SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número48Maria José Nunes de Brito: Viver a arteAllegory and dream vision in The City of Ladies (c. 1405), by Christine de Pizan (1364-1430) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa dez. 2022  Epub 20-Fev-2023

https://doi.org/10.34619/otcm-7bew 

Pioneira

Dilma Rousseff - Primeira presidenta da república brasileira: Misoginia e impeachment em cenário político

Dilma Rousseff - Brazil’s first female president: Misogyny and impeachment in the political scenario

Magda Guadalupe dos Santosi  ii 
http://orcid.org/0000-0001-6894-0654

iPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade de Direito, 30535-901 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Email: magda.guadalupe@yahoo.com.br

iiUniversidade do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Educação, 31630-900 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.


Fonte: Palácio do Planalto/DF.

Figura 1. Dilma Rousseff 

Dilma Vana Rousseff torna-se, em 2010, a primeira mulher a assumir o cargo de Presidenta da República do Brasil, país da América do Sul, que contava, à época, com 195,7 milhões de habitantes. Com uma trajetória de combate às formas ditatoriais vividas no país de 1964 a 1985, Dilma Rousseff apresenta-se como uma mulher de grande valor para o cenário da representatividade feminina na política na América Latina. As mudanças propostas e efetivadas em seu governo em relação à vida quotidiana das mulheres, especialmente daquelas economicamente desfavorecidas, tiveram grande impacto, parecendo que as portas para um futuro menos desigual em direitos e obrigações seriam abertas.

Contudo, o Brasil é um país com bancadas políticas conservadoras que se pautam pelos paradigmas herdados do processo de colonização dos povos da América para distorcer a estrutura do poder. Em decorrência da persistente presença de uma visão patriarcal e colonial no país em pleno século XXI, o governo de Dilma Rousseff seria mal recebido pelo imaginário social e político brasileiros. Se no primeiro mandato, de 2010 a 2014, se evidenciam expectativas econômicas e políticas mais igualitárias entre as classes sociais e também entre os gêneros, já no segundo mandato, que se inicia em 2015, adversidades de ordem econômica favorecem a falácia da culpabilização da mulher presidenta.

A experiência de sua gestão será súbita e injustamente encerrada em 2016 através de um processo de impedimento. Debateram-se dilemas econômicos, escândalos ligados a supostas corrupções políticas, mas nada se discutiu, à época, sobre as questões de gênero que se evidenciavam na leitura mediática dos problemas vividos entre 2010 e 2016.

Um perfil histórico-político

Dilma Rousseff nasceu na cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, em 14 de dezembro de 1947. Torna-se mãe daquela que será sua única filha no ano de 1976 e forma-se em Economia em 1977, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Nos anos da ditadura, após o golpe militar de 1964, Dilma Rousseff ingressou na luta armada de esquerda junto ao Comando de Libertação Nacional (COLINA) e posteriormente à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Curiosamente, quando Rousseff se candidatou à Presidência da República, o que mais impactou a ala conservadora da direita brasileira foi justamente este aspecto da sua biografia: haver ela lutado contra a barbárie do regime militar. Aos olhos daqueles que negam ter havido uma ditadura militar no Brasil por considerarem o regime de 1964 uma “revolução militar” destinada a livrar o país da ameaça comunista, Dilma Rousseff parecia uma “jovem terrorista” agora amadurecida na política idealizada e efetivada pelo Partido dos Trabalhadores. Como a jovem Dilma havia pegado em armas, julgavam que ainda traria consigo os traços de uma juventude rebelde.

Durante a ditadura militar, em nome da perseguição do fantasma comunista, um palco vil de repressões se evidenciou. Como vários dos estudantes e dissidentes que ousaram enfrentar a ditadura, Dilma Rousseff foi presa, submetida às mais cruéis formas de tortura e condenada pelo regime de exceção a seis anos e um mês de reclusão, além de ter seus direitos políticos cassados por dez anos. Em 1972, após dois anos e dez meses de prisão, ela obtém redução de pena junto ao Superior Tribunal Militar (STM) e finalmente alcança a liberdade.

Parte da população brasileira, a ala da direita conservadora, é constituída por algumas pessoas que, com o mínimo de conhecimento político e do valor dos direitos humanos consagrados, desprezam o histórico ditatorial no país e o regime de barbárie então instaurado, com suspensão de direitos e garantias individuais; outras pessoas, destituídas de formação e informação política, são facilmente manipuláveis pelo processo de massificação social, acreditando também que o regime ditatorial brasileiro teve algum efeito positivo. Dentre essas pessoas sobressai em particular um então deputado federal que, na sessão parlamentar que decidiria pelo impeachment da presidenta, ao pronunciar-se, dedica seu voto ao Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarado torturador pela justiça brasileira, algoz e carrasco de estudantes durante o período da ditadura. Perverso, refere-se ao homenageado como o “pavor de Dilma Rousseff” (Barba & Wentzel, 2016). Irônica e tragicamente, esse mesmo deputado virá a ser eleito presidente da República nas eleições seguintes, em 2018, dando início ao maior retrocesso, em termos sociais, econômicos, culturais e políticos, já vividos no Brasil, inclusive e especialmente nas políticas para as mulheres: a era Bolsonaro!

Historicamente, a política econômica no Brasil encontra-se mesclada a ideologias e interesses neoliberais. A cada novo governo, novas pautas de redução de investimentos públicos e esquemas de privatização de empresas estatais ganham mais espaço. Entretanto, na era do governo Lula (2003 a 2010), tentou-se recuperar o protagonismo do Estado como investidor, especialmente nas áreas que deveriam ser mais bem protegidas pelo poder público, como a Saúde e a Educação. O impacto dessas iniciativas se fará sentir significativamente durante a presidência de Dilma Rousseff; contudo ela saberá enfrentar como mulher de brio a dinâmica do poder em seus vários matizes.

O gênero na interpretação do patriarcado brasileiro

Desde que se lançou a candidatura de Dilma Rousseff ao mais alto cargo administrativo do país, no ano de 2010, observou-se uma nova forma de tratar as questões políticas, com um olhar de vanguarda.

Em seu primeiro mandato (2011), Rousseff tem seu governo bem avaliado com a implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e um novo pensar sobre a questão social no Brasil nas variantes de então. Contudo, seus opositores não dão trégua, e logo no início do segundo mandato (2016) promovem manifestações públicas de insatisfação popular, sob a roupagem da má administração por uma mulher de esquerda na presidência da República brasileira.

O processo de rejeição e resistência ao governo Rousseff será inflamado também pelo tratamento hostil a ela dispensado por revistas de grande circulação no país, a saber, Veja, Isto É e Época. Desde a sua reeleição, estas publicações criticaram a sua vitória sobre o então líder da oposição, estabelecendo-se uma forte divisão no país na sequência do processo eleitoral.

As querelas políticas se ampliaram e um rápido desgaste da popularidade da presidenta foi acelerado por uma operação judicial a que se deu o nome de Lava-Jato, e que visava expor esquemas de corrupção na Petróleo Brasileiro S.A., maior empresa de capital aberto do país. Além disso, houve crescente manifestação de desacordo entre os partidos de coalizão, que foram se afastando da base do governo reeleito. Amplamente noticiadas pela imprensa, com aval do Poder Judiciário, práticas de corrupção eram seletivamente atribuídas ao Partido dos Trabalhadores (PT), partido pelo qual Dilma Rousseff havia sido eleita e ao qual é filiada desde 2001.

Os principais canais midiáticos do país esforçaram-se para tornar a mulher na Presidência alvo de chacotas e desrespeitos, usando da prática abjeta de estampar as capas de jornais e revistas com jogos de linguagens e imagens que visavam fragilizar a figura da mulher no cenário público.

Gestão política

Segundo Jacques Derrida (2014), em sua Carta à Europa, escrita no ano de 2004, a memória sombria se vincula à memória luminosa, na busca pelos traços identitários da história da cultura. É preciso, pois, recolher de volta os fios da memória e dar visibilidade luminosa aos projetos efetivados no governo Rousseff, os quais impactaram o imaginário patriarcal e conservador, especialmente o midiático e o político-econômico.

Durante o governo Rousseff outras mulheres foram nomeadas para cargos de importância no governo e diversas ações de empoderamento feminino foram adotadas, dentre as quais: a aprovação da Lei do Feminicídio; a garantia de maior autonomia para as mulheres na gestão da vida familiar atribuindo-lhes a titularidade da moradia oriunda do programa social denominado Minha Casa, Minha Vida; o acesso prioritário das mulheres ao Programa Bolsa Família. Segundo Dantas (2019, p. 42), reconhece-se que em 2016 o número de mulheres beneficiárias chegou a 93%, sendo de 84% o percentual das que apareciam como proprietárias da casa de moradia.

Num país em que, em significativo percentual, a mulher é a única responsável pelo sustento dos filhos e outros agregados, na maioria dos casos em razão da fuga do cônjuge ou companheiro, Dilma Rousseff faz aprovar a lei que confere, em caso de abandono do lar do/a cônjuge, o domínio integral e exclusivo sobre o imóvel utilizado para moradia da família a quem nele permanecer pelo período de dois anos (Lei n.º 12.424/2011, 2011). Logicamente são medidas de grande relevo no processo de propiciar autonomia às mulheres, as quais puderam se sentir independentes em seus laços conjugais, retirando-se de relações matrimoniais violentas ou abusivas que eram alicerçadas somente em vínculos gerados pela dependência financeira.

Oferecer às mulheres autonomia para administrar suas vidas e suas famílias equivale a quebrar velhos paradigmas de colonialidade e heteronormatividade, para o que o imaginário popular brasileiro não parecia estar preparado.

Logo após o afastamento de Rousseff, assume o cargo o seu vice-presidente, o qual instituiu um gabinete ministerial exclusivamente masculino e transformou a Secretaria de Políticas para as Mulheres em um mero anexo do Ministério da Justiça, o que demonstra a censura às iniciativas de apoio às mulheres no Brasil. Evidencia-se o papel que a categoria de gênero teve nos rumos do governo Rousseff ao enfrentar os padrões patriarcais, enquanto sustentáculo maior dos mecanismos do Estado neoliberal.

O impeachment da primeira presidenta da República do Brasil ocorreu como reação conservadora às mudanças de um país sob domínio do que homens falam e determinam sobre o outro. É bem nesse lugar de alteridade absoluta, tal como escrevia Simone de Beauvoir em 1949 acerca da condição de um segundo sexo determinado às mulheres, que Rousseff foi inserida. No discurso de vanguarda, ao se dizer Presidenta, Dilma causa mal-estar ao patriarcado brasileiro, pois com isso ela passa a interromper, mesmo sem perceber, o jogo de linguagem machista da história política (Tiburi, 2018).

Após o processo de impedimento político, Dilma será ilibada de todas as acusações que culminaram no seu afastamento, em especial a de haver praticado manobra contábil para cumprir as metas fiscais do governo. Ao apreciar as contas da Presidência da República relativa ao período em que foi acusada de irresponsabilidade fiscal, de 1.º de janeiro a 11 de maio de 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) conclui que “foram observados os princípios constitucionais e legais que regem a administração pública federal, bem como as normas constitucionais, legais e regulamentares na execução dos orçamentos da União e nas demais operações realizadas com recursos públicos federais, em especial quanto ao que estabelece a lei orçamentária anual” (TCU, 2017, p 13).

Dilma Rousseff, uma mulher de vanguarda diante do cenário misógino brasileiro.

Referências bibliográficas

Barba, M. D., & Wentzel, M. (2016, Abril 16). Discurso de Bolsonaro deixa ativistas ‘estarrecidos’ e leva OAB a pedir sua cassação (Bolsonaro’s speech leaves activists ‘appalled’ and leads OAB to ask for his cassation). BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160415_bolsonaro_ongs_oab_mdbLinks ]

Beauvoir, S. (1980). O segundo sexo (The second sex). Nova Fronteira. [ Links ]

Dantas, F. A. (2019). Dilma Rousseff: Uma mulher fora do lugar. As narrativas da mídia sobre a primeira Presidenta do Brasil (Dilma Rousseff: A woman out of place. Media narratives about Brazil’s first female presidente) (Tese de doutoramento, Universidade Federal da Bahia). Repositório Institucional da UFBA. http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/29934 [ Links ]

Derrida, J. (2014). Carta à Europa. “Dupla memória” (Letter to Europe. “Double memory”). Revista Filosófica de Coimbra, 23(46), 471-480. http://hdl.handle.net/10316.2/35589 [ Links ]

Lei n.º 12424/2011. (2011). Diário Oficial da União, de 17/06/2011, p. 2. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm#art9 [ Links ]

Memórias da Ditadura (s. d.). Dilma Rousseff. https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/dilma-rousseff/Links ]

Nunes, B. R. (2018). A imagem de Dilma Rousseff: A construção do estereótipo feminino na crise política (Dilma Rousseff’s image: The construction of the female stereotype in the political crisis) (Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora). Repositório Institucional da UFJF. https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/6633 [ Links ]

Tiburi, M. (2018). A máquina misógina e o fator Dilma na política brasileira (The misogynist machine and the Dilma factor in Brazilian politics). In L. Rubim & F. Argolo (Orgs.), O golpe na perspectiva de gênero (The coup from a gender perspective) (pp. 105-116). EdUFBA. [ Links ]

Tribunal de Contas da União. (2017). Relatório e pareceres prévios sobre as contas do governo da República - Exercício de 2016 (Report and preliminary opinion on the accounts of the government of the Republic - Fiscal year 2016). https://sites.tcu.gov.br/contas-do-governo-2016/Links ]

Aceito: 12 de Dezembro de 2022

Magda Guadalupe dos Santos. Professora Doutora, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade de Direito & Universidade do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Brasil.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons