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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.9 Lisboa  2007

 

A construção da escola democrática. Uma reflexão com base em Jacques Delors et al., Licínio Lima e Jaume Carbonell Sebarroja

Arlinda Cabral*

 

 

Delors, J. et al. (1996). Educação - Um tesouro a descobrir. Porto: Edições ASA.

Lima, L. (2000). Organização escolar e democracia radical: Paulo Freire e a governação democrática da escola pública. São Paulo: Cortez Editora.

Carbonell Sebarroja, J. (2001). A aventura de inovar. A mudança na escola. Porto: Porto Editora.

 

 

A procura da construção da escola democrática apresenta-se como um tema pertinente na medida em que se fundamenta na possibilidade da concretização de uma instância educativa que favoreça e oriente para o desenvolvimento da pessoa em toda a sua plenitude, contemplando a aquisição, a compreensão, a operacionalização e o desenvolvimento dos conhecimentos necessários para estar apto a acompanhar o actual «mundo em mudança» (Delors et al., 1996, p. 77) e de forma a tornar-se um actor social enquanto construtor e produtor de mudanças que contribuam para a alteração da realidade social na qual se insere. Contudo, devido à complexidade do que é esperado da educação, as incertezas sobre como procurar construir a escola democrática estão presentes, sendo por esse motivo necessário enfrentar as dificuldades e encará-las como desafios que poderão contribuir para uma construção colectiva que se espera positiva.

A presente reflexão, tendo como referência as três obras supra referenciadas, tem o intuito de afirmar a necessidade de concretização da escola democrática com base numa educação crítica que tenha como pressupostos a participação activa, a discussão e o diálogo, assente no princípio «aprender a democracia pela prática da participação» (Lima, 2000, p. 34), o que implica sujeitos capazes de preconizar transformações sociais e com competência para a realização de projectos comuns, alcançada através da percepção da interdependência e da procura permanente da compreensão do outro, e sujeitos capazes de, segundo Jaume Carbonell Sebarroja (2001), na esteira do pensamento de John Dewey, compreender a democracia como, acima de tudo, «uma forma de vida e um processo permanente de libertação da inteligência e não um regime de governo» (p. 105).

Numa perspectiva individual, para a educação de sujeitos capazes de produzir pensamento crítico e agir após reflectir, o que se traduz na educação na e para a democracia, é conveniente atender ao pensamento de Delors et al. (1996), presente na obra Educação – Um tesouro a descobrir, mais concretamente no capítulo 4, «Os quatro pilares da educação», onde se defende que, perante as actuais exigências sociais, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais e estruturantes: (i) aprender a conhecer, que consiste em adquirir os instrumentos da compreensão, sendo simultaneamente um meio para aprender a compreender o mundo e uma finalidade enquanto prazer de compreender, conhecer, descobrir, despertar da curiosidade intelectual e estímulo do sentido crítico, faculdades que permitem compreender o real mediante o desenvolvimento «de autonomia na capacidade de discernir» (p. 78); (ii) aprender a fazer, indissociável do aprender a aprender, que tem como finalidade a preparação para agir sobre a realidade envolvente, caracterizando-se actualmente pela noção de competência pessoal, a qual inclui o saber, o saber fazer e o saber ser, e pela aptidão para as relações interpessoais, sendo exigências o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipa e o desenvolvimento de projectos e a capacidade de iniciativa, de comunicar e de gerir e resolver conflitos, na prossecução do «compromisso pessoal do trabalhador considerado como um agente de mudança» (p. 81); (iii) aprender a viver em comum, que visa a participação e a cooperação em todas as actividades humanas, caracterizando-se por um dos maiores desafios da educação, na medida em que tem como princípio conceber uma educação que permita evitar conflitos ou resolvê-los de maneira pacífica, perante a tendência para «a prioridade ao espírito de competição e sucesso individual» (p. 84), o que implica a necessidade de o contacto interpessoal se concretizar num contexto igualitário e a existência de objectivos e projectos comuns para que «os preconceitos e hostilidades po[ssam]desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais serena» (p. 84), através do respeito mútuo como consequência da descoberta progressiva do outro, após a descoberta de si próprio, levando à valorização do que é comum e consequentemente transformando «tensões em solidariedade através da experiência e do prazer do esforço comum» (p. 85); e (iv) aprender a ser, que integra as três aprendizagens precedentes, defendendo que a educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa, concretizado através da capacidade de elaboração de pensamentos autónomos e críticos e da formulação de juízos de valor, de modo que seja possível «descobrir por si mesmo como agir nas diferentes circunstâncias da vida» (p. 86) com base em linhas orientadoras intelectuais que permitam conhecer a realidade de forma a assumir responsabilidade e ser interveniente de forma responsável e justa, apostando num desenvolvimento que tem por objectivo a realização completa do homem, quer enquanto «indivíduo, membro de uma família e de uma colectividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos» (p. 87).

De acordo com Delors et al. (1996), a percepção da interdependência e a compreensão do outro permitem a realização de projectos comuns e a preparação para gerir conflitos no respeito pelos valores do «pluralismo, compreensão mútua e paz» (p. 88), sendo «o confronto através do diálogo e da troca de razão um dos instrumentos indispensáveis à educação do século XXI» (p. 85). Desta forma, é necessário aprender a ser para melhor desenvolver a personalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal, sendo de realçar que «importa conceber a educação como um todo» (p. 88) para que todo e qualquer interveniente se assuma como responsável e sujeito activo na procura da construção de um mundo mais democrático.

No intuito de fazer a ligação entre o plano individual e o plano colectivo, é de referir que, segundo Lima (2000), na obra Organização escolar e democracia radical: Paulo Freire e a governação democrática da escola pública, a escola democrática é uma «construção […] jamais terminada» (p. 50) e somente edificável em «co-construção» (p. 42), justificando-se, desta forma, a necessidade de sujeitos críticos e reflexivos que na prática persigam transformações sociais. Na visão deste autor, a escola deve promover uma educação para a decisão e para a responsabilidade social na procura de sujeitos que «se tornem presenças marcantes no mundo» (Freire, 1997, citado por Lima, 2000, p. 87). Assim, a escola democrática deve ter por base a «reinvenção participativa e autónoma da escola» (Lima, 2000, p. 87) para que seja possível a construção de uma realidade social e histórica com base na ética pedagógica definida como tendo por pressupostos a humildade, o bom senso, a tolerância, a rigorosidade, a curiosidade e a criticidade, aliados à acção enquanto concretização desses pressupostos.

Numa perspectiva mais abrangente, recorrendo ao pensamento de Lima (2000), a construção da escola democrática tem de assentar numa pedagogia democrática, numa prática dialógica e na procura de uma governação democrática que possam influir na sua própria reconstrução e recriação, o que só se torna concretizável através de processos democráticos traduzidos em «tomadas de decisão livres, conscientes e responsáveis» (p. 82). Desta forma, os princípios básicos para a concretização da democracia da escola identificados por Lima (2000) - participação e descentralização - implicam autonomia num contexto de democracia participativa.

Referindo-me particularmente ao capítulo 2 da obra, «Democratização da escola, participação comunitária e cidadania crítica», é de referir o facto de a escola ser considerada uma «estrutura democratizante» (p. 39), enquanto espaço público que se quer de decisão crítica, participação e cidadania democráticas, concretizada através da «prática dialógica» (Freire, 1989, citado por Lima, 2000), com base na real participação dos pais, dos professores e da comunidade na vida das escolas, na medida em que «só se decidindo se aprende a decidir e só pela decisão se alcança a autonomia» (Freire, 1991, citado por Lima, 2000).

Segundo Lima (2000), a escola democrática deve enfrentar o risco de se abrir à participação comunitária para concretizar o exercício da cidadania crítica, visto que a construção da escola democrática só é edificável em co-construção, assumindo-se contra a centralização das tomadas de decisão em prol de promover o seu potencial de intervenção social e cívico, o que implica compreender que para se concretizar a democracia é necessário redescobrir e partilhar, desenvolver e transferir o poder. Desta forma, só é possível democratizar a escola se se entender a democracia na escola enquanto uma «invenção social» (Freire, 1994, citado por Lima, 2000), o que se traduz numa construção colectiva caracterizada por um amplo processo participativo nas decisões e acções. Na esteira do pensamento de Paulo Freire, Lima (2000) refere que «só se muda a escola com a participação de todos» (p. 44), o que demonstra que o conceito de co-responsabilização está enraizado na procura da construção de uma escola democrática, traduzido na ideia de «ensinar e aprender a decidir através da prática de decisões» (p. 91), com base na redistribuição de poderes de decisão, a par de uma «estruturação democrática de regras e relações sociais de interdependência e de diálogo» (p. 101).

Tendo presente que a existência de objectivos confere à educação o seu carácter directivo, de forma que seja «uma forma de intervenção no mundo» (Freire, 1996, citado por Lima, 2000), é de referir que a escola democrática deve ter como objectivo a democracia enquanto prática de cidadania, de autonomia e de participação activa, utilizando como métodos a discussão, o diálogo e a co-responsabilização. Desta forma, a construção da escola democrática tem como um dos princípios fundamentais a democracia participativa, o que traduz o respeito e a crença em cada sujeito considerado como igual, com igual capacidade crítica e com igual possibilidade de transformar a realidade em benefício de todos.

De acordo com Carbonell Sebarroja (2001), na obra A aventura de inovar. A mudança na escola, a democracia só se pode lograr através da educação, com base na razão, no método científico e na constante reorganização e reconstrução da experiência. Desta forma, partindo do princípio enunciado por este autor de que a democracia e a educação são inseparáveis e influenciam-se mutuamente, é defendido que a educação ganha em intensidade quanto maior for a presença da ética democrática na educação e na medida em que quanto mais públicas e democráticas forem as escolas, mais sólida e profunda é a democracia social.

Segundo Carbonell Sebarroja (2001), uma escola realmente democrática entende a participação como a possibilidade de pensar, de tomar a palavra em igualdade de condições, de gerar o diálogo e acordos, de respeitar o direito das pessoas de intervir na tomada de decisões que afectam a sua vida e de comprometer-se na acção. Assim, o ideal de escola democrática circunscreve-se, desta forma, a uma maior atenção aos interesses e às necessidades dos alunos, a um incremento das interacções e à criação de um clima de aula mais acolhedor para a aprendizagem, projectando-se e comprometendo-se com a comunidade e procurando combater as desigualdades sociais e as suas causas e gerando novas oportunidades educativas para toda a população.

Perante a questão «Como se concretiza o ideal democrático da educação para tornar cada vez mais pública a escola pública?» (p. 106), Carbonell Sebarroja (2001) apresenta alguns significados e características da escola democrática: (i) a democracia só se concretiza mediante o equilíbrio entre a liberdade e a igualdade; (ii) a democracia é em simultâneo um direito e um dever, um desejo e uma necessidade, que nos ajuda tanto a defender uma causa justa como a modificar uma relação que não nos satisfaz; (iii) a democracia não é uma porta aberta à tolerância e ao relativismo, mas um acesso que conduz ao respeito crítico e activo; (iv) a democracia favorece a autonomia baseada no diálogo e na colaboração e não no individualismo e no isolamento; (v) a democracia tem de ser eficaz, isto é, obter a máxima eficiência ao serviço da comunidade e capacitar as pessoas para que possam participar com ideias e argumentos no debate e na tomada de decisão. Contudo, segundo o autor, a escola pública actual está bastante distante do ideal democrático, visto que «a escola é um reflexo mais ou menos fiel da sociedade na qual se insere, com problemas, com tensões, contradições, solidariedades e possibilidades» (p. 107).

Em relação ao «défice democrático na escola pública», Carbonelll Sebarroja (2001, p. 108) refere que é igualmente certo que hoje em dia a escola é um dos espaços públicos privilegiados para levar a cabo o ideal democrático, na medida em que é um dos poucos espaços onde é possível construir comunidades democráticas que sirvam de referente e estímulo a outras instituições educativas e que influenciam directamente a dinâmica geral da sociedade.

No que respeita aos paradoxos que dificultam o processo democratizador e inovador, é referido por este autor que existem «espaços e oportunidades» (p. 109) que podem abrir-se nas escolas para a educação democrática enquanto espaços de participação, deliberação e acção cooperativa. A título de exemplo o autor refere: (i) «o debate, a opinião e a aprendizagem da argumentação» (Paulo Freire, 1969, citado por Carbonell Sebarroja, 2001, p. 110), partindo do entendimento de Paulo Freire de que a análise da realidade e a sua problemática não podem iludir a discussão criadora e constante que, mediante a escuta, a pergunta e a investigação, nos levam a procurar, desvendar e a dizer a verdade (Educação como prática da liberdade), na procura da concretização de uma educação com base no binómio indissociável liberdade e responsabilidade; (ii) a assembleia como referente da coesão democrática, com base na pedagogia de Celestin Freinet, em que a assembleia é colocada como um espaço privilegiado para a prática da democracia, pois caracteriza-se por ser uma experiência democrática que se inicia no «diálogo enquanto participação igualitária e respeitosa» (p. 112); (iii) a liderança democrática da direcção escolar, centrando-se sobretudo em procurar construir um clima adequado para a comunicação e a participação democráticas, a elaboração, revisão e aplicação do projecto educativo, o desenvolvimento de inovações educativas e a relação e colaboração de mães e pais e comunidade (p. 113).

O autor refere igualmente a necessidade de espaços conjuntos de colaboração da cidadania com a escola, chamando a atenção para propostas e experiências integradas em projectos inovadores e com um certo grau de coerência e organização que têm sido desenvolvidos: (i) os círculos de cultura e os conselhos escolares, impulsionados por Paulo Freire enquanto Secretário de Educação do Estado de São Paulo, que se traduziam em «aulas urbanas em que o diálogo e o debate substituíam a aula tradicional» (p. 115), convertendo-se num instrumento autónomo e não meramente deliberativo das classes populares para intervir na construção de uma escola diferente; (ii) as comunidades de aprendizagem, inspiradas no modelo das escolas aceleradas, tendo por objectivo concretizar uma educação integradora, permanente e fortemente participativa, reclamando a colaboração dos pais e mães e outros elementos da comunidade para discutirem entre todos «a escola sonhada» (p. 115) e, a partir dessa descoberta-construção conjunta, estabelecer prioridades e iniciativas; (iii) o «orçamento participativo» (p. 116), que funciona há alguns anos na cidade de Porto Alegre e supõe um ambicioso projecto de descentralização educativa e mobilização popular para que a cidadania discuta e faça propostas acerca da distribuição do dinheiro público destinado ao ensino, fixando prioridades, afectando a construção e manutenção dos estabelecimentos, a qualidade do ensino, os projectos de inovação educativa e o modelo de escola que se vai pensando continuadamente; (iv) a «cidade educadora» (p. 117), que procura responder ao desafio de conseguir a transferência e o uso da cultura escolar para o quotidiano e em simultâneo a incorporação das vivências e da cultura do meio na escola, o que se traduz na procura da incorporação de forma coerente, no processo de ensino-aprendizagem, da riqueza da chamada «educação sistémica e extra-escolar» (p. 117), cada vez mais influente e de carácter mais disperso e vivencial, e da educação formal ou escolar, mais influente mas mais ampla, sistemática e segura, procurando articular adequadamente as qualidades positivas de uma e outra modalidade educativa.

Em conclusão, as três obras atrás referidas e que serviram de base para a construção da presente reflexão, referem que a democracia na escola tem de contar com a participação de todos, desde o momento da organização até à tomada de decisões, o que, no pensamento de Paulo Freire (1997, citado por Lima, 2000), se traduz na «teoria crítica e garantia de democracia» (p. 15) ou na «teoria da participação democrática radical» (p. 33). No entanto, o compromisso da comunidade tem de se traduzir na reivindicação da participação de professores, família, comunidade, poder central e poder local e de todos os intervenientes no processo educativo não enquanto tais mas como cidadãos e cidadãs, tendo presente que «a escola pública não é do Estado, nem dos professores, nem dos pais, mas sim da comunidade, que tem o direito de participar na escola e de intervir no controlo do serviço público de ensino» (Carbonell Sebarroja, 2001, p. 114). Desta forma, para que a escola seja democrática é necessário que pratique democracia num contexto democrático, mediante a sua afirmação e actualização continuadas, de modo a permitir a sua real concretização, e que, simultaneamente, se reforce, com base na distribuição e redistribuição de poderes, o que pressupõe o reconhecimento da igualdade e saber trabalhar em projecto o que implica a cooperação, o respeito mútuo e a participação colectiva no intuito de se manter permanentemente na busca e contribuindo para a construção inacabável de uma sociedade mais democrática.

 

 

* Licenciada em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa.