SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número50A construção de uma identidade feminina decolonial em Kilêlê: A Dança Sagrada do Falcão, de Olinda BejaA representação da mulher culta no entremez setecentista: o caso do novo entremez da Doutora Brites Marta índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.50 Lisboa dez. 2023  Epub 21-Fev-2024

https://doi.org/10.34619/wif7-zlwa 

Estudos

Espectros do feminismo no cinema português

Spectres of feminism in Portuguese film

i Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Comparatistas, 1600-214 Lisboa, Portugal. Email: mliz@letras.ulisboa.pt


RESUMO

Resumo: Primeira longa-metragem de Cristèle Alves Meira, Alma Viva (2022) narra as férias de verão de uma criança com a sua família em Trás-os-Montes. Exemplo do fôlego transnacional do cinema português contemporâneo, o filme inscreve-se também na genealogia do cinema português no feminino. Estabelecendo pontes entre Alma Viva, Três Dias sem Deus (Bárbara Virgínia, 1946) e Máscaras (Noémia Delgado, 1976), este artigo examina obras de períodos distintos da história do cinema em Portugal realizadas por mulheres. Questiona ainda a pertença de Alma Viva, filme sobre espectros, de influência gótica e enraizado na paisagem, à nova vaga global do cinema de mulheres, discutindo o lugar do feminismo no cinema português do século XXI.

Palavras-chave: cinema português; feminismo; cinema gótico; paisagem; bruxas

ABSTRACT

Abstract: First feature film by Cristèle Alves Meira, Alma Viva (2022) narrates the summer holidays of a child with her family in the remote region of Trás-os-Montes. An example of the transnational vitality of contemporary Portuguese cinema, the film is also inscribed in the genealogy of Portuguese women’s cinema. Establishing links between Alma Viva, Três Dias sem Deus (Bárbara Virgínia, 1946) and Máscaras (Noémia Delgado, 1976), this article examines works from different periods in the history of the cinema directed by women in Portugal. In addition, it questions the belonging of Alma Viva, a film about ghosts, with gothic influences and rooted in the natural landscape, to the new wave of global women’s cinema, discussing the place of feminism in 21st century Portuguese film.

Keywords: Portuguese film; feminism; gothic cinema; landscape; witches

ESPECTROS DO FEMINISMO NO CINEMA PORTUGUÊS

Primeira longa-metragem da realizadora luso-francesa Cristèle Alves Meira, Alma Viva (2022) teve a sua estreia internacional na Semana da Crítica, secção paralela do Festival de Cinema de Cannes, em maio de 2022. Falado em português e francês, o filme vê a sua ação decorrer na região portuguesa de Trás-os-Montes. Com história de produção e equipas técnicas e artísticas internacionais, distribuição internacional na Europa, e enquanto candidato português à nomeação para os prémios Óscar em 2023 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, o filme pode ser enquadrado no cinema cada vez mais internacional que se produz em Portugal (Liz, 2018). Mas, ao mesmo tempo, Alma Viva é um filme português, devido à sua localização, sendo baseado nas memórias de infância da própria realizadora, que passava férias com a família (que emigrara para França nos anos 1970) na região transmontana. Alma Viva pertence também à genealogia do cinema português no feminino. Isto porque, através da adoção de uma estética gótica e do seu foco na ruralidade, se aproxima de outros filmes portugueses realizados por mulheres em décadas anteriores.

Este ensaio pretende tornar claras as ligações que, através da análise de Alma Viva, surgem entre o cinema português contemporâneo e a história do cinema realizado por mulheres em Portugal. Assim, examina Alma Viva em relação a dois filmes de períodos históricos bem distintos, realizados por cineastas que poucos mais filmes assinaram enquanto autoras. O primeiro é Três Dias sem Deus (Virgínia, 1946), única longa-metragem de ficção realizada por uma mulher durante o Estado Novo e caso insólito no cinema português, por ser a primeira longa-metragem com realização de uma mulher em Portugal e pelas suas características estéticas e narrativas (Vieira Lisboa, 2016). O segundo, estreado na década de 1970, trinta anos mais tarde, situa-se num momento da história do cinema português em que a realização de filmes por mulheres em Portugal começa a ser mais frequente. Máscaras (Noémia Delgado, 1976) constitui um exercício próximo de um cinema etnográfico que quis dar a conhecer Trás-os-Montes como região guardiã de uma cultura milenar e problematizar as “origens míticas e ancestrais da identidade de Portugal” (Baptista, 2009, p. 316). Como Alma Viva, Três Dias sem Deus e Máscaras são as primeiras longas-metragens das suas realizadoras. As ligações entre os filmes são assim temáticas, estilísticas e históricas.

Tanto Três Dias sem Deus como Máscaras foram recentemente digitalizados, tendo sido exibidos num número crescente de sessões públicas, nomeadamente em festivais de cinema por todo o país. No caso de Três Dias sem Deus, com 102 minutos quando o filme estreou, sobreviveu apenas um fragmento de 26 minutos, sem som. Apesar disto, ou devido à aura em torno deste filme, agora incompleto, Três Dias sem Deus tem sido discutido por cada vez mais críticos e investigadores, existindo já um corpo de literatura relevante sobre o trabalho da sua realizadora, Bárbara Virgínia (Pianco & Pereira, 2018; Sequeiros & Sequeira, 2017; Vieira Lisboa, 2016). Por seu lado, Noémia Delgado tem sido alvo de trabalhos de investigação que nos últimos anos beneficiaram da abertura e disponibilização online de parte dos arquivos da RTP - Rádio Televisão Portuguesa. Desde 2022 que o filme Máscaras está disponível para visionamento em escolas, a partir da plataforma do Plano Nacional de Cinema (PNC), e existe um dossiê pedagógico exclusivamente dedicado a esta obra (Penafria, 2022). Nesse sentido, também o seu percurso tem sido discutido em textos críticos e académicos de referência (vejam-se, por exemplo, Alvão, 2018; Penafria, 2023; Vieira, 2023).

