador e a Venezuela são chamados de populistas, e consequentemente estes países não possuem partidos moderados ou de perfil centro-esquerdistas significativos. Em contraste, poucos aplicariam o rótulo populista aos governos centro-esquerdistas do Brasil, do Chile e do Uruguai, ou a qualquer dos seus principais partidos da oposição. Isso significa que o populismo é um traço mais específico dos países do que dos partidos, e levanta uma questão: o que têm em comum os então chamados países populistas, que os coloca à parte dos demais? A resposta é conflituosidade social e instabilidade institucional.

Por outras palavras, os movimentos chamados populistas, de maneira crítica ou apologética, floresceram em sociedades que não têm sido capazes de estabilizar as suas instituições políticas para processar os conflitos sociais. Nesses casos, presidentes são removidos indistintamente por eleições ou protestos populares. Em contraste, em países onde os governos mudam somente de acordo com processos institucionalizados ou rotineiros, como as eleições, não há, na prática, debate sobre o populismo. De qualquer modo, a despeito das diferenças na forma, este fenómeno político não é novo na região: pode não ser homogéneo, mas é endémico.

 

ESTRUTURA ECONÓMICA BASEADA NA EXPORTAÇÃO DE PRODUTOS PRIMÁRIOS

O saber empírico diz-nos que a riqueza de um país se relaciona directamente com os seus recursos naturais: quanto maior for a quantidade de petróleo, de terras férteis, de minas de ouro ou de reservas de água potável, mais rico um país será; mas o saber empírico está errado[5].

A escola do pensamento económico fisiocrata emergiu em França durante o século xviii. Os fisiocratas acreditavam que a única actividade geradora de riqueza era a agricultura, ao contrário do mercantilismo, que enfatizava o comércio. Esses pensadores não acreditavam que o sector manufactureiro, que hoje chamaríamos de industrial, pudesse agregar um valor significativo à matéria-prima. Consideravam, no entanto, que a riqueza vinha da terra. Surpreendentemente, três séculos depois, muitas pessoas – agora entre a população em geral, e possivelmente mais entre os economistas – ainda partilham essa crença.

Basta um exercício comparativo para contrariar o argumento que associa os dons dos recursos naturais à riqueza nacional. Primeiro, coloquemos de um lado, numa coluna, todos os países em ordem decrescente de riqueza, e depois reagrupêmo-los noutra coluna, de acordo com a sua dotação de recursos. Comparemos, então. De acordo com o ranking do Banco Mundial de 2005, os países mais ricos, de acordo com o rendimento per capita bruto, foram o Luxemburgo, os Estados Unidos, a Noruega, a Suíça, a Irlanda, a Dinamarca, a Áustria, o Reino Unido e a Bélgica. Consideremos agora os países com as maiores reservas de petróleo: Arábia Saudita, Canadá, Irão, Iraque, Emirados Árabes, Kuwait, Venezuela, Rússia, Líbia e Nigéria[6]. O petróleo é o recurso natural mais procurado do planeta, mas a sua distribuição está concentrada em poucas mãos. Se a relação entre os recursos naturais e a riqueza das nações fosse positiva, em princípio os dois grupos acima apresentados deveriam coincidir ou, pelo menos, sobrepor-se. Mas tal não acontece.

Apesar de tudo, é verdade que entre os países do primeiro grupo existem alguns importantes exportadores de petróleo, como é o caso da Noruega. É também verdade que entre os países do segundo grupo existem algumas nações desenvolvidas, como o Canadá. Mas o certo é que esses países se desenvolveram antes de terem descoberto e explorado as suas grandes reservas de petróleo.

