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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.17 Lisboa  2011

 

Direitos individuais e direitos de minorias: o Estado brasileiro e o desafio da educação escolar indígena

 

Rita Vilanova* , Claudia Fenerich*, Kelly Russo*

*Investigadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

Resumo

Neste artigo, as tensões resultantes do reconhecimento de direitos de minorias dos povos indígenas brasileiros são analisadas com foco na educação escolar. Para tanto, nos apoiamos em duas vertentes do liberalismo político contemporâneo, no sentido de problematizar seus limites e possibilidades nas relações interculturais que se estabelecem na inserção de grupos indígenas no sistema de educação nacional. Nossas análises apontam que os avanços obtidos na legislação brasileira vigente são de difícil implementação, por razões que vão da precariedade de alguns sistemas de educação locais ao complexo diálogo entre a cultura majoritária e a cultura dos diferentes grupos indígenas brasileiros.

Palavras-chave: Educação indígena; liberalismo político; direitos de minorias; relações interculturais.

 

Individual and minority rights: the Brazilian State and the challenge of indigenous formal education

Abstracts

In this article the tensions concerning the recognition of minority rights for Brazilian indigenous groups are analyzed, focusing school education. Our analyses were based on two distinct visions of contemporary political liberalism, in the sense of discussing its limits and possibilities in relation to the intercultural issues that emerges in these scenarios. Our analyses points that the advances obtained in the legal context have difficult implementation, for reasons that goes from the precariousness of some local education systems to the complex dialogue between the majority culture and the diverse indigenous groups in Brazil. Keywords: indigenous education; political liberalism; minority rights; intercultural relations.

Keywords: indegenous education; political liberalism; minority rights; intercultural relations.

 

Introdução

Jejuvy pode ser traduzido por aperto na garganta, sufocação. Consiste em tomar uma corda e, de imediato, com ela enforcar-se. Segundo Foti (2004), a presença de um forte stress, um alto grau de tensão, ou mesmo horror, são ingredientes que compõem este ato expressivo que se transformou em uma epidemia em certas aldeias Guarani Kaiowá, etnia localizada na faixa meridional do Mato Grosso do Sul, centro-oeste brasileiro. Desde 2002 foram registrados mais de cem casos entre eles. Em sua grande maioria, o Jejuvy foi protagonizado por jovens.

Este alto índice de suicídios exemplifica a situação de forte tensão existente no interior da sociedade brasileira, no que diz respeito às relações entre os diferentes grupos étnicos que a compõe. O sentimento de pertencimento identitário marca uma determinada posição no mundo, assim como seu lugar em uma sociedade atravessada por relações de poder. No Brasil, a gestão pública e a legislação nacional precisa se confrontar de forma permanente com esta tensão: existem no território nacional aproximadamente, 210 povos indígenas e mais de 150 diferentes línguas. Esses grupos encontram-se em situação de maior pobreza e vulnerabilidade social.

Apenas em 1988 a Constituição brasileira reconheceu o caráter multiétnico, pluricultural e multilíngüe de sua sociedade. A partir deste precedente constitucional foram reconhecidos direitos de populações indígenas, caso único na Constituição brasileira. Essa modificação constitucional foi resultado de um longo processo de mobilização de setores indígenas e indigenistas, e vivencia uma forte tensão com a tradição liberal – presente desde a primeira constituição republicana do país – que prioriza o direito individual e a demanda da igualdade, não do reconhecimento das diferenças. É legitimo reconhecer direitos diferenciados em uma constituição que defende a igualdade de todos perante a lei? Como os Estados liberais podem fazê-lo sem abrir mão da garantia dos direitos básicos de cidadania entre iguais? Direitos de minorias ameaçam os direitos individuais?

Neste trabalho, analisamos esta tensão a partir das questões relativas ao reconhecimento de direitos de minorias aos povos indígenas no campo da educação. O direito à educação diferenciada é um desses direitos reconhecidos a partir da Constituição de 1988 e foi implementada por meio do Programa de Educação Diferenciada Intercultural e Bilíngüe desenvolvido a partir de 1994, pelo Ministério da Educação. Nosso objetivo é contribuir com o extenso debate acadêmico já existente sobre os limites e desafios desse modelo de organização político-social em realidades multiétnicas e pluriculturais tendo como base o campo educativo. Para isso, organizamos este texto em três partes distintas: na primeira, tecemos um panorama sobre o debate referente aos direitos diferenciados a favor de grupos minoritários, com base nas discussões protagonizadas por Jürgen Habermas e Will Kymlicka. Na segunda, apresentamos algumas análises da política educacional brasileira voltada à grupos indígenas, com o objetivo de compreender as tensões que se colocam na tentativa de se garantir direitos de minorias em um país que se consolida historicamente a partir de um modelo monocultural e liberal. Na terceira e última parte, procuramos apresentar alguns comentários no sentido de direcionar conclusões, ainda que provisórias, para esta questão.

É preciso esclarecer que o uso do termo “direitos de minorias” foi definido após identificarmos uma variada terminologia utilizada na bibliografia que trata a tensão entre grupos minoritários e majoritários nas sociedades nacionais. Habermas, por exemplo, refere-se a direitos coletivos; Kymlicka, a direitos diferenciados; a Constituição brasileira, a direitos comunitários. Além desses, encontramos ainda a expressão direitos de minorias sendo utilizada por parte da literatura especializada. Cada uma dessas terminologias refere-se ao fenômeno do reconhecimento legal e social de grupos minoritários presentes nas sociedades contemporâneas a partir de um determinado viés teórico-metodológico que tem implicações filosóficas e políticas. Diante de tamanha variedade optamos pelo uso do termo “direitos de minorias”, amplamente utilizado na literatura internacional, por entendê-lo como a forma mais clara de denominar as populações indígenas, grupo que privilegiamos nesta análise.

O debate sobre direitos individuais e de minorias

O debate sobre o reconhecimento dos direitos das minorias étnicas (p.ex. imigrantes) e nacionais (p. ex. grupos autóctones) voltou a ganhar força na teoria política liberal, após anos de marginalidade. Com o fim da guerra fria, os enfrentamentos entre grupos étnicos passam a representar a fonte mais comum de violência política no mundo dos últimos vinte anos (Kymlicka, 1996). Além disso, as disputas relativas aos direitos dos imigrantes e dos grupos autóctones colocam uma série de questões que desafiam a abordagem liberal contemporânea a estes reconhecimentos étnicos.

Nesta seção, apresentamos algumas das idéias expressas por dois importantes pensadores contemporâneos do arcabouço liberal, o canadense Will Kymlicka e o alemão Jürgen Habermas. Nossa intenção é, a partir deste debate, discutir as atuais tensões vividas pelo Estado brasileiro em relação ao reconhecimento dos direitos de minorias, com ênfase no campo educativo.

Ao compartilharem os mesmos pressupostos do liberalismo político, Habermas e Kymlicka defendem a liberdade individual e o estado democrático como valores fundamentais de qualquer sociedade organizada e ambos compreendem que os sujeitos se formam dentro de uma cultura específica, concedendo, assim, às culturas um lugar fundamental na constituição humana. As divergências entre os dois autores surgem ao tratarem mais diretamente a forma como o Estado deverá trabalhar com essas diferenças presentes em seu território. Ou seja, o diálogo entre os autores propicia uma discussão sobre o significado do próprio liberalismo, as diferentes interpretações sobre as sociedades liberais multiculturais, multiétnicas e que papéis nela adquirem língua, nacionalidade e identidade étnica.

Em seu livro Multicultural Citizenship (1996), Will Kymlicka defende a tese de que o reconhecimento dos direitos de minorias é coerente com a teoria liberal. O autor argumenta que direitos diferenciados em função do grupo podem ser considerados não só como algo consistente com os valores liberais, mas também como algo que os fomenta. Habermas, por sua vez, diverge de Kymlicka exatamente neste ponto. Para o autor alemão, não é necessária a existência de leis que visem proteger minorias, visto que direitos individuais seriam suficientes para garantir a solidariedade entre grupos dentro do Estado democrático. Com o termo solidariedade entre grupos, Habermas designa a possibilidade de acordo e entendimento mútuo entre diferentes em sociedades onde a cultura democrática e o estado de direito estejam consolidados. Dessa forma, para o autor, mais do que criar legislações diferenciadas, é preciso criar estruturas legais que fortaleçam esses dois princípios fundamentais garantindo assim, meios normativos de conquista de direitos efetivos.

Na visão de Kymlicka (1996), devemos lançar mão dos princípios básicos do liberalismo e transportá-los para as questões e demandas dos grupos minoritários. Neste sentido, individualismo, autonomia, autocrítica e liberdade de escolha, centrais ao liberalismo, devem ser preservados. Para o autor, os indivíduos são a unidade moral básica da sociedade e os únicos portadores de direitos e obrigações. As sociedades e culturas não possuem, desta forma, status moral próprio e devem ser consideradas exclusivamente em termos de como afetam o desenvolvimento de seus membros, uma vez que os seres humanos são capazes de formular suas próprias concepções de bem, e são autônomos e livres para viver de acordo com suas crenças. Uma vez que os julgamentos das pessoas são falíveis, elas também são livres para refletir e revisar suas crenças.

Kymlicka defende que as pessoas são criaturas culturais, no sentido de que a cultura é a base para o desenvolvimento dos seres humanos. Isto por duas razões: primeiro, porque a cultura define e estrutura o mundo, fornece as lentes através das quais vemos a nós mesmos e os outros, auxilia nos julgamentos sobre o que é válido, fornece opções significativas, guia as decisões sobre como dirigir a vida e fornece, em geral, o contexto para o desenvolvimento da autonomia e das escolhas. A segunda razão é que a cultura fornece às pessoas um senso de identidade, de pertencimento, favorece a inteligibilidade mútua, promove a solidariedade e a confiança. O primeiro argumento ressalta a construção da autonomia, o segundo, o papel da cultura como construtor de uma comunidade (Parekh, 1997).

Para Kymlicka, liberdade de escolha e autonomia são valores liberais fundamentais, e a cultura é importante primariamente como um contexto de escolha e o berço da autonomia. Neste sentido, participação na cultura é essencial para a liberdade humana e para a autonomia, e assim, um bem primário. Em sua teoria, o foco está apontado para o que o autor denomina cultura societal. Este conceito refere-se a uma cultura que proporciona a seus membros formas de vida significativas através de toda a gama de atividades humanas, incluindo a vida social, educativa, religiosa, recreativa e econômica, abarcando as esferas pública e privada (Kymlicka, 1996).

A teoria liberal de Kymlicka possui duas implicações importantes: primeiro, a cultura não possui valor intrínseco; seu valor é amplamente instrumental e consiste em prover os indivíduos de opções significativas e cultivar nos mesmos a capacidade de refletir e fazer escolhas racionais sobre as suas vidas. Segundo, uma cultura que encoraja autonomia e possibilidades de escolha parece ser mais desejável e melhor do que uma que não o faz (Parekh, 1997).

Com base nestes argumentos, Kymlicka fornece algumas bases para a discussão da prática política e para a aplicação de sua teoria, a saber: (1) a distinção entre estados multinacionais e estados poliétnicos; (2) os tipos de direitos que cada uma destas configurações pode reivindicar e (3) os limites destas reivindicações (Forst, 1997).

Estados multinacionais podem ser considerados aqueles que se formam, por exemplo, pela incorporação de territórios de uma nação por outra. Este é o caso dos Estados Unidos, em relação aos porto-riquenhos, nativos havaianos e outros. De acordo com esta perspectiva, o Brasil pode ser enquadrado nesta categoria, uma vez que possui diversas minorias nacionais, representadas pelos diferentes grupos indígenas. A Constituição Federal, no entanto, não reconhece esses grupos como nações e sim como povos, detentores de direitos de minorias, que lhes conferem certo grau de autonomia.

Kymlicka prefere o termo direitos diferenciados em função do grupo ao de direitos coletivos. Segundo o autor, a definição de direitos coletivos é muito ampla, incluindo formas de direitos que podem resultar em opressão individual (p. ex. obrigar os indivíduos a seguirem costumes tradicionais de gênero). Neste sentido, Kymlicka preocupa-se em distinguir duas situações que geralmente são igualadas ao se utilizar o termo direitos coletivos, a saber: as restrições internas e as proteções externas.

As restrições internas são intragrupais, e, por meio destas, os grupos podem utilizar o poder do Estado para restringir a liberdade de seus próprios membros. Isto significa que, por meio da concessão de direitos diferenciados desta natureza, os membros de um grupo podem restringir a liberdade dos indivíduos em nome da solidariedade ou da defesa de algum tipo de pureza cultural (Kymlicka, 1996).

As proteções externas são intergrupais, e têm o objetivo de permitir que os grupos protejam sua identidade, limitando o impacto das decisões da sociedade em que estes participam, assegurando que os membros de uma minoria tenham as mesmas oportunidades de viver e trabalhar em sua própria cultura que os membros da maioria. De acordo com Kymlicka (1996), o que distingue uma teoria liberal de direitos das minorias de outras é precisamente o fato de que a esta abordagem aceita alguns tipos de proteções externas para grupos minoritários.

Para Habermas, não é necessário garantir direitos de minorias dentro das democracias contemporâneas, pois os direitos individuais, subjetivos, são capazes de garantir a todos a plena expressão de sua forma de vida particular, de acordo com sua cultura específica. Habermas vê na incorporação dos direitos de minorias aos direitos fundamentais uma ameaça ao núcleo da concepção individualista de liberdade que está na base do sistema de direitos. Assim, quando pergunta, remetendo-se à teoria do direito moderno: “será que uma teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas?” (Habermas, 2002: 237), Habermas responde que sim, pois “uma teoria dos direitos, se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para as diferenças culturais” (Habermas, 2002: 242).

A posição que Habermas assume no debate sobre os direitos das minorias nas sociedades complexas, multiculturais, é determinada pela sua concepção democrático-procedimental dos direitos (Araújo, 2007). Essa concepção toma os direitos subjetivos no arcabouço de um sistema de direitos, no qual são imprescindíveis instituições estatais destinadas a garantir o cumprimento do direito de cada um, por meio, exclusivamente, de procedimentos democráticos, que visam a todos.

Habermas não menospreza, pois, o aspecto da vinculação identitária concreta entre indivíduos e grupos, senão que o limita, entendendo que este se complementa com o aspecto jurídico abstrato que regula as relações entre o indivíduo e o Estado.

O Estado de direito, que tem como base a Constituição e garante a todos os mesmos direitos de liberdade e de participação, resulta de uma conexão entre direito e política, uma vez que “os direitos subjetivos só podem ser estatuídos e impostos através de organismos que tomam decisões que passam a ser obrigatórias para a coletividade.” (Habermas, 2003a: 170) e ainda que “o poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais” (Habermas, 2003a:171).

Dentro do Estado de direito, os indivíduos convivem, ao mesmo tempo, enquanto membros jurídicos e integrantes de grupos específicos. Enquanto membros jurídicos, todos têm os mesmos direitos e, enquanto integrantes de grupos específicos, os indivíduos possuem identidades coletivas baseadas em gênero, cultura, etnia, etc.

Habermas entende que as lutas por reconhecimento dentro da sociedade moderna foram pautadas por dois objetivos distintos: 1. a igualdade das condições sociais de vida; 2. a integridade de formas de vida e tradições de grupos discriminados. Ele afirma que a demanda de grupos por chances iguais de vida no meio social (movimento emancipatório burguês, movimento de trabalhadores europeu) foi atendida (pelo liberalismo, pela social-democracia) por meio da luta pela universalização dos direitos do cidadão dentro do Estado de direito. De acordo com isso, ele entende que a revolução, a transformação dos meios de produção, não é mais uma perspectiva a ser perseguida hoje, e que, após o fracasso do projeto socialista, o que se abre como horizonte é a possibilidade de segurança, de justiça social e bem-estar, ou seja, de proteção do Estado através da constituição, das leis, dos direitos subjetivos, modernos. Trata-se, então, de distribuir mais justamente entre os cidadãos os bens coletivos. E isso, para ele, é plenamente conciliável com a teoria do direito moderno, pois “os ‘bens fundamentais’ (no sentido proposto por Rawls) ou são distribuídos individualmente ou são utilizados individualmente (tal como se dá com as infra-estruturas do sistema viário, de saúde e educação) e portanto se pode preservá-los sob a forma de reivindicações individuais de benefícios” (Habermas, 2002, p. 239).

Quanto ao problema da preservação de formas de vida e tradições de grupos discriminados, Habermas defende que esse reconhecimento não deve ser pleiteado em função da apreciação valorativa geral dessa cultura, mas sim pelo direito que seus membros têm de sobreviver como integrantes de uma determinada comunidade cultural. Para ele, culturas não devem ser preservadas da mesma forma que as espécies, a partir de um ponto de vista ecológico, mas, sim, apenas a partir da perspectiva de que se constituem universos significativos para seus próprios membros. De acordo com isso, Habermas afirma que o papel do Estado é garantir que esses universos de valores e tradições estejam presentes como possibilidades no espaço público. Mas cabe aos próprios membros de cada cultura, segundo ele, decidir-se pela continuidade ou não de sua forma de vida específica, através da adoção ou não de seus valores (Habermas, 2002: 258).

As propostas normativas de Kymlicka e de Habermas nos oferecem duas possibilidades distintas de conceber a inserção dos grupos indígenas na sociedade brasileira. Com base na perspectiva de Kymlicka, podemos designar os grupos indígenas brasileiros como nações e inferir que, enquanto tais, esses deveriam possuir direitos de autogoverno. Isso significa que cada um desses grupos deveria possuir um nível de autonomia que os permitisse exercer certo poder político, no sentido de preservar os aspectos de sua cultura que compõem a identidade de seus membros.

O caminho teórico aberto por Habermas, por sua vez, leva-nos a pensar em cada membro dos grupos indígenas como um cidadão do Estado brasileiro, portador de direitos individuais, civis e políticos e que se encontra, também, integrado eticamente em seu grupo cultural específico. Enquanto cidadãos, os integrantes dos grupos indígenas deveriam participar da esfera pública, constituindo-se como públicos específicos e interagindo comunicativamente com outros grupos, através de várias instâncias políticas, de forma a conseguir que suas demandas sejam incorporadas no sistema político e alcancem o centro de decisão, o núcleo do poder.

Ambos os modelos teóricos apresentam limitações e problemas que já foram apontados por comentadores[1]. Em relação a Habermas, as questões levantadas podem ser sintetizadas da seguinte forma: o modelo normativo proposto é correto, mas sua viabilidade demanda o estabelecimento de condições sócio-políticas que são dificilmente atingidas no atual contexto; o modelo é incorreto, pois a via dos direitos individuais não poderá conduzir ao reconhecimento dos grupos sociais desfavorecidos, uma vez que não questiona o sistema econômico vigente. Quanto à Kymlicka, questiona-se se a noção de autonomia utilizada pelo autor fornece bases suficientes para uma concepção de justiça multicultural. Isto porque a concepção de autonomia como liberdade de escolha sobre como os indivíduos conduzem suas vidas não é compartilhada por todos os grupos, e neste sentido parece insuficiente como uma base imparcial de justiça (Forst, 1997). Além disso, muitas das comunidades de minorias não compartilham dos princípios liberais, e suas demandas estão fundadas em alicerces muito diferentes. Neste sentido, ao defender uma “liberalização” das culturas, a teoria de Kymlicka acaba por impor formas de reconhecimento falsas ou irrelevantes para os grupos que busca proteger (Parekh, 1997).

Alguns desses pontos merecem ser mais bem analisados em confronto com a realidade social brasileira. Trataremos de considerar alguns deles ao longo da próxima seção, na qual buscamos explorar alguns aspectos do sistema jurídico brasileiro e as tensões que se colocam em relação às sociedades indígenas. Com base em alguns exemplos, buscamos discutir conflitos que já se manifestaram ou se encontram latentes, com foco no caso da educação escolar indígena.

A legislação indigenista brasileira e seus reflexos nas políticas educacionais: possibilidades e limites.

Brasil foi, entre os países da América Latina, o único estado moderno a se constituir como uma monarquia no século XIX, com alto grau de centralização. Também foi o único estado a estabelecer um papel tutorial em relação aos povos que se encontravam no território antes da chegada dos europeus. Ricardo, Marés e Santilli (2004) fazem uma análise sobre o instituto da tutela civil - instrumento clássico do direito individual – que desde o período imperial e mais tarde, no período republicano, configurou-se no país como o enquadramento jurídico voltado para os povos indígenas. Já no Código Civil Brasileiro de 1916 está presente a idéia de incapacidade dos povos originários e, por conseguinte, a necessidade do estado apresentar-se como tutor legal desses grupos.

O caráter de tutela implica na mediação de um órgão específico (criado pela União) em todas as relações entre grupos indígenas e não indígenas. Em 1920, a tutela foi estruturada pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que, na década de 1960, sofre acusações de corrupção, sendo substituído por outro órgão da União: a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As políticas educativas voltadas aos povos indígenas foram desenvolvidas com esse caráter tutorial e a partir de uma série de tipificações sobre o “grau de aculturação” de cada um desses grupos.

No ano de 1973, foi elaborado o Estatuto do Índio, que especificou os graus de aculturação dos grupos indígenas e os parâmetros para a sua emancipação, com a conseqüente perda de direitos especiais. A meta era a incorporação desses povos à sociedade nacional. Sob esta lógica, o Estado brasileiro estruturou uma pesada burocracia legalmente competente para executar as políticas públicas relacionadas aos grupos indígenas, criando assim um microcosmo de Estado dentro do Estado para o exercício da tutela dos povos indígenas. Somada a isso a burocratização, aliada a processos corruptos e escasso controle, resultou que nesse contexto a proteção aos grupos indígenas foi exceção e não a regra geral.

Essa situação é questionada nacionalmente durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1988. Diferentes grupos indígenas encontraram espaço político para a visibilidade de suas demandas. Foi criada a União das Nações Indígenas - UNI, que exerceu um papel fundamental para os avanços obtidos na legislação ao tornar evidente o modo como interesses de grupos privados (mineradoras e ruralistas que lideravam boa parte do interior do país) se mesclavam com questões consideradas “de Segurança Nacional”. Mas, em 1988, grupos indígenas conseguiram vencer os mais diversos obstáculos, apresentaram propostas criativas e estabeleceram negociações com diferentes partidos para conseguirem algo inédito: um capítulo específico sobre os direitos indígenas na Constituição.

Foram reconhecidos direitos originários, em caráter permanente, rompendo, assim, a tradição assimilacionista e assegurando direitos especiais aos grupos indígenas, sem considerar os anteriores “graus de aculturalmento”. O resultado final do processo constituinte deu grande impulso ao trabalho das organizações de apoio e ao surgimento de novas organizações indígenas. Também promoveu uma inovação institucional importante: atribuiu ao Ministério Público Federal a competência na defesa dos direitos dos cidadãos e da sociedade, inclusive os relativos aos direitos indígenas. Desta forma, a FUNAI continua com a atribuição legal na defesa judicial dos direitos indígenas, mas perde sua centralidade sobre a questão, e a relação de tutela começa a ser enfraquecida.

O Estado deve não mais garantir a existência (transitória) das populações indígenas, e sim contribuir eficazmente para a reafirmação e valorização de suas culturas e línguas. O Artigo 210 assegura às comunidades indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem e garante a prática do ensino bilíngüe em suas escolas. O Artigo 215 define como dever do Estado a proteção das manifestações culturais indígenas. A escola constitui, assim, instrumento de valorização dos saberes e processos próprios de produção e recriação de cultura, que devem ser a base para o conhecimento dos valores e das normas de outras. O Decreto Presidencial número 26, do ano de 1991, atribui ao MEC a competência para integrar a educação escolar indígena aos sistemas de ensino regular, coordenando as ações referentes àquelas escolas em todos os níveis e modalidades de ensino. O mesmo Decreto atribui a execução dessas ações às secretarias estaduais e municipais da educação, em consonância com as diretrizes lançadas pelo MEC.

O reconhecimento dos direitos educacionais específicos dos povos indígenas foi reafirmado no Decreto 1.904/96, que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos. Ali se estabelece como meta a ser seguida em curto prazo a formulação e implementação de uma “política de proteção e promoção dos direitos das populações indígenas, em substituição a políticas assimilacionistas e assistencialistas”, assegurando “às sociedades indígenas uma educação escolar diferenciada, respeitando seu universo sociocultural”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 completa a legislação educacional demandada pela Constituição de 1988. Em seu Título VIII – “Das Disposições Gerais”, Artigos 78 e 79, a LDB trata especificamente da educação escolar indígena. Mas esse novo marco legal não possibilita um diálogo entre diferentes grupos, apesar de defendê-lo. Existem questões centrais que impedem esse processo, como por exemplo, a discussão sobre saber e conhecimentos legitimados socialmente.

O Artigo 78, por exemplo, permite uma análise sobre a tensão entre a cultura do grupo majoritário e a dos grupos minoritários, que se estabelece hoje, dentro do Estado nacional. Ele determina que caberá ao Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os objetivos: “1) proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e ciências; 2) garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.”

A relação entre grupo minoritário e majoritário é uma característica das sociedades contemporâneas liberais. Entre os teóricos liberais, tem primazia uma concepção de cultura não essencialista e a idéia de que uma determinada cultura deve ser preservada por se constituir como horizonte de sentido e significação para seus membros, integrando sua própria identidade. O ponto nevrálgico da questão da cultura, contudo, é a diferença de status entre as formas de conhecimento, que gera desigualdades entre grupos e a déficits de reconhecimento para os membros de determinados coletivos, inviabilizando, na prática, aquilo que na teoria seria um diálogo entre iguais. O texto do artigo 78 reforça essa diferença de status ao distinguir o que deve ser proporcionado do que deve ser garantido, a saber, o conhecimento do grupo majoritário.

Na legislação brasileira é possível perceber forte influência do modelo normativo de Kymlicka, ao admitir a necessidade ou pertinência de direitos de minorias em favor de grupos minoritários. A organização escolar e os processos educativos direcionados a povos indígenas recebe, através deste marco legal, certa flexibilidade e alguma autonomia para que cada grupo desenvolva de forma criativa e socialmente construída, propostas pedagógicas próprias. No entanto, esta autonomia parcial leva a uma série de ambigüidades e conflitos com as demais seções da Carta política brasileira.

No campo educativo, por exemplo, o reconhecimento dos direitos indígenas de terem autonomia assegurada sobre as suas escolhas pode, muitas vezes, chocar-se com outro artigo da Constituição Nacional, que estabelece a educação como direito de todos. Dificuldades também são encontradas ao se confrontar diretivas voltadas à sociedade nacional, mas não abarcadas pelas comunidades indígenas. Além disso, o avanço da nova legislação educativa, que reconhece e tenta estimular a diversidade, esbarra em uma realidade bastante complexa, que torna a implementação de políticas diferenciadas um desafio para os seus formuladores. Na próxima seção, discutiremos alguns exemplos relativos a esses pontos.

Interesses de grupos nas sociedades nacionais

As diferentes concepções sobre como deve ser a educação escolar indígena para cada um dos 210 povos existentes foram reduzidas em um Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas, produzido pelo Ministério de Educação brasileiro em 1998, com amparo na nova legislação educativa. O estabelecimento desse Referencial tem sido uma tarefa bastante complexa, dada a dimensão territorial e diversidade étnica existentes. Também é significativa a diversidade de histórias sobre o contato dessas comunidades com outros grupos que fizeram ou fazem parte da sociedade brasileira (colonizadores, latifundiários, agentes governamentais, indigenistas): algumas, com contatos conflituosos e freqüentes desde o século XVI; outras, ainda, praticamente isoladas, escondidas no interior da Floresta Amazônica.

De acordo com o censo escolar realizado pelo Ministério de Educação em 2004, existem aproximadamente 2.400 escolas indígenas que atendem a cerca de 130 diferentes etnias em todo o país, envolvendo mais de 150 diferentes idiomas nativos. Cada uma dessas populações tem, com a nova legislação, maior flexibilidade e autonomia na definição de projetos educativos, e o poder público precisa adaptar seu sistema para assimilar as diferenças: produção sistemática de material didático próprio para cada etnia; formação de docentes indígenas; formação e capacitação de profissionais que vão atuar em setores administrativos e diretivos escolares dentro das comunidades ou na instância governamental, e demais demandas existentes nesse processo de inclusão da diversidade.

Apesar dos esforços da atual Coordenação de Educação Indígena do Ministério de Educação em possibilitar um maior apoio para as escolas indígenas, podemos situar a existência de dois grandes problemas dentro do próprio aparato do Estado para incluir a diversidade indígena no âmbito da educação escolar desenvolvida no país. O primeiro deles é de cunho estrutural-administrativo, o segundo se dá em relação a conflitos entre os interesses das diversas comunidades indígenas e os interesses defendidos na Constituição Nacional.

Sobre o primeiro, é importante lembrar que o desenvolvimento da educação escolar indígena ocorreu em um período de forte descentralização administrativa inspirada em um modelo de gestão neoliberal, que defendeu a diminuição do papel do Estado. Municipalizar ou estadualizar as escolas indígenas, com o intuito de tornar mais eficiente sua gestão, significou a falta de preparação e supervisão adequada sobre funcionários locais. Foram reforçadas desigualdades no próprio sistema e a disputa por verbas públicas para investimento nas escolas indígenas comprometeu bastante o contexto local.

A segunda questão colocada para o Estado brasileiro é o modo de lidar com a grande diferença de demandas existentes entre as comunidades indígenas e também encontrar soluções para impasses de caráter ainda mais complexo: situações nas quais os interesses locais se chocam com os interesses nacionais defendidos na Carta Magna do país. Por exemplo, existem grupos que se opõem ao desenvolvimento de uma política educativa diferenciada, como é o caso do povo Kayapó, habitante do alto amazonas. Esse grupo explicitou entre as suas demandas o rechaço pelo termo “educação diferenciada” existente no Programa de Educação Escolar Indígena Diferenciada Específica Bilíngüe Intercultural desenvolvido pelo Ministério de Educação, por considerar que esta denominação torna as escolas indígenas mais “fracas” que as demais existentes no território nacional. Por estas não seguirem o mesmo currículo e serem bilíngües, os Kayapós alegam que diminuem as possibilidades dos jovens de sua comunidade no acesso a informações relevantes para a maior autonomia do grupo em sua relação com a sociedade nacional. Segundo um de seus líderes, a escola da aldeia tem que ensinar apenas o português e a matemática para preparar a nova geração na disputa com os brancos.

A ampliação do acesso à Educação Infantil também tem sido vista com ressalva por grupos que vivem longe dos grandes centros urbanos. Nestes contextos, líderes comunitários questionam a institucionalização da criança feita mais precocemente, pois esta prejudicaria, ou até ameaçaria etapas valiosas de socialização familiar e comunitária que se dão na primeira infância. Como explica Dona Léia, professora, mãe e liderança indígena da Aldeia Serro Marangatu, Mato Grosso do Sul:

A criança é a esperança para o grupo, a educação é feita pela oralidade, prática, exemplos, de conselhos... Não é limitada, é infinita! Cada fase a criança vai estar recebendo uma educação diferente... A educação da escola é diferente da educação da família. Idade para ir para a escola: 7/8 anos - antes dessa idade a criança depende, precisa da educação da família para aprender a obedecer mitos, preparar a família oralmente e prática.... Criança significa herdeiro: levando o conhecimento de geração para geração. Uma criança feliz é aquela que tem carinho, afeto, exemplos. A criança é muito observadora e aprende o nosso modo de viver, observando a família desde os primeiros meses de vida (Nascimento, 2006:1).

Nascimento (2006) encontra uma situação de resistência e questionamento das lideranças indígenas da Aldeia Serro Marangatu, município da Antonio João/MS, sobre a inclusão precoce das crianças na escola municipal. Uma resistência semelhante foi percebida em pesquisas realizadas junto à comunidade Xavante do TI Rio das Mortes. A antropóloga Clarice Cohn (2005:22) nos lembra que “o que é ser criança, ou quando acaba a infância, pode ser pensado de maneira muito diversa em diferentes contextos socioculturais”. Uma política educativa que pretende lidar com essa diversidade deve ser capaz de apreender essa diferença.

No entanto, partindo-se do pressuposto que existe uma correlação positiva entre a escolarização precoce e o sucesso escolar a inserção das crianças indígenas na educação infantil não poderia ser considerada legítima? Em um primeiro momento, esta correlação nos conduz a considerar que não seria justo privar qualquer cidadão da oportunidade desse sucesso, uma vez que ele é um importante fator para a inserção no mercado de trabalho e a sobrevivência dentro das sociedades contemporâneas. Por outro lado, se a institucionalização da criança pode representar maior apoio e segurança em determinados contextos, em outros, a entrada precoce na vida escolar pode ferir uma das bases da organização comunitária, assim como a autonomia de escolha do próprio grupo.

A Constituição Nacional assegura o direito à educação a todos os brasileiros, mas no universo das comunidades indígenas o acesso universal é discutido. A população Xavante, habitante da região central do país, por exemplo, vivenciou uma forte pressão da Secretaria Municipal de Educação para a inclusão de todos os meninos e meninas na educação escolar, algo que não foi visto de forma positiva por parte do grupo que defendia o acesso apenas para os meninos. A vontade desse grupo – majoritário na comunidade - se chocava aos direitos assegurados na Constituição, e foi em nome desta e por meio de um forte aparato burocrático-administrativo, que o desejo deste grupo foi desconsiderado, sendo construída uma escola também para as meninas. A Secretária de Educação do pequeno município de Canarana defendeu sua posição: “é preciso que todos estejam na escola, meninos e meninas. É um direito de todos e os Xavantes não podem se negar ao direito que está na legislação do país”.

Perguntamo-nos se podemos tomar como válido o argumento da secretária de educação do município de Canarana, que defende a inclusão de meninos e meninas Xavante na escola, uma vez que também temos conhecimento de que o valor da verba pública recebido por cada município depende do número de matrículas efetuado. Afinal, trata-se, neste caso, da convicta defesa da educação para todos como um direito humano, ou de um jogo político e econômico no qual saem sempre ganhando aqueles que já exercem o poder? Qual desses dois argumentos deve ser considerado no confronto com o que prescreve a tradição Xavante? Essas perguntas nos fazem compreender a necessidade de se fazer uma avaliação caso a caso dos interesses que se apresentam em situações como essas, antes de julgar o seu mérito, pois, sem isso, corremos o risco de perpetuar as condições desiguais que sustentam o diálogo entre grupos na sociedade. Diante de uma questão como essa, se tivermos em mente a teoria de Habermas, seremos obrigados a considerar a forma ideal de resolvê-la, ou seja, seremos obrigados a considerar primeiro o que deve valer normativamente, se direitos humanos individuais ou direitos tradicionais, e proceder de modo a neutralizar os efeitos de poder que podem corrompê-la. No entanto, não é fácil conceber de que modo se poderia realizar na prática a desvinculação entre a defesa constitucional do direito da educação para todos e o interesse pela verba pública por aluno, uma vez que ambos os aspectos concentram-se, neste caso, na secretaria de educação do município.

Tensões entre autonomia local e legislação nacional não se limitam ao campo educativo, ao contrário, são múltiplas e ainda mais polêmicas quando tocam questões como direito a uma justiça diferenciada ou à prioridade do direito à vida coletiva em lugar da individual. Conforme procuramos mostrar na primeira seção deste trabalho, apesar das diferenças, os modelos normativos de Habermas e Kymlicka defendem a primazia dos direitos individuais em relação aos direitos de minorias. Com base nesta noção, podemos interpretar que no caso do grupo Kayapó - que rejeita uma educação diferenciada - a imposição desta política educacional representa uma ameaça a sua autonomia. Na perspectiva de Kymlicka, a preferência pelo modelo de escola do grupo majoritário representa uma escolha racional, um desejo do grupo sobre como devem ser suas instituições e suas vidas. Por esta razão, é legitimo e deve ser respeitado.

Os outros dois casos que apresentamos – o da defesa da não inserção de crianças pequenas na escola e o da exclusão das meninas Xavante do sistema educacional – representam, na perspectiva de Kymlicka, exemplos típicos de restrições internas. Isto significa que nestes casos, os interesses do grupo ameaçam a liberdade individual e desta forma, não podem ser considerados legítimos. Estes exemplos são úteis para ilustrar um universo de situações que podem resultar em conflitos entre direitos comunitários e direitos individuais no contexto da educação escolar indígena brasileira. É importante ressaltar que a Constituição Federal não possui prevalência para a decisão de casos como estes, o que significa que cada situação deve ser interpretada e julgada. Desta forma, a prevalência dos direitos de minorias ou dos direitos individuais permanece em constante disputa, o que do ponto de vista liberal pode ser considerado como algo positivo, pois permite a contestação e a revisão dos aspectos da cultura que podem resultar na opressão dos indivíduos ou ameaçar suas concepções de bem. Esta situação, no entanto, demanda uma forte mobilização e organização por parte dos grupos indígenas e principalmente, a habilidade de transitar por instituições e práticas sociais muito distintas das suas.

Conclusões

Neste artigo buscamos, com base em alguns exemplos concretos, ilustrar um universo de situações que podem resultar em conflitos entre direitos de minorias e direitos individuais no contexto da educação escolar indígena brasileira. Buscamos ainda discutir os limites da abordagem liberal frente aos problemas e dilemas que se colocam no caso da educação escolar indígena no Brasil.

Os grupos indígenas brasileiros, assim como muitas comunidades no mundo, não são liberais. Eles não compartilham dos princípios liberais e suas demandas estão fundadas em bases muito diferentes. Conforme apontado anteriormente, para estes grupos, os fundamentos que liberais como Kymlicka e Habermas defendem não correspondem aos seus e podem representar uma compreensão errônea ou irrelevante de suas questões. Neste sentido, a noção de Kymlicka – segundo a qual para que uma sociedade seja justa deve ser liberal (Forst, 1997), torna-se paradoxal no sentido de considerar as sociedades multiculturais a partir de um arcabouço monocultural. Assim, o esclarecimento sobre as condições sociais e políticas que envolvem determinada situação parece caber a quem vai analisar (não apenas juridicamente, mas politicamente e do ponto de vista teórico) a tensão entre as demandas que nela se apresentam.

Outro ponto que buscamos debater neste texto refere-se aos conflitos gerados nas relações entre os grupos e a estrutura do sistema educacional brasileiro. O modelo de gestão descentralizado, se por um lado cria melhores condições para a valorização da diversidade e para a implementação de programas diferenciados, por outro cria o risco do aprofundamento e acobertamento da precariedade dos sistemas, em especial nas regiões mais pobres do país. A precariedade dos sistemas educacionais no Brasil possui profunda vinculação com práticas antidemocráticas e sua configuração é histórica. Isto acarreta em conseqüências efetivas para a implementação da política de educação diferenciada para os povos indígenas, como buscamos demonstrar neste texto. Neste sentido não podemos esquecer a história da produção da própria precariedade ao refletirmos sobre os limites e as possibilidades da construção de uma maior autonomia para a educação escolar indígena.

 

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Notas

1 Para comentários a respeito da proposta de política deliberativa de Habermas, ver principalmente as críticas de Honneth (1995, 1999) e Fraser (1987, 1992, 1997, 2000).