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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.20 no.3 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.15309/19psd200312 

Transtornos mentais comuns em quilombolas baianos, nordeste brasileiro

Common mental disorders in quilombola’s communities inhabitants of bahia, brazilian northeast

Ricardo Mussi1, Saulo Rocha2, & Tarcísia Alves3

1Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ensino Línguagem e Sociedade (PPGELS), Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Cultura e Saúde (GEPEECS), Caetité, Bahia, Brasil, rimussi@yahoo.com.br

2Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Saúde II, Jequié, Bahia, Brasil / Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, Bahia, Brasil, svrocha@uesb.edu.br

3Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, Bahia, Brasil, tarcycastro@yahoo.com.br


 

RESUMO

Os Trantornos Mentais Comuns (TMC) são morbidades de natureza não psicóticas que estão associados a acometimentos psiquicos mais graves. O seu rastreamento em grupos populacionais específicos permite a antecipação do cuidado e a redução das consequências da exposição a esses transtornos. Neste sentido, o presente estudo objetivou estimar a prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) e sua associação com as características sociodemográficas, estilo de vida e doenças crônicas em adultos quilombolas. O método quantitativo, epidemiológico, de corte-transversal valeu-se da aplicação do Self-Reporting Questionnaire-20 e formulário com questões sociodemográficas, sobre o estilo de vida e doenças crônicas em 850 adultos residentes em quilombos de região baiana. A regressão de Poisson foi usada para testar as associações, permitindo a estimação das razões de prevalência. A prevalência de TMC foi de 29,61% (IC95%: 26,49-32,74), significativamente associada ao sexo, dor nas costas e distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Desse modo, são necessárias ações de cuidado a saúde mental da população de quilombolas, em decorrência da elevada prevalência de TMC, principalmente entre as mulheres e os indivíduos acometidos por dor nas costas e DORT.

Palavras-chaves: população negra, transtornos mentais, saúde mental em grupos étnicos, inquérito epidemiológico


 

ABSTRACT

Common Mental Traits (CMT) are non-psychotic morbidities that are associated with more severe psychiatric disorders. Their screening in specific population groups allows anticipation of care and reduction of the consequences of exposure to these disorders. In this sense, the present study aimed to estimate the prevalence of Common Mental Disorders (CMD) and its association with sociodemographic characteristics, lifestyle and chronic diseases in quilombola adults. The quantitative, epidemiological, cross-sectional method was based on the application of the Self-Reporting Questionnaire-20 and form with sociodemographic, lifestyle and chronic diseases questions in 850 adults living in quilombos in the Bahia region. Poisson regression was used to test the associations, allowing estimation of prevalence ratios. The prevalence of CMD was 29.61% (95% CI: 26.49-32.74), significantly associated with gender, back pain and work-related musculoskeletal disorders (WRMD). Thus, care actions are required for the mental health of the quilombola population, due to the high prevalence of CMD, especially among women and individuals affected by back pain and WRMD.

Keywords: african continental ancestry group, mental disorders, mental health in ethnic groups, cross-Sectional study


 

As morbidades psíquicas apresentam-se como um dos principais problemas enfrentados pela saúde pública. No início dos anos 2000 as doenças mentais afetavam cerca de 450 milhões de pessoas no mundo, estimando-se que aproximadamente 25% da população sofrerá com algum transtorno mental ao longo da vida (Organização Mundial de Saúde, 2002). No Brasil, o crescimento exponencial do diagnóstico de transtornos mentais indicaram-nos como principal causa de adoecimento em adultos na primeira década do século XXI (Schmidt et al., 2011).

A maioria dos problemas de saúde mental são de natureza não-psicóticos, conhecidos como Transtornos Mentais Comuns (TMC) (Goldberg & Huxley, 1992), definidos pelo humor ansioso, depressivo ou questões somatoformes insuficientes para o diagnóstico de doenças mentais (Treichel et al., 2017), com a ocorrência de sintomas como: insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas (Goldberg & Huxley, 1992; Tavares et al., 2011), com importante impacto na saúde do indivíduo e da comunidade.

Mesmo diante da capacidade de proporcionar incapacidade funcional comparável aos das doenças mentais e da possibilidade relativamente simples de rastreio, os TMC são subnotificados e subdiagnosticados (Maragno et al., 2006). Esse quadro gera sofrimento no acometido, menor possibilidade de tratamento precoce e maior probabilidade para o desenvolvimento de doenças mentais.

A prevalência de TMC oscila conforme as populações. Levantamento na América e Europa indicou variação entre 12,2% e 48,6% (World Health Organization, 2000). Em países africanos o TMC esteve presente em 32,4% dos participantes (Yimam, Kebede, & Azale, 2014).

Não foi identificado levantamento com amostra probabilista dos adultos brasileiros. No entanto, estudo com esse perfil amostral identificou que 21,0% apresentam humor depressivo (Barros et al., 2017), uma das dimensões que compõem os TMC. E, estudos regionais apontaram prevalências de TMC entre 14,7% dos adultos de município sulbrasileiro (Moraes et al., 2017) e 34,4%, em adultos de município nordestino (Ludermir & Melo Filho, 2002).

As características étnico-raciais devem ser consideradas dentre as questões que interferem na prevalência populacional destes transtornos. Estudos já demostraram que ser negro (preto ou pardo) ou não-branco aumenta a probabilidade para a ocorrência de TMC (Moraes et al., 2017; Rocha et al., 2012; Santos et al., 2017). Neste sentido, sofrer racismo, discriminação e preconceito impactam negativamente na saúde mental dos sujeitos (Ramos-Oliveira, Magnavita, & Oliveira, 2017).

No entanto, a disponibilidade de informações sobre TMC em populações negras, incluindo as quilombolas, são escassas. Neste contexto, as comunidades quilombolas são grupamentos populacionais autodefinidos, de ancestralidade negra, com práticas culturais e religiosas específicas e relação estreita com a terra (Mussi et al., 2015; Mussi, Queiroz, & Petroski, 2018). Ressaltasse que, ao longo da história, essa população sofre com problemas fundiários e precárias condições de vida (Moreira et al., 2011), que podem prejudicar sua saúde psicológica.

Além da presença, também é importante a identificação dos principais fatores associados aos TMC. É reconhecida diversificação das características sociodemográficas (Moraes et al., 2017; Rocha et al., 2010; Yimam, Kebede, & Azale, 2014), dos componentes do estilo de vida (Rocha et al., 2012) e doenças (Mari & Williams, 1986; Moraes et al., 2017;) associadas aos TMC.

A Organização Mundial de Saúde (World Health Organization, 2007) sugere a introdução dos cuidados em saúde mental na atenção primária. No entanto, a carência de dados epidemiológicos norteadores das políticas de saúde mental dificultam o planeamento de intervenções para promoção do bem-estar e qualidade de vida em grupos populacionais específicos, como os negros quilombolas.

Diante da escassez de estudos epidemiológicos robustos sobre os TMC na população brasileira, principalmente com populações negras, são necessárias investigações quanto a prevalência e os fatores predisponentes dos TMC, que poderão embasar o planeamento e intervenções para a melhoria do bem-estar e promoção da qualidade de vida dessa população. Neste sentido, o presente estudo tem por finalidade estimar a prevalência de Transtornos Mentais Comuns e sua associação com as características sociodemográficos, o estilo de vida e as doenças crônicas em adultos quilombolas.

Método

Desenho do estudo

Este trabalho utiliza dados do estudo transversal de base populacional intitulado “Perfil Epidemiológico dos Quilombolas baianos”, que foi autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado da Bahia, sob o parecer n0 1.386.019/2016, com coletas desenvolvidas entre fevereiro e novembro de 2016.

O campo empírico de investigação foi a microrregião geográfica de Guanambi/Bahia, composta por 18 municípios, que contava com 42 quilombos contemporâneos certificados até o ano de 2016 (Fundação Palmares, 2016), distribuídos em 10 destes municípios. Diante da indisponibilidade de informações oficiais prévias relativas a quantidade de moradores dos quilombos desta microrregião baiana, a população foi estimada considerando 80 famílias por quilombo (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, 2010), com dois adultos (pessoas com idade >18 anos, de ambos os sexos) por família, sinalizando uma população de 6.720 adultos residentes nas comunidades quilombolas da região de Guanambi/Bahia.

Participantes

O cálculo amostral adotou correção para população finita, prevalência de 50% para desfecho desconhecido, intervalo de confiança de 95%, erro amostral de cinco pontos percentuais, efeito do 1,5 vez para conglomerado em um estágio, acréscimo de 30% para recusas e 20% para perdas e confundimento, determinando amostra mínima de 818 sujeitos.

O desenho amostral consistiu em duas etapas: sorteio dos quilombos (conglomerado) e, em seguida, coleta censitária. Inicialmente foi realizado sorteio aleatório dos quilombos. Por meio das respetivas associações de moradores, 14 unidades sorteadas permitiram visitações para a realização da pesquisa, três recusaram participação.

Considerando todos os adultos nos quilombos elegíveis, as associações de moradores informaram a presença de 1.025 adultos residentes durante o período das coletas. Todos foram convidados, sendo informados sobre os aspetos do estudo, garantindo igual probabilidade de participação. Compareceram voluntariamente às atividades e aceitaram participar por meio da assinatura ou fornecimento da impressão digital no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido individual 850 quilombolas, compondo a amostra final. Não compareceram às atividades 17,07% dos convidados, caracterizando as recusas. As coletas foram realizadas em sistema de mutirão, durante dias estabelecidos pelas associações de moradores.

Aqueles com deficiência cognitiva ou de comunicação independente, aparentes ou diagnosticadas, foram excluídos das entrevistas. As perdas foram definidas pela ausência resposta de alguma questão da entrevista.

Procedimentos de coletas de dados

A coleta de dados foi realizada por meio da aplicação de instrumento estruturado a partir de propostas disponíveis na literatura (Bezerra et al., 2014; Gonçalves, Stein, & Kapczinski, 2008), por meio da utilização de questionários aplicados em forma de entrevista individual por equipe composta por profissionais e/ou acadêmicos da área de saúde, após treinamento para sua respetiva função.

Variáveis

A variável dependente, Transtorno Mental Comum (TMC), foi definida diante da resposta positiva de sete ou mais questões ao Self-Reporting Questionnaire-20 (SRQ-20) (Santos et al., 2010), instrumento desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde que permite o rastreio de distúrbios psiquiátricos menores (Organização Mundial de Saúde, 2002), já adaptado e convalidado para adultos brasileiros (Gonçalves, Stein, & Kapczinski, 2008).

As características sociodemográficas foram: sexo (feminino, masculino), faixa etária (<40 anos, >40 anos), escolaridade (< 5 anos, > 5 anos), renda familiar (>1 salário mínimo, <1 salário mínimo - conforme o valor vigente para o ano de 2016, ou seja, R$ 880,00), situação conjugal (com e sem cônjuge), situação laboral (sem remuneração, com remuneração), número de filhos (≤4 filhos, >4 filhos), moradores no lar (≤4 pessoas, >4 pessoas).

As variáveis relativas ao estilo de vida foram obtidas a partir do autorrelato, conforme questões da Pesquisa Nacional de Saúde validadas para adultos quilombolas (Bezerra et al., 2014), foram: hábito tabagista (fumante, ex-fumante e nunca fumou), etilismo (consome bebida alcoólica: sim ou não), atividade física do tempo livre (nos últimos três meses, o(a) Sr.(a) praticou algum tipo de exercício físico ou esporte - fora fisioterapia? sim, não), comportamento sedentário (em média, quantas horas p/dia o(a) Sr.(a) costuma assistir televisão? <3 horas/dia, >3horas/dia).

As variáveis relativas ao autorrelato do diagnóstico de doenças crônicas, também conforme questões da Pesquisa Nacional de Saúde validadas para adultos quilombolas (Bezerra et al., 2014), foram definidas a partir da resposta positiva se “Alguma vez um médico ou enfermeiro lhe disse que o(a) Sr(a) tem (hipertensão arterial, diabetes, hipercolesterolemia, reumatismo, dor nas costas, distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT), artrite/artrose)?”.

Análise estatística

Todas as análises foram realizadas no programa The Statistical Package for Social Sciences, versão 22.0. Foram realizadas análises descritivas. As associações dos preditores com os TMC foram estimadas pelas razões de prevalências (RP) a partir da regressão de Poisson. Inicialmente foram verificadas as RP brutas. As variáveis que apresentaram p-valor <0,20 foram incluídas na análise múltipla. As variáveis que apresentaram p-valor <0,05 na análise saturada foram definidas como associadas ao desfecho. As magnitudes das associações foram estimadas pelo intervalo de confiança de 95%.

Resultados

Os participantes se autorreferiram predominantemente negros (86,5%), com mediana de 45,0 anos de idade, com predomínio das mulheres (61,2%, IC95%: 57,9:64,5). Ocorreram 26 perdas para alguma questão relativa a essa análise.

O TMC foi prevalente em 29,6% (IC95%: 26,5-32,7) dos adultos quilombolas, média de 4,83+4,11 repostas positivas. As prevalências dos sintomas estão descritos na Quadro 1. Os sintomas de TMC mais relatados na população quilombola foram sentir-se nervoso, tenso ou preocupado (62,0%), assustar-se com facilidade (40,1%) e sentir-se triste ultimamente (39,7%), todos relacionados à dimensão do humor depressivo. Entre as mulheres os sintomas mais citados foram sentir-se nervosa, tensa ou preocupada (71,2%), assustar-se com facilidade (50,3%). Entre os homens, sentir-se nervoso, tenso ou preocupado (47,5%) e ter dores de cabeça frequentemente (28,1%), foram os sintomas mais frequentes. Dentre os sintomas investigados, 13 apresentaram prevalência significativamente maior (p<0,05) entre as mulheres.

 

 

A análise bruta (Quadro 2) indicou maior probabilidade de TMC (p<0,05) entre as mulheres, sujeitos com idade > 40 anos e aqueles que não possuem recebimento de remuneração financeira relacionada ao trabalho.

 

 

Quanto ao estilo de vida, foi identificada associação entre TMC com o comportamento sedentário (Quadro 3). Indivíduos que dispendiam > 3 horas por dia assistindo televisão tiveram maior probabilidade de apresentar esses transtornos.

 

 

As doenças crônicas autorreferidas investigadas mostraram-se associadas aos TMC (p<0,05), conforme a Quadro 4.

 

 

Na análise de regressão múltipla (Quadro 5), após os ajustes pelas variáveis incluídas no modelo final (p<0,20), permaneceram independentemente associadas aos TMC as variáveis: sexo e dor na coluna. Então, o modelo saturado indica que a probabilidade do adulto quilombola apresentar TMC é 1,65 vezes maior para as mulheres e 1,92 vez maior entre aqueles que referem problema crônico de coluna.

 

 

Discussão

Os principais achados deste estudo indicam que aproximadamente 3/10 dos adultos apresentaram TMC, principalmente devido a presença de humor depressivo e com maior probabilidade para sua manifestação em quilombolas do sexo feminino, que referiram dor nas costas e DORT. É possível que este seja o primeiro estudo de base populacional que analise os TMC e seus sintomas em população negra quilombola. Então, diante da limitada literatura nacional e internacional sobre os TMC nessa comunidade é necessário o debate com estudos desenvolvidos em outros perfis populacionais.

A prevalência de TMC encontrada no presente estudo é maior que os 14,7% identificado em município sulbrasileiro (Moraes et al., 2017) e os 23,4% em paulistas residentes em espaços rurais (Lima, 2015), com populações predominantemente caucasianas. No entanto, foi menor que os 32,4% encontrados em adultos africanos (Yimam, Kebede, & Azale, 2014), com a utilização do SRQ-20.

Mesmo que parcialmente, as maiores prevalências de TMC em populações negras, quilombola brasileira e africana, podem ser explicadas pelas suas maiores exposições ao racismo, elemento de reconhecido impacto para o adoecimento psíquico (Ramos-Oliveira, Magnavita, & Oliveira, 2017).

Ainda é possível compreender as altas prevalências encontradas em quilombolas seriam resultados do reforço relativo as condições de vida do espaço rural. O menor nível socioeconômico, com reflexos negativos na infraestrutura, tecnologias para o trabalho e alto desgaste físico são predisponentes para os TMC em residentes em áreas rurais, principalmente em países com menor desenvolvimento socioeconômico (Faria et al., 1999).

No entanto, sabe-se que a etiologia das doenças crônicas não transmissíveis é multideterminada (Costa et al., 2002). Além disso, a maioria dos transtornos mentais pode ser prevenido ou tratado, demostrando a relevância de ações de cuidado que envolva prevenção e promoção da saúde, com propósito de reduzir a presença e as intercorrências decorrentes da exposição às morbidades psíquicas (Santos & Siqueira, 2010).

Ressalta-se que as escalas de rastreamento de transtornos mentais não têm como objetivo realizar diagnósticos clínicos individuais, mais proporcionam informações sobre indivíduos expostos a sintomas que podem ser indicadores de adoecimento, oferecendo assim insumos importantes para políticas de saúde (Assunção & Silva, 2013).

A alta citação dos sintomas relativos ao humor, em quilombolas, permite inferir a importância desses sintomas na ocorrência de problemas relativos à saúde mental (World Health Organization, 2016). Também corrobora com estudo multicêntrico realizado com adultos de três capitais brasileiras, que além da alta prevalência de problemas de saúde mental, apontando aproximadamente 90% dos casos relacionados aos distúrbios do humor, ansiedade e/ou somatoformes (Almeida Filho et al., 1997), enquanto 1/5 dos adultos brasileiros relataram humor depressivo (Barros et al., 2017).

Para além do reconhecimento da elevada prevalência de TMC encontrada na presente investigação, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela população quilombola (Gomes et al., 2013; Freitas et al., 2011), pode agravar a sintomatologia, ampliando o risco para o desenvolvimento de doenças mentais, como a depressão. No entanto, é importante ressaltar a possibilidade de relação bidirecional entre o papel dos determinantes sociais na iniciação e curso dos distúrbios psiquiátricos, devido à possibilidade bidirecional associada a estes eventos (Lopes, Faerstein, & Chor, 2003).

Foi identificada uma maior prevalência de TMC entre as mulheres. A exposição da mulher a dupla jornada de trabalho, com acúmulo de atividades relacionadas ao trabalho formal, doméstico, cuidado com os filhos aumenta a vulnerabilidade das mulheres as morbidades psíquicas (Rocha et al., 2010). Somado a essas variáveis encontram-se às condições de vida, às características sociodemográficas e à estrutura ocupacional que deixam as mulheres mais expostas e vulneráveis aos problemas de saúde mental (Araújo, Pinho, & Almeida, 2005).

Ressalta-se, que apesar de limítrofe, a associação entre TMC e DORT também deve ser considerada importante e, portanto, discutida. Nesse sentido, é reconhecido que ter pelo menos uma doença crônica aumenta de maneira significativa e independente a possibilidade da ocorrência de TMC (Moraes et al., 2017). Essa associação levanta importante preocupação por que, as morbidades crônicas relativas ao aparelho musculoesquelético figuram entre os problemas que mais afetam a população brasileira, principalmente em residentes de áreas rurais (Oliveira et al., 2015).

As informações permitirão que os trabalhadores de saúde, especialmente na atenção primária, iniciem o processo de prevenção dos agravos dos TMC, impedindo que alguns sujeitos desenvolvam Transtornos Mentais Maiores. No entanto, ressaltasse que a dinâmica de atenção ao doente mental é fundamental o apoio da família e da comunidade.

Também será possível sensibilizar as equipes de saúde fundamentalmente quanto à capacitação para utilização de instrumentos de triagem que poderão direcionar usuários para atendimento médico especializado, auxiliando a detecção precoce e o tratamento de problemas mentais nessa população. Ressalta-se que a falta de conhecimento dos profissionais pode gerar estigmas e desconfiança, limitando a busca por auxílio entre os quilombolas, uma vez que as pessoas assumem a condição estigmatizada de quanto ao seu quadro de saúde conforme sua percepção e daqueles à sua volta (Ribeiro et al., 2018).

A tradução dos achados epidemiológicos requer atenção cuidadosa, pois, conforme indicado, as prevalências de TMC sofrem influências de variáveis de diferentes naturezas. Não obstante a exposição longitudinal ao racismo, às características sociodemográficas e a vulnerabilidade econômica influenciam na prevalência de TMC nesta e demais populações. Além disso, o afastamento geográfico do espaço urbano nas comunidades quilombolas participantes da investigação dificulta acesso ao serviço de saúde, com impacto na ausência de profissionais capacitados para acompanhamento da saúde desde a atenção básica.

Dentre as limitações da presente investigação, o desenho transversal restringe a definição da causalidade entre o desfecho (TMC) e as variáveis explicativas, sendo uma questão inerente ao tipo de estudo. Entrevistas, enquanto instrumentos de coleta de dados, são passíveis de viés de compreensão e de memória entre os entrevistados. No entanto, a validade de informação autoreferida têm sido evidenciada em outros estudos (Faria et al., 1999; Rocha et al., 2012), principalmente quando há treinamento da equipe de aplicadores, para padronização da técnica, como na presente investigação. Além disso, o SRQ-20 é instrumento de triagem adequado para estudos de populações, sendo útil para primeira classificação de possíveis casos e não casos (Santos et al., 2010).

Como pontos positivos do estudo, destacam-se o ineditismo de um estudo sobre transtornos mentais menores em quilombolas; a presença de amostra representativa de população regional, mesmo diante da complexa logística de visitação em ampla área geográfica, que permite a inferência e estimativa para a população alvo; a utilização de instrumentos validados; e, a apresentação de informações que podem contribuir na compreensão, na prevenção dos agravos de importantes problemas de saúde mental em comunidades que podem contar com cobertura do serviço de saúde insuficiente para sua demanda.

A presente análise apontou que 3 em cada 10 adultos quilombolas apresentam um TMC, estando sua presença associadas ao sexo e a presença autorelatada de doenças crônicas não transmissíveis (problema crônico de coluna e DORT), que se relacionam diretamente à incapacidade produtiva na população adulta. Aspectos relacionados a exposição ao racismo, recorrente em populações negras (Ramos-Oliveira, Magnavita, & Oliveira, 2017), e o diminuto acesso aos serviços de saúde em comunidades localizadas em espaço rural (Gomes et al.,2013) podem estar relacionados a maior vulnerabilidade aos transtornos analisados. Ademais, as comparações com outras investigações foram comprometidas em virtude da escassez de estudos com populações semelhantes.

Esse quadro representa um achado que requer ações emergentes na área da saúde pública para população negra quilombola. Especificamente no que se refere ao desenvolvimento de ações preventivas e terapêuticas (dos agravos e configuração de um Transtorno mental maior) relativas aos problemas relacionados aos TMC, prioritariamente quanto ao humor depressivo, na população quilombola participante da investigação.

Entende-se que somente a partir da ampliação dos serviços e políticas públicas de saúde, educação e renda para populações em situação de vulnerabilidade gerarão o desenvolvimento social capaz de influenciar positivamente nas condições de vida e saúde mental das comunidades quilombolas, considerando suas características próprias.

 

REFERÊNCIAS

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Agradecimentos

Agradecemos às Associações de Moradores das Comunidades Quilombolas da região baiana de Guanambi que aceitaram participar do estudo e colaboraram com a logística local durante o processo de coleta de dados durante as visitações.

 

Recebido em 01 de Julho de 2018/ Aceite em 02 de Junho de 2019

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