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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa June 2023  Epub July 31, 2023

https://doi.org/10.34619/0xuk-fxub 

Dossiê: Escrever Salva?

Marguerite Duras ou a escrita da ausência

i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: anapm@fcsh.unl.pt

ii Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), 1069-061 Lisboa, Portugal.


Resumo

Este artigo parte de uma perspetiva sobre o conceito de ausência na escrita de Marguerite Duras, tomando como foco principal Le Ravissement de Lol V. Stein e L’Amante anglaise. A análise destas obras incide sobre personagens (in)determinadas pelo amor e pelo crime com o objetivo de estudar a condição do sujeito feminino na obra durasiana.

Palavras-chave: ausência; sujeito; amor; crime; destruição

Abstract

In this article we aim to study the concept of absence in the Marguerite Dura’s writing focusing mainly on Le Ravissement de Lol V. Stein and L’Amante anglaise. We will examine women characters (un)determined by love and crime with the purpose of analysing the conditions of the feminine subject in Duras’ works.

Keywords: absence; subject; love; crime; destruction

Numa passagem de La Vie matérielle, Marguerite Duras afirma, sobre a escrita: “écrire ce n’est pas raconter des histoires. C’est le contraire de raconter des histoires. C’est raconter tout à la fois. C’est raconter une histoire et l’absence de cette histoire. C’est raconter une histoire qui passe par son absence. Lol V. Stein est détruite par le bal de S. Tahla. Lol V. Stein est bâtie par le bal de S. Tahla” (Duras, 1987, p. 35).

Esta afirmação resume um dos mistérios do texto durasiano. Naturalmente, não o faz com o intuito de o desvendar, mas para indicar o primado daquilo a que chamaremos uma voz da ausência. Duras, que em La Vie matérielle se refere à sua escrita a partir de um ponto exterior, falando enquanto escritora, não obstante, inverte o ponto de vista crítico para o situar no plano interno da obra, ou seja, para falar como Lol V. Stein, rasurando a linha que separa a literatura do seu exterior. Essa inversão permite-lhe eliminar a voz crítica e construir um jogo de vozes internas à obra onde convivem diversos planos da escrita, aliados pela inexorável fluidez da palavra, ou, talvez melhor dizendo, um jogo de vozes que abre um espaço no texto a uma neutralização da narrativa, mais propícia ao esquecimento do que à fixação dos acontecimentos no fio da história. Lol V. Stein surge como uma metáfora das personagens femininas durasianas na medida dessa subtração à história, no modo como através delas passa esse ponto nulo, expresso pela ausência da dor, que, nos termos de Duras, congela a narrativa:

Au moment du bal de S. Thala, Lol V. Stein est tellement emportée dans le spectacle de son fiancé et de cette inconnue en noir qu’elle en oublie de souffrir. Elle ne souffre pas d’être oubliée, trahie. C’est de cette suppression de la douleur, qu’elle va devenir folle. (...) C’est un oubli. Il y a un phénomène qui existe dans le gel. L’eau devient de la glace à zéro degré, et quelquefois, il se trouve qu’il y a une telle immobilité de l’air pendant le froid, que l’eau en oublie de geler. Elle peut descendre jusqu’à moins cinq. Et geler. (Duras, 1987, pp. 35-36)1

Partiremos deste ponto nulo para a observação das modalidades da ausência na escrita durasiana em torno de personagens femininas, considerando-as como emanações de Lol V. Stein, seguindo a linha de leitura apontada pela própria autora: “ce que je n’ai pas dit c’est que toutes les femmes de mes livres, quelle que soit leur âge, découlent de Lol V. Stein. C’est-à-dire d’un certain oubli d’elles-mêmes” (Duras, 1987, p. 36).

