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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.15 Lisboa  2010

 

"Eu gosto de ser professor e gosto de crianças” - A escolha profissional dos homens pela docência na escola primária

 

Amanda Oliveira Rabelo

Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Aveiro.

 

Resumo

Este artigo faz parte de um estudo comparativo que dá conta de uma busca centrada na figura do professor do sexo masculino que trabalha no ensino público primário do Rio de Janeiro-Brasil e em Aveiro-Portugal. O que se pretende averiguar, fundamentalmente, são os motivos da escolha profissional destes professores que enveredam por uma área tipicamente associada com o feminino. Apontamos que a presença de professores do sexo masculino na docência deste segmento é uma forma de inserir as questões de gênero na educação, mostrando que existem outras vozes que ecoam nas escolas, ou seja, indivíduos capazes de exercer esta profissão independente do seu sexo. Demonstramos que, diferentemente do que divulgam algumas representações que circulam na sociedade, os homens também gostam de crianças e escolhem a profissão docente por gosto.

Palavras-Chave: professores do sexo masculino; gênero; escolha profissional.

 

“I like to be teacher and I like children” - the professional choice of men by teaching in elementary school

Abstract

This paper is part of a comparative study a comparative study that performs a search focused on the figure of the male teacher who works in the “primary” public education in Rio de Janeiro-Brazil and in Aveiro-Portugal. We intended, fundamentally, to investigate the reasons of the professional choice of teachers who are engaged in an area typically associated with women. We demonstrate that the presence of male teachers in the teaching of this segment is a way of putting the issues of gender in the education, showing that there are other voices that echo in the schools, or capable individuals of exercising this profession regardless of gender. We demonstrate that, unlike that disclose some representations that circulate in society, men like of children and choose the teaching profession by taste.

Keywords: Teachers men; Gender; professional choice.

 

1. Introdução

A feminização do magistério envolveu várias representações associadas aos “atributos ditos femininos” que eram necessários para a docência no ensino primário, assim como discursos que tentavam promover o afastamento dos homens do magistério. Estas representações, entre outros fatores, exercem/exerceram grande influência na escolha profissional e, como Fonseca (2007) refere, apesar dos avanços, hoje os encaminhamentos profissionais continuam generizados.

Contudo, ainda que os pais (e outros responsáveis) ensinem os filhos a optar e operar em um sistema de regras e a perseguir um conjunto de objetivos, de acordo com as regras dos grupos a que pertencem, mantendo a coesão deste; ressaltamos que a existência de outras intenções pode modificar as regras dos grupos/ sociais. Como Almeida (1998, p. 175) indica “existe uma liberdade de escolha que concerne a todo ser humano e que o faz traçar seu próprio caminho, que, muitas vezes, é diferente daquilo que dele se espera”. Ou seja, existem homens que escolhem o magistério (assim como existem muitas mulheres que não optaram por profissões “ditas femininas”), mesmo com todas estas influências sociais contrárias a esta opção. Qual o motivo que os levaria, então, a esta escolha tão atípica?

Neste trabalho 1 analisamos a justificativa de escolha profissional dos professores do sexo masculino que trabalham nas escolas públicas primárias 2 do Rio de Janeiro-Brasil (RJ-BR) e em Aveiro-Portugal (AV-PT), a partir de questionários que efetuamos com os mesmos 3. Assinalamos que as representações associadas aos “atributos ditos femininos”, assim como outros fatores (como baixo estatuto financeiro e social), exercem/exerceram grande influência na escolha profissional dos professores inqueridos, que se enveredam por tal área tão feminizada, dado que a percentagem de professoras primárias é altíssima e a de professores primários muito baixa.

A metodologia que utilizamos para abarcar os nossos objetivos foi elaborada a nossa metodologia a partir de um conjunto dos processos. Ou seja, não separamos os enfoques de investigação quantitativos e qualitativos, ao contrário, de acordo com a proposta de Sampieri, Collado e Lucio (2006), preferimos um modelo multimodal e misto de investigação que converge tais enfoques aproveitando as suas vantagens. A abordagem qualitativa e narrativa serviu para obter uma maior profundidade dos dados, e o método quantitativo possibilitou obter também dados mais gerais sobre a temática.

Aproveitamos para explicar que este recorte espacial foi tomado e escolhido como ponto central de discussões e comparações com o intuito de captar diferenças e semelhanças entre estes dois locais, nunca esquecendo da influência da colonização portuguesa sobre a cultura e a escola brasileira, mas também destacando as características locais como forma de perceber que caminhos diferentes podem ser traçados e que estes dependem dos vários condicionantes a que se são submetidos.

Defendemos que para entender o magistério como uma profissão é preciso perceber que não é necessário somente “o cuidado de crianças” (associado aos atributos considerados “maternais”), mas muita dedicação, comprometimento, competência, profissionalismo e conhecimento. Como a escola, e o professor, influenciam em uma das primeiras socializações do indivíduo, é preciso instigar uma revisão dos estereótipos e representações de gênero dos professores para que estes não sejam transmitidos e absorvidos pelos alunos.

Ao analisar os motivos da escolha profissional do homem pelo magistério primário encontramos algumas particularidades desta investigação, pois ao invés de serem mais influenciados por aspectos “extrínsecos” à profissão (como falta de opção, empregabilidade, melhor opção acessível, estabilidade, acesso mais rápido ao mercado de trabalho, entre outras), a maioria dos professores que inquerimos e entrevistamos (tanto em AV-PT quanto no RJ-BR) tiveram uma maior motivação por fatores “intrínsecos” à profissão (como gosto pela profissão, por ensinar, por querer mudar o mundo, por gostar de crianças, entre outras)4, o que contraria algumas referências acadêmicas sobre o assunto, assim como as representações que circulam na sociedade de que os homens não gostam e não têm aptidão para lidar com crianças.

As narrativas dos nossos entrevistados, assim como as questões abertas respondidas pelos nossos inquiridos, demonstraram que os homens gostam de lidar com crianças e que a maioria escolheu esta profissão por gosto e não porque esta foi a melhor opção possível. Mesmo assim eles levam em conta a viabilidade da profissão, o que demarca que os professores não estão alheios às vicissitudes da vida e que as motivações estão interligadas, não sendo possível separá-las.

No entanto, alguns professores que optaram pela docência por motivos extrínsecos à mesma, depois passaram a gostar da profissão, o que também pode indicar que os professores romperam as suas próprias representações de que o homem não é capaz de ensinar a crianças, por não ter os “dons maternos naturais”. O problema maior está nos professores que não passaram a gostar da profissão, pois, como afirma Paulo Freire (1997), para ser professor é preciso gostar do que faz, até porque ressaltamos que o mal-estar docente pode levar à perda de qualidade na educação (conforme afirma Esteve, 1992). Por isso é importante que os professores escolham a profissão por questões intrínsecas, o que é facilitado pela divulgação e informação correta aos estudantes sobre a profissão e também pela revalorização da mesma (como indicam as referências bibliográficas sobre malestar docente).

Os dados quantitativos que coletamos permite inferir algumas observações importantes para a compreensão das motivações para a escolha profissional destes professores. Inicialmente que os fatores intrínsecos foram os mais citados: O gosto pela profissão aparece com maior freqüência nas respostas, ou seja, a maioria destes professores escolheu a profissão porque gosta da mesma (78,3% dos portugueses e 80,5% dos brasileiros). O segundo valor mais elevado (58,3% dos portugueses e 57% dos brasileiros) encaminha para uma “descoberta”: homem também gosta de crianças (e porque não?). Isto significa que não só as mulheres são motivadas pelo “gostar de crianças” na sua escolha profissional, mas também os homens.

 

2. A escolha por gosto pela profissão

Como já referimos, a grande maioria dos professores inquiridos na nossa investigação marcaram que escolheram a docência por gostar da profissão. Nas justificativas presentes nos questionários este apreço relaciona-se com vários aspectos, como destacamos anteriormente e conforme explica Gonçalves (2000, p. 303) que esta deve-se uma certa tradição sócio-cultural e a um senso comum que se traduzem na expressão popular do “ter nascido para”, a que se junta, no caso da profissão docente, a idéia de prestação de um serviço ‘pessoal’ e ‘humanitário’, que pressupõe entrega e sacrifício.

