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Revista Lusófona de Educação

Print version ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.23 Lisboa  2013

 

O Movimento das Histórias de Vida e a Educação de Adultos de Matriz Crítica: ideias e conceitos em contexto

The Movement of Life Histories and Critical Adult Education: Putting Concepts and Ideas in Context

Le Mouvement des Histoires de Vie et l’ Education d’ Adultes de matrice critique et Humaniste: des idées et des concepts en contexte

El Movimiento de las Historias de Vida y la Educación Crítica de Personas Adultas: ideas y conceptos en contexto

 

Rosanna Barros *

* Professora Adjunta da Universidade do Algarve. Diretora do Curso de Licenciatura em Educação Social. Cocoordenadora dos Mestrados em Educação Social e Gerontologia Social.
rmbarros@ualg.pt

 

Resumo

Este texto situa-se no panorama internacional da educação de adultos no qual a importância do movimento das histórias de vida para o debate que a problemática que opõe o diagnóstico de necessidades ao reconhecimento de adquiridos suscita é fundamental enquanto tentativa de superação da lógica dicotómica da racionalidade científica moderna, ou seja, como uma nova gnose que ao invés de separar e dividir pretende contribuir para criar, no trabalho educacional de matriz crítica, caminhos de inteligibilidade global sobre o mundo. Discutem-se aqui algumas vertentes da prática das histórias de vida em educação e formação de adultos (EFA), usadas enquanto instrumento de investigação, de intervenção e de formação. Neste tipo de contexto de uso, as histórias de vida são entendidas como um processo em devir, inacabado, dialógico, que se inscreve no âmbito das relações interpessoais e que olhado a partir de um pris-ma crítico e humanista, implicam sempre distintos tipos de relações de poder, traduzidas na trajetória de vida pela filiação, pela ideologia, pela religião, e pela apropriação simbólica de toda uma linguagem social, que ao serem investigadas e explicitadas criticamente podem dar origem a um processo com características de autopoiesis, que consideramos essencial em educação.

Palavras-chave: histórias de vida; educação e formação de adultos; diagnóstico de necessidades; reconhecimento de adquiridos; paradigma da educação permanente.

 

Abstract

This Paper takes in account the international scenario of adult education. Here the movement of life histories is essential to go beyond a debate that simple oppose to a training needs diagnosis an assessment of prior learning. The argument is that life histories proposals help us to think in a non-dualistic way, creating a new gnose to read the world in a critical way. The paper discusses some sides of life histories in adult education practices, especially as a research, interventional and training instrument. In this context life histories are used as an ongoing dialogical process centered in power relationships. This reading tried to unbolt the power relations present in life course looking to genealogy, ideology, religion, and symbolic representations as a study thematic that allows a autopoiesis process to emerge as the heart of critical adult education.

Keywords: life histories; adult education and training; training needs; assessment of prior learning; lifelong education.

 

Résumé

Ce texte se situe dans le panorama international actuel de l’éducation des adultes oùl’importance du mouvement des histoires de vie pour le débat suscité par la problématique opposant le diagnostic des besoins à la reconnaissance des acquis est fondamentale. Ce mouvement, en tant que tentative de dépassement de la logique dicotomique de la rationalité scientifique moderne, se pose comme une nouvelle gnose qui prétend contribuer à la création de chemins d’intelligibilité globale du monde, dans le cadre du travail éducationnel critique.

Nous discutons ici quelques aspects de la pratique des histoires de vie en éducation et formation des adultes, utilisées comme instrument de recherche, d’intervention et de formation. Dans ce contexte d’utilisation, les histoires de vie sont comprises comme un processus en devenir, inachevé, dialogique, qui s’inscrit dans le cadre des relations interpersonnelles et qui, observé d’un point de vue critique et humaniste, implique toujours différents types de relations de pouvoir, historiquement construites. Ces relations de pouvoir, se traduisant dans la trajectoire de vie par la filiation, par l’idéologie et par l’appropriation symbolique de tout un langage social, du moment où elles deviennent objet de recherche et sont explicitées critiquement, peuvent être à l’origine d’un processus aux caractéristiques d’autopoiesis que nous considérons essentiel en éducation des adultes.

Mots-clés: histoires de vie; éducation et formation des adultes; diagnostic des besoins; reconnaissance des acquis; paradigme de l’éducation permanente.

 

Resumen

Este texto ofrece una presentación desde el panorama internacional y contemporáneo de la educación de personas adultas. Allí tiene importancia el movimiento de las historias de vida por contribuir para el debate de la problemática que opone al diagnóstico de necesidades el reconocimiento de adquiridos. Se plantea su importancia fundamental por la tentativa que aporta de superación de la lógica dicotómica de la racionalidad científica moderna, fomentando una nueva gnose que al revés de separar y dividir se propone, desde el trabajo educacional de matriz crítica, crear caminos de inteligibilidad global sobre el mundo. Se toman algunas vertientes de la práctica de las historias de vida en educación y formación de personas adultas, utilizadas en una triple función como instrumentos de investigación, de intervención y de formación. En este tipo de contextos de utilización las historias de vida son consideradas como un proceso en devenir, inacabado, dialógico, que se inscribe en el ámbito de las relaciones interpersonales y que, desde un punto de vista crítico y humanista, implican siempre distintos tipos de relaciones de poder, construidas históricamente. Son relaciones de poder traducidas en la trayectoria de la vida por la filiación, por la ideología, por la religión, e por la apropiación simbólica de todo un lenguaje social, que al ser investigado y explicitado críticamente pueden originar un proceso con características de autopoiesis, que consideramos esencial en la educación de personas adultas.

