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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/vzoe-4vxk 

Recensões

Gibson, M. J. (Writer), Kelley, D. E. (Writer), Clarkson, S. J. (Director). (2022). Anatomy of a scandal (Anatomia de um escândalo) (TV series). Netflix.

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1070-312 Lisboa, Portugal. E-mail: anaribeiro@campus.fcsh.unl.pt


Anatomia de um Escândalo é uma minissérie de seis episódios estreada a 15 de abril de 2022, no canal Netflix, serviço de streaming que produz e distribui à escala global filmes e documentários através de um serviço de internet. Trata-se de uma narrativa ficcional adaptada do romance Anatomy of a Scandal, de Sarah Vaughan, de 2018, sobre violação sexual.

Tendo por perspetiva a influência do género na natureza das memórias, a trama desenrola-se entre quatro personagens principais, James Whitehouse (interpretado por Rupert Friend), Sophie Whitehouse (interpretada por Sienna Miller), Kate Woodcroft (interpretada por Michelle Dockery) e Holly Berry (interpretada por Nancy Farino).

O evento que espoleta a ação é protagonizado por James Whitehouse, 44 anos, membro-estrela do Governo britânico no tempo atual, que é acusado judicialmente de violação sexual por uma subordinada (Olivia Lytton, interpretada por Naomi Scott) com quem teve um caso extraconjugal. James é bem nascido, bem educado, bem sucedido, bem parecido, um Adónis contemporâneo1. O perfil social do arguido e a natureza do crime transformam o caso num evento nacional, que propicia uma segunda acusação surgida nos media na fase inicial do julgamento. James é forçado a reconstituir acontecimentos de há 20 anos (era então finalista em Oxford), definindo a imagem da estudante caloira (Holly) e do encontro que motivou a acusação, completamente ausentes da sua memória. Neste processo confronta as duas situações e o jovem adulto com o homem que agora é.

Embora a palavra “memória” não surja em Anatomia de um Escândalo, a narrativa desenvolve-se a partir da rememoração das personagens, nomeadamente pela incitação das advogadas de acusação (Kate Woodcroft) e de defesa (Angela Regan, interpretada por Josette Simon) nas sessões de tribunal onde é julgado o caso. O júri que ditará a sentença concluirá quem diz a verdade e quem mente, a partir dos testemunhos verbalizados que constituem a evidência do que “realmente” aconteceu. Mas à audiência da minissérie é oferecido um recurso adicional, o desfilar das memórias das personagens. Este ingrediente, sendo cativante visualmente, dificulta a definição do veredito que a história exige, já que as memórias revelam apenas a verdade de quem as evoca, e, perante o que é dado ver, ninguém mente.

Quando, no decurso da ação, James recorda o caso passado há 20 anos em Oxford, o confronto com as memórias da situação atual revela-lhe - e revela a quem visiona a série - uma quase total coincidência de circunstâncias factuais entre os dois casos, em que apenas a localização e as pessoas envolvidas são outras: Holly (caloira) e Olivia (ex-amante); James (finalista) e James (político). A caracterização que as personagens fazem de um encontro sexual consensual e de um abusivo (uma violação) é inconciliável, contraste que revela uma versão “feminina” e outra “masculina” dos acontecimentos.

A narrativa estrutura-se no entretecimento de memória e género, tratando-se de categorias que partilham uma faceta performativa que questiona lógicas deterministas: memórias e género fazem-se e desfazem-se (Soares, 2016). Por vezes as personagens revisitam um acontecimento atribuindo significados diferentes a palavras, gestos, olhares; embora esteticamente igual, a interpretação do ocorrido torna-se mentalmente diferente, a memória é editada. Assiste-se, em vários momentos, ao processo de construção dos eventos passados, ao ajuste das memórias que se moldam para dar sentido às perguntas verbalizadas pelas advogadas e às fotos apresentadas (evidências).

Além do desfile de memórias, que revela que ninguém mente quanto aos factos essenciais, outro elemento de complexidade na trama resulta da dissonância percebida no protagonista masculino entre o padrão ético em que é moldado e a atitude que revela nos episódios sexuais em análise. Esses dois momentos surgem como uma grande zona cinzenta no puzzle de peças distintamente brancas e pretas que compõem a personagem. Na sua face luminosa revela-se um líder inspirador, que defende e encoraja altos padrões morais e éticos, adepto do argumento e do debate, um político talentoso apreciado pelo seu carisma, compaixão e proximidade com as pessoas; afetuoso com a mulher (Sophie) e os filhos, atencioso com a rapariga au pair (Krystyna) que reside com a família. O seu lado sombrio mostra uma competitividade extrema, alguém obstinado, incapaz de lidar com o stress das situações, que pode ser cruel nas palavras. Este contraste de traços remete para uma personalidade Dr. Jekyll & Mr. Hyde, um político empático versus um criminoso; mas James é caracterizado como alguém “honesto”, porque, quando mente, erra, engana, trai, revela que mentiu, errou, enganou, traiu.

Para definir James em tribunal, são procuradas respostas para questões essenciais: bom ou mau, verdade ou mentira, sim ou não, inocente ou culpado? A distinção entre um encontro consensual e um ato criminoso baseia-se no sim/não expresso pelas mulheres (mesmo que não verbalmente). É dado ver que nos dois encontros sexuais sob escrutínio houve uma transição do sim para o não (Kate: yes when they were kissing and no as soon as Mr. Whitehouse became violent), que informa sobre o veredito da/s situação/ções: James é culpado! Contudo, as memórias que James constrói uma e outra vez no exercício de julgamento de si mostram-lhe claramente a sua inocência e adensam a incompreensão de quem assiste à série porque invalidam qualquer das sequências apresentadas: nem “bom, verdade, sim, inocente”, nem “mau, mentira, não, culpado”. De resto, a culpabilidade de James não é interpretada unanimemente entre as diversas personagens, nem corresponde ao veredito Not guilty do coletivo de jurados/as quanto ao caso em julgamento2.

Para revelar quem é James, sob outra lente que não as suas memórias e discurso, é decisivo o papel de Sophie, casada com James. Foi aluna em Oxford, frequenta os círculos de Westminster, visita a casa ancestral Whitehouse, onde dialoga com a mãe de James (Tuppence, interpretada por Phoebe Nicholls) sobre a infância do marido, assiste às sessões do Tribunal. Os cenários onde evolui este percurso são simbólicos do poder (académico, político, social, judicial) e concorrem para definir a situação de privilégio de James. Revelam também que o poder é exercido maioritariamente no masculino. Ainda que as instituições se alterem e adaptem (It’s different now, the road is paved in MeToo landmines), continua a ouvir-se nesses círculos “boys will be boys” para justificar o “reprovável” comportamento masculino, minando a capacidade de agência que as mulheres foram ganhando (Holly não conseguiu formalizar a acusação; Olivia consegue fazê-lo, passados 20 anos).

A série procurou explicar a violência sexual (inconsciente) num homem que adotou o discurso pós-MeToo. James é retratado como alguém incapaz de distinguir entre um encontro sexual consensual e uma violação, antes e após 20 anos, mesmo quando exposto à versão das mulheres com quem se relacionou. Nele coexiste, sem que se aperceba da contradição, um discurso igualitário e progressista (apresenta-se como um “político feminista”) e comportamentos orientados pelos valores cavaleirescos dos heróis galantes e da grácil subordinação feminina3. James constrói-se sobre esta falácia que cristaliza ao longo da vida. Vive numa bolha formada e protegida pelos privilégios sociais e profissionais que mantém. As suas circunstâncias, o seu privilégio de género (masculino), impedem-no de ressignificar as suas experiências e, assim, de atualizar as suas memórias.

A série Anatomia de um Escândalo sublinha a influência dos media, do cinema, da publicidade, para reforçar os papéis tradicionais atribuídos a mulheres e homens, contribuindo para cimentar a desigualdade. Demonstra existir alternativa a este modelo, já que expõe e faz refletir sobre os estereótipos culturais de género.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Soares, L. (2016). O género e a memória: Considerações a propósito do romance Os Memoráveis de Lídia Jorge (Gender and memory: Reflections on the novel Os Memoráveis by Lídia Jorge). In L. Soares (Ed.), O dever da memória. Ensaios de literatura e cultura (Cap. 4, pp. 73-94). [ Links ]

NOTAS

1 Referência ao diálogo entre as estudantes sobre James, em Oxford. Holly: Adonis. He’s the god of beauty and desire.

2 O veredito Not guilty da ficção aponta para a realidade atual da prática do direito, nomeadamente na área penal, nos casos de violação sexual de mulheres, em que se assiste a sentenças judiciais proferidas por pessoas (homens e mulheres) cujos argumentos são conservadores e misóginos; depreciam os testemunhos das mulheres e até as culpabilizam com base em estereótipos femininos, com impacto social na desvalorização e normalização da violência contra as mulheres.

3 Referência ao diálogo entre Holly e Sophie, em Oxford, na aula de Literatura Medieval, sobre os jogos de amor cortês entre os cavaleiros e as damas na corte do Rei Artur.

Aceito: 28 de Abril de 2023

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