Efetivamente, a escrita durasiana muda profundamente a partir de Le Ravissement de Lol V. Stein. São posteriores à data de publicação deste livro, 1964, os seus textos mais inovadores, que rompem definitivamente com as regras de género e, de modo mais decisivo, com convenções muito enraizadas na escrita ficcional. É também pouco depois, no início dos anos 1970, que se multiplicam os filmes da autora. À medida que vai evoluindo, é possível dizer que a ficção durasiana perde progressivamente a ligação à narrativa em proveito de uma espessura dramática: as situações são esculpidas muitas vezes com recurso a estratégias mais próprias da dramaturgia, o universo das personagens assenta de modo insistente no diálogo, cada vez mais denso, e caracteriza-se quase sempre pela estaticidade das personagens. Acontece, até, que alguns episódios são posteriormente tratados em argumentos, como é o caso de India Song (1973 e 1975). Esta exploração de processos dramáticos dentro das obras de ficção da autora contribui, como já se afirmou, para conferir à narrativa uma teatralidade muito particular e favorece o aprofundamento de situações dadas à partida, de emoções ou de pensamentos, em detrimento daquilo que é mais frequente encontrar na narrativa tradicional, onde se privilegia a sequencialidade dos acontecimentos com que se constrói o enredo, ou seja, uma evolução temporal e espacial. Duras faz o inverso, precisamente: o seu trabalho de escrita assenta na suspensão do tempo e na eliminação progressiva do espaço, e em muitos dos seus livros encontra-se uma verdadeira vertigem do défice de acontecimentos e do esvaziamento da intriga.

É também neste sentido que acreditamos que a ausência configura uma vertente da obra de Marguerite Duras que, de alguma forma, atravessa a sua escrita. A ausência durasiana não é um tema. Poder-se-á dizer que é um paradigma da escrita da autora, um verdadeiro núcleo estruturante de todo o seu universo de escrita. Examinaremos, então, algumas obras da autora em que esta questão está presente.

Com esse objetivo, vou partir do postulado de que a dificuldade da escrita que se manifestou em obras de diversos autores de meados do século XX em França, tais como Maurice Blanchot, Vercors, e muitos outros, decorre em grande parte do confronto com um real que subitamente se afigurava como demasiado ameaçador e destruidor para ser contido na ficção, e que esta circunstância foi determinante nas opções de escrita de Marguerite Duras e nas questionações específicas que ela engloba. A autora refere-se diretamente a esta dificuldade em La Douleur:

La Douleur est une des choses les plus importantes de ma vie. Le mot ‘écrit’ ne convient pas. Je me suis trouvée devant des pages régulièrement pleines d’une petite écriture extraordinairement régulière et calme. Je me suis trouvée devant un désordre phénoménal de la pensée et du sentiment auquel je n’ai pas osé toucher et au regard de quoi la littérature m’a fait honte. (Duras, 2002, p. 11)2

Nas obras de Duras encontramos a obsessão do confronto com a dimensão brutal do real. Esse confronto elimina a possibilidade de resolver o problema do horror através da simbolização ou de sínteses que de alguma forma pudessem mascarar ou atenuar esse mal do mundo. Longe de proporem uma catarse, uma purgação do mal, as obras da autora, pelo contrário, fixam-se no momento irrevogável da doença e da dor. Lembremos, a título de exemplo, que as obras que tratam o tema do amor o apresentam geralmente como indissociável da morte. Não uma morte que seja o outro lado do amor, numa dualidade suscetível de reproduzir a simbologia de Eros e Thanatos, mas uma morte que é parte constituinte do amor e que, por conseguinte, está incorporada nele. Talvez a obra que tenha levado mais longe esta conjugação seja La Maladie de la mort (1982) ou, então, Les Yeux bleus, cheveux noirs (1986), mas ela está presente em muitas outras obras suas, de uma maneira ou de outra.

Poderíamos dizer que se atinge, através desta forma, um ponto extremo da escrita literária. Este problema é muito visível nas obras que lidam diretamente com a questão da guerra, como Hiroshima, Mon Amour (1960) ou La Douleur (1984). Mas a relação problemática de Duras com a história do seu tempo, que aliás afeta muitos escritores da sua geração, como afirmámos já, não é uma questão meramente temática. Ela contribuiu para moldar a escrita da autora e condicionou outros aspetos estéticos da sua obra. Encontramos vários desdobramentos desta relação problemática com o real ao nível da construção narrativa e da formação das personagens, e, também neste aspeto, a questão da ausência constitui uma forma de sublimação deste problema.

Voltemos, então, a Le Ravissement de Lol V. Stein, considerado por muitos, e, como vimos, pela própria autora, como um texto marcante e de viragem da sua obra.3 É nele que encontramos o núcleo narrativo, na parte inicial da obra, que irá servir de ponto de referência às situações de ausência que vivem posteriormente as suas personagens. Este romance inaugura uma série a que alguns autores chamaram o ciclo de Lol V. Stein, onde se inclui o próprio Ravissement, Le Vice-Consul, escrito no mesmo ano e publicado no ano seguinte (1965), e L’Amour (1971), que formam a trilogia nuclear; mas há ainda a juntar-lhes dois argumentos: La Femme du Gange (1973) e India Song (1975).

É interessante verificar que, desde o Ravissement até La Femme du Gange, se progride para um despojamento narrativo cada vez mais pronunciado; o primeiro fornece uma estreitíssima base narrativa na qual se irão apoiar os restantes textos da trilogia, que têm como pano de fundo os acontecimentos descritos nas suas páginas iniciais: no baile no casino de T. Beach, Lol é abandonada pelo seu noivo, Michael Richardson, que aí é arrebatado por uma mulher vestida de negro, Anne-Marie Stretter. O romance desenvolve-se em torno da personagem Lol. É sobretudo marcada a ausência de dor com que Lol vive o abandono. Tudo gira à volta desse vazio de dor, mas também do lugar vazio do outro, o homem perdido. Le Vice-Consul vai retomar a sequência destes acontecimentos na Índia, para onde Anne-Marie Stretter se dirigira com Michael Richardson: o tema da ausência é projetado em três personagens que estão relacionadas com o episódio do casino de T. Beach: Anne-Marie Stretter é a personagem comum aos dois romances, o vice-cônsul, em torno de quem se adensa toda a problemática da deriva, da loucura e do desastre, e a mendiga, que vagueia incessantemente, constituindo uma espécie de espelho onde se projeta a ausência de si que atinge as outras personagens. No entanto, o espaço geográfico é bem definido nesta obra: entre o Camboja e a Índia, o percurso da mendiga ao longo do rio Mekong e do Tonlé-Sap, a embaixada de França em Calcutá, o consulado em Lahore. India Song irá retomar as personagens de Le Vice-Consul e projetá-las em novos espaços narrativos. Mas, aqui, já não se investe na sequência narrativa, nem na construção de situações; o objetivo é dar um sentido musical aos nomes das cidades, dos rios, dos mares da Índia; explorar a dimensão erótica através do investimento numa estética dos sentidos. L’Amour, por outro lado, rompe quase completamente com a narrativa: trata-se de uma continuação do Ravissement - o noivo de Lol, Michael Richardson, regressa à cidade onde deixara Lol, S. Thala, que, anos após o episódio do baile, se encontra destruída. As personagens apresentam-se rodeadas de areia e de mar e não são caracterizadas, apenas são fornecidos vagos elementos descritivos: uma vai e vem na praia, e é designada como “um homem que anda” (un homme qui marche); a segunda é uma mulher a quem o texto se refere como “uma mulher sentada, de olhos fechados”; a terceira é um viajante-observador (“um homem que olha”) que regressou a este local, e que conseguimos identificar como uma das personagens do Ravissement, Michael Richardson. O texto apresenta-se como uma série de indicações acerca das personagens, da sua disposição em cena e dos lugares em que se encontram, alternando com partes de diálogo entre elas. É uma obra sobre imagens e sobre vozes, não sobre acontecimentos, tal como La Femme du Gange, realizado por Duras em 1974.

A redução narrativa é importante para podermos entender o que aqui está em causa: a construção de um universo ficcional que assenta no erotismo das imagens, das vozes, dos elementos táteis - como o mar viscoso em L’Amour, por exemplo, ou o pântano que a mendiga contorna no Tonlé-Sap no Camboda em Le Vice-Consul, ou sonoros como “Indiana’s Song”, melodia constantemente invocada no mesmo romance, até que em India Song a canção acaba por constituir o próprio invólucro da obra.

Le Ravissement de Lol V. Stein aparece neste conjunto de textos como o romance nuclear porque é nele que se fornece o episódio central - o baile no casino de T. Beach - que funciona como a cena primitiva deste ciclo e, até, de quase toda a obra de Duras.

Como foi já referido, a desilusão de Lol ao ser substituída por outra mulher é vivida sem sofrimento. A ausência, ou o esquecimento, da dor é uma manifestação do vazio que caracteriza Lol, a qual, face a uma perda afetiva fulcral, se apresenta, paradoxalmente, desprovida de densidade psicológica. A sua grande amiga dos tempos de escola, Tatiana Karl, testemunha dos acontecimentos dessa noite no baile, é a principal fonte de informação do narrador e refere-se, desde o início, a uma doença de Lol. Mas diz também que os acontecimentos dessa noite não foram responsáveis por esse mal, pois ele estava em germinação, desde sempre. Essa doença, como ficaremos a saber mais tarde, é a loucura, uma loucura que se manifesta pela apatia ou pelo congelamento, para usarmos um termo durasiano certamente mais certeiro, tal como em muitas outras personagens de Marguerite Duras. O problema de Lol é que algo lhe falta desde o início. O sofrimento vai ser suportado através de um estado de renúncia silenciosa, o “ennui” - tédio - que alguns críticos associam à melancolia, ou a “doença da dor”, como lhe chama Julia Kristeva (1987, pp. 227-265).

A questão que podemos colocar, no entanto, é a seguinte: como falar de um sofrimento sem sujeito? como captar a mulher no seu sofrimento se ela é sem sujeito? É com este problema que se debate Jacques Hold, o narrador da história de Lol V. Stein. Este é também um problema que afeta, numa outra vertente da obra durasiana, a vivência do amor quando é vivido, não no encontro entre os amantes, mas na ausência de um dos amantes. Como diz Jacques Hold a certa altura: “ne rien savoir de Lol était la connaître déjà” (Duras, 1996 (1964), p. 81).4 Para Hold, a única possibilidade de alcançar Lol é através da narração da sua história, e isso justifica que ele assuma a função de narrador.

A questão está em que a omissão da dor durante o baile elimina também a possibilidade de Lol viver daí por diante, como se tivesse ocorrido uma suspensão do tempo e a ausência fosse o elemento recorrente de um momento revivido incessantemente, embora sob a forma do esquecimento. Daí que Lol se desdobre em substitutos que, de certa maneira, vão realizar a sua vida ou dramatizar certos momentos dela que se cristalizaram simbolicamente. O episódio do encontro da sua antiga melhor amiga Tatiana Karl com o seu amante Jacques Hold, no Hotel des Bois, é um exemplo disso, na medida em que representa a duplicação dos antigos amores de Lol e Michael Richardson. Lol esconde-se nos campos de centeio para melhor poder espiar o encontro dos amantes através da janela do quarto. Como se o amor de Tatiana Karl fosse a possibilidade que resta a Lol de viver o amor, e a exteriorização voyeurística o único recurso à sua disposição para viver na condição de uma vida colocada em suspenso, processo tão bem descrito por Michèle Montrelay: “voir l’amour qui se passe entre l’homme que l’on aime et soi-même, brutalement joué au-dehors; voir le regard qui fait votre être fixer cet être sur un autre corps” (Montrelay, 1977, p. 13);5 e, mais recentemente, por Llewellyn Brown, na sua importante análise do fenómeno da destruição na escrita de Duras ao debruçar-se especificamente sobre Le Ravissement (...): “ce que les yeux fixent activement, dans le domaine du visible, sert d’écran, masquant la dimension où le sujet évolue sous le regard de l’Autre. (...) Comme le rêveur, Lol aussi - avant l’arrivée de l’aube - s’abolit devant le spectacle où est pris son être tout entier. Une schize s’opère, résultant dans, d’un côté, l’assomption du couple uni et, de l’autre, l’anéantissement subjectif de Lol” (Brown, 2018, p. 22, 24).6

Estas considerações acerca de um sofrimento privado do sujeito, em que as personagens femininas, herdeiras de Lol Valérie Stein têm uma existência fantasmática, ou, como afirmou Adília Carvalho, são como que “personagens líquidas” (Carvalho, 1996, p. 6), levam-nos a refletir sobre o título da obra e sobre o próprio sentido do termo “ravissement”. Este termo pode ter, em francês, várias aceções. Referimos as que estão atestadas no Petit Robert - Dictionnaire de la Langue Française: arrebatamento (sensação de êxtase, que sugere uma fixação fora de si mesma, um alheamento de si), mas também rapto (raptada de si mesma), ou deslumbramento (uma aceção que assenta na ação do olhar, no excesso de luz, logo num excesso do olhar), ou ainda fascínio ou encantamento.7 O termo “ravissement” está associado, muitas vezes, à linguagem mística e sugere um transporte do sujeito para fora de si mesmo, um êxtase.8 A ambiguidade do título sublinha a própria ideia da obra, que é construir um universo ficcional aberto, com uma protagonista sempre em deriva; um texto onde se procura tirar partido da poeticidade da linguagem de modo a pôr o leitor perante imagens e não acontecimentos e onde se dá a ver uma história em destruição, assentando largamente na força da imagem e rejeitando o fio narrativo. É natural, por isso, encontrarmos essa flutuação espelhada nos títulos distintos desta obra nas versões em português, que são representativos desta dificuldade em dar conta na tradução da ambiguidade poética da linguagem durasiana: A Ausência de Lol V. Stein, na tradução de José Vieira de Lima (Duras, 1989), O Deslumbramento, na versão de Ana Maria Falcão (Duras, 1986).

De certa maneira, é possível afirmar que no termo “ravissement” se concentra a questão fulcral de uma obra inteira, que é a da impossibilidade ontológica que deriva do esquecimento de si.9 As personagens de Marguerite Duras estão impossibilitadas de assumir em si plenamente as vivências afetivas. Daí que se encontre frequentemente na obra da autora a situação de duplos, como Lol e Anne-Marie Stretter, a mulher mais velha que “rapta” (arrebata) Michael Richardson. Ou o par Lol/Tatiana. Em Le Vice-Consul, o jogo é mais complexo: o vice-cônsul, uma das raras personagens masculinas em quem Duras projeta o problema da loucura, tem como seu equivalente Anne-Marie Stretter, e como seu negativo a mendiga; e em Détruire, dit-elle ou L’Amante Anglaise, por exemplo, já encontramos uma estrutura em quarteto.

Centremo-nos, agora, neste último texto para observar a questão da ausência envolvida no contexto da criminalidade. Esta obra é inspirada num “fait divers”, de que recordamos os contorno principais. Dá-se um homicídio no dia 13 de abril na cidade fictícia de Viorne. O corpo é despedaçado, e todos os bocados - com exceção da cabeça, que nunca aparece - são lançados em vagões de mercadorias de vários comboios que circulam em linhas diversas. A vítima é uma mulher corpulenta, com idade entre os 35 e os 40 anos. Os quatro interlocutores da obra são frequentadores de um café daquela cidade e discutem sobre o crime. Gradualmente, o leitor vai compreendendo que três deles estão envolvidos. Este romance é revelador do interesse que nutria Marguerite Duras pela literatura policial, e pela escrita de Agatha Christie em particular. Mas ele está, também, fortemente enraizado num projeto de escrita marcado pelo interesse obsessivo pela banalidade da personalidade do criminoso. O envolvimento dos frequentadores do café de Viorne no crime assenta na teoria da máquina infernal, referida, nestes termos, pela narradora de L’Amante Anglaise: “au fond, la cause de la plupart des crimes c’est peut-être ni plus ni moins la possibilité (…) dans laquelle on se trouve de les commettre. Supposez qu’on vive nuit et jour, avec prés de soi, par exemple (…) une machine infernale (…) qu’il suffise d’appuyer sur un bouton pour qu’elle se déclenche” (Duras, 1967, p. 36).10

Grande parte da obra é ocupada pelos interrogatórios de alguém que nunca chega a ser nomeado. Importa realçar que a análise psicológica do crime nunca é conduzida pelo inquiridor nem resulta da sua interpretação dos factos; são os próprios suspeitos que vão fazendo ilações ou que dão as pistas para a solução do enigma do crime, ultrapassando a função que desempenham na narrativa. No caso concreto em que se inspira Duras, uma mulher tinha matado o seu marido à machadada. Duras ressuscita a vítima, para lhe dar uma oportunidade de falar. Na ficção de L’Amante Anglaise, a vítima, uma mulher surda-muda, é a prima e hóspede do casal Lannes. Claire, a assassina, não é menos calada do que a sua vítima: o único testemunho que ela pode dar é o da sua loucura. A falta de premeditação, a casualidade do ato homicida, a tese da simples possibilidade são provas de que até no gesto mais radicalmente destruidor, como é o assassínio, se revela a falha do sujeito, a ausência de si mesmo - ela é a despojada ou a despossuída (“dépossédée”).11 Claire é uma descendente de Lol Valérie Stein nesse sentido em que também ela exibe uma “falha de existência” - “faute de son existence, elle se tait. Ç’aurait été un mot-absence, un mot-trou, creusé en son centre d’un trou, de ce trou où tous les autres mots auraient été enterrés” (Duras, 1996 (1964), p. 48).12 É a exata inversão do homicida imaginado por Zola em La Bête Humaine, onde a espessura psicológica do criminoso é a base justificativa do gesto do crime. Mas essa ausência é, também, o reflexo da separação em que cada homem vive relativamente ao seu semelhante: as personagens falam sem que o seu discurso se encontre com o dos seus interlocutores, apenas o interrogador as ouve, mas elas nunca se encontram. Tudo se desenvolve a partir das palavras, dos discursos proferidos pelas personagens, que procuram incessantemente encontrar o outro que as possa acolher numa identidade em que elas se possam reconhecer. O resultado é uma deriva de discursos que partem em várias direções sem nunca chegarem aos seus destinatários, como se o único lugar de abrigo possível fosse a palavra. Isso faz com que o modo possível de chegar ao outro seja construindo-o dentro da palavra, que é uma palavra-ausência: tal como Jacques Hold procurava captar Lol escrevendo sobre os acontecimentos de T. Beach, ou seja, escrevendo-a na ausência de si mesma.

Claire é uma representação do ponto nulo, a que nos referimos já,13 dessa “natureza destruída” (Duras, 1996 (1964), p. 113) que afeta muitas das personagens de Duras, sobretudo as femininas, como vimos. Porém, é Claire, uma personagem da anulação, que assume a função de agente. Como se o sujeito da ação (do crime) estivesse, justamente, nessa anulação em si, e nessa medida toda a ação se realizasse através da falha do ser. Duras faz coexistir na mesma personagem a ação e a ausência de determinação, e nessa coexistência reside um dos aspetos mais relevantes, da ausência em Claire, ou em Lol, donde decorrem as mulheres nos livros de Duras.14

Não estamos muito longe da noção de absurdo que foi cara à literatura e à filosofia um pouco antes. Porém, o que parece ser singular em Marguerite Duras é que ela nunca coloca esta situação na esfera do absurdo, nem no contexto da questionação filosófica, nem tão-pouco a encara como um problema. Estas situações constituem o seu quadro narrativo fundamental, o lugar donde emana a escrita, mas elas permanecem inquestionadas. Acreditamos que esta situação de ausência - na obra, simplesmente constatada - é pioneira na escrita literária no século XX, e não podemos compreendê-la sem olharmos também para o despojamento teórico da obra de Duras manifestado na recusa explícita do desenvolvimento conceptual acerca da sua postura de escrita e dos postulados assumidos, ou melhor, da ausência de postulados ou de quaisquer pressupostos ideológicos ou teóricos, em contrapartida representados na realidade poética e segundo os modos da sua escrita literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Carvalho, A. C. F. C. M. (1996). Circularidade e diluição em Marguerite Duras: Estudo sobre ‘Le Ravissement de Lol V. Stein’ e ‘Le Vice-consul’ (Circularity and Dilution in Marguerite Duras: A study on “Le Ravissement de Lol V. Stein” and “Le Vice-Consul”) (Dissertação de Mestrado não publicada). Universidade NOVA de Lisboa. [ Links ]

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NOTAS

1 “No momento do baile de S. Thala, Lol V. Stein está de tal maneira absorta na visão do seu noivo e dessa desconhecida vestida de negro que se esquece de sofrer. Ela não sofre por ser esquecida, traída. É por essa supressão da dor que ela irá tornar-se louca. (...) É um esquecimento. Existe um fenómeno no congelamento. A água torna-se gelo a zero graus e, por vezes, ocorre uma tal imobilidade no ar durante o frio que a água se esquece de gelar. Ela pode descer à temperatura de menos cinco. E gelar” (itálico no original; todas as traduções do francês, neste artigo, são da minha responsabilidade).

2La Douleur é uma das coisas mais importantes da minha vida. A palavra ‘escrita’ não se aplica. Encontrei-me perante páginas preenchidas regularmente com uma escrita miúda extraordinariamente regular e calma. Encontrei-me perante uma desordem fenomenal do pensamento e do sentimento em que não ousei tocar e que me envergonhou da literatura.”

3 Veja-se, por exemplo, Lacan (1965) e os comentários de Lydon (1988).

4 “Nada saber sobre Lol era, já, conhecê-la”.

5 “Ver o amor que se passa entre o homem de quem gostamos e nós próprias brutalmente representado no exterior; ver o olhar que faz o nosso ser fixar esse ser sobre outro corpo”.

6 “Aquilo que os olhos fixam ativamente, no domínio do visível, serve de ecrã, mascarando a dimensão em que o sujeito evolui sob o olhar do Outro. (...) Tal como o sonhador, também Lol - antes da alvorada - se abole perante o espetáculo em que é envolvido o seu ser inteiro. Opera-se uma schize, que tem como resultado, por um lado, a assunção do par unido e, por outro, a anulação subjetiva de Lol.”

7 RAVISSEMENT, p. 1875 - 1. Action de ravir, d’enlever de force. Le ravissement d’Europe; 2. Le fait d’être ravi, transporté au ciel. Le ravissement de Saint Paul. État d’une âme ravie en extase. Un de ces ravissements dont les saints sont coutumiers (France); 3. Émotion éprouvée par une personne transportée de joie et dans une sorte d’extase ( enchantement, exaltation. Il l’écoutait avec ravissement. Des idées qui jetaient Élodie dans le ravissement (France), PETIT ROBERT (1993, 1875).

8 Ver citação e nota 5 supra.

9 A este propósito, ver Lacan (1965) e Porge (2015).

10 “No fundo, a causa da maioria dos crimes talvez não seja mais do que simplesmente a possibilidade (...) em que alguém se encontra de os cometer. Suponham que se vive dia e noite ao lado de, por exemplo, (...) uma máquina infernal (...) e que bastaria carregar num botão para a disparar.”

11 Ver Duras e Gauthier (1988, pp. 75-91).

12 “Por falta de existência, ela cala-se. Seria uma palavra-ausência, uma palavra-cova, escavada no seu centro de uma cova, dessa cova onde todas as outras palavras teriam sido enterradas”.

13 Cf. p. 34 supra.

14 Ver p. 35 supra.

Recebido: 03 de Abril de 2023; Aceito: 08 de Junho de 2023

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