Palabras clave: historias de vida; educación y formación de personas adultas; diagnóstico de necesidades; reconocimiento de adquiridos; paradigma de la educación permanente.

 

Introdução

O modelo escolar de educação segue pressupostos educativos que não foram concebidos para levar em consideração a experiência de quem aprende. Classicamente, este modelo e respetivo currículo assenta numa lógica de rutura com a experiência que homogeneiza os conteúdos da educação, desvinculando o conhecimento escolar do contexto social e cultural de quem aprende (Pacheco, 2011). Não iremos incorrer sobre os diversos momentos e aspetos da crítica que esta lógica de trabalho educacional suscitou ao longo do tempo. Não obstante, é importante reter no âmbito concreto das atividades e práticas educativas desenvolvidas nas várias modalidades, ou níveis, da ação educativa realizada com adultos, o essencial acerca da forma como se tem conceptualizado sobre a aprendizagem nos adultos e acerca do conceito de aprendizagem experiencial, porque assim se constata que têm existido duas formas alternativas à lógica escolar, de encarar a complexa relação entre o contexto, o que se ensina e o que se aprende. Historicamente, como contrapontos à lógica da mera aplicação, de carácter totalitário e impositivo, de um currículo de conteúdos escolares e formativos, irá surgir no campo das práticas não formais de EFA, a contraposição entre o diagnóstico de necessidades e o reconhecimento dos adquiridos. Esta problemática coloca no centro do debate a questão da adequação contextualizada dos processos e ofertas de EFA, conferindo importância à experiência de quem aprende, numa lógica inovadora de articulação com os contextos em que se desenrola a vida do sujeito aprendente. O sujeito ganha, pois, uma centralidade que não era possível no âmbito do paradigma escolar, reequacionando-se, no debate, o papel e estatuto que os saberes prévios, a uma dada situação de aprendizagem, têm na produção de novos conhecimentos. Ou seja, tomam-se retrospetivamente os percursos realizados de maneira a identificar as principais capacidades e saberes adquiridos, evitando o erro de pretender ensinar conteúdos que as pessoas já dominam.

Esta abordagem teórico-pedagógica parte do pressuposto que as aprendizagens experienciais resultantes do percurso de vida são tão ou mais decisivas para a concretização de novas aprendizagens como as aprendizagens formais derivadas do percurso escolar e traduzidas por um certificado. No entanto, a forma como se trabalha com este material experiencial é substantivamente distinta quando se está na ótica da conceção e prática que se estrutura a partir do levantamento ou diagnóstico das necessidades, ou quando se está na ótica da conceção e prática que se alicerça em torno da valorização ou reconhecimento de adquiridos. Nas práticas de EFA convocam-se, em ambas as situações, os saberes adquiridos experiencialmente, mas sob pressupostos teórico-conceptuais quase antagónicos, na medida em que, num caso se adota uma lógica que procura visibilizar sobretudo os défices e as lacunas que os sujeitos possuem, enquanto no outro caso o que se procura é evidenciar o que já está presente, isto é, o que o sujeito possui como aquisições.

O Diagnóstico das Necessidades e o Reconhecimento dos Adquiridos

No campo da EFA se o diagnóstico das necessidades de formação surge associado ao mundo económico por via da formação profissional contínua de jovens e adultos assente nos pressupostos teórico-conceptuais da teoria da formação dos recursos humanos (predominando conceitos como: qualidade, eficácia e engenharia da formação); já o reconhecimento dos adquiridos experienciais aparece associado a dois contextos históricos particulares do pós-guerra, em que pressões de grupos de interesses específicos garantiriam o reconhecimento das experiências vividas fora do percurso escolar como forma de assegurar o acesso ao ensino superior, quer por parte de grupos de soldados norte-americanos, quer de grupos feministas canadianos.

Deste modo, nasce dois tipos de oferta formativa para adultos que, na sua origem, advogam visões distintas em termos da conceção dos sujeitos e dos procedimentos pedagógicos a adotar para tomar em linha de conta a experiência prévia de quem aprende. Predominando, num caso, a metodologia da análise de necessidades e, no outro caso, a metodologia do balanço de competências. Ambos sofreram, desde a origem, diversos processos de expansão e adaptação a contextos variados. Neste texto, consideraremos apenas as dificuldades e ambiguidades que têm sido apontadas à prática de organizar a oferta formativa para jovens e adultos a partir das necessidades previamente identificadas, mediante mecanismos de avaliação e quantificação, que pressupõem a produção de efeitos observáveis pretensamente capazes de orientar a construção de programas de formação contínua mais próximos das necessidades dos indivíduos.

Acerca da análise de necessidades, em que se alicerça a abordagem teórico-pedagógica da formação profissional contínua, há a assinalar que os seus pressupostos de base tendem a ignorar, quer o facto de existir uma imprevisibilidade intrínseca aos resultados de qualquer ação formativa, quer a impossibilidade de captar, através de inquéritos individuais que expressam os pedidos de formação, a real inserção social dos atores nos contextos em que se desenrolam as suas experiências e por conseguinte em que se evidenciam as suas “lacunas” de formação. Trata-se, na maior parte dos casos, de uma prática assente numa perspetiva instrumental e numa racionalidade técnica de que resultam sobretudo ações de formação de carácter pontual e de capacitação individual elaboradas na base de necessidades que são, na verdade, mais o resultado de uma construção social do que de uma real necessidade de formação, na medida em que o próprio conceito de necessidade de formação é atravessado por diversas ambiguidades que o tornam problemático, apesar de se manter em boa medida ainda dominante (Barbier, 1988).

A controvérsia instalada no âmbito do debate que opõe o diagnóstico de necessidades ao reconhecimento de adquiridos tem como eixo principal a ideia que, no âmbito da prática do reconhecimento dos adquiridos se favorecem, como principais recursos de uma prática formativa, a personalidade e a experiência dos próprios sujeitos adultos. Ora, estes ao identificar os adquiridos experienciais deverão ser capazes, ajudados por uma metodologia específica, de reelaborar os seus saberes integrando-os e transferindo-os para situações e contextos diversos nos quais se desenrola o processo de autoconstrução da pessoa. A discussão advém da dificuldade de procurar operacionalizar uma articulação entre experiência e reflexão, partindo de alguns dos pressupostos do construtivismo piagetiano e do ciclo de aprendizagem (conceptualizado por David Kolb).

Os pressupostos pedagógicos orientadores da ação educativa, particularmente na modalidade da educação não formal de adultos, têm traduzido as dificuldades inerentes à transição de uma lógica de rutura com a experiência dos sujeitos para uma lógica de continuidade com a sua experiência anterior. Há hoje toda uma revalorização epistemológica da experiência patente no corpus teórico do campo, que tem vindo a contribuir para a construção de uma maior autonomia teórica da educação de adultos. Destacando-se, de forma especial neste contexto, a corrente das histórias de vida, entendidas como instrumentos de investigação, de formação e de intervenção.

Com efeito, no panorama internacional da EFA a importância do movimento das histórias de vida para o debate que a problemática que opõe o diagnóstico de necessidades ao reconhecimento de adquiridos suscita é fundamental, pelo que procuraremos explicitar alguns pontos essenciais nesta matéria.

O Uso da Abordagem Biográfica e Histórias de Vida

O movimento das histórias de vida, que emerge no âmbito das ciências sociais e humanas (CSH), expressa uma transição paradigmática já visível a nível societal, como se percebe da análise do conjunto de transformações de natureza social que afetaram a economia, o trabalho e a formação. Porém, não é percetível ainda a nível epistemológico, embora existam formulações teóricas recentes que apontam, como horizonte, a superação da hegemonia detida pelos modelos de estruturação do pensamento elaborados no âmbito do paradigma científico moderno. É o caso das novas formulações epistemológicas em torno do conceito de complexidade (Morin, 1990), que fazem retornar para o centro do olhar científico-filosófico toda uma série de conceptualizações em torno da ideia de totalidade que o paradigma dominante remeteu ostensivamente para as margens da ciência.

É cada vez mais visível o retorno do debate filosófico que problematiza a forma como a ciência tem vindo a produzir conhecimento, em particular uma ciência positivista responsável por uma euforia cientificista que, com base na noção de lei, espartilhou o real operando segundo uma lógica dicotómica que, na produção científica de conhecimento, tem optado por separar e dividir categorias como as de objeto e sujeito, as de ciência e senso comum. Ora, em sentido contrário, a reflexão filosófica desde finais do século XX tem procurado, ao invés, complementar o conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios enquanto humanidade, verificando-se que cada vez mais, na produção de conhecimento científico, a noção de lei tem vindo a ser substituída pelas noções de sistema, de estrutura, de modelo e, por último, pela noção mais elaborada de processo. Trata-se de um debate no qual, como afirma Sousa Santos, tem vindo a crescer a consciência que “o rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao objetivar os fenómenos, os objetualiza e os degrada” (Sousa Santos, 1998: 30).

Este é o princípio epistemológico geral que fundamenta o movimento das histórias de vida. Um movimento que se tem vindo a afirmar como uma tentativa de superação da lógica dicotómica da racionalidade científica moderna, ou seja, como uma nova gnose que ao invés de separar e dividir pretende contribuir para criar caminhos de inteligibilidade global sobre o mundo. São caminhos inscritos na lógica de conhecimento do paradigma emergente, que tende a produzir um conhecimento de tipo não dualista. Deste modo, o movimento das histórias de vida terá de ser compreendido, enquanto um movimento de ideias, nascido no âmbito das CSH, mais particularmente, naquela vertente das CSH de vocação anti-positivista, emanada duma tradição filosófica complexa, em que se foram elaborando criticamente matrizes teóricas alternativas de carácter compreensivo, fenomenológico, interacionista, hermenêutico e existencialista.

Na história recente do movimento das histórias de vida (para além de um passado mais remoto, no período da Antiguidade Clássica) destacam-se dois momentos charneira relacionados com o desenvolvimento e uso da abordagem biográfica e histórias de vida quer como instrumentos de investigação quer como instrumentos de intervenção na realidade social, no domínio das CSH, que ocorreram, respetivamente, no início e no final do século vinte.

Assim, nas primeiras duas décadas do século XX, sobressai o seu uso sistemático na investigação e na intervenção social no âmbito de três perspetivas analíticas: a antropologia, a psicologia (correntes da psico-história e da psico-biografia), e a sociologia, destacando-se aqui os trabalhos elaborados pela escola de Chicago, marcada pela hermenêutica da filosofia alemã e, mais tarde, pela sociologia militante que marcou a Polónia da II Guerra Mundial (Le Grand, s/d; Finger, 1996; Dominicé, 1990).

Depois deste período inicial de desenvolvimento e expansão, no que diz respeito ao uso da abordagem biográfica e histórias de vida na investigação e na intervenção, no âmbito das CSH, que ficou conhecido nos Estados Unidos (EUA) como a época das histórias de vida ou narrativas de vida (life histories ou life stories), a sua popularidade sofreu uma inflexão, devida ao declínio da escola de Chicago e à proeminência ganha pela escola de Columbia (e metodologias de investigação quantitativas). Iniciando-se um período de interregno na sua utilização e teorização que só se irá inverter meio século mais tarde, tenuemente nos anos sessenta, uma época de procura de alternativas metodológicas no contexto do movimento contra-cultural nos EUA e da nova esquerda na Europa, e vincadamente desde os anos oitenta, altura em que se desenvolveu uma linha inovadora de investigação em domínios diversos (histórico, etnológico, psicológico, sociológico, literário) que valorizou muitos dos aspetos ignorados no paradigma dominante que regeu a investigação em CSH, e que é manifestamente a favor da recolha direta ou indireta de ‘testemunhos vividos’, tendo-se mantido dinâmica a sua utilização e teorização desde então (Póirier, Clapier-Valladon & Raybaut, 1999; Finger, 1996).

Atendendo aos altos e baixos na história do desenvolvimento da abordagem biográfica e histórias de vida, na investigação e na intervenção no âmbito das CSH, podemos compreender melhor as palavras de Dominicé referindo que muitos dos investigadores que optam por este modelo empírico-analítico “têm consciência de estar a abrir novas vias metodológicas” (Dominicé, s/d: 75). De igual modo Pilon e Desmarais referem que

as histórias de vida ou narrativas de vida (…) tornam-se, depois de 1976, muito mais do que uma ferramenta de recolha de dados, constituindo uma forma de abordagem inovadora de um vasto leque de fenómenos etno-psico-sociais (…) dentro da área de investigação e, mais recente ainda, da educação de adultos. (Pilon & Desmarais, 1996: 11).

Pelo tipo de trajetória histórica do uso da abordagem biográfica e histórias de vida no âmbito das CSH, em que se passa de um período vigoroso para um período de declínio e novamente para um período de reemergência e expansão, e considerando o carácter alternativo com que esta abordagem se investiu, não surpreende que ao longo dessa trajetória existam momentos de maior controvérsia ao nível do debate teórico-conceptual suscitado pelo seu uso. Trata-se de uma abordagem teórica, metodológica e epistemologicamente intrincada, e até mesmo contestada por representantes disciplinares clássicos (como Pierre Bourdieu). A controvérsia emana do facto de esta abordagem implicar uma relação nova do próprio investigador com o objeto de investigação, uma relação re-conceptualizada como relação biográfica entre sujeitos. Esta proposta veio suscitar o reequacionar de pressupostos hegemonicamente instituídos no processo científico de investigação, com destaque para o debate epistemológico sobre o papel da subjetividade e das vivências na elaboração do conhecimento científico (Dominicé, s/d; Pineau, 2001).

O interesse pela utilização deste tipo de abordagem prende-se também com uma dupla exigência do tempo presente: primeiro, relacionada com a necessidade de uma renovação metodológica; e, segundo, relacionada com a exigência de uma nova antropologia. Uma renovação metodológica na medida em que, aos dois princípios da epistemologia clássica da ciência moderna, o da objetividade, que exclui o sujeito do processo de investigação, e o da intencionalidade nomotética, que procura regularidades estatísticas e leis gerais, se contrapõe dois axiomas fundamentais da abordagem biográfica e histórias de vida: a subjetividade e a singularidade. Uma nova antropologia na medida em que, cada vez mais, a necessidade ontológica de apreensão e compreensão do contexto multicultural de vida atual, em que a vida quotidiana está impregnada de dificuldades relacionais e contradições culturais, não é compatível com as grandes explicações estruturais, ou meta-narrativas, da antropologia clássica.

A abordagem biográfica e histórias de vida, entendida como instrumento de investigação e de intervenção, baseia-se numa “hermenêutica da interação” que produz conhecimento através do estabelecimento de uma comunicação interpessoal complexa e recíproca entre o narrador e o narratário que investiga (Ferrarotti, 1988). Ora, acentuando que esta abordagem ambiciona facilitar a integração do sujeito na sua realidade envolvente, Josso afirma

o entusiasmo pela perspetiva biográfica aparece inseparável da reabilitação progressiva do sujeito e do ator (…) essa reabilitação pode ser interpretada como um retorno do pêndulo depois da hegemonia do modelo de causalidade determinista das conceções funcionalistas, marxistas e estruturalistas do indivíduo, que dominaram até ao fim dos anos setenta. (Josso, 2002: 13-14).

Também Finger concebe a perspetiva biográfica como “uma abordagem de pesquisa que liga a teoria e a prática, em seguida dá voz ao sujeito, e reconhece um valor de conhecimento social à subjetividade, enfim, ela representa uma alternativa democrática e participativa ao tipo de pesquisa dominante” (Finger, 1996: 31).

É atendendo a este contexto de reconstrução do próprio olhar científico sobre o mundo que Pineau afirma “as histórias de vida estão hoje em dia presentes nas encruzilhadas da investigação, da formação e da intervenção” (Pineau, 2001: 342), e enfatiza o potencial do tempo presente porque se sabe que “as encruzilhadas são espaços estratégicos ‘de agir comunicacional’ que expõem a colisões mas também a vias possíveis” (obra citada acima: 342). De igual forma Sousa Santos alude à reconceptualização em curso das condições epistemológicas e metodológicas do conhecimento científico social para destacar que “o sujeito, que a ciência moderna lançara na diáspora do conhecimento irracional, regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica” (Sousa Santos, 1998: 43). Uma das direções críticas e inovadoras que já se vislumbram neste contexto de mudança aponta para o facto do carácter autobiográfico e auto-referenciável da ciência ser plenamente assumido no paradigma emergente. O conhecimento constitui-se em redor de temas concretos, que em dado momento são adotados por grupos sociais organizados, como projetos de vida locais. Há deste modo, como sublinha Sousa Santos, a necessidade de questionar o status quo metodológico, da investigação e da intervenção, na medida em que um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico porque se constitui

a partir de uma pluralidade metodológica. (…) Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante uma transgressão metodológica (…) a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural. (Josso, 2002: 54).

A Corrente das Histórias de Vida em Educação de Adultos

A teorização crescente da abordagem biográfica e histórias de vida, no âmbito das CSH, repercutiu-se no domínio da educação, particularmente no campo da EFA. A raiz teórico-filosófica da corrente das histórias de vida em educação inscreve-se, portanto, no âmbito deste movimento das histórias de vida das CSH, situando-se num contexto alternativo, de produção metodológica e epistemológica, ao modelo de inspiração positivista e tecnocrata vigente nas ciências da educação. Assim, do registo de influências teóricas próprias do pensamento social, de onde derivaram os fundamentos desta abordagem teórico-pedagógica em EFA, há a assinalar o romantismo alemão, em particular a fenomenologia (com realce para Husserl) e a hermenêutica (com destaque para Dilthey e Gadamer) e os contributos, mais recentes, da ‘filosofia dos mundos de vida’ (Lebensweltphilosophie, com realce para Schütz e Habermas). Ora, este impacto é muito recente carecendo de maior reflexão teórica, o que só agora começa a surgir no âmbito do corpus teórico existente na EFA.

Com efeito, excetuando os métodos de conscientização inspirados na abordagem político-pedagógica de Paulo Freire, a abordagem biográfica e histórias de vida não tem sido muito utilizada nas ciências da educação e a reflexão teórico-pedagógica sobre perspetivas biográficas no campo da EFA, usadas enquanto instrumento de investigação, de intervenção e de formação, ficou a dever-se, aos teóricos da corrente das histórias de vida em educação da escola de Gene-bra, embora, nos EUA, se tivessem desenvolvido trabalhos que equacionavam as questões da reflexão e da experiência nos processos de aprendizagem dos adultos, destacando já o sujeito (com realce para Dewey e Schön).

Ora, como os teóricos da escola de Genebra têm acentuado, não chega adaptar as teorizações vindas das CSH, em especial da sociologia, para um domínio como o da EFA, sendo fundamental que se procure descobrir e reinventar o potencial das perspetivas biográficas para as problemáticas de carácter educacional. Tem-se vindo a conceptualizar, assim, as histórias de vida em educação como projeto de conhecimento e como projeto de formação, um tipo de formulações teóricas que conferem à escola de Genebra um estatuto fundador, na medida em que “a dinâmica de articulação entre formação e investigação faz da nossa abordagem biográfica uma versão inovadora do método das histórias de vida no campo das ciências humanas” (Dominicé, 1990: 71).

Em contexto de transição paradigmática, a prática das histórias de vida em EFA tem vindo a ser entendida, por esta escola, como uma mediação adequada às complexas características atuais das sociedades ocidentais. Isto na medida em que, como sublinha Josso

a segmentação do ‘saber-viver’ operada pela sociedade industrial para a comodidade de uma divisão social do trabalho e dos poderes que lhe estão ligados (…) e o paradigma cartesiano do conhecimento pela fragmentação [provocam] no ‘sendo’ que somos um sentimento de divisão e de perda de uma compreensão da nossa existencialidade. (Josso, 2002: 119).

Este é um dos fatores que justifica a criação da prática das histórias de vida em EFA, nos termos em que vem sendo usada pela escola de Genebra, ou seja, no sentido de fomentar uma “consciência reunificada de nós mesmos, individual e coletivamente” (obra citada acima: 119), assumindo-se enquanto uma prática crítica que opera um “deslocamento para uma posição meta-disciplinar na qual a busca de um ‘saber-viver’ ou a procura de uma sabedoria tenta uma reintegração operante dos conhecimentos no seio da nossa existencialidade” (Josso, 2002: 119).

Deste modo, a emergência de um novo paradigma traz consigo uma nova racionalidade que no domínio da educação nos força a reaprender a pensar a realidade educacional. A este respeito Nóvoa afirma que “a interrogação epistemológica que atravessa hoje em dia alguns círculos da formação de adultos tem origem numa crítica a uma ‘visão desenvolvimentista’ da educação e na procura de uma conceção da formação que permita ao indivíduo ‘pensar-se na ação’” (Nóvoa, s/d: 70). Trata-se de ensaiar um entendimento novo da EFA, que prescinda dos tradicionais conceitos de progresso e de desenvolvimento, repensando as questões e as problemáticas da educação a partir do potencial contido nas perspetivas biográficas. Assim, a educação e formação ao longo da vida, deverá considerar na sua prática educativa presente, para além da ideia de desenvolvimento futuro também a ideia de retrospeção, ideias interrelacionadas na praxis educacional com base numa metodologia de balanço de vida. Considerando o essencial destes pressupostos, Nóvoa sublinha

o conceito de reflexividade crítica deve assumir um papel de primeiro plano no domínio da formação de adultos (…) o adulto está implicado numa ação presente, o que o obriga a ter em conta um outro vetor dominante da formação de adultos, a consciência contextualizada. (Josso, 2002: 72).

No âmbito desta conjuntura, a problemática da construção das identidades dos sujeitos, da valorização das suas subjetividades, do papel dos atores na construção das representações sociais, tem vindo a ganhar um maior relevo no campo da EFA, quer ao nível das práticas educativas quer das formulações teóricas. Isto traduz o que se passou no âmbito das próprias CSH, por exemplo, em torno do ‘retorno do ator’, ou da maior articulação entre as esferas micro e macroestruturais da sociedade.

A pesquisa identitária e a consideração contextualizada do sujeito estão agora no coração da praxis da investigação social e da reflexão educacional que envolve adultos (West e outros, 2007). Esta preocupação encontra-se espelhada na literatura que tem surgido no sector, em torno dos designados processos experienciais (Monteagudo, 2008). Processos experienciais que, nas dinâmicas interativas de educação e formação e nos processos de intervenção, superam os pressupostos do inquérito clássico, como refere Dionne

trata-se de uma abordagem empírica que valoriza de antemão o ator, na sua relação consigo mesmo e com o ambiente social, obrigando o investigador-interventor a realizar práticas mais consequentes de desenvolvimento, e também mais socializantes quanto aos resultados alcançados. (Dionne, 1996: 181).

O impacto para a EFA deste tipo de abordagem relaciona-se com o reconhecimento da centralidade da pessoa adulta nos processos de educação e de formação, motivado, por um lado, pelas propostas de construção de um estatuto epistemológico do sujeito, que englobem a subjetividade nos processos de construção de conhecimento, e por outro lado, pela revalorização epistemológica da experiência e a sua consideração consequente nos processos de aprendizagem. Com efeito, as diversas aproximações à perspetiva teórico-pedagógica da abordagem biográfica e histórias de vida, elaboradas no âmbito do corpus teórico da EFA, traduzidas nas diversas terminologias utilizadas no campo (Le Grand, s/; Pineau, 2001; Pilon & Desmarais, 1996) mostram que estamos, no presente, perante um domínio aberto de possibilidades que começam a ser exploradas à luz das preocupações do paradigma emergente, sobretudo na tradição de pensamento francófono.

Considerações Finais

A prática das histórias de vida em EFA assenta numa proposta de investigação, individual ou grupal, que pretende construir significados à partir dos factos temporais relativos à trajetória pessoal de vida dos sujeitos. Neste tipo de contexto de uso, as histórias de vida são entendidas como um processo em devir, inacabado, na maior parte do tempo dialógico, inscrito no âmbito das relações interpessoais, que implicam sempre distintos tipos de relações de poder, traduzidas na trajetória de vida pela filiação, pela ideologia, pela religião, e pela apropriação simbólica de toda uma linguagem social. Estas ao serem investigadas e explicitadas criticamente dão origem, nos termos da lógica desta abordagem, a um processo educativo e formativo que, trabalhando numa constante passagem entre o registo oral e o registo escrito e entre o passado, o presente e o futuro, adquire as características de uma prática autopoietica, inscrita na análise ativa da produção de identidade dos próprios sujeitos, como, aliás, a etimologia do termo autopoiesis, do grego autos (eu) e poiein (produzir), sugere (Pineau & Le Grand, 1993; Le Grand, s/d).

Um traço estruturante comum, nos pressupostos teórico-pedagógicos inerentes a cada uma das terminologias existentes no âmbito da abordagem biográfica e histórias de vida em educação, é considerar-se como central a reflexão crítica nos processos de EFA. Sobre isto, Pilon e Desmarais afirmam “a prática das histórias de vida em contexto de formação, como processo de construção identitário e como caminho de emancipação não se atinge de maneira espontânea e natural” (Pilon & Desmarais, 1996: 12). Daí que se considere que as práticas das histórias de vida conduzidas reflexivamente “proporcionam uma ocasião de revalorização epistemológica da noção de experiência, e de uma aprendizagem fundada na experiência” (obra citada acima: 13).

Esta lógica caracteriza a atual utilização das histórias de vida em EFA segundo duas tendências: uma (em expansão) relacionada com a orientação e formação profissional para explicitar os saber-fazer adquiridos pelo trabalho: são as designadas histórias de vida profissionais; e outra relacionada com a formação e desenvolvimento pessoal para retirar benefício de todos os saber-viver implícitos nas esferas privadas da vida quotidiana: são as denominadas histórias de vida existenciais (Pineau, 2001).

Nas histórias de vida existenciais, de menor visibilidade mas de maior impacto no sujeito, tem sido considerado que os processos educativos, conduzidos de acordo com esta racionalidade, estão implicados na construção de uma nova biografia, agora elaborada de maneira mais consciente e maior sentido de agência e interferência, que abre espaço para a reconstrução da própria história e condição de vida. Segundo West (2004), o sucesso deste tipo de processo pressupõe o respeito de três elementos psicopedagógicos: o primeiro é a possibilidade de criar condições de intercâmbio de pontos de vista, com outros indivíduos, de aspetos particulares do percurso de vida; o segundo está relacionado com a ideia de que a EFA (e alguns contextos da terapia de grupo) possibilitam entender a aprendizagem enquanto espaço propiciador de uma transição ao nível da autoconsciência, que facilita, aos adultos envolvidos neste tipo de processo, arriscar a exposição a terceiros de elementos relacionados com o seu sentido pessoal de identidade e trocar criticamente ideias a partir deles; e um terceiro que envolve a criação e desenvolvimento, nos sujeitos, de um repertório narrativo da sua própria experiência cada vez mais extensivo e auto-consciente. West destaca, como traço marcante da atualidade da EFA, que

os métodos biográficos têm, progressivamente, se deslocado para um lugar de destaque na aprendizagem de adultos (…) a investigação biográfica pode-nos permitir esclarecer o sentido das ações, e compreender o seu significado, através das histórias sobre os que estão no centro do processo. (West, 2004: 4-7).

Esta crescente centralidade a que alude West (2004) no campo da EFA, foi influenciada pelos trabalhos pioneiros realizados no âmbito da tradição de pensamento francófona, com destaque para as formulações teórico-pedagógicas desenvolvidas pela obra de Pineau e pela obra de Dominicé, as primeiras dando forma à designada autobiografia e as segundas estruturando a denominada biografia educativa. A este respeito Nóvoa refere

com o título sugestivo de Vidas das Histórias de Vida publicou Pineau, em 1980, um livro que marca o início da utilização sistemática do método (auto) biográfico no âmbito da formação de adultos [desde então] a reflexão em torno da utilização das histórias de vida tem-se enriquecido consideravelmente, dando origem a uma série de estimulantes experiências em vários países da Europa e da América do Norte. (Nóvoa, s/d: 73).

De facto, a rede francófona das histórias de vida, em França e no Canadá, em colaboração com as pesquisas da escola de Genebra, inauguraram uma corrente de utilização das histórias de vida em EFA, cujos desenvolvimentos têm contribuído para alargar o corpus teórico da EFA em duas vertentes: uma preocupada com a construção de uma teoria da formação a partir do sujeito aprendente, e outra debruçada na conceptualização das histórias de vida enquanto metodologia de investigação e de formação (um traço distintivo da escola de Genebra). Como afirma Dominicé “a biografia é um instrumento de investigação e, ao mesmo tempo, um instrumento pedagógico (…) esta dupla função da abordagem biográfica caracteriza a sua utilização em ciências da educação” (Dominicé, s/d: 78). Assiste-se, assim, à tentativa de construção de uma teoria da educação e formação a partir do sujeito aprendente. Como afirma Nóvoa “as histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no esforço de repensar as questões da formação, acentuando a ideia que ‘ninguém forma ninguém’ e que ‘a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida” (Nóvoa, s/d: 73). Neste ponto, merece-nos destaque Pineau que, ao longo da sua obra, explorou teoricamente esta nova dimensão da abordagem biográfica inscrevendo-a nalguns dos pressupostos da perspetiva da educação permanente. No pensamento de Pineau as histórias de vida são conceptualizadas como um método de investigação-ação que procura estimular a autoformação, isto na medida em que o exercício pessoal de explicitação crítica de uma dada trajetória de vida, ou seja, a apropriação retrospetiva do percurso de vida do indivíduo-sujeito, obriga-o a um trabalho de grande implicação, contribuindo para uma tomada de consciência crítica, individual e coletiva, e para uma participação efetiva no seu próprio processo de formação (Pineau, 2001).

A utilização das histórias de vida em EFA, proposta por Pineau, permite articular no mesmo processo educativo as atividades de formação, de investigação e de intervenção, como defende Dominicé (1990) no seu processo de formação-investigação, ou Barbier (1988) no seu processo de investigação-formação existencial, reconhecendo-se em ambos os processos o aprendente adulto como um produtor de saber, mais do que um consumidor de saber. Portanto, como contributo para a conceptualização e disseminação das histórias de vida enquanto metodologia de investigação e de formação estão os pressupostos da escola de Genebra, que segundo Josso, têm girado em torno de dois eixos principais que se influenciam mutuamente: um relacionado com o “projeto teórico de uma compreensão biográfica da formação, e a fortiori da autoformação, através das perspetivas de investigação-formação” (Josso, 2002: 15); e outro mais debruçado sobre o “uso de abordagens biográficas postas ao serviço de projetos (projeto de expressão, projeto profissional, projeto de reinserção, projeto de formação, projeto de transformação de práticas, projeto de vida)” (obra citada acima: 15).

No âmbito das histórias de vida, enquanto projeto de conhecimento, sobressaem os esforços de teorização realizados para o apuramento de metodologias de investigação-formação que, conforme sublinha Josso

tinham e continuam a ter necessidade de reivindicar, de criar um espaço, de justificar a sua fundamentação [com o intuito de] conceder legitimidade à mobilização da subjetividade como modo de produção do saber e à intersubjetividade como suporte do trabalho interpretativo e de construção de sentido para os autores das narrativas das histórias de vida. (Josso, 2002: 16).

exprimindo, esta preocupação metodológica, o desafio epistemológico de refletir acerca do valor de uso dos conhecimentos produzidos e das normas de legitimação de um determinado saber científico.

Já no âmbito da abordagem biográfica ou experiencial colocada ao serviço de lógicas de projeto aplicado, sobressai o carácter mais circunscrito, em muitos casos também mais instrumentalizado, dado à narrativa biográfica, uma vez que “as histórias de vida postas ao serviço de um projeto são necessariamente adaptadas à perspetiva definida pelo projeto no qual elas se inserem” (Josso, 2002: 20). Destacam-se aqui dois contextos de uso principais: um relacionado com a formação profissional, e outro com o reconhecimento de saberes adquiridos.

Estes dois eixos estruturantes da conceptualização das histórias de vida, enquanto metodologia de investigação e de formação, têm-se traduzido numa reflexão, de cariz inovador no panorama do corpus teórico da EFA, debruçada sobre os papéis do autor, ator e leitor na prática de construção e de compreensão das histórias de vida, bem como sobre o poder transformador das mesmas. Neste contexto de teorização aceita-se que a narrativa de vida não tem em si qualquer poder transformador, uma vez que esse poder reside apenas, como sublinha Josso, na “metodologia de trabalho sobre a narrativa de vida [que pode representar a] oportunidade de uma transformação segundo a natureza das tomadas de consciência que aí são feitas e o grau de abertura à experiência das pessoas envolvidas no processo” (Josso, 2002: 116).

A prática de investigação-formação assente nas histórias de vida, ou seja, todo o trabalho de reflexão crítica sobre o percurso de vida e sobre a forma como cada um constrói a sua própria narrativa biográfica, deverá possibilitar um trabalho propiciador de uma progressiva tomada de consciência dos diversos referenciais teóricos que funcionam como a priori nos processos de conhecimento. Todo o sentido desta prática de mediação reside no facto, segundo os teóricos da escola de Genebra, de ser possível utilizar o trabalho biográfico como instrumento de identificação dos preconceitos, das convicções, das representações, dos sistemas interpretativos nos seus contextos de constituição, sendo nestes contextos, e portanto nas situações de vida, que são tecidas as dimensões individuais e coletivas, psicossomáticas, sociais e culturais das nossas atividades, das nossas interações e das nossas representações, sendo deste modo que a procura deliberada de uma distanciação em relação ao pensamento, às categorias que usamos para interpretar as realidades em que nos envolvemos se torna, de acordo com Josso, um “prolongamento natural do trabalho de compreensão do que é a formação (…) que põe em evidência a epistemologia do sujeito aprendente” (Josso, 2002: 105).

O essencial desta abordagem teórico-pedagógica fundada sobre uma perspetiva fenomenológica e hermenêutica passa, segundo Nóvoa, “pela definição das histórias de vida como metodologia de investigação-formação, isto é, como metodologia onde a pessoa é, simultaneamente, objeto e sujeito da formação” (Nóvoa, 2002: 10). Costa e Silva afirma também, que os dispositivos de educação e formação que se orientam por uma racionalidade crítica têm inerente à sua construção

a enunciação e explicitação dos sujeitos em formação, os quais se descobrem através da narrativa biográfica, e se projetam através da identificação e construção de projetos [deste modo] a formação adquire uma dimensão não só retrospetiva mas, fundamentalmente, projetual na qual estão presentes tanto as representações como as identidades dos autores. (Costa e Silva, 2003: 98).

Transportando consigo os pressupostos do paradigma emergente no que concerne a valorização do papel da subjetividade na história, da ideia de totalidade e de inter-relação complexa do real, esta corrente, tal como sublinha Pineau, é percecionada como uma “abordagem de teorização recente e polémica, porque coloca questões de fundo, epistemológico, metodológico e deontológico” (Pineau, 2001: 346). A maioria das questões de fundo e das críticas que vão sendo apontadas, seguem três linhas principais: a dos que consideram que esta abordagem é anticientífica, na medida em que “está demasiado próxima da ideologia do ser vivo, valorizando o sentido corrente dos atores” (obra citada acima: 347), motivo pelo qual lhe é atribuída uma “epistemologia ingénua que não teria sofrido a catarse dos mestres consagrados da dúvida” (obra citada acima: 347); uma segunda linha que a considera antipedagógica, uma vez que se revela “demasiado subjetiva para permitir a distância necessária a um trabalho objetivo” (obra citada acima: 347); havendo ainda quem considere, numa dimensão bioética, que “o seu carácter vital iria torná-la demasiado arriscada, demasiado perigosa para ser utilizada” (obra citada acima: 347). Ora, podemos considerar com Pineau que “estas questões indicam problemas fundamentais cuja amplitude significa pelo menos que não se trata da chegada de um simples instrumento pedagógico suplementar” (obra citada acima: 347).

Portanto, o uso das histórias de vida em EFA operou uma deslocação paradigmática no modo de conceber a educação, pois transforma o adulto num coprodutor da sua educação, e muda a forma de conceber o trabalho educativo que passa a incidir muito menos na aquisição de conteúdos para, ao invés, incidir muito mais na compreensão do meio ambiente físico e social. Trata-se de uma abordagem teórico-pedagógica que, partindo dos contributos do movimento das histórias de vida nas CSH, conceptualiza questões centrais à problemática-chave da EFA que discute a contraposição entre o diagnóstico de necessidades e o reconhecimento de adquiridos, e instaura um debate nascido da tentativa de superação da lógica clássica do trabalho educativo, assente numa dupla rutura, por um lado, com a experiência dos sujeitos, por outro lado, com os contextos em que se desenrola a sua vida.

Em suma, o corpus teórico da EFA tem vindo a ser redimensionado no âmbito dos contributos da corrente das histórias de vida. Esta corrente convida, como vimos, a operar uma vinculação consequente entre o conhecimento e o contexto social e cultural de quem aprende, sendo que quem aprende é percecionado enquanto sujeito coprodutor de conhecimento e não enquanto recetor de conteúdos, pontos em que há a assinalar convergências importantes com alguns dos pressupostos quer do paradigma da educação permanente quer do pensamento freiriano.

A prática de investigação-formação assente nas histórias de vida remete para um quadro de ação que procura evitar que se pretenda ensinar o que as pessoas já conhecem. Nos termos deste novo modo de conceber a educação, que valoriza a aprendizagem experiencial nos adultos, desenvolveu-se dois modelos de práticas educativas principais, com pressupostos teórico-conceptuais antagónicos: um que se concentra nos défices dos sujeitos aprendentes, e opera através da metodologia da análise de necessidades; e outro que se concentra nos adquiridos dos sujeitos aprendentes, e opera através da metodologia do balanço de competências. O mais notório, em ambos os casos, é que o conceito de experiência se transforma na chave mestra de uma nova postura metodológica, com novos pressupostos epistemológicos centrais a toda uma nova filosofia político-pedagógica que caracteriza o panorama contemporâneo de reflexão e investigação no campo da EFA.

 

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Data de Submissão: Maio de 2012

Data de Avaliação: Setembro de 2012

Data de Publicação: Abril de 2013