Haverá alguma explicação para o facto de que os países com os maiores recursos naturais não tenham tido capacidade de se desenvolver? A resposta é sim. Uma das principais é a «doença holandesa», assim chamada por causa do choque sofrido pela Holanda durante a segunda metade do século XX, quando o boom da exportação de gás natural (como consequência da descoberta de gás na bacia marinha holandesa) causou o declínio de seu sector industrial em vez de aumentar as taxas de crescimento. A razão é simples: a moeda nacional valorizou muito e de maneira rápida em resultado do fluxo torrencial de moeda estrangeira. Em consequência, as exportações de outros bens foram progressivamente decaindo e o tecido sócio-industrial foi esgarçado, aumentando o desemprego com os consequentes efeitos sociais negativos.

Aliada ao impacto económico, a concentração dos principais recursos exportáveis tem também efeitos políticos. O mais frequente é a centralização estatal da distribuição do rendimento, que facilita aos governos exercer – e libertar-se de – o controlo sobre os cidadãos. Não é por acaso que os dez governos mais ricos no mundo sejam indiscutivelmente democráticos, enquanto somente um entre os dez que possuem reservas de petróleo o seja (ver Freedom House[7] para democracia e World Bank[8] para desenvolvimento).

A história económica da América Latina mostra que os países «centrais» sempre viram o continente como uma fonte de recursos naturais. Desde os tempos da conquista, na era das minas de ouro e prata, até à era na qual a América Latina supria a Europa de couro, algodão e cereais, a produção de matérias-primas e a sua exportação para os países desenvolvidos sempre asseguraram uma posição da região nos mercados internacionais que não requeria a criação de valor agregado. Hoje, o que a região produz e o que o mundo precisa continua a ser alimentos e energia. Dada a instabilidade dos preços das mercadorias (commodities), a vulnerabilidade económica tem sido uma constante.

O Chile, a Bolívia e a Venezuela estão entre os países da região mais dependentes das exportações básicas, mas apenas o primeiro conseguiu estabilizar a sua economia e política por meio da esterilização do fluxo de caixa excedente e do desenvolvimento de políticas anticíclicas. A Bolívia está na pior posição, por ter falhado na concretização de qualquer medida efectiva contra os choques externos. Este país não é um jogador político importante no cenário da América Latina, mas é um provedor vital numa região cujo crescimento económico necessita de crescentes quantidades de energia. O Chile, país vizinho com o maior défice de energia, olha para a instabilidade boliviana com certa impotência, dado que os bolivianos o consideram um inimigo histórico. Mas, acima de tudo, a imprevisibilidade boliviana é uma preocupação para a Argentina e o Brasil, pela mesma razão que a Venezuela é uma fonte de inquietação para os Estados Unidos: não por poder exportar a revolução, mas sobretudo porque pode parar a exportação de energia. Deste modo, a vulnerabilidade dos países produtores de energia derrama-se sobre a região, criando riscos em vez de riqueza.

 

DEMOCRACIA (E NOVA INSTABILIDADE)

Até há duas décadas, as crises políticas na América Latina costumavam acabar em golpes militares. A situação começou a mudar nos anos 1980, quando a democracia se estendeu aos principais países do subcontinente. A partir de então, as Forças Armadas raramente causaram ou arbitraram conflitos políticos. Mas as crises não diminuíram: desde 1989, uma dúzia de presidentes eleitos teve de suspender os seus mandatos antes do término. A novidade é que a sua sucessão ocorreu dentro dos limites constitucionais[9].

Crises governamentais, que podem terminar com a queda de chefes do Executivo ou na dissolução de assembleias legislativas, são uma característica típica dos sistemas parlamentares. Em contraste, nos sistemas presidenciais, legisladores e presidentes possuem termos predeterminados. Só procedimentos excepcionais, tais como o impeachment, permitem removê-los antecipadamente dos seus cargos, isto segundo a leitura das respectivas constituições[10].

Contudo, nas últimas décadas, sete de dez países sul-americanos viram os seus presidentes depostos antes do término dos respectivos mandatos. Somente o Chile, o Uruguai e a Colômbia quebraram essa tendência. Os regimes mais instáveis têm sido os da Bolívia e do Equador, com três presidentes depostos em cada um dos países. Mas a Argentina, o Paraguai, o Peru, a Venezuela e mesmo o Brasil enfrentaram crises que culminaram com a queda de presidentes.

O que impede que presidentes democraticamente eleitos terminem os seus mandatos? Duas razões jogam nesse sentido: os protestos populares e a acção parlamentar. O protesto popular, que caracteriza de certa maneira as mobilizações violentas de rua, é a força detonadora da queda de presidentes. Mas o realinhamento de líderes e partidos representados no parlamento acompanha muitas vezes esses protestos.

O facto de os governos estarem geralmente sediados nas cidades mais populosas aumenta o impacto dos protestos populares face à instabilidade presidencial. Na América Latina, com a notável excepção do Brasil, o que predomina é a tradição europeia, segundo a qual a capital é a cidade mais importante tanto demograficamente quanto historicamente. Pelo contrário, nos países mais novos, como a Austrália, o Canadá, a Índia e os Estados Unidos, a capital é geralmente uma cidade mais nova e menos populosa. Consequentemente, as manifestações de rua nas grandes urbes podem causar agitação social e problemas de segurança, mas não afectam o regime político já que as autoridades nacionais se encontram noutros locais.

Em relação ao papel dos parlamentos nas crises presidenciais, as alternativas são mais complexas. Na América do Sul, a prática de formação de coligações partidárias deixou de ser uma excepção para se tornar a regra nas últimas duas décadas. O ajuste dessas coligações requer um equilíbrio entre a flexibilidade (para negociar acordos e, se necessário, trocar parcerias) e a estabilidade (para criar a confiança e garantir compromissos). Isto significa que os partidos políticos devem sobreviver ao tempo e garantir a responsabilidade dos seus líderes. Num contexto em que os legisladores não são responsáveis perante a autoridade dos partidos ou os eleitores, o potencial de instabilidade aumenta.

Por conseguinte, a frequência de demissões presidenciais não significa que na América do Sul o poder executivo tenha menos poder do que costumava ter. Pelo contrário, os atributos presidenciais, que são a iniciativa legislativa, o poder de veto, a capacidade para governar por decreto e a possibilidade de reeleição são maiores que nunca. Efémero não é o mesmo que fraco. Os presidentes não são necessariamente menos poderosos: a sua permanência no poder é que é mais limitada. Certamente que haverá uma relação entre os dois fenómenos. Se, num dado momento, o mandato do presidente é radicalmente alargado, parecerá ao corpo político que meios extraconstitucionais são os únicos capazes de retirá-lo do poder. Assim, poderes moderados produzem maior rotatividade de poder, enquanto que poderes excessivos promovem manobras extraconstitucionais para se livrarem de presidentes aparentemente invencíveis. Recuperar o equilíbrio entre concentração de poder e estabilidade é o novo desafio colocado a muitos países latino-americanos.

 

A MOBILIZAÇÃO POLÍTICA DAS IDENTIDADES ÉTNICAS

A Bolívia é o país que se encaixa de maneira mais próxima no clássico estereótipo europeu em relação à América Latina. É rica em recursos naturais, pobre em desenvolvimento humano, politicamente instável e possui uma população que é maioritariamente «étnica». Mas esta descrição está longe de uma representação da realidade no continente como um todo. Neste contexto, é preciso examinar a vitória de Evo Morales, um fenómeno novo e que dificilmente se repetirá.

Dos vinte estados da América Latina, apenas dois possuem a maioria da população autóctone: a Bolívia e a Guatemala. Noutros dois, Peru e Equador, metade da população é de origem indígena. O outro país com uma percentagem de dois dígitos é o México, mas os 15 por cento dos mexicanos que fazem parte deste grupo demográfico estão concentrados no Sul do país, com pouco peso político – com a expressão simbólica de Chiapas e do subcomandante Marcos à parte. Isto significa que a Bolívia faz parte de um grupo muito pequeno de países na região, e a sua natureza única torna-se mais pronunciada quando se considera que ela está entre os três países mais pobres do continente, incluindo a Nicarágua e o Haiti. Esta exclusividade transforma-se num paradoxo quando se acrescenta um terceiro factor: que, ao longo da sua história, o Alto Peru – o nome do país até à independência – se tenha caracterizado sempre pela riqueza em recursos naturais, mais valiosos naquele tempo. O Peru foi o principal fornecedor de ouro, prata, depois da borracha, do sal, do guano natural, mais tarde de latão e cobre, e, agora, de gás. Um paradoxo? Não exactamente: trata-se de um caso clássico da «maldição dos recursos» referida anteriormente, segundo a qual o indicador mais provável de subdesenvolvimento para qualquer país é a posse de vastas quantidades de recursos naturais exportáveis.

O sistema político boliviano tem sido fragilizado por tensões desde o seu início, na luta entre uma minoria branca que sempre controlou a exploração dos recursos naturais de exportação e uma maioria indígena que foi excluída dos seus benefícios. Três factores contribuíram para a persistência desta relação assimétrica: a concentração territorial, tanto das etnias como dos recursos, o alto nível económico e de educação da minoria branca e a heterogeneidade interna dos grupos indígenas. É verdade que a revolução de 1952 deu origem a um período de integração nacional (isto é, interétnica), no entanto, o ímpeto de integração deste acontecimento histórico durou apenas algumas décadas, de modo que a Bolívia se tem tornando «mais como a Guatemala» – por assim dizer –, cada vez mais orientada para uma reversão pró-indígena. O que o nacionalismo impediu, há meio século, está a acontecer agora, e a ter o seu lugar ao lado da emergência global das «políticas étnicas», ou dos «direitos políticos indígenas», através do apoio da rede de comunicações transnacional.

A concentração do principal recurso natural contemporâneo – hidrocarbonetos – na parte leste da Bolívia favoreceu a área de Santa Cruz de la Sierra, que já se configurava como a região mais rica por causa da produção agrícola. Este é também o território com maior concentração de população de origem europeia, população que, no mínimo, manifesta algum desdém pelas populações indígenas. A região é por vezes chamada «Texas da Bolívia», em virtude do seu espírito independente.

Em relação à minoria branca, esta perdeu a sua capacidade de controlo sobre o aparelho de Estado, embora tenha sustentado a sua habilidade para o impedir de funcionar de maneira adequada. A minoria cruceña mantém o controlo sobre os recursos económicos e ameaça com a violência e a autonomia se um governo hostil atentar contra os seus interesses desde La Paz.

A heterogeneidade dos grupos nativos é a outra face desta concentração de recursos da minoria branca. Dividida entre os povos Quéchua, Aymara e Guarani, nem os grupos étnicos nem os seus líderes tinham conseguido chegar ao poder de modo pacífico, tirando vantagem de seu status de maioria. Assim, a inovação que representou a vitória de Morales simboliza uma superação, mesmo que temporária, dessa fragmentação.

Também no Equador os movimentos indígenas tiveram um impacto crucial na política nacional, contribuindo para a queda de um presidente e a ascensão de outro ao poder. É provável que a activação política desta clivagem, até agora encoberta, também venha a aprofundar a divisão continental: de um lado estarão os países com uma população nativa significativa; do outro, o restante. A mobilização política das identidades étnicas opõe-se a duas tradições históricas que têm sido a norma até agora: o modelo europeu da «política de classe» e o modelo latino-americano da «política da nação»[11].

 

ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO GLOBAL: RUMO A UMA MAIOR FRAGMENTAÇÃO?

Simón Bolívar lamentou-se uma vez com a frase «Nós arámos o mar» (hemos arado en el mar), expressando dessa forma a sua frustração depois de anos de luta pela independência numa região atormentada pela guerra e pela anarquia. O pan-americanismo caiu em desuso após tentativas vãs do libertador de torná-lo realidade nos congressos continentais de 1819 e 1826. Mais tarde, porém, durante a segunda metade do século xx, o «destino latino-americano» foi rebaptizado de «integração regional» e incorporado em organizações como a Comunidade Andina e o Mercosul. Estes são os blocos que estão a enfraquecer, que registam perda de poder em consequência de um fraco desempenho e que vêem a sua lógica económica sob o ataque daqueles que se proclamam representantes dos ideais bolivarianos[12].

Geralmente, os estudos dos processos de integração regional destacam a reversibilidade deste fenómeno. O sucesso passado não garante a sobrevivência a longo prazo. Pelo contrário: a história da integração demonstra que o único bloco que conseguiu ultrapassar o fácil estágio inicial das promessas foi a Comunidade Europeia. Noutros lugares, os grupos regionais proliferaram mas não atingiram uma profundidade significativa ou poder de negociação internacional. Na maioria dos casos, padeceram por longos períodos mas não morreram. Este facto não é certo, já que durabilidade não é sinónimo de bom funcionamento: o resultado mais frequente para os blocos regionais não é a extinção, mas sim a irrelevância.

O problema da irrelevância é que não é facilmente reconhecível. Existem sempre esperanças de recuperação, em parte por causa da inércia intelectual; e, sobretudo, porque há sempre os interessados em manter a invenção viva.

A quem interessa, por exemplo, afirmar que o Mercosul ou a Comunidade Andina estão em bom estado, atravessando apenas uma crise passageira? Em primeiro lugar, existem os funcionários civis que trabalham nos ministérios dos Negócios Estrangeiros e nas burocracias regionais, e os diplomatas responsáveis pelas questões regionais. Em segundo lugar, há líderes políticos que fizeram da integração regional uma bandeira ideológica na batalha contra o imperialismo ou o liberalismo, ao invés de um instrumento de desenvolvimento. Finalmente, há académicos que estudam o fenómeno e, portanto, vivem dele. Os interesses desses grupos são legítimos e é provável que alguns acreditem nos seus próprios argumentos, embora isto não os valide.

O Mercosul, por exemplo, toma para si a posição de quarto bloco global. No entanto, esta classificação baseia-se num conjunto de ilusões e disfarça o tamanho da lacuna que separa estes países daqueles do mundo desenvolvido – e isto não é tudo: aquele bloco possui um produto interno bruto (pib) inferior não apenas ao dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão, mas também aos da China ou da Índia.

Mas a característica contemporânea mais problemática da América Latina poderá não ser o sucesso limitado dos seus processos de integração regional. O principal desafio é encarar as tendências socioeconómicas cada vez mais divergentes, que fragilizam esses países tornando-os progressivamente desiguais, ou mesmo rivais. É certo que, enquanto algumas sociedades avançam no bom sentido, outras tornam-se mais pobres – em termos relativos, apesar de algumas estarem piorando mesmo no sentido absoluto do termo. É bem possível que por volta de 2020 o Chile integre o grupo de países desenvolvidos do mundo, mas outros países latino-americanos poderão seguir a Bolívia, a Nicarágua e o Haiti e estar entre aqueles com indicadores subsarianos em quase todas as áreas.

Neste contexto, a retórica bolivariana obscurece mais do que revela. Entre os países mais bem-sucedidos, estão um que optou pela integração subregional (Brasil), outro que escolheu aliar-se aos Estados Unidos (México) e outro que preferiu «avançar sozinho» (Chile). Não há uma receita única; mas, se houvesse, seria muito pouco provável que fosse a seguida por países como a Venezuela, que tem mais de metade da população abaixo da linha de pobreza. É verdade que alguma dose de fragmentação sempre foi a característica da América Latina, sendo que é apenas o nome «América Latina» e a disciplina «Estudos latino-americanos» que nos levam a supor um nível de homogeneidade que nunca existiu. A diferença é que hoje em dia as forças da globalização estão simultaneamente atraindo os países com bom desempenho, deixando de fora os outros, contribuindo assim não só para o favorecimento da fragmentação, mas também gerando ressentimento mediante o estabelecimento de vencedores e perdedores.

 

CONCLUSÕES: RUMO À CRESCENTE DIVERGÊNCIA

Nos últimos cinquenta anos, a Europa tem passado por um processo de maior convergência, tanto que os países do continente se têm tornado cada vez mais similares em termos de desenvolvimento económico e qualidade institucional; pelo contrário, na América Latina ocorre o inverso. Tanto os elementos de mudança como os de continuidade, examinados aqui, apontam na direcção da divergência: alguns países estão a consolidar os seus regimes democráticos e a crescer em grande velocidade, enquanto outros se afundam na anarquia e na pobreza, e às vezes na violência. É provável que a tendência para a dispersão aumente nos próximos anos, com a emergência de três grupos visíveis: um menor, constituído por um punhado de nações bem-sucedidas; outro mais numeroso, que engloba países com uma performance errática ou medíocre; e, para completar o trio, um punhado de estados fracassados.

Um estudo realizado, antes do colapso argentino, pela Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina projectou dois cenários para a região: o optimista previu que dezasseis dos dezoito países estudados poderiam reduzir a pobreza para metade até 2015[13]. A outra previsão, baseada nas tendências históricas, afirmava que somente sete países atingiriam este objectivo, enquanto seis iriam reduzir a pobreza muito lentamente, e cinco assistiriam ao seu aumento. Entre os países bem-sucedidos estavam a Argentina e o Uruguai. Todavia, após o colapso de 2002, estes países deveriam ser incluídos na lista daqueles que perderam mais de uma década de desenvolvimento. Como pode este panorama ser tão sinistro? A resposta é relativa: depende do país.

Os países «falidos» da América Latina são aqueles cujos indicadores do pib per capita e do desenvolvimento humano estão mais próximos dos patamares africanos do que da média regional. Em alguns casos, a pobreza é acompanhada de instabilidade política e mesmo de violência, dada a incapacidade do Estado de garantir a ordem pública. O exemplo mais claro é o do Haiti, apesar de a Bolívia e de outros países da América Central também apresentarem um quadro negativo. A Colômbia poderia ser incluída neste grupo, não pelo seu desempenho económico, que não é mau, mas pela sua inabilidade em controlar o território nacional e garantir a autoridade da lei. No entanto, isto tem vindo a melhorar nos últimos anos.

Os actores mais instáveis e medíocres estão, maioritariamente, nos Andes e na América Central. Em resultado da instabilidade crónica e dos altos índices de pobreza e desigualdade, é difícil que esses países atinjam um nível de desenvolvimento sustentável, apesar da possibilidade de, de tempos a tempos, alcançarem altas taxas de crescimento. Por razões diferentes, a Argentina faz parte deste grupo: o seu alto potencial e a sua história favorável não foram suficientes para evitar o tipo de administração incompetente que a levou à falência. O Uruguai e a Costa Rica são casos excepcionais, já que o desempenho económico medíocre não afectou o correcto funcionamento das instituições políticas.

Os três países mais bem-sucedidos são o Brasil, o Chile e o México. Cada um tem traçado um modelo de desenvolvimento e estratégia de integração global: o Brasil optou pela industrialização direccionada para as exportações; o Chile optou por uma estratégia de liberalização unilateral e de inserção global baseada nos múltiplos tratados bilaterais; e o México caminhou para uma parceria inevitável com os Estados Unidos, país com o qual mantém 85 por cento do seu comércio externo. É expectável que esses países mantenham as suas estratégias que, a ritmo diferenciado, têm permitido o crescimento económico, a consolidação da democracia e o aumento da qualidade de vida dos cidadãos, embora no México a emergência da narcocriminalidade ponha isso em questão.

Há outro país com um futuro incerto: Cuba. É provável que seu regime político não sobreviva muito à morte do seu fundador. No entanto, o impacto da morte de Fidel Castro irá depender das estratégias adoptadas por três actores-chave: os seus sucessores, a diáspora cubana no exílio e o Governo dos Estados Unidos. A médio prazo, é provável que um processo de democratização – embora conflituoso – ocorra no contexto de uma economia que estará dependente dos Estados Unidos. Mas também é verdade que o regime tem mostrado uma grande teimosia e que a sua liderança tem sido muito hábil ao assegurar a sobrevivência económica com o consentimento popular[14].

Então, o que podemos esperar da América Latina nos próximos anos? Em suma, divergência: enquanto alguns países irão continuar a percorrer um longo caminho rumo ao desenvolvimento e à consolidação institucional, a maioria será levada no turbilhão de altos e baixos. Outros – poucos – poderão cair em abismos ainda mais profundos de desordem e miséria. Felizmente, dois dos três países mais bem-sucedidos são os mais populosos do continente, e a sua experiência tanto poderá propagar-se sobre os demais como servir, a longo prazo, como ponto de referência e estímulo aos seus vizinhos.

 

NOTAS

[1] Uma versão prévia em castelhano foi publicada com o título «Divergencias en ascenso: viejas y nuevas fracturas en América Latina». In Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Sevilha. Vol. 11, N.º 21, 2009, pp. 125-139.

[2] Weyland, Kurt – «Politics and policies of Latin America’s two lefts: the role of party systems vs. resource Bonanzas». Comunicação apresentada no XXVI Congresso da LASA, Montreal, Setembro de 2007.

[3] Isto não quer dizer que não existam democracias com petróleo, como é o caso da Noruega e do Reino Unido; mas, nestes países, a economia é muito diversificada e a produção de petróleo e as exportações não somam mais de metade do conjunto total da produção nacional.

[4] Weyland, Kurt – «Clarifying a contested concept: populism in the study of Latin American politics». In Comparative Politics. Vol. 34, N.º 1, 2001, pp. 1-22.

[5] Karl, Terry Lynn – The Paradox of Plenty: Oil booms and Petro-States. Berkeley, CA: University of California Press, 1997.

[6] Central Intelligence Agency«The world factbook», 2007. [Consultado em: 31 de Julho de 2008]. Disponível em: https://cia.gov/cia/publications/factbook/rankorder/2178rank.html.

[7] Freedom House – «Freedom in the world report», 2007. [Consultado em: 31 de Julho de 2008].Disponível em: http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=278.

[8] World Bank – «World development indicators», 2007. [Consultado em: 31 de Julho de 2008]. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/GNIPC.pdf.

[9] Hochstetler, Kathryn – «Rethinking presidentialism: challenges and presidential falls in South America». In Comparative Politics. Vol. 38, N.º 4, 2006, pp. 401-418.

[10] Pérez-Liñán, Aníbal – Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

[11] Amorim Neto, Octavio – «Política externa brasileira: novos dilemas geopolíticos e sua falta de condicionamentos domésticos». In Análise de Conjuntura. Rio de Janeiro. N.º 3, Março de 2007.        [ Links ]

[12] Malamud, Andrés – «Mercosur turns 15: between rising talk and declining achievement». In Cambridge Review of International Affairs. Vol. 18, N.º 3, 2005, pp. 421-436; Malamud, Andrés, e Castro, Pablo – «Are regional blocs leading from Nation States to global governance? A skeptical view from Latin America». In Iberoamericana. Nordic Journal of Latin American and Caribbean Studies. Vol. 37, N.º 1, 2007, pp. 115-134.

[13] CEPAL-IPEA-PNUD. Hacia el objetivo del milenio de reducir la pobreza en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile, Fevereiro de 2003.[Consultado em: 31 de Julho de 2008]. Disponível em: http://www.eclac.org/publicaciones/xml/4/12544/lcg2188e.pdf.

[14] Hoffmann, Bert, e Whitehead, Laurence (ed.) – Debating Cuban Exceptionalism. Londres: Palgrave/Macmillan, 2007.

 

[*] Doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. Actualmente é investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.