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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.24 no.1 Lisboa abr. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.15309/23psd240131 

Artigo

Potencialidades e fragilidades da descentralização do atendimento às pessoas vivendo com HIV

Potentialities and weaknesses of decentralization of care for people living with HIV

1. Universidade de Pernambuco. Programa Associado de Pós-Graduação em Enfermagem de Pernambuco, Universidade Estadual da Paraíba, Brasil.


Resumo

O Vírus da Imunodeficiência Humana, doença infectocontagiosa e tratável, tem apresentado avanços em seu controle, entretanto a centralização do atendimento ameaça o cuidado integral da assistência. O objetivo desse artigo é identificar as potencialidades e fragilidades da descentralização no atendimento às pessoas que vivem com HIV na Atenção Primária à Saúde. Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, cuja busca dos dados ocorreu entre os meses de agosto e setembro de 2019 nas bases de dados LILACS, BDENF, MEDLINE/PUBMED. Foram selecionados artigos científicos, disponíveis na íntegra, nos idiomas português, inglês e espanhol, publicados nos anos de 2014 a 2019. A busca resultou em 2.794 artigos, sendo incluídos na amostra final 14 artigos. Os dados encontrados mostraram potencialidades e fragilidades na mudança do modelo de atenção às pessoas vivendo com HIV. Identificam-se avanços no processo de descentralização, tais como a ampliação do atendimento para atenção primária, contudo as barreiras existentes ainda são desafios para a consolidação do processo e reorganização dos serviços de saúde.

Palavras-Chave: Assistência integral à saúde; Atenção primária à saúde; HIV; Política pública; Síndrome de imunodeficiência adquirida

Abstract

The Human Immunodeficiency Virus, a contagious and treatable infectious disease, has shown advances in its control, however the centralization of care threatens comprehensive care. Objective To identify the potentials and weaknesses of decentralization in the care of people living with HIV in Primary Health Care. This is an integrative literature review, whose data search took place between the months of August and September 2019 in the LILACS, BDENF, MEDLINE/PUBMED databases. Scientific articles available in full, in Portuguese, English and Spanish and published in the years 2014 to 2019 were selected. The search resulted in 2,794 articles, with 14 articles included in the final sample. The data showed potentials and weaknesses in changing the model of care for people living with HIV. Advances in the decentralization process are identified, such as the expansion of care for primary care, however the existing barriers are still challenges for the consolidation of the process and reorganization of health services.

Keywords: Comprehensive health care; Primary health care; HIV; Public policy; Acquired immunodeficiency syndrome

O Ministério da Saúde (MS) propôs uma alteração no modelo de atendimento às Pessoas Vivendo com HIV (PVHIV), até então centralizado nos Serviços de Assistência Especializada (SAE). A reorganização do modelo deve-se à melhor qualidade de vida das PVHIV devido à mudança do perfil desses indivíduos associados à disponibilização de esquemas Antirretrovirais (ARV) mais eficazes e com menor número de doses. Com isso, espera-se ampliação da oferta de exames de HIV, aumento do diagnóstico precoce e tratamento em tempo oportuno (Brasil, 2017).

A proposta objetiva descentralizar o atendimento das PVHIV para Atenção Primária à Saúde (APS), em que se recomenda a estratificação de risco dos pacientes diagnosticados com HIV em assintomáticos e sintomáticos. Nesse sentido, é preconizado que os assintomáticos tenham seu atendimento na APS, com início imediato da Terapia Antirretroviral (TARV) e os sintomáticos, co-infectados, gestantes, crianças, indivíduos com indicação de esquemas alternativos, sejam referenciados aos SAE (Brasil, 2017a; Brasil, 2018).

É importante ressaltar que, apesar de tais recomendações, o direito de escolha do paciente deve ser respeitado quanto ao local onde ele quer receber seu tratamento. Para os pacientes que aceitem o atendimento na APS, além da oferta da TARV, devem-se disponibilizar exames de rotina, como contagem de linfócitos TCD4 e carga viral (CV). Para garantir a qualidade do atendimento é necessária a qualificação profissional com capacitações presenciais e a distância e suporte técnico fornecido através dos serviços matriciais (Brasil, 2017b).

Apesar das recomendações, o processo de descentralização ainda é algo recente, havendo maior ênfase para os aspectos relacionados à testagem rápida. Destaca-se, no entanto, que a execução do Teste Rápido (TR) se configura como um desafio dentro dos serviços de saúde. Algumas das dificuldades estão relacionadas ao déficit de funcionários, aumento da demanda de trabalho, falta de materiais e insumos, inexperiência profissional, ausência de capacitações, aumento na procura do teste e comunicação deficiente com os serviços matriciais, o que repercute negativamente na continuidade do serviço (Brasil, 2014; Brasil, 2015; Rocha et al., 2016; Zambenedetti & Silva, 2016).

Estudos internacionais apontam pontos positivos e negativos acerca da descentralização da assistência, tais como: pacientes desconfortáveis em receber atendimento próximo às suas residências, medo de divulgação de sua condição sorológica e medo de serem discriminados. Como pontos positivos destacam-se o aumento da testagem e cobertura aos ARV, com possível redução dos custos para os pacientes pela proximidade dos serviços (Abongomera et al., 2017; Onwujekwe et al., 2016).

Ainda é necessária a condução de estudos que aprofundem a análise acerca da identificação das fragilidades e potencialidades da descentralização da assistência ao HIV para APS, bem como estudos que identifiquem aspectos que possam contribuir para o êxito de tal proposta. Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo identificar as potencialidades e fragilidades do processo de descentralização no atendimento às pessoas que vivem com HIV na Atenção Primária à Saúde.

Método

Trata-se de um estudo bibliográfico, tipo revisão integrativa da literatura. Para a operacionalização desta revisão, foram criteriosamente adotadas as seguintes etapas metodológicas: 1) Estabelecimento da hipótese ou questão norteadora; 2) Seleção da amostra: determinando os critérios de inclusão/exclusão dos artigos e seleção dos artigos; 3) Categorização dos estudos; 4) Avaliação dos estudos de forma crítica; 5) Discussão e interpretação dos resultados e 6) Apresentação da revisão e síntese do conhecimento (Mendes et al.,2008).

Estratégia de Pesquisa

A estratégia utilizada para a formulação da pergunta norteadora foi a PICO, um acrônimo utilizado para as questões que sustentam as buscas da literatura (Stone, 2002) (Figura 1).

Figura 1 Definição da pergunta norteadora de acordo com a estratégia PICO. 

Utilizou-se a seguinte questão norteadora: “Quais as potencialidades e fragilidades da descentralização do atendimento às pessoas vivendo com HIV evidenciada na literatura científica?”

Realizou-se a pesquisa entre os meses de agosto e setembro de 2019 nas seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Base de Dados de Enfermagem (BDENF), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE via PUBMED) e na Biblioteca Virtual Scientific Electronic Library Online SciElO.

Pesquisa de Artigos

Selecionou-se os Descritores de Ciências da Saúde (DeCS), Medical Subject Heading (MESH) e termo-chave utilizando o boleando “AND”: HIV AND Primary Health Care AND Descentralization. Justifica-se que o termo “Descentralization” não está incluído no DeCS, nem no MESH, contudo, foi acrescentada uma vez que o termo responde ao objeto do estudo.

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão no presente estudo: artigos científicos, disponíveis na íntegra, nos idiomas português, inglês e espanhol, publicados nos últimos cinco anos (2014 a 2019). Foram excluídas as teses, dissertações, monografias, reportagens, editoriais e artigos que, embora apresentassem os descritores selecionados, não abordaram diretamente a temática.

Para a avaliação dos estudos, foi realizada através do instrumento adaptado do Critical Appraisal Skills Programme (CASP) referente ao rigor metodológico com 10 itens pontuáveis quanto aos objetivos do estudo, clareza na descrição dos métodos empregados, definição dos participantes, critérios de inclusão, critérios de exclusão, cumprimento dos aspectos éticos, coleta de dados, processo de análise, resultados e limitações. Este instrumento categoriza os estudos em: nível A, que pontua de 6 a 10 pontos e representa boa qualidade metodológica e viés reduzido; nível B, com pontuação até 5 pontos que corresponde a qualidade metodológica adequada, contudo com risco de viés aumentado (Toledo, 2008).

Quanto aos níveis de evidências, foram hierarquizadas em sete níveis, sendo o nível I- revisão sistemática ou meta-análise; II- estudo randomizado controlado; III- Estudo controlado com randomização; IV- estudo caso-controle ou estudo de coorte; V- revisão sistemática de estudos qualitativos ou descritivos; VI- estudo qualitativo ou descritivo; e VII- opinião ou consenso (Stillwell et al.,2010).

A Figura 2 apresenta o fluxo da seleção dos artigos conforme preconizado pelo fluxograma do Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analysis (PRISMA). Nas recomendações do método a pesquisa foi dividida em quatro fases: identificação, seleção, elegibilidade e inclusão (Liberati et al., 2009).

Figura 2 Fluxograma dos artigos identificados e selecionados na segunda etapa da presente pesquisa. 

Os dados foram organizados e apresentados em quadro (disponível na seção Resultados), de forma a possibilitar um melhor entendimento dos estudos selecionados nesta revisão integrativa, expostos de forma descritiva.

Resultados

Foram encontrados 2.794 estudos e, após a análise dos títulos e resumos, foi realizada a leitura na íntegra de 53 artigos. A amostra final foi constituída por 14 artigos. Destes, doze foram classificados com conceito A e dois com conceito B de acordo com a análise CASP.

Em relação às bases de dados, localizou-se 6 artigos na LILACS, 4 na MEDLINE, 2 SciELO e 2 estudos na BDENF. No que tange ao idioma, a língua portuguesa foi a mais prevalente (42,85%), seguida da língua inglesa (35,71%).

Aponta-se na amostra predomínio de estudos com abordagem qualitativa (64,2%). Em relação ao ano de publicação houve mais produção no ano de 2018 (28,57%).Verifica-se que (85,7%) dos estudos da amostra corresponde ao nível de evidência VI caracterizados por pesquisas de abordagem qualitativa (Quadro 1).

Quadro 1 Caracterização dos estudos de acordo com o ano de publicação, país, tipo de estudo, CAPS e Nível de evidência. 

Quando analisado o desfecho acerca do processo de descentralização do atendimento, todos os estudos apontaram desafios significativos para efetivação do atendimento as PVHIV no âmbito mais local.

Discussão

Destaca-se a necessidade de mudanças no modelo de atenção às PVHIV, anteriormente centrado na assistência prestada pelos serviços especializados. Na atual conjuntura, em uma perspectiva de cuidado integral e articulação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), o processo de descentralização do atendimento para APS representa um grande desafio. Percebe-se que a reorganização do modelo assistencial norteada por estratégias que promovam ampliação da acessibilidade aos serviços de saúde é essencial para consolidação do processo. Assim, é necessário considerar o acolhimento, o diagnóstico precoce, o tratamento oportuno e a educação em saúde como elementos condutores no enfrentamento ao HIV e na melhora da qualidade de vida dos pacientes.

Ressalta-se que novas propostas assistenciais passam a surgir no Brasil, desencadeadas pela reorganização do modelo de atenção as PVHIV na APS, na perspectiva de efetivação do processo de descentralização do atendimento. Nesse sentido, estudo realizado no ano de 2015 compartilha experiência na implantação de protocolo de acesso à infectologia, com início de apoio matricial como suporte de comunicação direta entre o infectologista e as equipes da APS. Desse modo, qualificando o acesso, aumentando a resolutividade e articulação entre profissionais dos diferentes níveis de atenção à saúde (Pinto & Capeletti, 2019).

Quadro 2 Principais desfechos referentes aos estudos sobre o processo de descentralização do atendimento as Pessoas vivendo com HIV. 

Entre as potencialidades observadas na literatura, podemos destacar aproximidade dos serviços de saúde com as residências dos usuários como um aspecto que facilita o acesso para a realização do TR. Salienta-se que essa proximidade é uma potencialidade identificada tanto no cenário nacional quanto internacional (Araya et al., 2014; Ew et al., 2018; Sousa, 2017; Zambenedetti & Silva, 2015).

Ainda em relação às potencialidades, identificam-se como vantagens a agilidade do resultado do TR quando comparada ao método tradicional, a disponibilidade do tratamento para HIV nas unidades eo vínculo estabelecido com os profissionais de saúde é ratificando como elementos que fortalecem a longitudinalidade do cuidado em saúde (Ew et al., 2018; Zambenedetti & Silva, 2015). Corroborando com achados, estudo realizado no município do Senhor do Bonfim, Bahia, indica positividade no avanço tecnológico traduzido em decorrência da agilidade temporal no resultado do TR para HIV (Suto et al., 2019). Outros aspectos considerados como potencialidades importantes no processo de descentralização referem-se à sensibilidade em relação aos dados epidemiológicos, percepção acerca da ampliação do acesso, processo de trabalho orientado pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), capacitações, apoio matricial e participação da comunidade (Zambenedetti & Silva, 2016).

Verificou-se que a abordagem voltada na atuação de profissionais matriciadores na realização do aconselhamento e TR para HIV, sífilis e hepatites virais na APS, é relevante para o aperfeiçoamento das equipes de saúde acerca da temática. Nesse sentido, entre as medidas estratégias, o matriciamento visa trocas teóricas e práticas entre a equipe matriciadora no nível de atenção especializada com as equipes da APS. A construção compartilhada tem como proposta repensar de forma longitudinal fatores inerentes ao cuidado integral da PVHIV nos níveis de atenção, destacando como fator positivo que todos os saberes são fundamentais no processo de troca de experiências entre os profissionais (Rocha et al., 2016).

No tocante às estratégias de aperfeiçoamento, as capacitações representam espaços diferenciados que oportunizam a aproximação entre as equipes. Além de instrumentalizar tecnicamente os profissionais sobre a realização do TR, etapas de aconselhamento também identificam lacunas de aprendizagem. Assim, a capacitação da equipe para realização da testagem rápida deve ser sistematizada entre as atividades de educação permanente, atividades supervisionadas e capacitações problematizadas (Araújo et al., 2018; Rocha et al., 2016). Embora existam significativas potencialidades que apontem para a reorganização do modelo de atenção em HIV/AIDS, fragilidades na APS comprometem a concretização do processo de descentralização. Deve-se, todavia, considerar que o atendimento nesses serviços é um processo relativamente recente.

O aconselhamento é ferramenta que visa à promoção e prevenção da saúde, nessa etapa, o sujeito singular é abordado por meio de conversa e escuta qualificada antes da realização do TR pós-teste. O acolhimento possibilita acesso à informação, apoio emocional e criação de vínculo com equipe de saúde, o que resulta em importante impacto sobre a redução do estigma. Apesar de todos os avanços, ainda se observana abordagem da descentralização como ponto negativo capacitações centradas apenas na execução do TR em detrimento do aconselhamento. Nessa perspectiva, tal lógica com ênfase no diagnóstico contraria o princípio da integralidade, enfraquecendo o processo e suas complexidades (Rocha et al., 2016; Zambenedetti & Silva, 2015).

Verifica-se como outro ponto negativo a delimitação de público para a realização do TR, em destaque, as gestantes são encontradas em alguns desses estudos sendo apontadas com dificuldade em lidar com questões voltadas à sexualidade e à moralidade associada ao HIV/AIDS (Araújo et al., 2018; Sousa, 2017; Zambenedetti & Silva, 2016).

No contexto das fragilidades, visualizam-se entraves direta ou indiretamente relacionados à gestão de recursos humanos tais como: sobrecarga de trabalho, inexperiência profissional, profissionais desatualizados e despreparados. Ainda, identifica-se a alta rotatividade e o déficit dos profissionais,sendo limitações que impactam na precariedade da construção de vínculo entre os usuários e as equipes e consequentemente a falta de continuidade da assistência prestada nos serviços de saúde (Colaço et al., 2019; Melo et al., 2018; Rocha et al., 2016; Zambenedetti & Silva, 2016).

Outro elemento que merece ênfase diz respeito à organização e ao funcionamento das equipes de saúde de família, apontando fragilidade no processo de trabalho das unidades. A falha de comunicação entre os diferentes níveis de complexidade prejudica o cuidado longitudinal e articulação da rede no fluxo de referência e contra-referências dos indivíduos no sistema de saúde (Colaço et al., 2019; Melo et al., 2018.; Rocha et al., 2016). Em consonância com os estudos nacionais, pesquisa realizada no Chile verifica como barreira o desconhecimento dos usuários acerca de informações referentes aos pontos de atendimentos na rede para realização do TR, disponibilidade de medicamentos e consultas de acompanhamento e seguimento de tratamento (Araya et al.,2014).

Pontua-se que o estigma e a discriminação estão presentes no serviço de saúde e na comunidade. Observa-se que entre os efeitos negativos, encontra-se o deslocamento e busca por atendimento de saúde longe da residência com o intuito de garantir que os dados confidenciais não sejam revelados. Assim, o usuário se encontra em uma posição paradoxal de tensionamento existindo a facilidade devido à proximidade da APS e ao mesmo tempo a comunidade (vizinhos e familiares) que distancia o usuário da unidade de saúde (Araya et al.,2014; Colaço et al., 2019; Zambenedetti & Silva, 2015). O MS recomenda intensificar ações estratégicas a segmentos populacionais específicos. Conceituados como populações-chaves, tais como: profissionais do sexo, pessoas que usam drogas, gays, Homens que fazem Sexo com Homens (HSH), pessoas trans e Pessoas Privadas de Liberdade (PPL) (Brasil, 2017). Estudo realizado em Fortaleza com população chave de mulheres profissionais do sexo corrobora com as pesquisas na população geral em que o preconceito e a falta de sigilo nos serviços próximo à residência ou ao local de trabalho são barreiras na concretização da descentralização da política de IST/AIDS (Sousa, 2017).

Similarmente, estudo realizado na Nigéria acerca da percepção dos usuários frente à descentralização, evidenciou que cerca de 1/3 dos entrevistados não estavam confortáveis em receber seus ARV nos serviços de atenção primária pela proximidade da unidade da sua residência, temendo a divulgação do seu status sorológico, com medo de serem discriminados (Onwujekwe et al., 2016). Acrescenta-se que o momento da revelação do diagnóstico da soropositividade para o HIV é um momento de ansiedade tanto para o profissional quanto o paciente. Isso indica fragilização do usuário diante do impacto do diagnóstico positivo associado ao estigma, preconceito e medo quanto à quebra do sigilo do diagnóstico (Araújo et al., 2018; Colaço et al., 2019). Apesar de os profissionais possuírem o conhecimento técnico sobre o vírus, apresentam posturas de receio com os usuários. Pontua-se ainda existência de situações em que a equipe parece naturalizar a responsabilização das pessoas pela infecção, o que reforça concepções preconceituosas (Ew et al., 2018).

No que tange à associação da detecção do HIV e o medo, evidencia-se que o medo está presente no campo biopsicossocial das pessoas diagnosticadas, bem como atrelado ao processo de trabalho dos profissionais perpassando as etapas do aconselhamento, da realização de testagem e da revelação de resultados reagentes (Almeida et al., 2018). Vale salientar que o medo dos profissionais de contrair o HIV nas atividades laborais repercute na prática dos cuidados as pessoas que procuram a APS. Então, tornam-se relevante reforçar investimentos na formação e capacitações em serviço no intuito de romper barreiras estigmatizantes. Assim, fortalecendo as ações e integralidade da assistência a essa população (Suto et al.,2019).

Diante do exposto, é notório que a ampliação da oferta do TR nas unidades básicas deve ser acompanhada de sensibilização e qualificação das práticas profissionais. Dessa maneira, respeita-se a diversidade do indivíduo e garante-se o direito à preservação da intimidade e sigilo das informações de sua saúde. Nesse contexto, ainda se precisa avançar visto que as pesquisas sinalizam que o medo relacionado ao sigilo e à confidencialidade está presente na rotina de pacientes que precisam dispor das ações e serviços de saúde da APS impactando negativamente na proposta de descentralização do acesso a esses serviços (Zambenedetti & Silva, 2015). Desse modo, estudo realizado na Carolina do Norte, EUA, confirma evidências apontadas nos estudos nacionais expostas na presente pesquisa, evidenciando como barreiras no processo de descentralização no cenário internacional, a saber: estigmas associados ao HIV, falta de privacidade nas pequenas cidades rurais, falta de conhecimento dos profissionais acerca da temática, falhas na comunicação relacionadas à testagem e medo dos profissionais em manejar agulhas (White et al., 2015).

Identificam-se obstáculos vinculados às questões organizacionais dos serviços, tais como: burocracia de aspectos administrativos, má administração de tempo, dificuldades na logística da entrega dos insumos e materiais, estruturas físicas inadequadas que resultam em dificuldade para execução dos TR e para o aconselhamento pré e pós-teste. Almejam-se planejamentos sistematizados e resolução das pendências como prioridades para o funcionamento dos serviços públicos (Araya et al., 2014; Araújo et al., 2018; Sousa, 2017).

Pontua-se que o processo de descentralização do atendimento a pessoas que vivem com HIV para APS permite a ampliação do acesso, fortalecimento do vínculo terapêutico entre equipe e paciente, direcionamento dos usuários na rede e promoção de ações e atividades de saúde de maneira integral. Nesse sentido, o enfermeiro, como parte da equipe multidisciplinar, tem importante papel na construção e reorientação do modelo assistencial às pessoas vivendo com HIV. Como limitação, este estudo traz a investigação de apenas quatro das bases de dados disponíveis, o que pode ter excluído textos indexados em outras bases não investigadas.

Os dados obtidos no estudo identificam potencialidades e fragilidades inerentes à reorganização do modelo de atenção as PVHIV com foco na APS. Processo dinâmico e complexo envolve diversos fatores e atores, merece destaque nos diversos espaços de discussão com avaliação crítica, com o intuito de fortalecer o atendimento integral aos usuários e articulação entre os serviços na RAS.

Nesta perspectiva, ainda se faz necessário o planejamento sistematizado na gestão de recursos humanos, físicos e financeiros. Sendo assim, é importante a alocação de investimentos para a estruturação física das unidades, disponibilidade de recursos materiais e insumos, e intensificação de atividades e ações em saúde voltadas para prevenção, promoção, diagnóstico, aconselhamento, tratamento, educação em saúde, capacitações e valorização dos profissionais inseridos no processo.

Contribuição dos autores

Morgana Lima: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Supervisão; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.

Clarissa Pinho: Concetualização; Análise formal; Metodologia; Redação - revisão e edição.

Mônica Silva: Metodologia; Redação - revisão e edição.

Cynthia Dourado: Redação - revisão

Evelyn Quirino: Metodologia; Redação - revisão e edição.

Jéssica Santos: Metodologia; Redação - revisão e edição.

Maria Andrade: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Supervisão; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição

Referências

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Recebido: 25 de Março de 2021; Aceito: 19 de Junho de 2023

Autor de Correspondência: Morgana Lima (morgana.delima@upe.br)

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