Este texto acrescenta às linhas investigativas existentes um trabalho comparativo que liga as trajetórias dos três filmes. No entanto, e porque nenhum deles ou das mulheres que os realizaram se declara feminista, refere-se ao feminismo no cinema português como um espectro. Na história do cinema português, o feminismo tem estado totalmente ausente ou sido um corpo sem presença, algo implícito mas não declarado, por vezes até negado (Liz & Owen, 2023). Nesse sentido, ele é aqui enquadrado como um fantasma que paira e que, sem corpo, se manifesta de forma pouco natural nos filmes que, apesar de tudo, vão sendo realizados por mulheres. Ao proceder a uma análise comparativa entre Três Dias sem Deus, Máscaras e Alma Viva, este texto evidencia também os vários espectros do feminismo que têm “assombrado” a história canónica do cinema em Portugal, à medida que o país, o cinema e a própria conceção do feminismo se têm alterado. Assim, propõe uma leitura de Alma Viva enquanto gesto que destaca temáticas e formas de filmar muitas vezes excluídas da história do cinema português.

A utilização da palavra “espectros” no título do texto remete para um outro aspeto fundamental de Alma Viva. A questão dos fantasmas, das bruxas e da magia inexplicável com origem no mundo natural tem sido frequentemente associada ao feminino. Este é também o imaginário do filme: uma história de funerais e ligações entre os vivos e os mortos, contada com foco nas mulheres de uma família num contexto eminentemente rural. Estando tão próximo da história do cinema português realizado por mulheres e adotando temáticas tão presumidamente femininas, presentes em cada vez mais filmes de cineastas em todo o mundo, Alma Viva poderá ser mais feminista do que o assumido. Nesse sentido, este texto investiga também a possibilidade de um novo período feminista estar a emergir no cinema em Portugal, com consequências positivas, não só para a rescrita da sua história, como para a diversidade do seu futuro.

O GÓTICO: DE TRÊS DIAS SEM DEUS A ALMA VIVA

Alma Viva começa com um velório. Ainda com os créditos a formarem-se num ecrã a negro, ouvimos o choro de um homem e o que parece ser a voz sussurrada de uma ou mais mulheres a rezar. A primeira imagem que vemos mostra-nos a criança protagonista do filme, Salomé (Lua Michel, filha de Cristèle Alves Meira), que nos dá a ver apenas o seu olho. Salomé espreita, por uma fresta da porta, para a sala onde se vela o morto, vislumbrando um conjunto de velas acesas, rodeadas por terços entrelaçados em mãos unidas, que apontam para o céu. Na cena seguinte, a avó pede a Salomé que a ajude a acender mais velas enquanto reza. Minutos depois de Salomé e a avó se sentarem, a chama das velas apaga-se. Salomé assusta-se e a avó diz: “Ele já está aqui!”, aparentemente referindo-se ao espírito do morto. Apavorada, Salomé vai à cozinha buscar uma malga com água e sal, como lhe pede à avó. Vai às apalpadelas, sem ver. Quando acende a luz da cozinha, volta a assustar-se ao ver o tio, invisual, sentado no escuro, que lhe diz que apague a luz para não assustar o espírito. Mais à frente, a avó dirá a Salomé que tem de ter cuidado, porque também ela tem um dom: tem um corpo aberto, e os espíritos podem agarrar-se. Os primeiros minutos do filme decorrem de noite, na penumbra, no escuro. O mundo da criança é o do obscuro, do inexplicável e do assustador.

Com esta sequência inicial, o filme estabelece uma associação indiscutível à estética do cinema gótico, ou mesmo de terror. Estes géneros são pouco comuns no cinema português, e raramente trabalhados por mulheres realizadoras (Owen, 2023). Na análise que desenvolve sobre os filmes Os Mutantes (Teresa Villaverde, 1998), Rasganço (Raquel Freire, 2001) e Aparelho voador a baixa altitude (Solveig Nordlund, 2002), por exemplo, Hilary Owen (2023) argumenta que “Os diálogos que estes três filmes estabelecem com o ‘monstruoso’, o ‘não-humano’ e o putativo ‘pós-humano’ proporcionam-lhes um palco para criticarem a exclusão e a alienação de modos específicos de personificação” (p. 109), nomeadamente a feminina. Ao aproximar-se das convenções destes géneros cinematográficos e ao explorar categorias narrativas semelhantes, Alma Viva adquire também um carácter subversivo, nomeadamente no que diz respeito ao entendimento do feminino.

Na sua figuração de elementos do cinema gótico e de terror, Alma Viva aproxima-se de uma nova vaga de filmes que Barbara Creed (2022) identifica como o retorno do feminino monstruoso, em que “filmes sobretudo realizados por mulheres contam histórias sobre mulheres que se revoltam contra a violência masculina e os valores patriarcais corrosivos, incluindo a misoginia, o racismo, a homofobia e o antropocentrismo” (p. 2)2. Além disso, a dimensão gótica de Alma Viva permite ligar o filme de Alves Meira ao filme que é tido como texto fundador do cinema português realizado por mulheres. A presença do monstruoso e do fantasmagórico em Alma Viva pode ser lida, se não como referência, pelo menos como coincidência, em relação a Três Dias sem Deus. Como bem sublinha Ricardo Vieira Lisboa (2016), aproximando-se de um ciclo de filmes góticos dos anos 1940, nomeadamente do cinema clássico de Hollywood, Três Dias sem Deus tem sido esporadicamente lido segundo a perspetiva do cinema de género, sendo que “o género em causa é o cinema gótico, o filme de suspense ou de mistério” (p. 113). É, então, útil discutir as semelhanças que existem entre Três Dias sem Deus e Alma Viva, analisando a narrativa e a mise-en-scène de ambos.

Da mesma maneira que Alma Viva parte de uma ideia original da sua realizadora, também Três Dias sem Deus viu Bárbara Virgínia, aos 22 anos, não só estrear-se na realização, como colaborar na escrita do argumento do filme e interpretar o principal papel. A protagonista de Três Dias sem Deus é Lídia, professora primária destacada para uma aldeia no interior do país. Havendo um aluno excluído pelos colegas, a professora dirige-se a casa do seu pai, o Senhor Belforte, para se inteirar da situação. O Senhor Belforte é acusado pelas pessoas da aldeia de ter assassinado a mulher e de manter um pacto com o diabo na sequência do suposto crime. Ao decidir visitá-lo, Lídia atravessa uma fronteira proibida para as gentes locais. Ao contrário do que acontece com Alma Viva, em que a “estranheza” das personagens vai sendo explorada enquanto característica estética e narrativa assumida, em Três Dias sem Deus é um ambiente mais misterioso que se constrói. Ainda assim, a família Belforte é desde logo caracterizada pela sua ligação a um outro mundo, nomeadamente através da representação da mansão que habita, e que se caracteriza por uma evidente estética gótica.