Entretanto, por vezes descreve-se somente o gosto pela profissão para a escolha da profissão. Nestes casos, várias justificativas são destacadas para tal opção.A importância da profissão docente é um aspecto ressaltado em algumas respostas, o que demonstra que a visão idílica da sociedade e da instituição escolar que Nóvoa (1988) descreve como divulgadas principalmente a partir do início do século XX, ainda fazem parte do discurso dos professores e ainda levam muitas pessoas a escolher esta profissão.

Nos inquéritos o “gosto pela profissão” é relacionado muitas vezes com um “gosto por estudar, por ensinar, formar, transmitir e partilhar conhecimentos”, além disso o gosto por ensinar e pela profissão aparece nas respostas como sendo inerentes à profissão.

Catani, Bueno e Sousa (2000) consideram que o gosto pela escola/educação são cruciais para o desenvolvimento das relações positivas ou negativas que posteriormente os alunos passam a estabelecer com o conhecimento e com outros valores relacionados à atividade docente, o prazer/desprazer pela leitura e escrita, as curiosidades, entre outros.

Como analisa Alves (1997, p. 89), geralmente as pessoas que escolhem a profissão docente por gostar da profissão e considerarem que têm vocação para esta são as que possuem uma performance acadêmico-secundária mais forte do que as que se enveredam por outras carreiras, por isso é preciso analisar “a razão das aspirações pessoais de ingressar na profissão docente, ligadas tradicionalmente pelas teorias inatistas ou do dom, ao problema da motivação interior – vocação para a docência”. Neste sentido, é importante o papel das instituições de formação inicial no processo de concretizar a aspiração do aluno, esforçando-se no acompanhamento do aluno, em proporcionar experiências agradáveis e favorecer a preparação profissional.

Este gosto pela profissão acima de todas as outras possíveis motivações, é predominante entre os nossos inquiridos. Desta forma, o gostar é destacado não só como motivador da escolha profissional, mas como necessário ao exercício profissional docente (como também demonstra Gonçalves, 2000). Um “gosto” que chega a ser considerado como inato ou desde a infância.

Tal inatismo apresenta-se muitas vezes no conceito “vocação” expresso nas respostas dos professores. Cruz et al. (1988) apontam que a vocação ou escolha inicial pela docência é apontada pela maioria dos professores em Portugal, independente de religião, estatuto social, segmento de atuação, o que faz questionar se estamos em presença de uma multiplicidade de efeitos específicos e distintos para tal motivação.

Em primeiro lugar, tudo indica que esta “vocação” não seja necessariamente inata, pois como explica Gonçalves (2000) o número efetivo de vocações é muito menor do que aquele que uma análise mais profunda da problemática vem a revelar, pois pode-se concluir que algumas das vocações apontadas pelos professores (que são convictos de que têm as mesmas) não são mais do que resultado de fatores ambientais, extrínsecos à pessoa, e que a levam, com o passar do tempo, a reconsiderar a sua posição. O autor chega a esta conclusão porque, no seu estudo longitudinal, algumas entrevistadas que se consideravam sem vocação passaram a considerar-se com vocação. Portanto, provavelmente estas se auto-motivaram no exercício profissional, o que comprovam que a vocação e a motivação profissional são “processos fundamentalmente construídos e que se modificam ao longo da carreira”.

Cabe destacar também, que a escolha profissional motivada pela vocação e pelo amor já foi duramente criticada. Schaffrath (2000, p. 15) resume tais críticas a uma tentativa de desvelar o conceito de vocação, admitindo que ele foi utilizado como mecanismo de legitimação do preconceito contra o sexo feminino: “Trabalhar como professora e se sujeitar a uma baixa remuneração fazia parte do perfil vocacional das mulheres”. Mas não só, pois como afirma Mónica (1978, p. 211) este conceito também foi utilizado pelo Estado Novo como legitimação da baixa qualificação dos professores: “Ao professor primário só se devia exigir “uma natural vocação para o ensino.” Apetrechá-lo com uma cultura geral era não apenas supérfluo como nocivo”.

Bruschini e Amado (1988) entrelaçam as duas explicações ao mostrar que a mística do maternalismo extrapola o papel profissional e dificulta o equacionamento dos problemas da profissão, pois o “amor” pode esconder falta de competência técnica e de luta por melhores condições de trabalho (como também destaca Louro, 1989). Entretanto, as autoras destacam que alguns estudos consideram que o envolvimento afetivo talvez seja um dos principais fatores para resultados positivos dentro das precariedades de suas condições de trabalho. Assim, as autoras concluem ser necessário perceber que o magistério não é uma vocação ou um “chamado” feminino, pois esta é uma profissão que exige sólida formação pedagógica, esforço, dedicação, competência e espírito de classe, que precisa, também, de boas condições de trabalho e remuneração compatível. Somente então é possível enfrentar a relação com os alunos com afeto, mas sem o disfarce do amor e pleiteando salários mais justos, através de sua participação em seu órgão de classe.

Manuel Sarmento (2000, pp. 214-220) também analisa o conceito neste sentido, para ele uma das representações construídas sobre os professores primários que integram dominantemente o discurso político sobre os professores e as escolas, é a “metáfora missionária” (que aparece mais em Portugal durante o Estado Novo e no período de normalização democrática, mas não somente nestes períodos). Esta representação centra a ação educativa nas qualidades morais do desempenho do professor, nos valores individuais e na ordem moral.A profissão é considerada um serviço a que se adere por “vocação”, cujos ganhos são de natureza espiritual, assim a “gratificação moral do trabalho que realiza é considerada como o mais justo prêmio a que pode aspirar”. Tal metáfora é geralmente acompanhada de modos de desqualificação profissional e de proletarização, como na diminuição do salário e na atribuição de um estatuto idêntico ao dos assalariados menos qualificados. No entanto, tal desvalorização não significa que não haja discursivamente uma sobrevalorização simbólica do trabalho educativo, simplesmente se o professor é um missionário ou apóstolo sua recompensa não é “terrena” (que poderia até significar perdição), é no Reino dos Céus, ou seja, a valorização social (simbólica) da profissão é associada com a tutela moral redutora da autonomia e na ameaça implícita.

Assim, Alves (1997, p. 91) pontua que é excessivo falar de “vocação docente”, como se ouve freqüentemente (com o tom metafórico-religioso associado a este conceito), pois quando entra na profissão docente, não se entra em uma religião e pode-se continuar a levar uma vida absolutamente normal. Mas, em contrapartida, é necessário possuir uma fé suficiente, uma crença no que se vai fazer.

Jesus (2002, pp. 33-34) destaca ser importante compreender que o estereótipo de se considerar que é o espírito de missão deve estar na base da escolha da profissão docente e não o salário (até porque a vocação pedagógica foi por muito tempo associada a uma vocação sacerdotal), pode ser um dos fatores (dentre outros) da baixa remuneração da profissão, pois as profissões para os quais é considerado necessário ter um “espírito de missão” são normalmente mal remuneradas. No entanto também questiona se “será impossível conciliar o desempenho da profissão docente, de forma motivada e com espírito de missão, com o reconhecimento deste esforço, nomeadamente através de uma remuneração mais justa”.

Martins (1991, pp. 86-87) faz outra crítica ao conceito de vocação, o autor explica que a necessidade de resolver situações disfuncionais na educação e no mercado de trabalho “têm levado a que a orientação se faça no sentido de impor ao indivíduo determinados caminhos de acordo com as necessidades da sociedade ou mais particularmente dos empregadores”, em um processo onde os estudantes adquirem um conhecimento de qual a sua situação real face ao sistema possível das escolhas (e de emprego), ou seja, visa que o jovem se conheça, que conheça o sistema de possibilidades existentes (onde os cursos desprestigiantes são exaltados como fáceis de conseguir emprego e a sua funcionalidade), os constrangimentos exteriores e que este aprenda a tomar decisões. Neste processo, uma outra situação comum é a definição de “vocações individuais” e lhes fazer corresponder uma determinada posição social. Ou seja, estes cursos a que se associa a necessidade de vocação são os cursos de menor estatuto social, para tanto a “vocação” aparece como um discurso para direcionar jovens aos cursos adequados à sua posição social, visando que existam profissionais para tais profissões.

