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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.12 Lisboa  2008

 

José Mattoso 1997 (1ª ed. , 1988). A escrita da história – teoria e métodos.

Lisboa: Editorial Estampa, 216 páginas.

A obra em epígrafe representa um contributo muito importante para os historiadores e para todos que se interessam por História e pelo estudo da História. O autor entende que, ao situar-se na problemática do Moderno ou do Pós-Moderno, não pode compartilhar ideias com quem acreditava ser a História “a narrativa da emergência do Espírito, da Razão, do Progresso, da Liberdade, da Democracia, do Socialismo ou mesmo do Homem”(p.9).

Assim, o escritor procura mostrar nesta obra, uma certa ordem, dentro dos fragmentos dispersos da realidade e dos diferentes modos do comportamento do homem, a que chama Verbo, um aglomerado de regras de composição, as quais, harmoniosamente, estão subjacentes “à espécie de fantástica sinfonia que é a História” (p.10).

Procurando a natureza dos métodos e da teoria da escrita da História, o seu estudo compreende três grandes capítulos: A Escrita, Os Materiais e Os Temas, que, indicando as características de Portugal na Europa, abrangem também a História nacional, e integram nesta o “sagrado”, o “profano” e o “invisível” também eles integrados na realidade.

Esta obra apresenta-se-nos como um registo brilhante e de uma sensibilidade explícita que, desde o início, nos prende à sua leitura.

Reconhecendo o autor as contradições do comportamento humano, propõe-se averiguar, por detrás delas, as harmonias resultantes da simbiose de elementos dispersos e contraditórios como a própria existência do Homem e das quais o autor é fascinado pela procura de eixos, encontros e desencontros, convergências e divergências.Vai, então, ten-tar descobrir uma possível conciliação entre a percepção do inexprimível e a construção crítica do texto historiográfico.

Este livro é composto por transcrições de palestras e conferências feitas pelo autor, durante os anos de 1986 e 1987.

No primeiro capítulo, intitulado A Escrita (p.13), o autor revela a sua insegurança em falar de questões gerais e fundamentalmente teóricas, entendendo que essa sua insegurança é resultado “de uma certa aversão pessoal por questões teóricas e por noções abstractas, agravadas por uma deficiente preparação filosófica”(p.15). Re-vela, ainda, que certas noções de conceitos que lhe foram oferecidos por ciências como Psicologia, Sociologia e Antropologia, se lhe mostraram de mais utilidade nas suas investigações do que as formas propostas por colegas da sua própria especialidade.

José Mattoso resolve, então, seguir um fio condutor, referindo-se para isso, a três momentos da elaboração do discurso histórico: exame do passado através das suas marcas, representação mental que desse exame resulta e produção de um texto escrito ou oral que permite comunicar com outrem (p.16).

Para o autor, os documentos só revelam verdadeiro significado quando fazem parte integrante de uma globalidade que se apresenta como a existência do homem no tempo e também quando se perscrutam os actos humanos num total, ou seja, por exemplo, “não dar mais valor à queda de um império do que ao nascimento de uma criança, nem mais peso às acções de um rei do que a um suspiro de amor” (p.17).

Antigamente, “factos históricos” eram apenas os actos dos chefes políticos, dos génios ou dos heróis. Agora, com o alargamento da história da humanidade, tudo se apresenta como tendo dimensão histórica, “desde a forma de enterrar os mortos até à concepção do corpo, desde a sexualidade até à paisagem, desde o clima até à demografia”(p.17). O autor entende que o que torna um facto objecto da História não é o próprio facto em si mesmo, mas sim o que eventualmente possa vir a representar para o destino da humanidade.

Toda a observação histórica deve captar as dimensões ocultas e não apenas as aparentes e imediatas. Não apenas o que se pode captar segundo os parâmetros das diversas taxonomias científicas, mas também o que pode ser captado segundo um registo poético. Devem ser usadas todas as faculdades de observação, não apenas as racionais mas também as volitivas, para que se possa apreender o real em todas as suas facetas. O autor entende ser este exercício um acto de amor:

Um amor na plena acepção da palavra, isto é, que não é contaminado pela tentação de possuir, dominar ou destruir, mas que mantém intacta a alteridade, a radical separação do sujeito e do objecto, e que tenta estabelecer a relação com ele através do verbo interior, em todas as suas dimensões: o cântico de admiração, o diálogo do gesto, a descoberta do símbolo, o desencadeamento da palavra poética (p.18).

O Homem sempre foi fascinado pela História. Este fascínio, na opinião do autor, tem a ver com o facto de o Homem estar convencido de que pode encontrar no passado respostas importantes sobre si próprio. O desprezo sobre o passado exprime, por certo, um olhar curto, obtuso e grosseiro sobre a vida.

O importante, para o autor, é que a atitude contemplativa permite apreender a realidade de hoje e de sempre como fonte de lucidez e que permite relacionar as partes com o todo, chegando-se, assim, a reunir, num só acto, a análise e a síntese, a distinção e a composição. Depois de delimitada uma área no campo da observação, deve ser examinada em todas as suas dimensões.

Para o autor, a atitude contemplativa não é oposta à atitude racional e científica. Muito pelo contrário, uma vez que torna a ciência extremamente exigente e o rigor da observação incansável. Essa atitude contemplativa levará também a não nos contentarmos com os vestígios escritos do passado e a examinarmos o que se encontra por toda a parte, mas esse exame deverá sempre ter em conta que o essencial só se revela a quem sabe procurar e reconhecer o seu valor. Em relação à observação do passado, só deveremos ser atraídos por aquilo que nos per-mite compreender e viver o presente e não basta, por isso, estudar os documentos antigos, mas indagar o passado na paisagem, nos monumentos, nas iluminuras, nos jogos, nos contos, no imaginário colectivo, etc.

José Mattoso, conclui de forma pertinente:

Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido (p.22).

Tentar mostrar que existe uma ordem no mundo, eis, segundo o autor, o verdadeiro destino da História. Descoberta essa ordem, há que reparti-la entre o passado e o presente; o passado deve ser estudado em grandes planos para que se possam encontrar as razões profundas dos movimentos colectivos.

Relativamente à recolha de dados e à sua classificação, para que não sejam meramente empíricos, devem utilizar-se modelos e conceitos já utilizados pelas outras ciências humanas, constituindo o fio condutor que irá propor hipóteses interpretativas cuja solidez e fundamento serão posteriormente verificados com o material empírico.

Por fim, encontradas as pistas, encontrado o que nos interessa, é ainda necessário demonstrar o que se descobriu, fazer relatórios, ou seja, somos chegados à fase da comunicação, à última fase da elaboração do texto histórico.

O autor considera que a escrita da História é do domínio da arte; nessa escrita, existem vários graus, desde o texto ingénuo e um pouco rude, até ao texto fundador de uma nova era historiográfica, passando, logicamente, por livros fastidiosos mas úteis, compêndios para consumos escolares e ordenações esquemáticas e simples.

Subscreve, ainda, a ideia que a escrita em História é um discurso pessoal, resultante da interpretação de quem escreve, e entende ser o discurso que recorre à “retórica”, ao “enciclopedismo” ou à “erudição”, subjugante do leitor a uma determinada ideia ou sentimento, ou apenas ao prazer de dominar, alienante e não libertador.

De seguida, Mattoso parte para uma reflexão subordinada ao tema A História – Arte ou Ciência (p.31), e refere não admitir, de forma alguma, a arbitrariedade da investigação histórica, nem na fase da heurística, nem na fase da elaboração do texto. Entende ser a crítica actual mais exigente. Para este facto têm contribuído as “ciências empíricas propriamente ditas, ou que usaram maciçamente os seus dados, como o exame químico do suporte, da escrita e da tinta, a codicologia e o aperfeiçoamento da paleografia” (p.35). Como auxiliares, são referidos os métodos quantitativos e estatísticos, disciplinas da Matemática e a sua aplicação rigorosa. As-sim sendo, estamos a entender a História como Ciência.

Podemos entendê-la também como Arte, uma vez que ela só pode alcançar o passado por meio de sinais e representações da realidade e não por um exame directo da própria realidade.

Por fim, o autor conclui ser afinal a História “uma representação de representações”(p.38) e, na sua opinião, devem-se distinguir três aspectos: “a qualidade da forma, a habilidade na escolha e interpretação dos dados e a carga poética do seu sentido global” (p.39). Neste sentido, a História é “um saber, e não propriamente uma ciência” (p.38).

Não é possível deixar de citar um parágrafo que aparece mais à frente e no qual o autor, na sua maneira poética, humilde, simples, mas carregada de sabedoria, e até de certa forma acutilante, nos transmite uma conclusão a que chega:

Para descobrir o que por dificuldade de linguagem se chama o mistério da História e que, afinal, talvez seja tão simples como a claridade do sol ou a escuridão da noite, parece não haver técnica, ciência nem arte que cheguem. Parece ser necessário juntá-las todas e ceder ao fascínio de contemplar a vida do Homem no tempo. Talvez a entrega apaixonada a esta contemplação possa realmente aproximar as palavras que balbuciamos para transmitir o que aí se revela como a palavra única que o Homem e o mundo pronunciam e ninguém jamais chegará a dizer (p.42).

Na medida em que a orientação moderna se está a encaminhar no sentido de um tecnicismo crescente dos métodos, não se compadecendo já “com o velho ideal humanista do sábio pesquisador de papéis velhos, cuja principal ferramenta de trabalho era a paleografia” (p.43), o historiador moderno tende a identificar-se com um homem de negócios.

É citado, então, Geoffrey Barraclough, como sendo um bom guia para uma visão de conjunto. Actualmente, já não interessam os factos em si, mas a sua repetição; não a acção individual, mas sim os movimentos de massa.

Emerge, assim, para a historiografia, a noção de que se podem reconstituir no passado sistemas organizados de acções que mantêm um grau apreciável de continuidade temporal, a que se chama estruturas sociais.

Contudo, não se podem usar como referência os conceitos e padrões de comportamento actuais. Há que reconstituir os do passado. Todavia, há que ter em conta que os documentos históricos raramente explicitam o que é normal e quotidiano. Será necessário, então, fazer uma revisão das fontes para que se possa detectar aquilo que, de facto, nos interessa. De novo, o autor refere outras ciências humanas que podem auxiliar o historiador, como a Antropologia e a Sociologia, que permitirão que não se passe ao lado de importantes referências documentais, que nos possam dar uma ajuda preciosa para que possamos averiguar o que é ou não essencial.

Deixando, então, de lado o fio condutor de Barraclough, o autor vai abordar outro tipo de historiografia mais difícil de precisar nas suas modalidades concretas e para a qual não é fácil prever um destino único. José Mattoso refere-se às investigações que pretendem captar as categorias mentais predominantes no passado e que utilizam, privilegiadamente, os conceitos e métodos da sociolinguística e da semiologia. No entanto, o autor reconhece que, na época actual, ainda se impõe o rigor e o método científico, bem como a análise impressionista e a escolha aleatória dos testemunhos sendo obrigatória a análise sistemática e o uso de critérios objectivos.

Para terminar, o autor considera ser evidente a necessidade de cruzar o resultado destes dois tipos de investigação e ser aí requerido um grau elevado de intuição e de sensibilidade, que permita ultrapassar o simples rigor científico.

Segue-se uma comparação entre o panorama actual dos novos rumos da historiografia e o abismo que a separa da realidade portuguesa.

Mattoso lembra, então, que o progresso historiográfico se fez mais rapidamente em países com grande actividade científica noutros campos do saber. “Em Portugal, para além de uma situação global comparativamente menos favorável, verifica-se, no campo historiográfico, que a fase positivista não chegou nunca a criar um conjunto suficiente de estudos de base para se poder passar, sem mais, à fase seguinte”(p.50). E continua, referindo-se ao facto de ao passarmos à crítica textual, outro aspecto da fase positivista, o panorama ser também desfavorável.

Assim, o autor entende ter o seu resumo do modo como Barraclough apresenta a situação mundial, mostrado “(...) de maneira evidente, que só há, na actualidade, história científica válida, e esta só realiza progressos decisivos se se consagra a problemas estruturais da vida humana e se utiliza métodos estritamente rigorosos, tanto do ponto de vista conceptual como pelo uso de instrumentos de medida” (p.53).Acrescenta, ainda, entender ser isto possível, pelo exame de grandes massas documentais, pelo aperfeiçoamento dos conhecimentos das outras ciências humanas, além da História, e pela constituição de equipas com programas de investigação rigorosa e faseada. Reconhece, no entanto, que a alteração do panorama não será nunca feita por decreto, uma vez que depende “da modificação de uma mentalidade profundamente arreigada, mesmo em alguns adeptos dos novos métodos”(p.53).

Quanto a Portugal, o autor mostra-se optimista e convencido que os próximos anos serão de grande fecundidade, uma vez que existem, a seu ver, muitos jovens a fazer mestrado e doutoramento, ou seja, canalizados para a investigação.

A obra, que constitui objecto de análise, prossegue com mais dois capítulos, os quais já aqui foram referidos anteriormente, e acerca dos quais será aqui indicada apenas a estrutura. O capítulo II (Os Materiais), foca os seguintes aspectos: “Renovar os arquivos para renovar a História” (p.67) e o autor referenciando o seu agrado pelas decisões governamentais da transferência e da reestruturação da Torre do Tombo, indica três vertentes principais que a seu ver transcendem de longe o sector restrito dos arquivos. 1 - A preservação de todo o património histórico deverá ser assegurada, uma vez que constitui a base mais realista e eficaz da cultura e da identidade nacional; 2 - O alargamento da informação necessária para conhecer as estruturas socioeconómicas nacionais; 3 - A racionalização da gestão de um sector fundamental da base informativa sobre a qual se deverá apoiar a Administração Pública. “O arquivo e a identificação” (p.79), “Os arquivos oficiais e a construção social do passado” (p.89), “ A publicação de fontes documentais e o progresso da ciência histórica em Portugal” (p.101),“Investigação histórica e interpretação literária de textos medievais” (p.115).

No capítulo III (Os Temas) (p.127), o autor aborda questões de enorme importância, tais como: Portugal e a Europa, a identidade europeia, história regional e local, periodização e diacronia, a mulher e a família. Temas que, pela sua actualidade, devem ser objecto de reflexão.

Em suma, no seu conjunto, trata-se de um livro que providencia informação importante, tanto para profissionais de História, como para amadores ou simplesmente interessados em História.Todavia, a leitura desta obra poderá igualmente interessar a outros técnicos na área da educação.

 

Maria Clara Lino

claralino@sapo.pt