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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.9 Lisboa  2007

 

O Movimento da Escola Moderna – Um percurso cooperativo na construção da profissão docente e no desenvolvimento da pedagogia escolar

Pedro Francisco Gonzaléz, 2002, Porto: Porto Editora, 239.

 

 

A obra O Movimento da Escola Moderna – Um percurso cooperativo na construção da profissão docente e no desenvolvimento da pedagogia escolar, de Pedro Francisco Gonzaléz tem origem na tese de doutoramento do mesmo autor e assenta num estudo do Movimento da Escola Moderna (MEM), partindo da óptica dos que a ele se dedicaram, numa “tentativa de percepção do contexto humano e social onde se insere o MEM” (p. 15).

A obra de Pedro González está organizada em duas partes principais: uma primeira parte onde revela o tema, os objectivos e a metodologia utilizada na investigação; uma segunda parte, que apresenta uma breve perspectiva histórica do MEM e a análise dos dados recolhidos. Nesta segunda parte do livro, o autor divide a análise dos dados em dois capítulos: um, com incidência na caracterização das pessoas estudadas; outro, mostra as perspectivas destas quanto ao MEM.

Esta tese de doutoramento parte de uma investigação qualitativa e interpretativa, onde a recolha de dados foi realizada através da análise documental de material escrito e de entrevistas a professores que pertencem ao MEM e que, de certa forma, participaram na sua construção. O autor chama-lhes “históricos”. Entre eles, contam-se figuras que vivenciaram momentos-chave do nascimento e crescimento do MEM. Por isso, o método autobiográfico foi também utilizado pelo investigador em algumas partes das entrevistas.

Segundo o autor, o estudo apresentado “centra-se na análise dos contributos dos professores e na caracterização de um movimento pedagógico português que (…) tem investido no âmbito da formação de professores e na construção de alternativas pedagógicas: o MEM.” (p. 14). Pedro González defende que é indispensável entender-se a visão dos membros do MEM, assim como as suas “falas”, pois poderá ser nestas pessoas que reside a justificação para a construção de formas diferentes de pedagogia e de formação.

A necessidade de explicação de como se processa a formação no MEM é uma das razões que levou o autor a escolher este tema de trabalho, visto que está ligado intimamente com a sua realidade profissional. Também a construção de instrumentos teóricos para a formação de formadores e a carência de explicações sobre a forma de construção e desenvolvimento do movimento, que tem em vista benefícios para os seus colaboradores, levou o autor a optar por esta questão.

As entrevistas feitas basearam-se em temáticas como as vivências dos entrevistados no movimento, as fases históricas do MEM e as suas relações com outras pessoas ou instituições exteriores. No decorrer da recolha de dados, houve a necessidade de clarificar alguns conceitos inerentes à definição do movimento.

O Movimento da Escola Moderna tem as suas raízes em Freinet e na Pedagogia Institucional. Ao longo da sua concepção, sofreu influências de António Sérgio, Álvaro Viana de Lemos e da Psicologia Social, com Vigotsky. Também Maria Amália Borges Medeiros, João dos Santos e Rui Grácio contribuíram de forma significativa para a pedagogia preconizada pelo MEM.

Todos estes pensadores tiveram um lugar de destaque na transição de um modelo pedagógico centrado na criança (pedocêntrico), instituído por Freinet, para um modelo sociocêntrico, aos poucos construído pelos membros do movimento português, e centrado no desenvolvimento da pessoa como ser social, pertencente a um grupo/turma: “procura-se que a educação incida sobre as dimensões pessoal e social dos indivíduos” (p. 87).

O MEM surge em Portugal, com maior expressão, entre 1969 e 1974, depois de vários anos “adormecido” devido à repressão instituída pelo Estado Novo. A ideologia do movimento veio colmatar a necessidade de mudança que os professores sentiam. Viam nele a saída para uma sociedade cujos alicerces se fariam em valores como a liberdade e a democracia. Américo Poças, um dos entrevistados de Pedro González, ilustra, desta forma, a sua entrada no movimento: “a minha adesão (…) não veio tanto das técnicas (…) mas sobretudo deste princípio de uma escola para o povo, de uma escola de intervenção social, onde os meninos eram cidadãos e faziam ali a aprendizagem intensa da cidadania” (p. 59). Os históricos do MEM, devido às suas vivências, ansiavam por uma sociedade democrática. Segundo vários, a democratização da escola era o primeiro passo a dar para a conquista deste ideal.

O movimento apresenta 12 postulados pelos quais se regem todos os seus membros e que definem a orgânica pedagógica do mesmo. Estes postulados baseiam-se na organização do trabalho com os alunos, fundamentada em princípios como a cooperação, o trabalho diferenciado, a autonomia, as experiências das crianças e a intervenção destas no meio onde vivem.

A “organização participada no trabalho” em sala de aula é a palavra-chave do modelo pedagógico do MEM. A educação no movimento é entendida como um conceito que se caracteriza por apelar à confiança no potencial de cada aluno; registar positivamente os seus sucessos; possibilitar uma participação do mesmo na vida do grupo/turma, tendo uma palavra a dizer sobre o que se passa na sala de aula; e permitir o desafio constante no aprofundamento das aprendizagens. Desta forma, a avaliação é encarada como um instrumento de registo das evoluções das crianças e não como um destaque dos seus insucessos.

O envolvimento dos alunos nas práticas do quotidiano escolar é uma questão de extrema importância para os professores do MEM. Todas as actividades que orientam em sala de aula preconizam esta máxima. Este tipo de estratégia “não só possibilita a construção das aprendizagens de conceitos complexos, como o de democracia, mas contribui também para o crescimento pessoal e social” (p. 85).

Todo o trabalho pedagógico gira à volta das vivências, necessidades e interesses das crianças. Falar e negociar sobre tudo o que diz respeito à gestão de sala de aula, permite um envolvimento destas nas suas próprias aprendizagens. O programa, os recursos, os materiais, o tempo, a avaliação são itens discutidos e partilhados em grupo/turma. Uma escola inclusiva é uma das finalidades deste tipo de dinâmica: “ A atenção aos pontos de partida, ritmos e estilos de aprendizagens tem como objectivo o desenvolvimento integral de todos e de cada um dos educandos” (p. 113).

A relação pedagógica sustentada por estes professores tem como base a afectividade. Procuram desenvolver nas crianças o espírito de entreajuda e cooperação, assim como a autonomia e responsabilização, baseados num vínculo de confiança e respeito entre eles e o docente.

As técnicas e instrumentos de trabalho utilizados pelos professores do movimento visam alcançar os pressupostos a que se propõem. Entre eles, contam-se o Conselho de Cooperação Educativa e o Plano Individual de Trabalho (PIT). O primeiro possibilita a participação democrática na vida da turma e, consequentemente, um desenvolvimento social e moral progressivo; o segundo “é um instrumento de planificação que se integra numa prática pedagógica, baseada na responsabilidade do aluno pelos seus trabalhos individuais” (p. 219).

A formação de professores sempre se constituiu como uma preocupação no MEM. O seu modelo de formação fundamenta-se na autoformação cooperada, onde impera um aguçado espírito crítico acerca do que envolve a prática pedagógica. Este tipo de formação apela a uma reflexão constante numa perspectiva de análise profunda do trabalho em sala de aula. Parte de uma dinâmica de “encontros formais”, onde se discutem em grupo as necessidades e insatisfações dos docentes, procurando-se a “construção e reconstrução de estratégias” (p.93) de forma a melhorar o processo de ensino/aprendizagem. Pretende-se que os docentes adquiram uma atitude reflexiva sobre as suas práticas, ao mesmo tempo que realizam “uma aprendizagem a partir do intercâmbio de experiências com companheiros de profissão” (p. 103).

Estes docentes “valorizam a experimentação e a análise sistemáticas, já que defendem que é na prática e na reflexão que podem crescer” (p.92).

Uma das peculiaridades do grupo de professores membros do movimento reside no facto de imprimirem uma forte tradição de transmissão oral do vivenciado pelo e através do MEM. Segundo estes, o escrito não exprime de forma exacta as práticas pedagógicas, pelo que a oralidade é o meio de comunicação a que dão primazia. Os encontros formais e informais programados entre os docentes do movimento são pontos de excelência para a oralidade. Sérgio Niza revela a Pedro González:”…a escrita… tem sempre autonomia em relação às práticas das pessoas… nunca um texto reproduz as práticas de ninguém. (…) Nunca se escrevem as práticas… a escrita não tem capacidade para tirar fotografias em movimento, …” (p. 162).

A necessidade de escrever sobre o MEM e o que a ele diz respeito surgiu quando houve um aumento do número de professores participantes no movimento. Tornava-se imperiosa uma ligação entre as práticas e a teoria, no sentido de as contextualizar com as perspectivas de algumas áreas científicas, como as Ciências da Educação ou a Sociologia. Esta necessidade decorre do início da utilização do escrito como veículo de formação e da carência de um modelo de racionalidade. Conforme os docentes entrevistados pelo autor, grande parte do que se fazia no MEM fazia-se por emoção e não pela razão. Muitas vezes, ao enquadrarem as suas experiências em teorias já existentes, percebiam o porquê e o para quê das suas práticas. Era uma forma de consciencialização daquilo que a intuição lhes dizia para fazer.

A escrita passou, então, a ter uma importância progressiva e significativa na vida do MEM como ilustram as palavras de Marta Bettencourt, uma das entrevistadas: “… o facto de ter de fundamentar a minha prática e de ter de a escrever foi fundamental para crescer enquanto profissional e pessoa…” (p. 164).

A obra analisada nesta recensão destina-se a todos os profissionais da Educação que desejem ter um conhecimento mais alargado sobre um movimento de professores que se distingue dos outros por características muito próprias e uma história de vida ímpar.

Da leitura deste livro fica-se com uma perspectiva pessoal e profissional das pessoas que constituem o MEM, em especial dos “históricos”. A sua ideologia, a sua entrega a valores democratizantes, as suas experiências enquanto pessoas e docentes estão espelhadas em cada página que desfolhamos, revelando também o que é e foi, afinal, o Movimento da Escola Moderna.

Denota-se, por parte do autor, um grande envolvimento emocional e afectivo com as questões que aborda. Aliás, todas as citações das entrevistas realizadas estão envoltas numa atmosfera de emoções, às quais o leitor não consegue ficar indiferente. Esta dissertação de doutoramento “respira” o MEM: o seu nascimento, as pessoas que o criaram, o seu pensamento autónomo e diferenciado, os seus conflitos internos e externos, a sua cultura própria, as suas influências, enfim, tudo o que faz e fez deste movimento numa das mais importantes referências pedagógicas em Portugal. Podemos dizer até que se fica contagiado pelos princípios renovadores e pela “alma” do movimento.

Apesar desta obra ser de leitura por vezes um pouco densa devido à sua especificidade de trabalho de investigação, encontramos nela uma riqueza de testemunhos que nos faz compreender o porquê de, em determinada altura, um grupo de professores com ânsias progressistas se terem juntado e conversado sobre as suas práticas pedagógicas, numa perspectiva de reflexividade, e de como esta atitude mudou, em Portugal, o pensamento de um grande número de docentes e deu início a uma “revolução” no sistema de ensino português.

 

Luísa Fernandes Esteves

lofesteves@gmail.com