O excerto que ainda é possível visionar do filme dá conta de uma sequência contínua que começa precisamente com a primeira visita da professora à casa do Senhor Belforte. Três Dias sem Deus apresenta-nos uma casa antiga, com arcos de pedra monumentais, salas amplas de tetos altos, decoradas de forma austera. Há grandes planos de Lídia, com a cara iluminada apenas parcialmente, em planos ligeiramente picados que a observam conversando com o Senhor Belforte. O cabelo entrançado em cima da cabeça reforça o ar austero da professora, apesar dos olhos meigos e do sorriso frequente, que remete para a sua dimensão de cuidadora de crianças. O ambiente hostil declarado pela arquitetura da casa, a grandiosidade dos arcos que rodeiam Lídia e a iluminação extremada deste ambiente contrastam com a luz, mais suave e equilibrada, que o rosto da professora emana e com a jovialidade que, apesar de tudo, a caracteriza. O filme, que junta nestas cenas dois mundos em confronto, constrói-se, assim, numa tensão entre o explicável e o inexplicável, o aceitável e o inaceitável, o legítimo e o proibido.

Após conversar alguns minutos com o Senhor Belforte, Lídia fica sozinha num corredor da mansão. Pouco tempo depois, com a criança Belforte, que entretanto veio vê-la, saltitando para dentro do plano, entra de novo em campo o Senhor Belforte, agora com uma senhora mais velha que empurra uma jovem numa cadeira de rodas. A jovem assim conduzida, na verdade, é a mulher do Senhor Belforte, que, portanto, se revela viva. De acordo com a leitura que Vieira Lisboa (2016) faz da planificação do filme, “Belforte confessa-lhe (a Lídia) que vive com um fantasma” (p. 104). O filme há de divulgar a misteriosa recuperação da mulher do Senhor Belforte, que, poderia dizer-se, acaba por ressuscitar - uma linha narrativa que pode ser interpretada como sinal do conservadorismo próprio do Estado Novo. Como sugere Manuel Cintra Ferreira (2023), a mulher teria necessariamente de voltar à vida para que não se desenvolvesse qualquer tipo de romance entre Lídia e o Senhor Belforte, o que seria socialmente inaceitável. Até lá a figura da mulher, entre a vida e a morte, reforça o tom gótico e de terror do filme, atribuindo a Lídia, enquanto professora, mulher educada e com uma missão formativa, o difícil papel de gerir a ligação entre o mundo racional da luz e o mundo obscuro da noite. Tanto em Três Dias sem Deus como em Alma Viva, são as mulheres que, ou estão entre a vida e a morte, ou operam a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

Num plano subsequente de Três Dias sem Deus, um clarão de trovoada interrompe o diálogo entre a professora e o Senhor Belforte. Por causa da tempestade, Lídia passa a noite na mansão da família. Na manhã seguinte, regressa à aldeia, com o menino pela mão. Em contraste com o ambiente claustrofóbico da casa de família, o filme sublinha agora o espaço amplo do campo e a frescura da luz da manhã. A cena é bucólica, com árvores a servir de pano de fundo à caminhada, e o rebanho de ovelhas passando por detrás do par. O que quer que de obscuro tivesse existido ou sido visto durante a estadia na mansão Belforte parece ter ficado para trás (ou talvez não, mantendo-se o suspense narrativo, como ditam as convenções genéricas do filme). Na escola, de paredes brancas, colunas retas e janelas simétricas - um ambiente limpo e bem definido, que assim se opõe às linhas curvas e desajustadas da mansão -, professora e pupilo encontram a sala de aula vazia. Lídia decide então procurar os seus alunos.

Ao bater à porta das várias casas, a professora, jovem, de vestido preto, austero, mas elegante e bem penteada, encontra mães ou cuidadoras muito mais velhas, muitas delas de avental, xaile aos ombros e lenço na cabeça. Uma mãe puxa o filho para perto de si, afastando-o de Lídia. Uma outra, vendo que o filho se aproxima da ombreira da porta onde conversam, ordena-lhe que regresse para dentro de casa. Contaminada pela sua passagem pela mansão da família Belforte, Lídia, que já era uma forasteira, passa a fazer parte de um mundo distinto do dos habitantes da aldeia, em cenas que ilustram a “tradicionalista dicotomia campo-pureza versus cidade-perdição” (Sequeiros & Sequeira, 2017, p. 341). Quando a professora regressa à escola, as mulheres da terra, vendo a janela aberta, atiram pedras - e, provavelmente, insultos. Lídia, personagem urbana, mulher da cidade, excêntrica e diferente, não só atravessou uma fronteira proibida, como, é assumido, terá visto ou cometido pecados. Terá assim desrespeitado os costumes da comunidade rural, presumidamente, pura e obediente.

O vincar desta dicotomia não pode ser dissociado do contexto histórico e político em que Três Dias sem Deus foi produzido. Seriam sempre as mulheres a desenvolver comportamentos transgressores e a atrever-se a dar conta de contextos misteriosos durante o Estado Novo, um período não só altamente conservador do ponto de vista da igualdade de género, como caracterizado pela vigência de uma censura cinematográfica que restringiria outras interpretações possíveis do filme. Por isso mesmo, em Alma Viva a oposição entre campo e cidade não está tão presente como a dicotomia entre o normal e o inexplicável. No filme de Alves Meira, apesar de a personagem principal também ser uma forasteira, o que posiciona Salomé como alguém diferente é a sua ligação com o mundo dos mortos. A relação estabelecida com a fantasmagoria ou bruxaria que em Três Dias sem Deus opõe a destemida e recém-chegada Lídia aos habitantes da aldeia é a mesma que gera a fúria da comunidade transmontana perante a pequena Salomé. Mas, se Lídia não tem medo dos feitiços, Salomé é quem os opera e perpetua.

Depois da morte da avó, Salomé passa a noite num colchão no meio da rua, e acorda de manhã quando o pastor passa com as suas cabras. Ao final do dia, a criança descansa numa cova, que foi afinal escavada para a construção de uma piscina para um familiar. Os populares desabafam: “Eles nunca bateram bem. Esta família parece que tem poderes diabólicos”. Numa noite de lua cheia, Salomé atravessa a casa de família, passando novamente pelo pastor na rua. Ele chama-a repetidamente, mas Salomé, em transe, parece não ouvir e entra no galinheiro. Na manhã seguinte encontram-na deitada no chão, chorando e gemendo baixinho, coberta de sangue e rodeada de animais mortos. Salomé tornou-se um espectro, caminhando pelas ruas da aldeia durante a noite, como se possuída (imaginamos, pelo espírito da avó). Com os habitantes da aldeia a protestarem contra o crime da criança à porta da casa de família, o tio há de desabafar: “Mais tarde ou mais cedo, todas as mulheres independentes serão acusadas de bruxaria” - o que, na verdade, tinha também acontecido, ainda que de forma implícita, a Lídia, no filme de Virgínia.

Tanto em Três Dias sem Deus como em Alma Viva são pronunciadas críticas óbvias às mulheres que protagonizam as suas histórias. Mas, se a resolução do filme de Virgínia está em linha com a censura característica do Estado Novo, terminando com cenas de uma vida familiar feliz e plenamente reconstituída, em Alma Viva não é negada a Salomé (tal como não tinha sido à sua avó) o papel de bruxa, que pode até ter aspetos positivos. No final do filme, por exemplo, Salomé olha diretamente para a câmara, enquanto começa a cair a chuva que ajudará a pôr fim ao incêndio que ameaça a aldeia, como se também este fenómeno viesse responder a um seu desígnio. No dia anterior, depois de a mãe e as tias a terem obrigado a comer uma cabeça de galinha, Salomé havia dito: “Avó, agora deixa-me, não quero ser mais bruxa”. Com este olhar final para a câmara, é como se a criança comunicasse ao espectador a realização desse seu desejo. A força mística da protagonista de Alma Viva não é condenada pelo filme, mas antes valorizada, o que está em linha com a quarta vaga do feminismo e o seu foco no empoderamento das mulheres. Alves Meira (2022), por exemplo, declarou a importância que o livro Bruxas, de Mona Chollet (2018), teve para esta obra: “Permitiu-me assumir o assunto do meu filme sem medo” (para. 4).

As conceções sobre o papel das mulheres na sociedade, e sobre o feminismo e a sua potencial aceitação, condicionam a representação que estes filmes operam, a sua receção na altura da estreia e a sua interpretação anos mais tarde. Depois do filme de Bárbara Virgínia, apenas em 1976 surgiriam em Portugal novas longas-metragens realizadas por mulheres. Avançando para o período seguinte da história do cinema português no feminino, a próxima secção é dedicada à paisagem e ao espaço rural. Aproxima uma leitura de Alma Viva à análise do filme Máscaras, contrastando o Trás-os-Montes representado por Alves Meira com a região mítica captada por Noémia Delgado num Portugal já democrático, e comparando os entendimentos disseminados sobre as mulheres - enquanto personagens e enquanto cineastas - em cada uma destas épocas.

A PAISAGEM: DE MÁSCARAS A ALMA VIVA

A crítica de David Katz (2022) para o website Cineuropa destaca em Alma Viva a “atmosférica cinematografia, inundada de sol, do mestre Rui Poças” (para. 5). Depois da sequência inicial do filme, em que Salomé e a avó velam o morto, há um corte abrupto para um plano no exterior, em que, numa hora de muita luz, uma explosão no rio nos dá a ver dezenas de peixes que saltam pelo ar. A luminosidade desta sequência convive de forma orgânica com os ambientes mais escuros descritos na secção anterior; a presença dos peixes marca a continuidade entre a sequência inicial e esta que se lhe segue, entre o tempo da noite e o do dia, entre o mundo dos mortos e o dos vivos. De fato de banho encarnado, cor complementar, e por isso contrastante com o verde da paisagem que a rodeia, Salomé apanha os peixes mortos que encontra a boiar na água, e coloca-os num saco de plástico. Quando todos os peixes foram recolhidos, Salomé parte agarrada a Zé, um rapaz da aldeia, numa mota. Os restantes créditos do filme surgem agora, sobre planos dos jovens que avançam, de cabelos ao vento, serpenteando a paisagem transmontana. A montagem alterna entre grandes planos de Salomé, contemplando a vista, e planos gerais das montanhas, reforçando a ligação entre a criança e a natureza. Os montes e vales, com as suas diferenças de altura e inclinações variadas, sublinham o isolamento do local onde decorre a ação. Na banda sonora, música instrumental da autoria de Amine Bouhafa, compositor francês nascido na Tunísia, ajuda a enquadrar esta segunda abertura do filme, reforçando a ideia de que a sua ação decorre num lugar longínquo e com história - ainda que não necessariamente Portugal.

Ricardo Vieira Lisboa (2022) refere-se a este elemento de Alma Viva como “um certo gosto pelo misticismo folclórico que tem mais de Emir Kusturica do que António Reis” (para. 1), numa aparente referência à falta de alinhamento do filme com a história do cinema português. António Reis, entre outros filmes, realizou, com a sua mulher Margarida Cordeiro, o filme Trás-os-Montes (1976), que tem uma ligação óbvia a Alma Viva por causa da sua localização. Trás-os-Montes tem também uma clara afinidade com outros filmes do período em que foi rodado, incluindo o filme de Noémia Delgado, Máscaras. Enquanto Três Dias sem Deus se afigura como caso raro na história do cinema português, Máscaras deve ser visto como exemplo de uma tendência do período que imediatamente se seguiu ao 25 de Abril de 1974, em que várias mulheres realizadoras tiveram a oportunidade de desenvolver os seus primeiros projetos, muitos deles espelhando uma forte ligação com a natureza. São os casos de Trás-os-Montes, correalizado por uma mulher; A Lei da Terra, também dirigido por um casal,Alberto Seixa Santos e Solveig Nordlund, em 1977; e O Movimento das Coisas, de Manuela Serra em 1986, rodado nos anos 1970, mas apenas estreado em 1985.

A relação de Alma Viva com estes filmes, no que tem a ver com a representação da paisagem, é apenas superficial. Por um lado, nem A Lei da Terra nem O Movimento das Coisas decorrem em Trás-os-Montes. Por outro, como argumenta Vieira Lisboa (2022):

Só uma realizadora luso-francesa, com a experiência da emigração, poderia relacionar-se com as gentes e os lugares do Vimioso deste modo. Não se trata exatamente de um ponto de vista exótico (porque esse vem - muitas vezes - de cineastas lisboetas), antes um olhar próximo da fábula. (para. 4)

Esse aspeto fabuloso, no sentido literal da palavra, de Alma Viva advém não só do facto de a sua protagonista ser uma criança - o que é um outro traço original do filme em relação às restantes obras cinematográficas aqui citadas - como da sua ligação narrativa ao que de mítico e fantasioso pode ser encontrado neste espaço.

Como afirmou a própria realizadora, o filme foi inspirado em histórias que, na sua infância, ouviu “ao pé da lareira”. Segundo Alves Meira, “Essas histórias são quase como a memória arcaica de Portugal, a matriz da nossa cultura, e eu queria voltar a essas tradições e contar essas histórias no cinema, para estar nessa transmissão de cultura” (Agência Lusa, 2022, para. 7). Parte desta transmissão tem sido operada pelo cinema, mesmo que alguns dos filmes mais evidentes nem sempre sejam os mais discutidos, como é o caso de Máscaras. Como bem identifica Penafria, o filme de Delgado está “alinhado com um certo cinema de olhar etnográfico, e um conjunto considerável de documentários biográficos e de cariz cultural” (2023, p. 60). Também o carácter etnográfico de Máscaras permite estabelecer pontes entre os dois filmes, no sentido em que, sendo obviamente um filme de ficção, Alma Viva não só se baseia em experiências reais como dedica tempo, na sua narrativa e mise-en-scène, ao espaço que representa e aos costumes que o caracterizam. Apesar de ser um documentário, Máscaras também oferece muito do ponto de vista imaginativo, já que, como sugere Penafria, o carácter documental do filme “não é impedimento de interferências, que se verificam a vários níveis” (2023, p. 63).

A abertura do filme de Delgado configura-se numa panorâmica com cerca de 50 segundos, em que um plano muito geral percorre, num movimento circular, e a uma velocidade quase estonteante, os montes e vales transmontanos, sublinhando a vastidão da paisagem captada. O som inicial da matraca e o cântico religioso Canto de Verónica, que ouvimos a capella, por uma voz feminina poderosa, atribuem a este espaço um carácter mítico. De seguida, a voz-off do narrador (Alexandre O’Neill, na altura marido de Delgado) vem reforçar o aspeto fantástico do filme, informando o espectador de que “existem certas celebrações do Ciclo do Inverno em que aparecem mascarados” e que, por vezes, “é patente a relação dessas personagens, demónios e fantasmas com os mortos”. Ainda que não adotando as convenções do cinema gótico ou de terror, Máscaras também estabelece, como indica o narrador do filme, uma ligação com o supernatural e o inexplicado. Não sendo o cinema documental alguma vez objetivo, o filme de Delgado não só recria as festividades que quis captar, e que, em muitas das aldeias onde foi rodado, já não se celebravam, como escolhe ângulos específicos para a sua representação.

Além deste lado fantástico, há um aspeto visceral que é fundamental no filme, e que é sobretudo visível em duas sequências: a matança do vitelo na Festa dos Rapazes, em Varge, e a matança do bode no Dia de Reis, em Rio de Onor. No primeiro caso, o filme capta apenas som direto, nomeadamente das indicações que “os rapazes” (aqui, “velhos a fazer de novos” (Penafria, 2022, p. 7)) vão trocando entre si durante o processo da morte e preparação do animal. Vemos um grande plano de uma mão ensanguentada segurar uma faca, também escorrendo sangue, e, de seguida, o remover da pele do vitelo. Minutos mais tarde, Máscaras oferece-nos um grande plano do esqueleto da cabeça do vitelo, a que se segue um grande plano do seu olho, sem vida. O animal também é filmado na sua totalidade - e monumentalidade -, mas a progressão narrativa da sequência faz-se através de planos que captam pormenores sanguíneos, formando-se uma estética que sublinha a ligação das aldeias transmontanas a um imaginário mórbido. No segundo caso, a sequência da matança é antecedida por música gloriosa. Esta sequência é sobretudo ocupada por um grande plano do pescoço do animal, que é cortado com uma faca por um dos homens, debruçando-se depois a câmara ao centro do plano, para captar, durante mais de um minuto, o sangue do animal, que lhe escorre da garganta. Não só não há pudor em mostrar os pormenores dos rituais captados, como são enfatizados os seus aspetos mais grotescos.

Em Máscaras, as mulheres não participam nas cerimónias que vão sendo captadas, não fazem parte dos calendários das festas, nem se sentam à mesa com “os rapazes”. No entanto, surgem em algumas cenas do filme, nomeadamente, no campo. Vemos, por exemplo, mulheres desempenhando alguns dos trabalhos mais difíceis na preparação destes ritos, como o lavar das tripas do bode, na sequência do Dia de Reis em Rio de Onor. Segundo Patrícia Vieira (2023), Máscaras “deixa claro que, nesta região, os espaços exteriores são controlados por homens e as mulheres aventuram-se neles por sua conta e risco” (p. 164). Neste sentido, como propõe, o filme “chama a atenção para a persistente associação entre as mulheres e a natureza num contexto cultural patriarcal” (Vieira, 2023, p. 166). A presença ténue das mulheres em Máscaras reflete o machismo da sociedade portuguesa nos anos 1970, mesmo depois do 25 de Abril, e sobretudo em contextos rurais e isolados como este de Trás-os-Montes. Já em Alma Viva, em que são igualmente imagens viscerais que caracterizam as protagonistas do filme, as mulheres estão muito mais presentes, mesmo que continuem a ser marginalizadas, pois, pelo menos inicialmente, são estigmatizadas enquanto bruxas.

Quando regressa a casa, depois da sequência da mota, Salomé carrega num balde os peixes já amanhados. Ao entrar em casa da avó, Salomé vê a tia a lavar o corpo seminu da sua mãe, aparentemente contra a sua vontade. Para Vieira Lisboa, esse momento “é triste e degradante. E é-o porque se trata de um gesto verdadeiramente gratuito. A avó não precisa de um banho de pano” (2022, para. 5). No entanto, podemos antes interpretar esta cena como contribuindo para a representação da avó como alguém que personifica esse outro “feminino grotesco”. Nesse sentido, trata-se de uma cena plenamente justificada na economia narrativa do filme. A associação da avó a imagens ditas perturbadoras atribui um valor político à sua representação, e, consequentemente, ao filme. Como aponta Creed (2022), há uma oposição fundamental que deve ser sublinhada no que diz respeito aos filmes que analisa. Assim, se “para o espectador masculino ela (a protagonista) pode ser uma figura monstruosa” (p. 17), “para a espectadora feminista ela é uma mulher - uma figura empoderadora e inspiracional, envolvida numa luta de vida ou morte com a violência da ordem simbólica patriarcal” (p. 18). Essa leitura da avó, se não enquanto heroína, pelo menos enquanto figura de referência, é claramente a de Salomé.

Uma certa radicalidade, que vinca a ausência da representação clássica do feminino, é central em Alma Viva, e mantém-se na cena que se segue. O banho termina com a entrada de Salomé no quarto, que não parece incomodada com a visão do corpo da avó. Depois, a pedido desta, Salomé liga a televisão. Um canal mostra imagens de um incêndio, mas Salomé, desinteressada, faz zapping. O que aparece de seguida são cenas de mascarados e da perseguição que fazem às gentes de uma aldeia, o que pode ser lido como uma referência explícita, se não ao filme Máscaras, pelo menos aos rituais que também Delgado havia retratado. Ao ajudar a avó a vestir-se, a menina reconhece, na televisão, uma canção de que gosta. Salomé convence então a avó a levantar-se ao som dos versos “gosto é de esfrega, esfrega”, e dançam as duas, abanando as ancas. Salomé incita a avó, de cinta e soutien rendado, camisa ainda por abotoar, a copiar os seus movimentos. Este momento tem muito mais de libertador do que de grotesco para as personagens e, havendo identificação do espectador do filme com a sua protagonista, pode ser muito mais divertido do que desnecessário para quem vê Alma Viva.

À noite, regressando de uma outra cena com música e dança, desta vez no baile da aldeia, Salomé encontra a avó no quarto a vomitar. Depois de ter exibido as entranhas dos peixes, o filme capta agora as da avó. Alma Viva transporta-nos para o mundo dos mortos e não pode, nesse caminho, ignorar o que nele há de grotesco. Mas fá-lo com a consciência de que essa viagem expande horizontes e permite novas leituras, por exemplo, em relação ao que pode ser visto como o que define as mulheres. Como assinala Creed, várias autoras “têm defendido um repensar do abjeto como força que tem o poder de criar agência política e transformação social”. No mesmo sentido, a “tarefa estética” de filmes como Alma Viva é, como sublinha Creed (2022), “abraçar o abjeto com tudo o que acarreta” (p. 13). Alma Viva mostra-nos imagens pouco convencionais da preparação de animais, das entranhas de animais e humanos, e de feitiços e sacrifícios que destacam o que de irracional há na natureza. Mas fá-lo de forma a sublinhar o poder das mulheres que protagonizam a história do filme, explorando, assim, novos caminhos para a interpretação do feminino.

Se, por um lado, as mulheres têm mais agência no filme de Alves Meira, por outro, a ligação de Alma Viva com a paisagem, por comparação com Máscaras, é bastante mais contida. Em Alma Viva a história passa-se em família, e sobretudo de noite, no mundo da escuridão. A sequência dos peixes serve mais para enquadrar a narrativa num ambiente natural, rural e isolado do que para situar o filme em Trás-os-Montes. Mais do que a paisagem, importa o confinamento do interior das casas, das portas e janelas que obstruem as personagens, e que servem de pontes de ligação a esse outro mundo, supernatural, que elas habitam. Também por causa dessa escala, bastante mais restrita, que existe no filme de Alves Meira - sobre uma menina e a sua família, e não sobre comunidades várias -, embora elementos da natureza estejam sempre presentes, a paisagem, ou uma visão abrangente sobre a aldeia e a região, não voltará a surgir até ao final do filme. Apesar disso, há semelhanças importantes entre o final dos dois filmes. A última sequência de Máscaras centra-se em Bragança e capta a aparição de duas figuras, a Morte e o Diabo, na Quarta-Feira de Cinzas. A cena tem início com uma queimada, e o fumo que se liberta e sobe ao céu é seguido pela câmara. Depois vemos as pessoas da aldeia a correr, descendo uma ladeira. A Morte, no seu fato preto, de foice na mão, e o Diabo, de vermelho vivo, vão de porta em porta ou perseguem pessoas. São filmadas crianças que, a um canto do enquadramento, riem, o que sublinha o carácter lúdico desta performance.

De certa forma são as mesmas personagens que protagonizam a cena final de Alma Viva. Enquanto a aldeia é evacuada pelos bombeiros e pela proteção civil por causa de um incêndio que cresce nos montes e a ameaça, a família enterra, por fim, a avó. O funeral acontece num ambiente caótico, em que pessoas e animais tentam fugir (sem que fique explícito, também da Morte), atropelando-se. Os populares atiram pedras contra o cortejo fúnebre, acusando Salomé, um pequeno diabo, de ter sido ela a atear o fogo. Sem ajuda, cabe aos membros da família carregar o caixão até ao cemitério e empurrar a terra para dentro da cova. Enquanto o fazem, começa a chover e ouvimos na banda sonora a música que acompanhara Salomé e a avó enquanto velavam os mortos. A câmara detém-se na criança, que mira diretamente na sua direção, de olhar fixo e suspeito, quebrando a quarta parede. Ao contrário do renascimento da paisagem que fecha Máscaras, em que vemos os campos verdes, num dia de sol, em Alma Viva paira o espectro de um poder supernatural detido pelas mulheres que protagonizam o filme. Depois de um fade a negro, a imagem retoma e vemos planos aéreos da paisagem ardida, ficando assim visíveis as marcas da destruição causada pelo fogo e o trauma da natureza. Durante dois minutos seguem-se planos gerais da paisagem, e vemos carros, incluindo de bombeiros, a passar pela estrada serpenteante. O filme não só é mais Delgado que Reis (e Cordeiro), como se revela mais próximo do cinema de Abbas Kiarostami do que do de Emir Kusturica3.

Ao destacar as ligações que é possível estabelecer com Máscaras, este texto abre novas linhas de interpretação de Alma Viva. Por exemplo, Trás-os-Montes não pertence necessariamente ao cinema de António Reis, existindo outras referências relevantes na história do cinema português no feminino que mais se adequam, mesmo quando servindo de oposição, ao filme de Alves Meira. Ao mesmo tempo, elementos como o grotesco não se afiguram gratuitos, mas antes se enquadram na ligação histórica que existe entre as mulheres e a natureza, por um lado (e que também tem sido captada pelo cinema das realizadoras portuguesas), e em processos feministas globais, por outro. A última secção do texto debruça-se, então, sobre a questão do feminismo, focando-se nas possíveis implicações que as ligações aqui sublinhadas têm para o cinema português contemporâneo.

ALMA VIVA E UM FEMINISMO EMERGENTE

Nos últimos anos, várias têm sido as autoras a discutir o cinema feito por mulheres em diversos pontos do mundo. Este fulgor de investigação não tem sido acompanhado em Portugal, onde, apesar de tudo, o tema tem atraído uma atenção crescente (Castro, 2000; Liz & Owen, 2023; Pereira, 2016). Para lá da esfera académica, é fundamental assinalar a este respeito a criação da associação MUTIM - Mulheres Trabalhadoras da Imagem em Movimento, em 20224. No contexto conservador do cinema e audiovisual em Portugal, muitas realizadoras escondem-se do feminismo - o que não é uma situação nova. Bárbara Virgínia, por exemplo, terá afirmado que o seu género era irrelevante para o seu trabalho enquanto realizadora, acrescentando que “mulher ou homem não tem nada uma coisa com a outra. Arte é arte, cultura é cultura e tanto faz ter um sexo como ter outro” (citada em Vieira Lisboa, 2016, p. 144). Isto apesar de, anos mais tarde, ter declarado: “Sempre fui emancipada, aos 15 anos já era feminista” (como citado em Sequeiros & Sequeira, 2017, p. 332). Se, por um lado, a realizadora tinha consciência da importância da sua brevíssima carreira, por outro, a sua atividade profissional foi fortemente condicionada pelas pressões sociais da época, em linha com “o fechamento da vida cultural duma sociedade sob regime fascista” (Sequeiros & Sequeira, 2017, p. 348).

De forma semelhante, Noémia Delgado declarou ter-se sentido excluída por ser mulher e referiu especificamente a questão de a equipa de Máscaras ter poucas ou mesmo nenhumas mulheres, além da realizadora: “Nem sei como é que eles (pessoas em Trás-os-Montes) perceberam que eu é que era a realizadora, no meio de tantos homens!” (como citado em Penafria, 2023, p. 79). Mais em linha com a revolução política, social e cultural que se desenvolveu no país em meados dos anos 1970, Delgado demonstrou ter tido consciência da situação de desigualdade enfrentada pelas mulheres durante a sua carreira. Terá ainda tentado, de alguma forma, reverter a sua posição marginal no setor, mas afirmações como a de que um filme “tem de ser feito com o útero” (como citado em Penafria, 2023, p. 72) foram mal recebidas. A sua filmografia é sobretudo composta por projetos inacabados (Penafria, 2023), e muitas outras cineastas da sua geração acabariam por rodar apenas um filme, o que demonstra a exclusão efetiva que sofreram as mulheres realizadoras durante décadas em Portugal.

Se é menos provável encontrar este tipo de exclusão profissional no século XXI, em que um número crescente de mulheres tem vindo a realizar filmes e a ser premiadas pelo seu trabalho, não deixam de ser surpreendentes as declarações de Cristèle Alves Meira a propósito de Alma Viva. Apesar de a realizadora luso-francesa ter uma história pessoal e experiência profissional marcadamente internacional, em entrevistas parece repetir as palavras de Virgínia, nascida sessenta anos antes. Por exemplo, afirma não concordar com a “crença de que existem separações identitárias entre os homens e as mulheres”, e declara: “Não acredito que o facto de ser realizadora faz com que imponha um ponto de visto automaticamente feminino sobre o mundo” (Alves Meira, 2022, para. 5). Como conclui Lídia Jorge (2023), referindo-se ao cinema das realizadoras portuguesas: “Ter-se-á passado, então, no cinema o mesmo que se passou na literatura e em outras artes. O campo social conheceu momentos de combatividade aberta em que as artistas desempenharam pugnas acesas, mas o campo artístico não acolheu essa energia militante” (p. 29). Mesmo por vezes reconhecendo a validade, necessidade ou importância do feminismo, as realizadoras hesitam em declarar-se feministas. Isto é comum às eras dos três filmes aqui analisados, e justifica, portanto, a identificação do feminismo como um espectro no cinema português.

Por oposição a Virgínia e Delgado, Alves Meira chega a descrever a sua primeira longa-metragem como um filme feminista, ainda que de forma defensiva. A realizadora de Alma Viva define o filme como sendo “feminista por natureza, no seu ADN, não por levar um discurso” (Alves Meira, 2022, para. 9). Esta resistência à adoção de um discurso feminista é comum no Portugal contemporâneo. No que diz respeito ao cinema, talvez este receio surja por ser percebido, por parte das realizadoras, como limitativo da sua criatividade e agência, como se um cinema feminista fosse pré-definido por padrões estéticos ou temáticos. Mais provável é que tal resistência possa advir do facto de a palavra feminista não ser positivamente aceite na sociedade portuguesa em geral e, portanto, menos ainda num meio conservador como é o do cinema em Portugal. Ainda assim, esta resistência à utilização do termo não é exclusiva do caso português. Também no âmbito do movimento cinematográfico global a que Creed chama Feminist New Wave Cinema, “algumas realizadoras resistem ao termo ‘feminista’, que veem como restritivo” (Creed, 2022, p. 3). Creed (2022), no entanto, defende a sua abordagem. Segue o famoso ditado de D. H. Lawrence de 1924: “Nunca confies no artista. Confia no seu trabalho” (p. 3).

Confiando, assim, em Alma Viva, a interpretação aqui proposta considera o filme como exemplo de uma nova vaga de filmes feministas. Alves Meira (2022, para. 8) declarou não ter visto os filmes das realizadoras portuguesas aqui analisados, o que significa que a ligação de Alma Viva ao cinema português realizado por mulheres é involuntária. Como também nota Jorge (2023), apesar de as mulheres terem realizado cada vez mais filmes depois do 25 de Abril de 1974, e de esse corpo de filmes ter vindo a ganhar dimensão e diversidade, “não existe propriamente uma filmografia dita feminista” em Portugal (p. 29). Se existisse, ou se quiséssemos começar a elaborá-la, teríamos necessariamente de começar por obras como estas. Só existirá um cinema feminista português quando alguém o identifique como tal. Para que isso aconteça, é imperativo resistir ao facilitismo que leva a uma visão restrita da história do cinema em Portugal, por um lado, e às negações ou contradições das suas autoras, por outro.

