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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.21 Lisboa  2012

 

Educação superior, gênero e gestão universitária em honduras, Entrevista com a professora Rutilia Calderón

 

Maria Eulina Pessoa de Carvalho * & Ana Paula Távora da Silva **

*Professora da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista Capes (pósdoutorado) pelo Projeto CAPES/DGU n° 211/2010, UFRN/UFPB, Brasil e Universidade de Valência. Participante da Rede RIAIPE3, Programa Marco Interuniversitário para a Equidade e a Coesão Social na Educação Superior, www.riaipe-alfa.eu, financiado pela Comissão Europeia através do Programa Alfa, Refª DCI-ALA/19.09.01/10/21526/245-580/ALFA III(2010)84.

**Licenciada em Psicologia na Universidade Católica de Pernambuco, doutoranda em Educação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, onde está a desenvolver projeto de investigação sobre reitoras no Nordeste do Brasil.

 

Honduras, pequeno país de língua espanhola da América Central, tem aproximadamente 8,3 milhões de habitantes, de várias etnias, e uma história política conturbada. Sua posição geográfica no centro da América tem sido determinante importante do papel que teve e continua a ter no processo de desenvolvimento capitalista na região e nas crises e conflitos, por vezes armados, gerados por esse processo. Em 2009, após 29 anos de retorno à democracia representativa, Honduras viveu um golpe de Estado que tem polarizado a sociedade e repercutido negativamente em todas as dimensões da vida do país.

Em 2010, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Honduras era de 0,604 (posição 106), inferior à média da América Latina e Caribe (0,706) e à média mundial (0,624). Com uma taxa de alfabetização da população acima de 15 anos de 83,6%, média de anos de instrução de 6,5 e taxa bruta de matrícula de 74,8% (http://hdrstats.undp.org/es/paises/perfiles/HND.html), Honduras tem uma taxa de frequência na educação superior de 14,7 % da população entre 18 e 24 anos de idade.

A Universidade Nacional Autónoma de Honduras (UNAH) foi fundada em 1847 e oferece 103 cursos de graduação com 72.000 matrículas, e 47 cursos de pós-graduação com 6.000 matrículas, em 2011. Conta com aproximadamente 54% de mulheres (1.900) em seu corpo docente, que totaliza 3.500. Uma situação muito particular, em Honduras, em relação a outros países da América Latina, é que a UNAH, por mandato constitucional, representa o Estado no campo da educação superior, encarregando-se da organização, direção e desenvolvimento da educação superior no país.

Uma universidade dirigida por mulheres

A UNAH, a universidade mais importante de Honduras, é dirigida majoritariamente por mulheres. Além da reitora, são três vice-reitoras: acadêmica, de orientação e assuntos estudantis, e de relações internacionais. Rutilia Calderón está à frente da vice-reitora acadêmica, que congrega 13 direções acadêmicas: pesquisa, docência, desenvolvimento do professorado, inovação educativa, vinculação universidade-sociedade, cultura, admissão, escrita/registo estudantil, avaliação da qualidade, autoavaliação, educação a distância, editora/conselho editorial e rede de livrarias universitárias. Oito delas são geridas por mulheres.

Como contraponto, a famosa Universidade de Harvard, fundada em 1636, teve sua primeira reitora, a historiadora Drew Faust, recentemente, em 2007, fato amplamente noticiado pela midia.1 Todavia, a gestão da Universidade de Honduras por uma equipe majoritariamente feminina, um fato extraordinário, não tem a mesma repercussão.

Como se pode explicar essa presença majoritária das mulheres na gestão da Universidade de Honduras? Ouvimos de Rutilia Calderón, em entrevista realizada em Lisboa, em 24 de março de 2011, durante o Seminário da Rede Ibero-Americana de Investigação em Políticas Educacionais - RIAIPE 3: Equidade e Coesão Social na Educação Superior, as seguintes considerações:

São vários fatores. Um é que a universidade está em um processo de reforma estrutural desde 2005, com uma nova Lei Orgânica -a anterior era de 1957. Essa nova Lei Orgânica muda todas as regras de jogo, por assim dizer, institui novos regulamentos, novas normas acadêmicas. Não há mais eleições por voto, tudo é por concurso público. Termina a paridade na participação estudantil e diminui de 50% para 33% a representação estudantil nos órgãos de governo da Universidade; desde 2009 não há nenhuma representação e esse é um dos elementos menos positivos da reforma - o critério de participação estudantil no conselho universitário é mérito acadêmico, nada mais. Contudo, a universidade, que vinha de uma crise de legitimidade muito forte, começa a recuperar a credibilidade na sociedade. Atualmente, os concursos são muitos competitivos: no último concurso para o cargo de reitor/a participaram 14 pessoas; quando eu concorri para a Vice-Reitoria, éramos também cerca de 14 participantes; antes, nas eleições para a Reitoria praticamente havia só uma candidatura.

Para essa reforma houve, por um lado, uma demanda muito forte da comunidade universitária, que estava cansada da universidade ficar continuamente fechada por greves dos sindicatos, dos políticos... Os reitores eram impostos por partidos políticos, que pagavam as eleições. Então os acadêmicos disseram: basta! Por outro lado, vários grupos organizados da sociedade civil e, nesse momento, a própria direção do Congresso Nacional estavam formados por gente oriunda da Universidade de Honduras e comprometida com ela. O presidente, os dois vice-presidentes e os três secretários do Congresso Nacional, todos eram graduados pela universidade e alguns eram seus professores. Assim, formou-se uma equipe de deputados e acadêmicos para levar adiante a reforma, com a elaboração da nova Lei Orgânica da universidade. A reforma também foi impulsionada pela nossa primeira Reitora, eleita em 1998, que apresentou e aprovou no Conselho Universitário um Projeto da IV Reforma Universitária e se aproximou da direção do Congresso Nacional. Ela havia sido eleita com apoio de partidos do governo, era do mesmo grupo político e abriu um espaço de negociação para a reforma.

Vários fatores, então, se fizeram presentes: uma demanda da comunidade universitária, essa direção do Congresso Nacional vinculada à universidade, e também alguns atores da sociedade civil que tinham muita credibilidade com a cooperação internacional, a exemplo da Cooperação Sueca, acadêmicos, investigadores, que também pressionaram.

Há uma história em Honduras e na América Central, em geral, de revoluções, em que foi dado espaço às mulheres, o que não ocorreu nos países do Sul. Por exemplo, quando teve a revolução na Nicarágua as mulheres eram comandantes, ministras. A América Central é um mundo muito pequeno, com muitas conexões familiares - todos/as temos família em El Salvador, Nicarágua, Guatemala, primos/as, tios/as, sobrinhos/as... então esse trânsito de ideias e de ações de mudança tem sido muito forte na América Central. Considero que isso tenha criado também condições para que nós mulheres possamos estar em uma situação de menor exclusão. Na América Central e em Honduras a mulher vai liderar muitas vezes as mudanças, não só na universidade... Podemos lembrar das cooperativas de mulheres, um movimento muito antigo na América Central, e da participação da mulher em movimentos guerrilheiros, que tem sido muito forte também. Além disso, temos mulheres empresárias de sucesso. Na política, a Vice-Presidente é forte candidata à Presidência em 2014, e não será surpresa se ganhar! Na área acadêmica agora é que se começa a abrir mais espaço, tardiamente, diria eu.

Gênero e gestão: uma trajetória feminina

Igualdade de sexo e equidade de gênero são reconhecidamente fatores de desenvolvimento social. Quanto a indicadores de gênero, Honduras tinha em 2010 um Índice de Desigualdade de Gênero2 de 0,680 e uma relação mulher/homem com ao menos educação secundária completa de 0,878 na população de 25 anos ou mais. No tocante à participação de mulheres no parlamento, tinha em 2008 um índice de 0,235 de assentos ocupados por elas, superior ao de vários países, inclusive da América Latina3 (http://hdrstats.undp.org/es/paises/html).

Qual a trajetória de uma mulher que ascende à alta gestão universitária, posição, de modo geral, ainda ocupada por poucas, globalmente? Essa questão decorre do interesse na problemática das relações de gênero.

Segundo Pierre Bourdieu (1999), gênero é um princípio de visão e divisão social, uma estrutura de dominação simbólica e um habitus (estrutura psicossomática), costumeiramente construído com base no sexo. Na teorização feminista, consolidada nas últimas décadas do século XX, o conceito de gênero representa a tentativa teórica e política de desnaturalizar a desigualdade de sexo e possibilita uma ampla crítica histórica e cultural da inferiorização e subordinação das mulheres nas sociedades e culturas p2atriarcais, androcêntricas e sexistas. Antes excluídas da cidadania e da vida pública, através das lutas feministas as mulheres conquistaram direitos à educação e ao voto nos séculos XIX e XX, embora ainda persista a desigualdade de gênero em vários campos sociais. No mundo do trabalho, por exemplo, persiste a segregação horizontal e vertical por sexo e gênero: as mulheres se concentram em certas ocupações femininas; apesar de mais escolarizadas, obtêm remuneração e posições inferiores, em geral, e mesmo nas ocupações em que perfazem a maioria dos trabalhadores (Bruschini, 2007).

A ocupação por mulheres de cargos na alta gestão, pública ou privada, é fenômeno recente em todo o mundo, tendo-se cunhado o termo “teto de vidro” para apontar a barreira à ascensão hierárquica de mulheres (Coelho, Fernandes & Foguel, 2010; Vaz, 2010). Quando ocupam cargos de diretoria, as mulheres se concentram em setores tradicionais femininos: administração pública, educação, saúde e serviços sociais (Bruschini, 2007). Mesmo assim, no setor educacional, onde são maioria, especialmente nos níveis primário e secundário, é pequena a presença feminina em posições de liderança, em todos os níveis, apesar de ganhos recentes (Shakeshaft et al, 2010).

A literatura de língua inglesa sobre gênero e liderança educacional, extensamente revisada por Shakeshaft et al (2010), aponta várias barreiras, internas e externas4, à inclusão e ascensão de mulheres a posições dirigentes. O balanço efetuado pelas autoras é de que, ao longo do tempo, as barreiras internas têm sido mais superadas do que as externas. Todavia, as descrições das escolhas de carreira das mulheres frequentemente relatam esforços para conciliar trabalho e família, interrupções na carreira e padrões alternativos de carreira. Em geral, elas têm percursos de carreira menos lineares do que os gestores do sexo masculino, e ingressam na administração mais tardiamente, com mais formação/ titulação e mais tempo de experiência em sala de aula e em cargos intermediários do que eles.

Formação inicial: os anos de estudante

Como se deram a formação e o desenvolvimento profissional de Rutilia Calderón, nossa entrevistada?

Nascida em 1957, em Comayaguela, cidade gêmea de Tegucigalpa, capital de Honduras, Rutilia vem de uma família de nível sócio-econômico-cultural alto. Seu pai era engenheiro civil e sua mãe secretária executiva do Ministério das Relações Exteriores durante 25 anos. Seu único irmão, mais velho, é arquiteto, e foi Cônsul de Honduras no Rio de Janeiro.

Rutilia começou a trabalhar aos 14 anos com as pastorais social e juvenil, que, na América Central, nos anos de 1970-80, veiculavam a Teologia da Libertação. Estudava em um colégio religioso, cujo capelão, um sacerdote da Teologia da Libertação, convidava as alunas para trabalhar nas favelas com alfabetização de mulheres e jovens. Quando ingressou na universidade, havia escolhido Engenharia Civil; porém considerou que este curso não contribuiria para o trabalho social no qual se engajara.

Nas pastorais social e juvenil Rutilia vivenciou “um processo permanente de conscientização”. Teve até a oportunidade de fazer um curso com Paulo Freire, na Guatemala: “Fomos, uns 20 ou 30 jovens de Honduras e da Guatemala para um curso de uma semana sobre alfabetização na Teologia da Libertação, e isso marcou muito minha opção”.

No segundo ano da universidade tomou a decisão de mudar para o curso de Medicina. Naquele momento, entre os anos de 1976 e 1980, houve uma imigração importante de pessoas das ciências sociais, exiladas da Argentina e do Chile, então sob ditaduras militares, aos países da América Central. Assim, chegou à Universidade de Honduras um grupo de 12 ou 13 professores argentinos e chilenos, todos homens. Em toda a América Central se desenvolveu, então, um programa que se chamou “ciências sociais e saúde”, impulsionado e apoiado pelo Conselho Superior Universitário Centroamericano (CSUCA):

A nossa geração, nossa turma, estudou em um tempo em que este grupo de chilenos e argentinos, que eram de ciências sociais, trabalhou no campo da saúde e houve uma reforma curricular em Medicina. Na nossa formação tivemos, por seis anos, epistemologia, filosofia, sociologia, antropologia e economia política, além de anatomia, fisiologia e outras disciplinas próprias da Medicina. Tivemos também muitos trabalhos de investigação de estudantes com professores, então nas férias nos integrávamos em equipe de pesquisa junto à população rural, mulheres, prostitutas. Do nosso grupo de estudantes (éramos 60), 42 estudamos depois saúde pública, epidemiologia, não clínica!

Ao mesmo tempo, continuava o trabalho com a pastoral social e a pastoral juvenil, isso até meus 29 anos. Como vinha já de trabalho de alfabetização, passei a gostar da docência. Quando concluí o curso de Medicina, havia um concurso na Faculdade de Medicina para uma vaga em Fisiologia. Participei, ganhei e aí ingressei no ano de 1982 na docência universitária.

Desenvolvimento profissional: da docência à gestão

Desde o início da carreira, Rutilia não se restringe à docência e se envolve em planejamento e implementação curricular.

No momento em que ingressei na universidade, 1982, estavam fazendo uma revisão curricular nos Cursos de Medicina e Enfermagem, então pediram voluntários para coordenar essa reforma curricular, e eu mais dois colegas [ambos homens] nos oferecemos para trabalhar nisso. Fui nomeada para integrar a equipe coordenadora da reforma curricular e iniciamos o trabalho em Saúde Pública e Fisiologia, depois Enfermagem. Logo apoiei a implementação da reforma no Departamento de Ciências Fisiológicas, até 1986.

Aí comecei a pensar na pós-graduação e decidi estudar Epidemiologia. Comecei a buscar programas em vários países e encontrei o da Escola Nacional de Saúde Pública, que era o centro do debate da reforma de saúde no Brasil e tinha um componente importante de ciências sociais e saúde coletiva. Estudei Epidemiología em Manguinhos, no Rio de Janeiro, de 1987 a 1989.

Quando voltei a Honduras o Decano naquele momento me disse: “Você é a única epidemióloga em Honduras com pós-graduação. Vou esquecer que você é de outra frente política e você vai ser a gestora do Mestrado em Saúde Pública de Honduras”. Então comecei a trabalhar na organização desse mestrado e mantive uma relação muito estreita com a Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, levando muitos professores de Manguinhos para Honduras.

Todavia, a complexa e conturbada conjuntura política de Honduras adentrava e impactava a academia.

Em 1993, a Universidade de Honduras se encontrava numa crise politica... Foi muito duro: eu era de um grupo minoritário, pensando na mudança da universidade, e havia uma ditadura interna na universidade. Che gamos ao extremo que houve eleições para decano com pessoas com armas! Tem fotografia desse momento... metralhadoras, pistolas, empunhadas pelos professores e estudantes mais conservadores, ligados aos militares, a toda a história da repressão no país... Eles eram os donos da universidade no período de 1980 a 1995 e se posicionavam dessa maneira!

Naquele ambiente, eu pensei em sair do país! A Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), com a qual eu vinha fazendo alguns trabalhos através do Mestrado em Saúde Pública, abriu uma vaga na Venezuela. Então eu prestei concurso na OPAS de Washington -éramos nove pessoas de toda a América Latina -e ganhei a vaga para ser assessora da OPAS na Venezuela, na área de recursos humanos em saúde. Fomos todos, os cincos filhos e o marido, para a Venezuela! Lá trabalhei de 1993 a 1998, em toda a Venezuela e nas Antilhas Holandesas: Curaçao, Aruba... três dias da semana estava no interior ou fora do país, mas sempre tive o apoio da família.

No retorno a Honduras, em 1999, a UNAH entra em nova fase política e pela primeira vez em sua história uma mulher se torna Reitora e empreende uma importante reforma político-acadêmica:

Ela pode deixar sua marca liderando uma reforma universitaria real, processo ao qual me integrei inicialmente por chamado da Reitora, pela experiência que trazia da Venezuela, de trabalho internacional. Fui chamada para ser assessora estratégica da Comissão da Reforma Universitária e aceitei.

Quando, em 2005, se promulgou a nova Lei Orgânica, tivemos um período de três anos de transição na universidade e, de 2005 a 2008, o Congresso Nacional nomeou uma Comissão de Transição selecionada de uma lista de 103 candidatos/as propostos/as pelo corpo de pro-fessores/as, Associação de Docentes e Sindicato da UNAH, Colégios Profissionais, Fórum Nacional de Convergência e Congresso Nacional, entre outros. Eu fui candidata a essa comissão por três organizações: Associação dos Professores da Universidade, Conselho Universitário e Federação de Colégios Profissionais de Honduras. Dessa lista de 103 pessoas, só dois éramos candidatos por mais de uma organização: o professor que havia sido Decano de Medicina e eu. Porém, como as questões ideológicas eram ainda muito fortes, na comissão de seleção do Congresso, integrada por Deputados dos cinco partidos legalmente inscritos em Honduras, houve uma manobra para que eu não integrasse a Comissão de Transição, sob o argumento de que havia sido assessora de Chaves! [Risos.] Meu nome foi vetado por vários Deputados por essa razão.

Em 2006, me chamaram ao concurso para a Vice-Reitoria e participei com outras 13 pessoas. Ainda estava em vigor a Comissão de Transição. Tempos depois, soube que mais uma vez houve pressões políticas para que não me selecionassem, porém fui nomeada e compreendo que, nesse momento, se enviou uma mensagem clara a partir da universidade: que estava se acabando o tempo do apadrinhamento e do veto político!

Família e filhos/as

Para algumas gerações de mulheres, especialmente a partir da segunda metade do século XX, coloca-se a problemática de conciliar os papéis materno e profissional. Frequentemente, a chegada e criação dos filhos atrasa a carreira das mulheres ou impede seu avanço profissional. O conflito de papéis tem raízes não apenas simbólicas, mas práticas, referentes à divisão do trabalho reprodutivo, que atribui exclusivamente às mulheres o cuidado e educação dos filhos, assim como o trabalho doméstico e emocional. Rutilia não viveu esse tipo de conflito. Em todo caso, no curriculum vitae de uma mulher deveriam constar explicitamente os filhos e filhas.

Em 1987, quando foi fazer mestrado no Brasil, tendo concorrido e ganho uma bolsa, Rutilia tinha dois filhos e uma filha, de 5, 6 e 7 anos. Seu marido, zootecnista e economista agrícola, a acompanhou e foi fazer mestrado em Piracicaba, no estado de São Paulo, viajando regularmente de lá ao Rio de Janeiro, onde ficou residindo a família. Rutilia contava com a ajuda de uma filha adotiva de 16 anos.

Em 1988, nasceu sua quarta filha, brasileira. Durante a gestação, seu orientador de mestrado se assustou: “Ele dizia: ‘Você tem que voltar a Honduras, você não pode continuar’. Mas depois reconheceu: ‘Você pode’.”

Em 1990, já em Honduras, nasceu o quinto filho de Rutilia, que diz gostar de família grande. Teve o privilégio de contar com ajuda doméstica, mas também com a ajuda do marido.

Em 2006, Rutilia se divorciou e continua amiga do ex-marido. Hoje seus dois filhos e as duas filhas mais velhas estão formados. Dois moram nos Estados Unidos, onde fizeram pós-graduação em arqueologia (um dos filhos), artes e literatura (a filha), e casaram. O outro filho, engenheiro de sistemas, faz mestrado em Taiwan. A filha mais nova (a brasileira) acabara de regressar a Honduras (no momento da entrevista) após se formar como gestora de esporte nos Estados Unidos, e quer prosseguir os estudos e jogar futebol profissionalmente. O mais jovem está estudando Telecomunicações em Honduras após uma temporada em Paris. Todos seguiram os passos da mãe e do pai, estudando fora do país com bolsas de estudo.

Empoderamento, liderança, poder

Refletindo o modelo do herói5, a liderança é por definição masculina, um atributo construído numa cultura masculina que separou os feitos públicos dos afazeres domésticos. A que uma mulher, como Rutilia, bem sucedida na carreira de gestora universitária, particularmente envolvida com movimentos de mudança, atribui sua capacidade de liderança e de exercício do poder? Como se deu sua formação para a liderança e a gestão?

Considero que essa etapa de formação, em minha juventude, no trabalho com a Igreja foi chave! Não foi só formação teórica, foi realmente um processo de conscientização, no sentido Freireano, um processo de ir formando consciência que se traduz em ações, que leva à prática.

Outra coisa importante que aprendi, também nesse trabalho com a Igreja, foi escutar os demais. Isso tem me ajudado muito: escutar e tratar de entender porque a outra pessoa pensa ou faz as coisas de uma maneira determinada, diferente de como eu penso ou faço, o respeito às outras pessoas.

Então, tive uma formação politica simultânea à formação técnica, acadêmica, científica, e creio que isso tem marcado muito essa liderança... Quando tenho de atuar academicamente trato de fazê-lo com a maior solidez, porém, se é para tomar decisões políticas, também! O chamado da Reitora para que fosse a assessora estratégica da reforma teve a ver com isso, não só com o conhecimento que trazia do trabalho na Venezuela, senão com o aspecto político: como viabilizar, como fazer possível a mudança.

Embora tenha sofrido discriminação por ser de esquerda, Rutilia não se defrontou com discriminação de gênero ao longo de seu percurso profissional, a não ser uma única vez, no início do seu trabalho no Ministério da Saúde da Venezuela, “porque os anteriores assessores no campo de recursos humanos haviam sido homens; porém, durou pouco, quando fomos interagindo isso mudou”.

Hoje, como Vice-Reitora, Rutilia comanda muita gente. Como percebe sua autoridade e como se relaciona com subordinados?

Nós fazemos uma avaliação, uma auto-avaliação e uma pós-avaliação anual e, em geral, o que manifestam, e o que eu percebo, é que a autoridade e a liderança têm ocorrido como algo natural... Como eu não cheguei por clientelismo, cheguei por um trabalho prévio na própria universidade, então olham como algo normal que tenha chegado a ser Vice-Reitora. Inclusive, as outras pessoas que participaram no concurso para a Vice-Reitoria várias delas agora são Diretoras, porque eu as chamei. Então, não encontro resistências por ser mulher ou por ser autoridade! Ademais, na Vice-Reitoria tratamos de ter um estilo muito próximo das pessoas, por exemplo, somos reconhecidamente a unidade que mais visita os centros regionais, fazemos muito intercâmbio, chamamos a gente, consultamos, então creio que isso tem ajudado também... Quando é para tomar decisões, me chamam para consultar, com a Reitora temos uma relação de muita confiança, que ajuda muito também.

Diante do espaço conquistado pelas mulheres na Universidade de Honduras, particularmente na gestão, cabe perguntar: onde estão os homens e o que fazem na academia? Eles competem com as mulheres pelos cargos? Segundo Rutilia, “os professores homens estão mais cumprindo com as aulas, a maioria está fazendo o mínimo. Como estamos em uma reforma, dizem: ‘muito trabalho, melhor minha docência, minha pesquisa, e não me comprometo com mais.’ Por exemplo, quando são chamados voluntários, os homens são pouquíssimos, as mulheres sempre estão prontas para assumir novas tarefas...”

Ademais, lembra Rutilia, desde abril de 2000, Honduras tem uma Lei de Igualdade de Oportunidades para as Mulheres, que estabelece cotas de 30% para as mulheres, aplicáveis aos cargos de direção dos partidos politicos, Parlamento Centro-Americano, deputados titulares e suplentes no Congresso Nacional, prefeitos, vice-prefeitos e secretários. “As mulheres estão vigilantes, cuidamos muito para que se cumpram as percentagens. Creio que no nível geral isso ajuda também: ter uma lei que legitima a participação política da mulher!”

Perspectivas

Rutilia termina sua gestão na Vice-Reitoria em agosto de 2011 e tem diversos planos de trabalho futuro:

Espero completar alguns resultados da reforma acadêmica na universidade e, depois que deixar a Vice-Reitoria, quero continuar impulsionando, apoiando e promovendo mudanças na universidade. Há muito por fazer, porém, não necessariamente na Reitoria. Não me interessa ser Reitora [risos], já fui e considero que tem uma carga administrativa muito grande, são quatro horas diárias só assinando papéis, e isso vai levar alguns anos para mudar... Essa parte burocrática, faço, porém não gosto muito [risos]. Gosto de estar refletindo, criando coisas novas, mais do que estar assinando papéis ou resolvendo problemas com o sindicato, com a área administrativa, porque não saiu o dinheiro...

Depois de ter estado, desde o ano 2000, promovendo, apoiando, fazendo, construindo viabilidade para a reforma, tenho interesse de entrar no tema da avaliação, sistematizar o processo, escrever e publicar sobre ele, resgatar a história da reforma, avaliar sua situação atual e contribuir para o seu desenvolvimento futuro, a médio e longo prazo.

Outra possibilidade seria concluir um doutorado em Ciências Sociais com foco em Gestão e Desenvolvimento Humano Sustentável, que cursei na Universidade de Honduras de 2003 a 2005, mas não pude acabar a tese. Poderia fazer um ano sabático e escrever minha tese sobre A nova institucionalidade pública: o caso da reforma da universidade. Poderia fazer um trabalho de avaliação depois de cinco anos de reforma, talvez no Brasil, mirar, analisar o tema da viabilidade e da sustentabilidade da reforma.

Conclusão: breve reflexão em retrospectiva

A trajetória da carreira de Rutilia Calderón na gestão universitária, em conjuntura política tão peculiar como a de Honduras e da Universidade Nacional Autônoma de Honduras (UNAH), revela persistente engajamento com reformas (curricular, institucional), apesar de alguns afastamentos, voluntários ou involuntários. É uma carreira de líder bem sucedida, ademais, porque conseguiu reconhecimento, inclusive superando exclusões políticas. É interessante lembrar que, em certo momento de sua carreira, ela é incluída por outra mulher em posição de poder -a Reitora, que a convida a assumir o posto de assessora estratégica da reforma universitária. Sua trajetória passa, ademais, pela ampliação de direitos políticos para as mulheres hondurenhas, expressa na Lei de Igualdade de Oportunidades para as Mulheres, que estabelece cotas de 30% para elas.

As barreiras tradicionalmente enfrentadas pelas mulheres que almejam assumir posições de liderança podem ser vistas como desafios para construírem uma identidade de líder, serem incluídas e se incluírem em um grupo em posição de liderança institucional, exercerem o poder como agentes de mudança e lograrem realizações efetivas e melhorias socialmente valorizadas. Aparentemente, Rutilia não enfrentou muitas barreiras para aceder a posições dirigentes ascendentes na gestão universitária. Como mulher privilegiada, mesmo tendo cinco filhos/as, contou com ajuda doméstica e apoio do marido para se dedicar à carreira com sucesso. Possivelmente pelo seu capital cultural de classe, pela formação crucial na juventude no contexto do trabalho religioso-comunitário, e pela competência acadêmica e qualidades pessoais, não precisou lutar ostensivamente para ter sua autoridade aceita e respeitada. Ela mesma ressalta que conquistou suas posições por mérito e não pela via clientelista.

De acordo com Shakeshaft et al (2010), as teorias organizacionais e da liderança têm enfocado estilos femininos consistentes com a pesquisa sobre mulheres6. Elas expressariam estilos de liderança: (a) moral ou servidora, isto é, comprometida com a justiça social, às vezes marcada por uma dimensão espiritual, inspiradora, e dotada de habilidades para lidar com situações difíceis e conflitos; (b) interativa, relacional, cuidadora, compartilhada (quanto ao poder), sinergética, facilitadora e agregadora de valor; e, ademais, (c) focada na aprendizagem.

A formação de Rutilia na Teologia da Libertação e no serviço comunitário tornou-a efetivamente uma líder transformadora e uma gestora persistentemente engajada em movimentos e processos de reforma social e institucional, em contexto de intensos conflitos políticos. Na sua prática administrativa nossa entrevistada prioriza a comunicação, a escuta dos outros, o trabalho em equipe, a colaboração e os laços comunitários. Vale destacar que, tendo conquistado o cargo de Vice-Reitora em processo seletivo, incluiu a seguir seus concorrentes em sua equipe. Evidências de que exerce o poder de modo compartilhado são o uso da primeira pessoal do plural - o nós, que em seu caso não é apenas recurso retórico - ao descrever seu estilo de trabalho, e a prática de aproximar-se e consultar as pessoas formalmente subordinadas.

Finalmente, além de realizar avaliação e auto-avaliação na e da prática de gestão, Rutilia não se distanciou do ofício científico e tem um projeto de estudar a gestão acadêmica, a institucionalidade pública, a reforma da universidade, para aprender mais e nos ensinar também sobre gestão universitária.

 

Referências Bibliográficas

Optamos por apresentar o primeiro nome de autoras e autores por extenso, como uma forma de visibilizar as autorias femininas.

Bourdieu, Pierre (1999). A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Bruschini, Cristina (2007). Trabalho e Gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de Pesquisa 37 (132), 537-572.         [ Links ]

Coelho, Danilo; Fernandes, Marcelo & Foguel, Miguel N. (2010). Diferenciais de gênero na promoção em grandes empresas da indústria brasileira. Boletim Mercado de Trabalho - Conjuntura e Análise 42, 21-25.         [ Links ]

Cooper, Joanne; Eddy, Pamela; Hart, Jeni; Lester, Jaime; Lukas, Scott; Eudey, Betsy; Glazer-Raymo, Judith; Madden, Mary (2010). Improving gender equity in postsecondary education. In Klein, Susan S. (General Editor), Handbook for Achieving Gender Equity through Education (pp. 631-653). 2nd ed., New York and London: Routledge.         [ Links ]

Shakeshaft, Charol; Brown, Genevieve; Irby, Beverly J.; Grogan, Margareth; and Ballenger, Julia (2010). Increasing gender equity in educational leadership. In Klein, Susan S. (General Editor), Handbook for Achieving Gender Equity through Education (pp. 103-129). 2nd ed., New York and London: Routledge.

Vaz, Daniela Verzola (2010). Segregação hierárquica de gênero no setor público brasileiro. Boletim Mercado de Trabalho - Conjuntura e Análise 42, 27-36.         [ Links ]

As autoras agradecem ao Prof. José Beltran, da Universidade de Valencia, pela leitura deste texto e comentários valiosos.

 

Notas

1 A presença de mulheres na alta gestão universitária vem avançando nas últimas décadas e apresentamos alguns números para Estados Unidos, Brasil e Portugal, a título de exemplo. Em 2001, as mulheres constituiam 21,1% dos reitores nos Estados Unidos e 24% dos que assumiam o cargo naquele ano; contudo, a maioria estava em instituições pequenas locais (community colleges) com matrícula inferior a 3 mil estudantes (Cooper & Eddy et al, 2010). No Brasil, havia, no momento em que se escrevia este texto, apenas 17 reitoras num conjunto de 101 universidades públicas: 11 reitoras num total de 59 instituições federais (www.andifes.org.br, consulta em 30/09/2011) e seis num total de 42 instituições estaduais e municipais (www.abruem.org.br, consulta em 30/09/2011). Em Portugal, de um total de 16 universidades membros do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), somente duas eram dirigidas por mulheres, tendo uma delas assumido em carácter interino e outra após o falecimento do reitor (http://www.crup.pt/index.php?s=21). Já o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), que conta com 148 instituições associadas, não tinha nenhuma reitora na diretoria e conselhos eleitos para a gestão 2011-2013 (http://www.crub.org.br, consulta em 30/09/2011).

2 Índice composto que mede perdas decorrentes da desigualdade de sexo em três dimensões do desenvolvimento humano: saúde reprodutiva, empoderamento e mercado de trabalho, sendo a paridade de sexo expressa pelo valor 1.

3 Compare-se a 0,102 no Brasil, 0,382 em Portugal e 0,514 em Espanha, países com IDH mais elevado (http://hdrstats.undp.org/es/paises/html).

4 As barreiras enumeradas por Shakeshaft et al (2010), resumidamente, são: (1) fraca autoimagem e autoconfiança e falta de identidade de líder; (2) responsabilidades familiares e domésticas que restringem a disponibilidade e mobilidade das mulheres; (3) condições de trabalho androcêntricas, indesejáveis, hostis e mais estressantes para as mulheres; (4) falta de apoio de familiares, amigos, colegas, superiores, inclusive expressa no silêncio sobre a problemática de gênero; (5) estereótipos de sexo e gênero, que afetam o processo de socialização profissional das mulheres e sua inclusão em posições de liderança, segundo os quais elas seriam incompetentes para exercer autoridade, tomar decisões, negociar politicamente e manejar orçamentos; (6) formação profissional que não contempla questões de equidade, e currículo que reflete teorias de déficit de gênero, subrepresenta as mulheres e omite suas experiências, bem como a base de conhecimentos e habilidades de gênero que são requisito para o acesso a posições de poder; (7) falta de modelos, mentores, patrocinadores e redes, necessários ao processo de socialização profissional e à obtenção de conhecimento, informação política e técnicas de sobrevivência; (8) discriminação de sexo aberta ou velada na seleção/ contratação e tratamento no trabalho.

5 De acordo com Cooper and Eddy et al (2010), a pesquisa sobre percepção de líderes apontava estilos de liderança dicotômicos conforme estereótipos de gênero: herói (autoritário, hierárquico) versus geradora (promotora de redes, comunicação, criatividade, participação e empoderamento).

6 É importante destacar que os estudos de gênero comparativos não afirmam que esses estilos sejam exclusivos das mulheres.