Contudo, concordamos também com Almeida (1998, pp. 83-84) que defende que a crítica em torno da vocação e do amor precisa ser repensada para não impor ao magistério o jogo da opressão e da discriminação sexual, para levar em consideração não mais o sujeito universal, assexuado, passivo e único, mas “redescobrir o detalhe, a nota dissonante, a pluralidade das estruturas sociais e atores que nela transitam”.Ao criticar e desqualificar a escolha por vocação, atribui-se ao docente papéis de passividade receptiva a motivações extrínsecas e ignora-se a possível verdade que possa estar escondida no discurso afetivo, ignora-se a/o professor/a como sujeito histórico regulador do seu destino, que efetua escolhas determinadas pela concretude da sua existência e pelos seus desejo pessoais.

Enfim, é preciso ter amor e aptidão pela docência, mas é indispensável que os professores sejam conscientes das construções sociais sobre as representações de vocação e amor pela docência: que elas não são inatas e podem ser construídas; da associação destas com a desvalorização financeira e acadêmica da profissão; da integração desta com a feminização/afastamento dos homens desta profissão (baseada na falta de aptidão destes); na manutenção das posições sociais.

 

3. Homem também gosta de crianças! Por que não?

O gosto por crianças é a razão de escolha profissional do homem pela docência que aparece em segundo lugar nos inquéritos. Este dado nos permite verificar que esta não é uma das últimas motivações do homem para escolher a docência, ao contrário, diferentemente do que divulgam algumas representações que circulam na sociedade, os homens também gostam de crianças e querem lidar com elas no seu exercício profissional.

Geralmente associada com o gosto pela profissão ou com a possibilidade de transformação, as respostas dos nossos inquiridos mostram que muitos deles consideram o “gostar de criança” como estritamente necessário para o exercício da docência. Mesmo, na maioria das vezes, relacionando este “gostar” com outros aspectos, ele não deixa de ser imprescindível e um dos principais fatores que motivam esta opção profissional. Como dizia Paulo Freire (1997, p. 18) “não é possível ser professora sem amar os alunos – mesmo que amar, só, não baste – e sem gostar do que se faz”.

Os inquiridos destacam a sua facilidade para lidar e comunicar com crianças, a possibilidade de maior transformação social pela atuação com crianças (que são o futuro da sociedade), e algumas características das crianças que são veneradas, como sinceridade, espontaneidade, energia, alegria, enriquecedoras (aprende-se com elas todos os dias), desafiadoras, abertas, motivadoras... No entanto, o gosto por crianças também é associado às vicissitudes da vida e influências de outras pessoas na sua opinião.

Há muitas críticas em torno dos discursos docentes quando se referem à dimensão afetiva do trabalho do/a professor/a (principalmente da professora). Almeida (1998, pp. 206-207) questiona “Que qualidade é essa que se exige para a educação escolar, sem levar em consideração que esta é desenvolvida por seres humanos, num processo interativo do qual não poderiam eximir-se os sentimentos, os afetos, as escolhas ditadas pelo desejo?”. O discurso afetivo é acusado de desvalorizar o magistério, mas como já demonstramos anteriormente, ele já era desvalorizado antes destas representações circularem.

No entanto, destacamos que não basta gostar de criança para estar apto a lecionar. Pontuamos que talvez esse olhar ingênuo faça com que a profissão seja tão desvalorizada, não só aos olhos dos governantes, mas aos olhos dos pais e das mães que deixam seus filhos na escola. Ao mesmo tempo, o gostar de criança e da profissão é um aspecto importante da profissão docente, embora concluamos que é necessário muito mais do que isso para um profissional ser “bom” ou competente no que faz.

Almeida (1998, p. 83) constata, ainda, que ao investigar-se o universo docente normalmente destaca-se os questionamentos feitos acerca das escolhas “com o objetivo de desvendar, nas respostas das professoras, o sentido e o significado de conceitos como vocação e missão, que aparecem traduzidos também, grosso modo, pelo gostar de crianças ou achar importante ser professora”. O raciocínio desqualificativo passa a ser utilizado “ignorando a possível verdade que possa es-tar escondida no discurso afetivo da professora”. Enfim, há que se pensar se ao valorizar o afeto, o gosto por crianças, a vontade de ensinar, a solidariedade como atributos essenciais para o exercício docente “há que se pensar que o discurso é real e não fictício, que este vem do seu intimismo como ser humano e ser feminino, e até da própria projeção do amor materno”.

Apesar deste discurso afetivo ser interligado socialmente ao feminino, principalmente quando se trata de gostar de crianças, acreditar que só as mulheres têm um dom maternal e fazem escolhas motivadas por afeto ou por gostar de crianças é um erro. Como afirma Badinter (1996, p. 96), o amor materno é um mito, pois este não é inato na mulher e nem mesmo exclusivo dela:

A verdade é completamente diferente. O amor maternal é infinitamente complexo e imperfeito. Longe de ser um instinto, é condicionado por tantos factores independentes da “boa natureza” ou da “boa vontade” da mãe, que seria preciso um pequeno milagre para que esse amor fosse tal como nos tem sido descrito. Depende não só da história pessoal de cada mulher [...], mas também de muitos outros factores sociais, culturais, profissionais, etc.

Para a autora (1996, p. 97-98; 237),“os homens exercem funções maternais tão bem como as mulheres, quando as circunstâncias o exigem. O pai é tão sensível, afectuoso e competente quanto a mãe, sempre que mobiliza a sua feminidade”. A autora ainda destaca que a “maternagem” aprende-se na prática e que é preciso que a mulher, aliviada de um instinto mítico, aceite partilhá-la, e que o homem deixe de recear a sua feminidade maternal.

Como Almeida afirma, os “homens também são professores e cuidam da família, porém, raramente são descritos nesses afazeres, como se tal fato devesse permanecer oculto” (1998, p. 82). Percebemos que os homens que inquerimos exaltam nas suas explicações a sua facilidade para lidar com os “pequenos”: a paciência, o amor, a possibilidade de ajudá-los a crescer e, também, de aprender com eles.

Carvalho (1998, p. 9) descreve que alguns dos seus entrevistados (professores primários do sexo masculino) alegaram razões ideológicas ou religiosas para sua escolha pelo magistério junto a crianças e que eram envolvidos emocionalmente com as crianças, queriam ser uma espécie de “paizão da criançada”. Ainda consideraram que o professor deve ter o “seu lado maternal muito bem desenvolvido”, para dar-se bem junto aos menores, “pois a afetividade é muito importante”. Mas esta afetividade, maternidade, gosto e o envolvimento com as crianças (características que remeteriam ao modelo de feminilidade hegemônico) eram justificadas como parte de suas opções ideológicas e dessa forma integradas a sua própria masculinidade. Eles se apropriavam e defendiam a idéia de vocação (tão associada à feminização do magistério), mas, ao mesmo tempo, eles a ressignificavam. Embora continuassem a considerar a relação com crianças como parte da feminilidade, aspectos dessa feminilidade parecem acessíveis aos homens, dessa forma quebrase “de forma inovadora, a superposição que predomina no senso comum entre feminilidade e mulheres, masculinidade e homens e características femininas são atribuídas a homens sem que sua masculinidade seja posta em questão”.

Como Galbraith (1992) também percebeu na sua investigação, que os homens em ocupações não-tradicionais (enfermeiros e professores primários), deram mais importância ao relacionamento na sua carreira, o que evidencia que os homens podem expandir suas opções de papéis sexuais pela adição de dimensões na sua vida que não são vistas como papéis tradicionais masculinos em vez de abandonarem sua masculinidade. O autor mostra que se a mulher pode manter sua perspectiva feminina e ter benefícios de uma carreira masculina, os homens também podem reter sua perspectiva masculina e adicionar dimensões dos componentes tradicionalmente femininas à sua experiência ocupacional (como comunicação e fatores de relacionamento).

As narrativas e a grande quantidade de respostas nos inquéritos por questionários que recolhemos possibilita analisar que as questões de gênero têm-se modificado (pelo menos um pouco) na nossa sociedade, pois os homens demonstram a sua sensibilidade, paciência sem medo de serem estigmatizados.

 

4. Considerações sobre a escolha profissional dos professores

Como menciona Jesus (2002, pp. 62-63; 74-77), as motivações mudam: até os anos de 1970 a disponibilidade permitida pelo trabalho docente era motivo de escolha da profissão, atualmente já não são, ao contrário:“são sobretudo factores intrínsecos à actividade docente que mais influenciam a escolha desta profissão, nomeadamente o gostar de ensinar e de contribuir para o desenvolvimento dos alunos”.Vários autores referem que a maioria dos professores escolhe esta profissão porque esperam obter satisfação a partir dos fatores intrínsecos do trabalho; assim, a maior parte das medidas que são identificadas como podendo contribuir para a motivação dos professores são intrínsecas à atividade docente. Mas a ênfase nos incentivos intrínsecos não significa que os extrínsecos não contribuam para o empenhamento dos professores, não se pode analisar estes incentivos de forma descontextualizada ou despersonalizada.

Identificamos na nossa investigação uma preponderância dos fatores intrínsecos como motivadores da escolha da docência primária pelos homens, pois percebemos que apesar dos homens também optarem pela docência por falta de oportunidade ou por ser a melhor opção (em AV-PT 35% dos professores optam por estas questões e 51% do RJ-BR), a grande maioria (78,3% dos portugueses e 80,5% dos brasileiros) escolhe por gosto ou integram uma vontade de ser professor a estas questões econômico-sociais-familiares.

Percebemos que não existem grandes diferenças de gênero na escolha pro-fissional dos homens e mulheres pelo magistério, o que confirma alguns estudos (como Carvalho, 1998) e contraria outros (como Abreu, 2002; Catani, Bueno, & Sousa, 2000).

Portanto, não podemos deixar de destacar conforme explica Jesus (1997, p. 81) que um potencial professor que escolha a docência “por vocação ou pelas tarefas profissionais características desta profissão apresenta uma maior motivação inicial para a profissão docente do que aquele que escolhe esta profissão por falta de outras alternativas profissionais”, ou seja, para apresentar maior motivação para a profissão docente, é importante que o potencial professor ingresse no curso superior pretendido.

Assim, concordamos com Almeida (2002, p. 114; 360) quando ela afirma que:

Se, por um lado, educar e ensinar é uma profissão, por outro, não há melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um ser humano para outro, e isso também é um ato de amor. Gostar desse trabalho, acreditar na educação e nela investir como indivíduo, também configura-se como um ato de paixão, a paixão pelo possível, sentimento derivado do sentido do ser e da existência, que incorpora o desejo às possibilidades concretas da sua realização.Talvez resida aí a extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença das mulheres no magistério.

Contudo, diríamos que a extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença dos “homens e das mulheres” no magistério está no gosto/amor pela profissão, na incorporação deste desejo às possibilidades da sua realização; na associação das vicissitudes da vida com a paixão pela docência; na luta apesar do descaso e do baixo estatuto; no investimento do seu “suor”, das suas “lágrimas”, mas também dos seus “sorrisos” e “encantos” nesta profissão.

 

Notas

1 Este trabalho faz parte da tese de doutoramento: Rabelo,Amanda (2009). A gura masculina na docência do ensino primário: Um “corpo estranho” no quotidiano das escolas públicas “primárias” do Rio de Janeiro-Brasil e Aveiro-Portugal. Tese de Doutoramento em Ciências da Educação, Universidade de Aveiro,Aveiro..

2 Utilizaremos neste trabalho o termo “ensino primário” de acordo com a Classifi cação Internacional Tipo da Educação da UNESCO (CITE 1, 1997, citada por Eurydice, 2001) e como tentativa de usar um termo compreensível no Brasil e em Portugal (pois este já foi utilizado em ambos os países) para designar o “1.º ciclo do Ensino Básico (1.º CEB)” de Portugal e a “1.ª fase do Ensino Fundamental” do Brasil.

3 Aplicamos questionário a uma amostra de 209 professores do ensino público, 60 do Distrito de Aveiro (Portugal) e 149 do Estado do Rio de Janeiro (Brasil).

4 Utilizamos a expressão “fatores extrínsecos e intrínsecos” para a escolha profissional de acordo com a obra de Jesus (2002).

 

Referências Bibliográficas

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