Da mesma forma que Máscaras foi qualificado como exemplo “de um cinema não inocente, que transforma positivamente o que filma” (Ascensão, 2022, para. 5), também Alma Viva parece possuir uma capacidade transformativa. O filme pode servir de impulso para a escrita de uma nova história, feminista, do cinema português. É fundamental que se discuta o cinema das realizadoras portuguesas, sobretudo em relação a obras de outras cineastas, incluindo de outros períodos, e trabalhando noutros géneros cinematográficos, para que comece a ganhar forma um corpo consistente de filmes feministas e, como consequência, se crie um novo cânone do cinema em Portugal. Nesse sentido, consciente ou não, o gesto que Alma Viva contém de aproximação ao feminismo global, e ao que de feminino existe na história do cinema português, não pode ser ignorado. É demasiado importante para que o deixemos escapar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agência Lusa. (2022, maio 18). Cristèle Alves Meira leva a Cannes um microcosmo familiar e transmontano. Observador. https://observador.pt/2022/05/18/cristele-alves-meira-leva-a-cannes-um-microcosmo-familiar-e-transmontano/Links ]

Alvão, L. (2018). Noémia Delgado. Revista Enquadramento, (15). https://issuu.com/enquadramento/docs/enquadramento-15Links ]

Alves Meira, C. (2022). Escolher ser realizadora é antes de tudo querer defender as nossas ideias e a nossa visão do mundo (Entrevista/Fora de Foco). MUTIM. https://www.mutim.org/fora-de-focoLinks ]

Ascensão, J. (2022, fevereiro 18). Máscaras / 1976: um filme de Noémia Delgado. CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA: COM A LINHA DE SOMBRA. https://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/2022-02-18_MASCARAS.pdf (Originally written in 2011, adapted) [ Links ]

Baptista, T. (2009). Nacionalmente correcto: a invenção do cinema português. Revista Estudos do Século XX, (9), 307-323. [ Links ]

Castro, I. (Org.) (2000). Cineastas portuguesas 1874-1956. Câmara Municipal de Lisboa. [ Links ]

Cintra Ferreira, M. (2023, janeiro 12). Três dias sem deus / 1946: um filme de Bárbara Virgínia. CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA: COM A LINHA DE SOMBRA. https://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/2023-01-12_TRES-DIAS-SEM-DEUS.pdfLinks ]

Creed, B. (2022). Return of the monstruous-feminine: feminist new wave cinema. Routledge. [ Links ]

Delgado, N. (Realizadora) (1976). Máscaras (Filme). CPC. [ Links ]

Delgado, N. (2000). Conversa. In I. Castro (Org.), Cineastas portuguesas 1874-1956 (pp. 39-77). Câmara Municipal de Lisboa. [ Links ]

Freire, R. (Realizadora) (2001). Rasganço (Filme). Madragoa Filmes. [ Links ]

Jorge, L. (2023). Prefácio: rompendo os círculos. In M. Liz & H. Owen (Orgs.), Realizadoras portuguesas: cinema no feminino na era contemporânea (pp. 23-32). Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Katz, D. (2022, maio 20). Review: Alma Viva. Cineuropa. https://cineuropa.org/en/newsdetail/425667/Links ]

Liz, M. (Org.) (2018). Portugal’s global cinema: industry, history and culture. I. B. Tauris. [ Links ]

Liz, M., & Owen, H. (Orgs.) (2023). Realizadoras portuguesas: cinema no feminino na era contemporânea. Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Meira, C. A. (Realizadora) (2022). Alma viva (Filme). Midas Filmes. [ Links ]

Nordlund, S. (Realizadora) (2002). Aparelho voador a baixa altitude (Filme). Filmes do Tejo. [ Links ]

Owen, H. (2023). Monstros, mutantes e maternidade: políticas pós-humanas em Teresa Villaverde, Raquel Freire e Solveig Nordlund. In M. Liz & H. Owen (Orgs.), Realizadoras portuguesas: cinema no feminino na era contemporânea (pp. 105-130). Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Penafria, M. (2022). Máscaras: Noémia Delgado (Coleção de Filmes do PNC, n.º 34). Plano Nacional de Cinema (PNC). https://pnc.gov.pt/34-mascarasLinks ]

Penafria, M. (2023). Inacabado: o cinema de Noémia Delgado. In M. Liz & H. Owen (Orgs.), Realizadoras portuguesas: cinema no feminino na era contemporânea (pp. 59-80). Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Pereira, A. C. (2016). A mulher-cineasta: da arte pela arte a uma estética da diferenciação. LabCom, Universidade da Beira Interior. [ Links ]

Pianco, W., & Pereira, A. C. (2018). Bárbara Virgínia: a primeira realizadora de uma longa-metragem em Portugal. Biblioteca Online de Ciências da Comunicação. https://www.bocc.ubi.pt/pag/pianco-pereira-2018-barbara-virginia.pdfLinks ]

Reis, A., & Cordeiro, M. (Realizadores) (1976). Trás-os-Montes (Filme). CPC. [ Links ]

Seixas Santos, A., & Nordlund, S. (Realizadores) (1977). A lei da terra (Filme). Grupo Zero. [ Links ]

Sequeiros, P., & Sequeira, L. (2017). Esquecer Bárbara Virgínia? Uma cineasta precursora entre Portugal e o Brasil. Comunicação & Sociedade, (32), 331-352. [ Links ]

Serra, M. (Realizadora) (1986). O movimento das coisas (Filme). Manuela Serra. [ Links ]

Vieira Lisboa, R. (2016). O restauro cinematográfico como recoreografia, o caso de “Três Dias sem Deus” de Barbara Virgínia (Dissertação de Mestrado em Cinema). Escola Superior de Teatro e Cinema, Instituto Politécnico de Lisboa. [ Links ]

Vieira Lisboa, R. (2022, novembro 9). “Alma Viva”: quem calça sapatos de defunto encarna o morto. À pala de Walsh. https://apaladewalsh.com/2022/11/alma-viva-quem-calca-sapatos-de-defunto-encarna-o-morto/Links ]

Vieira, P. (2023). Mulheres naturais? Natureza e feminilidade em Máscaras de Noémia Delgado e Transe de Teresa Villaverde. In M. Liz & H. Owen (Orgs.), Realizadoras portuguesas: cinema no feminino na era contemporânea (pp. 153-176). Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Villaverde, T. (Realizadora) (1998). Os mutantes (Filme). Arte / Mutante Filmes. [ Links ]

Virgínia, B. (Realizadora) (1946). Três dias sem deus (Filme). Invicta Filmes. [ Links ]

Notas

2 Todas as traduções de textos originalmente publicados em inglês são minhas.

3 Estou a pensar, por exemplo, num filme como Onde fica a casa do meu amigo? / Khane-ye doust kodjast? (Abbas Kiarostami, 1987).

4 Para mais informações, consultar: https://www.mutim.org/.

Notas

1 CIÊNCIAVITAE: https://www.cienciavitae.pt/en/7415-05F8-BC5E.

Recebido: 31 de Julho de 2023; Aceito: 16 de Novembro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons