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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.23 Lisboa  2013

 

Um olhar sobre as políticas curriculares para formação de professores no Brasil e em Portugal na transição do século XX para o XXI

A look over the curricular policies for teacher’s trainings programs in Brazil and Portugal during the transition from the 20th toward the 21st century

Un regard sur le politique curriculaire pour la formation des enseignants au Brésil et au Portugal lors de la transition entre le XXe et le XXIe siècle

Una mirada sobre las políticas curriculares para la formación de profesores en Brasil y en Portugal en la transición del siglo XX al XXI

 

Lucinalva Almeida *, Carlinda Leite ** & Eliete Santiago ***

* Professora do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
nina.ataide@gmail.com

** Professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal.
carlinda@fpce.up.pt

*** Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
mesantiago@uol.com.br

 

Resumo

As políticas curriculares para formação de professores têm vindo a constituir um foco de interesse acadêmico, tanto em Portugal como no Brasil, mas muitas vezes têm ficado confinadas à caracterização e análise dos modelos que as configuram. Considerando pertinente ampliar estes estudos, neste artigo, objetivamos discutir as políticas de currículos para formação de professores, em Portugal e no Brasil, na sua relação com as questões curriculares emergentes da Educação Básica/Educação Fundamental, neste limiar do novo século. Para tanto, tomamos como base a perspectiva cíclica (Ball, 2006) e a recontextualização das políticas curriculares, que passam a ser analisadas pelos vários contextos da sociedade ou pelos diversos grupos. Ressaltamos que, no âmbito das políticas de currículo, os processos de reformulação curricular das realidades brasileira e portuguesa não ocorrem numa disposição linear, não se limitam a um enunciado estático, mas a um enunciado como movimento que seleciona, organiza e faz a distribuição do conhecimento. Há, portanto, vários contextos e formas de produção de políticas curriculares e de formas discursivas, no Brasil e em Portugal, as quais apresentam concepções e posturas diferentes em relação às reformas educacionais.

Palavras-chave: currículo; políticas curriculares; formação de professores.

 

Abstract

The curricular policies for teacher’s trainings have been creating a focus of academic interest both in Portugal and Brazil. Howerver, many times they have been confined to the characterization and model analysis that define them. As it is considered pertinent to broaden these studies, the curricular policies for teacher’s trainings, in Portugal and in Brazil, in their relation to the emergent curricular issues of Elementary Education/Secondary Education, in this century transition is discussed in this article. To that end, we take a cyclic perspective basis (Ball, 2006) and a recontextualizing of curricular policies which will be analyzed by the many society’s contexts or by different groups. This way this research is insert in a national and internationaldebate of curricular policies for teacher’s trainings programs. To discuss this topic we used the theoretical contribution of authors such as Pacheco (2003), Ball (2001), Dias e López (2006), among others. We have done a desk analysis of the Brazilian and Portuguese realities, where we could draft a theoretical-methodological path of current speeches’ discussion in those realities. From this perspective, the curriculum legitimates the knowledge, indicating what is valid and perceived in society as such. So, each group fights for its place in the curriculum and how it is going to be referenced. It is in the curricular policies that we find the structure where the decisions are made, as a space for competition and a collision of interests in many contexts, having a complex, dynamic, conflictual and hybrid tension. We would like to stress that, in the educational field, for the last two decades of the end of last century, the word change gained strength and space in many scenarios of different societies, with the enhancement of new educational policies, to mobilize new curriculum organization systems’ logic. And the similarities among the issues of curriculum policies, both on global and local scenarios, are that the reforms around these policies are presented from different perspectives, which come to answer the different economic, social, politic and cultural interests perspectives. These differences perspectives are produced by many contexts and realities, since the global space is, in its essence, a producer of heterogeneity. Therefore, there are different contexts and ways for the production of curricular policies, in Brazil and Portugal, both of which present different concepts and attitudes regarding the educational reform.

Keywords: curriculum, curricular policies; teacher’s training programs.

 

Résumé

Les politiques curriculaires pour la formation des enseignants sont venus à constituer un centre d’intérêt académique, à la fois au Portugal et au Brésil, mais elles sont restées limitée souvent à la caractérisation et l’analyse de modèles que les constituent. Considérant comme pertinent agrandir ces études, dans cet article, nous discutons les politiques curriculaires pour la formation des enseignants au Portugal et au Brésil, par rapport à des questions curriculaires émergents de l’éducation de base / l’éducation fondamental, au seuil du nouveau siècle. Pour ce, nous prenons comme base la perspective cyclique (Ball, 2006) et la recontextualisation des politiques curriculaire, qui est analysé par les différents contextes de la société ou par des groupes différents. Nous soulignons que, même au sein de les politiques de curriculum, les processus de reformulation curriculaire de les réalités brésilienne et portugaise ne se produisent pas dans une disposition linéaire, ne se limite pas à un énoncé statique, mais à un énoncé comme mouvement qui sélectionne, organise et fait la distribution des connaissances. Il ya donc différents contextes et formes de production de politiques curriculaires et des formes discursives, au Brésil et au Portugal, qui ont des conceptions et des attitudes différentes relatives aux réformes de l’éducation.

Mots-clés: curriculum; politiques curriculaires; formation des enseignants.

 

Resumen

Las políticas curriculares para la formación de profesores han constituido un foco de interés académico, tanto en Portugal como en Brasil, sin embargo, muchas veces, las mismas han quedado confinadas a la caracterización y al análisis de los modelos que las configuran. Considerando pertinente ampliar esos estudios, en este artículo tenemos como objetivo discutir las políticas de currículo para la formación de profesores en Portugal y en Brasil, en relación con los asuntos curriculares emergentes de la Educación Básica, en el umbral de este nuevo siglo. Para ello, tomamos como base la perspectiva cíclica (Ball, 2006) y la recontextualización de las políticas curriculares, la cual empieza a ser analizada bajo varios contextos o por diversos grupos de la sociedad. Resaltamos que, en el ámbito de las políticas curriculares, los procesos de reformulación curricular de la realidad brasileña y portuguesa no ocurren de una manera lineal, es decir, no se limitan a un enunciado estático sino a un enunciado dinámico que selecciona, organiza y hace la distribución de conocimientos. Por lo tanto, en Brasil y en Portugal, hay varios contextos y maneras de producción de políticas curriculares y formas discursivas, las cuales representan concepciones y posturas distintas con relación a las reformas educacionales.

Palabras clave: currículo; políticas curriculares; formación de profesores.

 

Introdução

A formação de professores tem vindo a constituir um foco de interesse acadêmico, tanto em Portugal como no Brasil, mas muitas vezes tem ficado confinada à caracterização e análise dos modelos que a configuram. Considerando pertinente ampliar estes estudos às suas relações com as políticas curriculares, neste artigo discutem-se as políticas de currículos para formação de professores, em Portugal e no Brasil, na sua relação com as questões curriculares emergentes da Educação Básica/Educação Fundamental, neste limiar do novo século. Para isso, num primeiro momento, foca-se a atenção sobre as exigências atribuídas à escola e à educação nos anos escolares iniciais no cenário atual destes dois países para, em função delas, se perspectivar um exercício docente e uma formação de professores potencializadora de justiça curricular e de justiça social (Connell, 1997).

Para a discussão das políticas curriculares para a formação de professores, a atenção é focada, no caso português, nos diplomas, que, no quadro decorrente do processo de Bolonha, instituíram novas mudanças. Estas, apesar de recentes, justificam já uma análise de seus possíveis efeitos face às exigências educacionais e curriculares que influenciam as políticas educacionais. No Brasil, as influências para a formação de professores têm vindo pela mão de organizações internacionais, a exemplo do Banco Mundial, e dos imperativos legais. É no contexto destas situações e destas influências que, neste artigo, se segue um percurso que permita: caracterizar as políticas curriculares para a formação de professores do 1º Ciclo do Ensino Básico (Portugal) e dos anos iniciais do Ensino Fundamental (Brasil), nelas focando concepções de educação e de formação que as suportam; caracterizar o que tem vindo a ocorrer em Portugal e no Brasil, nesta transição de século, na formação inicial de professores destes níveis de ensino; refletir e debater sobre a articulação entre o que é enunciado para a função das políticas curriculares nos modelos e nos processos de formação de professores.

As exigências atribuídas à instituição escolar e aos profissionais que nela trabalham têm acompanhado os discursos sociais e políticos que reconhecem a sua importância na procura da concretização da igualdade de oportunidades de sucesso para todos os que a frequentam e a quem ela se destina. Na verdade, se pela escola passam muitas das condições que estão na base dos ideais democráticos, impõe-se pensar a formação daqueles que nela exercem a profissão e, principalmente, dos professores, de modo que aprendam a lidar com a complexidade que atravessa os fenômenos educacionais e se envolvam na configuração e desenvolvimento de um currículo “contra hegemônico” assente numa “teoria de justiça curricular” (Connell, 1997).

Ressaltamos que um currículo deste tipo caracteriza-se por integrar a diversidade de pontos de vista e das especificidades das situações com que convivem os diversos alunos na intenção de permitir a todos o acesso a saberes de maior estatuto acadêmico e social. Como afirma o autor, um currículo contra hegemônico “deve incluir a parte generalizável do currículo tradicional e garantir a todos os estudantes o acesso a métodos e conhecimentos científicos” (Connell, 1997, p. 67). Se compararmos este discurso teórico com o que tem sido definido pelas políticas curriculares, nesta transição de séculos, em Portugal e no Brasil, podemos concluir que existe alguma proximidade de discursos.

Sentido de Políticas Educacionais

As políticas educacionais envolvem aspectos que explicam e legitimam decisões que estão imbricadas em uma política maior, que busca produzir e atingir objetivos articulados às questões materiais. O fato de as políticas estarem vinculadas a uma lógica de mercado situa as reformas educacionais como panaceia para resolver os problemas educacionais, o que, no dizer de Ball (2001a, p. 127), “é uma forma mágica da política”.

A política educativa, a partir da dupla relação local/global, é assinalada por

uma presença crescente das questões educacionais na criação de identidades locais, definidas não tanto numa perspectiva geográfica, mas no sentido de uma pertença a certas comunidades discursivas [e, neste sentido, enquanto] uma reorganização dos espaços educativos, através das regulações económicas e políticas que atravessam as fronteiras dos diferentes países (Teodoro, 2003, p. 14).

O cenário de uma sociedade da informação enfatiza as definições do mercado, em que a aprendizagem é posta em uma perspectiva de política e práticas educacionais, que tem o papel de ancorar o projeto da política neoliberal, voltado a uma dimensão de atendimento às novas demandas do mercado (Hughes e Thight cit. por Ball, 2001a, p. 130). Assim as políticas educacionais apresentam legitimidade a partir da “crítica e da ridicularização de políticas anteriores que são, assim, descritas como impensáveis” (Ball, 2001a, p. 130). No que se refere às políticas educacionais, a “nova” política emerge a partir da ineficácia de políticas anteriores, haja em vista que apresentamos um histórico de uma política de descontinuidade, em que uma nova política vem para substituir a anterior, na busca explicativa de culpados:

A culpa pode ser localizada na ineficácia ou nas heresias que seriam inerentes às políticas que a nova política substitui. A culpa também pode ser redistribuída pela política no interior do próprio sistema de educação, sendo, frequentemente, personificada (Ball, 2001, p. 130).

Este cenário aponta para uma produção de decisões sobre a educação que vem ao encontro crescente de critérios e valores de uma sociedade voltada para o mercado, em que a educação é transformada em um produto moldado aos valores mercadológicos:

na verdade, na política educacional e na política social em geral, a nova ortodoxia – a solução de mercado – é uma nova narrativa mestra, um discurso fissurado, mas primário, que engloba “ a própria natureza da economia e, portanto, a gama potencial das próprias políticas (Cerny cit. por Ball, 2001, p. 132).

No atual debate, fica evidenciado que as políticas educacionais, tanto ao nível local como global, estão relacionadas, e têm como marco temporal as duas últimas décadas do século vinte. Nesse período, em Portugal a formação inicial sofreu alterações no que se refere ao acesso, ao número de anos de formação e ao nível de qualificação. Foi a partir da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46 de 14 de outubro de 1986) que a formação inicial de professores do 1º Ciclo do Ensino Básico (CEB) teve como exigência o nível acadêmico superior. Essa medida fez expandir a criação de instituições privadas, desviando do Estado a responsabilidade histórica da formação desses profissionais. Essas e outras medidas legais possibilitaram a implementação das condições legais para o processo de Bolonha, que se apresenta com ideais de uniformização do ensino superior.

Na década de 1990, em Portugal, cresce a qualificação escolar e ao mesmo tempo se exacerbam as desigualdades sociais, expressas, entre outros fatores, no desemprego e na desvalorização dos diplomas, como identificamos em di-versos trabalhos de pesquisa de doutoramento (Pereira, 2007; Moreira, 2007). Também nesse período faz parte do palco da realidade portuguesa a ênfase na educação escolar de uma perspectiva discursiva que abrangesse a multiculturalidade (Leite, 2000, p.137).

Apesar da urgência de um discurso de educação, no que se refere ao multiculturalismo, é importante destacar que essa problemática quase sempre não foi acompanhada pelos professores, ficando restrita a alguns poucos pesquisadores ou a grupos que viviam a questão em seu cotidiano, a exemplo dos ex-emigrantes portugueses e dealguns grupos da população ciganas. É no início da década de 1990 que emerge,

entre nós, e a acompanhar uma corrente imigratória para Portugal e numa evolução de um discurso de promoção do sucesso educativo estruturado numa leitura das especificidades dos alunos, quase só vista em termos de grupo social, um discurso em torno da multiculturalidade (Leite, 2000, p. 139).

No que se refere às reformas do sistema educativo em Portugal, elas são constituídas de contradições, na medida em que, se, por um lado, havia

uma concentração na administração central de poderes legitimados das respostas características multiculturais da população escolar e a percepção desse fenômeno como um problema […], por outro lado, houve a visibilidade de medidas que foram globalmente positivas, no sentido em que apresentam a diversidade como um fator de enriquecimento (Leite, 2000, p. 139).

Para o mesmo sentido, aponta Nóvoa (2007), quando sustenta que as reformas educacionais apresentam contradições relacionadas com questões de ordem econômica externa e interna, do conjunto das sociedades. E quando considera que essas questões diminuem as possibilidades de serem geradas transformações que reflitam a realidade local e particular. Lembramos aqui a afirmação de Pereira (2007, p. 190), quando observa que esse processo configura “diferentes ideologias que se inscrevem não só no campo educativo, mas também no campo científico e no campo social em geral”.

Torgal (2008), na discussão sobre “universidade sem condição”, analisa também a implementação das atuais políticas de financiamento do Estado. Segundo este autor, a ênfase tem sido investir num processo de desqualificação da formação, através da criação e implementação de uma lógica empresarial, em que é apresentado um modelo de universidade em que o “protótipo é a ‘Universidade de Excelência’, expressão mágica que aponta menos para o aperfeiçoamento científico do que para uma função de rentabilidade e de performance” (Torgal, 2008, p.13).

Em síntese, fica claro que as políticas educacionais estão relacionadas ao âmbito econômico, ao mercado e às políticas de financiamento, e tal situação se apresenta como correspondendo à realidade brasileira, portuguesa e de toda Europa. Ou seja, deparamo-nos com a lógica mercadológica, que consiste em um movimento, traduzido na figura nº 1 abaixo:

 

 

A legislação em torno das questões educacionais, como a reforma educativa implementada em Portugal no início dos anos de 1990, expressa orientações económicas, quando nos seus objetivos é enunciada uma educação voltada para o trabalho, como ficou evidenciado em vários momentos, a exemplo do discurso de Roberto Carneiro, Ministro da Educação da altura, na Assembléia da República, em 2 de junho de 1989:

-a reorganização e reagrupamento do ensino técnico e profissional, o lançamento das escolas;

-a disseminação das novas tecnologias nos ensinos básicos e secundários;

-aponta-se para a valorização da dimensão humana no trabalho e para o desenvolvimento de competências gerais de empregabilidade (Pereira, 2001).

Desta orientação emerge uma semelhança na linha de pensamento no que se refere à questão da desvalorização e desqualificação, essencialmente das áreas das ciências humanas e, especificamente, das ciências da educação.

O ideário de um Estado que tinha como função controlar a economia para os setores públicos, que deveria garantir o emprego, ou seja, regulador do chamado Estado de bem-estar social (Peroni, 2003), passou a ser considerado o cânone de um paradigma falido, e que havia levado as nações a uma derrocada. Uma elevada produção intelectual tem circulado por toda a Europa e América Latina, dando suporte às ideias neoliberais, presentes nos modelos políticos educacionais.

A grande ênfase hoje é aproximar e dar espaço ao investimento do setor privado, o que significa um afastamento maior de um processo de democratização e de acesso à educação, que é baseado no discurso que leva à redução do aces-so, devido ao não financiamento institucional, dando lugar ao financiamento competitivo.

A política de rupturas e descontinuidades, presença pontual nas sociedades, é a marca das políticas educacionais, que pretendem criar processos de padronização da educação, através da “uniformização dos critérios de creditação e qualificação do ensino superior nos países da Comunidade Européia” (Pereira, 2007, p.155).

Neste sentido, Pereira destaca que os efeitos dessa configuração de políticas educacionais são visíveis, essencialmente através do discurso oficial e da produção documental, que mostra que o “centralismo educacional origina práticas educacionais com um caráter técnico e administrativo que oculta os interesses e os valores que lhe subjazem” (Pereira, 2007, p.155).

Na realidade portuguesa, assim como na brasileira e em várias partes do mundo, os Estados apontam medidas para sanar as problemáticas educativas, que muitas vezes são interrompidas ao sabor das mudanças de linhas de governo. Em Portugal, o Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP), criado a partir do Decreto-Lei n° 290/98, é um exemplo que, com a mudança do governo, foi extinto, mesmo sendo reconhecida a sua importância e o seu papel, que era: “acreditar e reconhecer cursos que habilitam para a docência, promover a reflexão, o debate e o intercâmbio de ideias e práticas no domínio da formação de professores” (Campos, 2001, p. 4).

Os documentos produzidos pelo INAFOP apontam que a formação inicial foi revitalizada na década de 1990, com projetos de investigação vividos em algumas escolas e universidades, voltados para uma reflexão em torno do conceito do professor reflexivo. Como afirma Pereira (2007, p 155), “com a criação do INAFOP, se retoma a discussão da qualidade da formação inicial de professores, discussão que, aliás, se vai integrar numa outra mais alargada sobre a qualidade da formação no ensino superior”.

Há um reconhecimento do lugar e papel do INAFOP, mas, a partir de uma mudança de governo, a aprovação da Lei nº 16-A/2002, de 31 de maio, extingue o Instituto. Segundo Moreira (2007, p.111), nesse momento foi interrompido o processo de apreciação de sessenta e seis cursos de formação inicial.

O INAFOP produziu importantes documentos publicados no Diário da República em torno dos padrões de qualidade, no que diz respeito à formação de professores, abordando “perfis profissionais de desempenho profissional docente”, no âmbito de um “perfil geral de desempenho do educador de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário”, e também em relação aos “perfis específicos de desempenho profissional do educador de infância e do professor do 1º ciclo do ensino básico” (Campos cit. por Moreira, 2007, p 111).

As Políticas Educacionais e o Processo de Bolonha em Portugal

O processo de Bolonha, em sua gênese, foi apresentado com o propósito de buscar solucionar, no campo científico e pedagógico, as problemáticas escolares européias, distintas nas suas especificidades por representarem conjunturas culturais diversas. Bolonha acenou com a possibilidade de uma reforma que respondesse às várias demandas educacionais da Comunidade Européia. No entanto, a União Européia

estava pronta a transformar a sua filosofia de liberdade e a ‘condicionar’ os governos e as universidades, sob o pretexto da criação de um Espaço Europeu de ensino superior, a seguir um padrão estipulado para uniformizar o modelo de ensino e, eventualmente, torná-lo mais econômico para os cofres dos Estados, numa lógica que se diz de ‘sustentabilidade’ (Torgal, 2008, p.11).

As marcas do processo de reformulação das políticas educacionais na Europa advêm do atendimento às políticas externas, mercadológicas, haja em vista que o teor da declaração de Bolonha assume uma perspectiva política para a reforma universitária com ênfase no aligeiramento da formação. Isso fica claro à medida que ajusta um “Espaço Europeu de Ensino Superior a seguir um padrão estipulado para uniformizar o modelo de ensino e, eventualmente, torná-lo mais econômico para os cofres do Estado” (Torgal, 2008, p. 11).

Como foi afirmado em outro momento (Leite, 2006, p, 286), a declaração de Bolonha vem estabelecer uma matriz para as reformas do Ensino Superior, justificada na intenção de construir um Espaço Europeu do Ensino Superior (EEES) que possibilitasse a mobilidade dos alunos e dos professores dentro do âmbito do espaço europeu. Mas, como afirma a autora, as razões para essa criação não estão dissociadas das questões mercadológicas.

Um dos aspectos que merece reflexão como retrocesso para a formação de professores na declaração de Bolonha tem relação com a organização da formação em dois momentos, em que

a formação específica pode vir a desenrolar-se em duas etapas, sendo a formação específica para a docência apenas obtida na segunda, isto é, no 2º ciclo (correspondente ao que virá a ser o nível de mestrado) (Leite, 2006, p. 287).

Essa lógica aponta para um retrocesso no que se refere a uma organização de formação “bi-etápica” as consequências desse modelo poderão contribuir para um processo de desvalorização da formação do professor, fato que tem sido atribuído aos mestrados portugueses. Isso leva a um enfraquecimento da prática da investigação, que tem sido marca da educação escolar, do campo curricular e da docência. Nesta linha, aponta Leite:

O anúncio de que o segundo ciclo de formação pode culminar com um estágio e não sempre com uma dissertação/tese, tal como até agora acontecia, irá fazer com que os professores e os formadores desses professores se centrem no ensino e na transposição didática dos conhecimentos teóricos obtidos no domínio das disciplinas em causa, mais do que na investigação sobre o que a sustenta e o que ela implica (2006, p. 290).

A partir da década de 1970, em Portugal, momento marcado pelas reformas e restabelecimento da dinâmica das exigências de ordem social, fazia parte das necessidades educacionais o discurso de um currículo flexível e integrado. Ele se apresentou como um desafio para esse momento, pois a grande dificuldade era romper com uma cultura escolar historicamente estruturada num trabalho centralista, em que impera uma política de executores do currículo e seus protagonistas instrumentalizados nas organizações centrais, configuradas nos documentos da política organizacional e do sistema. Essa dificuldade ficou clara à medida que, através do contato com muitas escolas, percebemos que se “vivia um clima de efervescência e de posições e sentimentos contraditórios” (Leite, 2005, p.25).

Outro aspecto que se coloca como elemento desafiador para o atual cenário das políticas educativas do ensino superior consiste no crescimento das taxas de desemprego dos diplomados, fato social que origina uma política educativa de menor exigência formativa, o que, segundo Morgado (2007), provoca a substituição de uma homogeneização cultural da nação para ir dando espaço à perspectiva mercadológica.

Para o autor, vem-se consolidando a ideia da falência do Estado enquanto “instrumento idôneo para assegurar a produção, a distribuição e a repartição de bens e serviços”, a que se sobrepõem o mercado e a ideia de um “Estado Mínimo” (Benítez cit. por Morgado, 2002, p.40).

Esta realidade é delicada, na medida em que a ênfase é o mercado, cresce a fragmentação e o processo de despolitização, afastando a participação social da sociedade como um todo, distanciando-a da prática democrática. Pretender isso como medida para solucionar a adoção de uma prática política de ajuste, pela via da subtração do setor público, retirar a prioridade pública, reforça a privatização. Nesse cenário, o Estado

deverá desenhar um conjunto de leis sociais que neutralizem e corrijam os desequilibrados efeitos das falhas do mercado, demonstram uma colossal inaptidão para resolver os problemas da educação, do crescimento econômico (Borón, 1995, p. 83).

A questão da expansão quantitativa do processo de escolarização em nível superior, a implementação de currículos semelhantes e a separação ensino e pesquisa vêm apresentando o papel de ajustamento da formação a uma dimensão técnica. Estes são alguns dos aspectos comuns nas políticas educacionais, tanto no Brasil, como em Portugal.

As Políticas Educacionais no Brasil

A efetivação das políticas educativas e de formação, como diz Pereira (2007, p. 328), implica uma “globalização educacional que se constitui, de fato, numa formalidade estandardizada mundialmente. Os países que a adotam ficam implicados em dispositivos comuns”. Isso que dizer que faz parte de um projeto de sociedade que tem como meta a adoção de normas globais, através dos veículos de institucionalização, como o Banco Mundial e a Unesco.

Os anos de 1990 traçam um cenário de políticas públicas em que a globalização, numa dimensão econômica, marca tensões em torno das políticas curriculares, à medida que a educação está inserida nas relações mercadológicas, que toma como base a configuração da competitividade, de novas tecnologias e de reformas curriculares, entre outras. Diante disso, deparamo-nos com um distanciando da educação, levando, inclusive, ao crescimento do índice do fracasso escolar.

O contexto histórico desses anos no Brasil apresenta-se permeado por um processo de mudanças nas formas das organizações do Estado, no qual a emergência democrática provoca discussões polêmicas no âmbito das políticas educacionais. Essas políticas estão imbricadas no processo de globalização econômica e em uma política social, o que leva a perceber as imbricações entre o conceito da globalização, a organização do Estado e o papel dos organismos internacionais.

No primeiro momento tratámos do atual contexto mundial que aponta uma tendência à diminuição da concepção de políticas especificas do Estado Nação/ Estado Providência, nos campos econômicos, social e educativo, voltando-se para uma perspectiva individual/privada. Esta se dissocia de uma visão de coletividade, que “foi justificada por uma ideologia cruamente ‘privatista’, que, incentivada pelos tecnocratas ligados às instituições financeiras internacionais, sustenta que tudo o que faz o setor privado é bom, eficiente e virtuoso” (Baron, 1995, p.82).

No atual quadro global, a formação e os espaços de formação têm sido objeto de alterações nos cenários dos diversos sistemas educativos, o que levou a eclodir novas definições nas políticas educacionais e a necessidade de um novo olhar para as definições das políticas curriculares. Com isso fez-se necessário que os espaços escolares tivessem que enfrentar alguns desafios, a exemplo da autonomia curricular e profissional, o que leva a evidenciar a constante tensão entre o global e o local.

Na realidade brasileira, o crescimento dos índices de desemprego, o analfabetismo, a miséria, entre outras questões sociais, no período dos governos de Fernando Collor de Mello (1990-1991) e de Fernando Henrique Cardoso (19942002), expressaram-se numa opção para um projeto de sociedade fundada nos ideais mercadológicos, baseados na competitividade, como instrumento regulador, elevando as desigualdades sociais. O reflexo desse cenário brasileiro na educação volta-se para uma ampliação dos exorbitantes índices de fracasso escolar.

Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, as políticas regulatórias ganham espaços, na medida em que a ênfase foi transferir o poder do Estado para o mercado, que tem como marca a ampliação de políticas públicas neoliberais, em que as mudanças nas ações no que se refere ao papel do Estado não deveriam intervir no mercado, a não ser enquanto um Estado Avaliador.

As políticas educacionais passaram a tomar como elementos básicos o financiamento, a formação de professores e a avaliação, temas que vão ter prioridade nos debates e que levaram a vários embates entre os diversos segmentos da sociedade. O eclodir de tensões e resistências mobilizou, inclusive, o crescimento de produções académicas em torno da temática, assim como a implementação de decretos e resoluções.

Este cenário demonstra o crescimento de uma perspectiva de política educacional que tem como horizonte atender às novas demandas do mercado. Isso fica claro à medida que as reformas têm as suas orientações voltadas para a descentralização, através da transferência das responsabilidades do Estado para o âmbito da sociedade civil, a exemplo da ênfase da privatização do ensino superior. É possível também constatar que o papel do Banco Mundial ganha fôlego nos países denominados periféricos.

No que se refere às políticas de avaliação, Silva (2007) aponta que a discussão em torno desse tema está implicada em uma contextualização histórica, daí não poder ser considerada isoladamente do cenário das políticas educacionais, pois “discutir sobre os efeitos e os impactos da avaliação sempre é debater sobre as repercussões políticas e pedagógicas que ultrapassam as fronteiras da própria dinâmica avaliativa” (Silva, 2007, p.156-157).

É também nesse período que no Brasil é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, que mobilizou os profissionais da educação e o movimento dos profissionais da formação, caracterizando-se como uma luta política que produziu tensões e retrocessos, marcados por movimentos de resistência que envolvem várias entidades, em especial a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação -ANFOPE. Esta caracteriza-se por uma histórica postura política de formação de professores, essencialmente no que se refere a investir num projeto de formação educacional pública de qualidade e de um processo de profissionalização docente, baseado numa sólida formação teórica, sendo esse movimento caracterizado pela resistência a uma política neoliberal e privatista da educação.

A ANFOPE dá ênfase a uma formação vinculada aos ideais sociais e aponta para um movimento constante em prol de uma mudança efetiva na realidade brasileira, opondo-se ao projeto neoliberal de educação. Esse movimento toma como base uma perspectiva de formação emancipatória.

A política educacional consiste num veículo de aproximação, de uma política enquanto função social distributiva, em que a educação não é tomada como uma mercadoria, sem considerar a dimensão da natureza do objeto da educação, distanciando-se de sua dimensão enquanto justiça social. Neste sentido, “a justiça não pode ser obtida através da distribuição da mesma quantidade de um bem padronizado e inquestionado às crianças de todos os grupos sociais” (Connell, 1995, p14).

Considerações Finais

Podemos tecer como considerações que o cenário das políticas educacionais na transição para o século XXI, no Brasil e em Portugal têm assistido a alusão às mudanças curriculares para o ensino nos vários níveis, desde a educação infantil ao ensino superior. Essas mudanças apresentam-se com maior visibilidade no âmbito das políticas oficiais e em outros espaços de formação discursiva, desde a comunidade acadêmica científica à sociedade civil.

No âmbito das políticas de currículo, os processos de reformulação curriculares não ocorrem numa disposição linear, não se limitam a um enunciado estático, mas a um enunciado como movimento que seleciona, organiza e faz a distribuição do conhecimento. É também inegável que os elementos eleitos para fazer parte do processo de reformulação das políticas curriculares têm relação com o projeto de sociedade.

Assim, as politicas curriculares dão-se num processo cíclico, a partir de uma declaração de intenções e intencionalidades e estão baseadas no contingente histórico social e político, sendo, então, indispensável investigar como elas são construídas nas instituições formadoras, através das várias formações discursivas, as quais mostram como foram construídos os discursos. Segundo Foucault (1997, p. 49), “os discursos não tratam apenas objetos; constituem-nos e, no processo de realização, concebem a sua própria invenção”. Este é o sentido que se identifica nos discursos das políticas de formação de professores.

Ball (2005), nesta mesma direção, diz que os discursos estão relacionados com o que se diz, com o que se pensa, com o que se pode dizer, onde se pode dizer e com autoridade no poder fazer. Fundamentalmente as políticas curriculares configuram vontades sociais que podem ser entendidas como campo de conflitos e resistências que apontam um desenho de sentidos e significados. Por isso, continuamos a acreditar nas possibilidades de se vir a concretizar uma formação de professores promotora de condições que contribuam para a institucionalização da igualdade.

 

Referências Bibliográficas

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Data de Submissão: Julho de 2012

Data de Avaliação: Outubro de 2012

Data de Publicação: Abril de 2013