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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa Dec. 2022  Epub Feb 20, 2023

https://doi.org/10.34619/inhe-tjjj 

Entrevista

Maria José Nunes de Brito: Viver a arte

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: a.r.sousamota@gmail.com

iiUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: mcborrecho@gmail.com

iiiUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro de Humanidades (CHAM), 1069-061 Lisboa, Portugal.


Licenciou-se em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e doutorou-se em Belas Artes na Universidade Clássica de Barcelona. Iniciou a carreira docente em 1967, tendo desempenhado diversas funções educativas, como a formação de professores na área de Educação Visual e Tecnológica (EVT). Foi coautora de manuais desta disciplina para o 2.º Ciclo do Ensino Básico e de Educação Visual para o 3.º Ciclo (e ainda de diversos Guias e Manuais de Formação de Professores para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Neto et al., 1999)). Como Professora Coordenadora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, foi responsável pela formação de professores de EVT, de Educadores de Infância e de Professores do Ensino Básico. Ainda exerceu funções docentes na Universidade de Évora, na área da Escultura do curso de Artes Plásticas.

Enquanto consultora do Banco Mundial e da Fundação Calouste Gulbenkian, orientou a formação e a coordenação de projetos educativos em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Desde a aposentação do ensino, em 2003, tem-se dedicado à produção artística, realizando diversas exposições individuais de desenho e pintura.

Autora de uma extensa e variada produção artística, por vezes enquadrada em campanhas de solidariedade a favor de causas sociais, dela se destacam esculturas de figuras públicas e pintura de diversa temática. Participou em exposições individuais, conjuntas e coletivas. A sua obra encontra-se dispersa por instituições e coleções particulares.

Com muita gratidão, agradecemos toda a disponibilidade para nos conceder, por escrito, esta entrevista em que recorda este percurso tão rico de experiências e realizações.

O interesse pela Escultura deveu-se a alguma influência em particular?

Desde pequena que gostava de desenhar. Em casa fui habituada a ver a minha mãe a fazer pintura de cavalete. Todos os dias ela pintava, mesmo que fosse por pouco tempo... era quase uma necessidade.

Em determinada altura da vida, sendo eu ainda pequenita, a minha mãe passou praticamente umas férias grandes (dois meses) no Museu do Prado, em Madrid, a fazer uma reprodução, de grandes dimensões, de um quadro de Murillo, a “Coroação da Virgem”. Essa tela destinava-se ao altar-mor da Igreja da terra do meu pai, uma povoação das Aldeias de Xisto, chamada Vidual. Embora já tenha sido restaurado, esse retábulo, ainda hoje, continua a embelezar a igreja.

Esta oportunidade que os museus davam aos pintores, mediante uma prévia autorização, era habitual nessa época.

Mas porque é que eu estou relatando isto?

Por uma simples razão... é que é esta vivência que vai mais tarde ser determinante na escolha do Curso... Pintura? ou Escultura?

Na Escola António Arroio, eu estava no curso de Pintura. Mas, quando me matriculei na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, acabei por dar preferência à Escultura. Embora gostasse muito de Pintura, utilizar as três dimensões como forma de expressão pareceu-me mais adequado à minha personalidade. Por outro lado, as recordações das salas escuras do Museu do Prado (enquanto esperava pela minha mãe) provocaram em mim o desejo de trabalhar em espaços abertos e luminosos.

Havia muitas jovens no seu curso de doutoramento?

Eu fiz o doutoramento na Universidade Clássica de Barcelona, onde o modelo adotado não era igual ao utilizado em Portugal. Enquanto em Portugal, depois de o aluno concluir a licenciatura, prossegue o mestrado e só depois apresenta a tese de doutoramento, em Barcelona, o doutoramento era um curso independente que podia ser realizado logo após a licenciatura. Era constituído por uma parte curricular correspondente ao nosso mestrado (mas sem direito a diploma), e só depois se apresentava a tese de doutoramento.

Este sistema (embora parecesse facilitador) fazia com que, se o aluno não terminasse “o curso de doutoramento”, não tivesse direito a qualquer certificação. Isto explica por que motivo os alunos recém-licenciados (ao contrário da tendência de hoje em dia) não integravam de imediato o curso de doutoramento, preferindo ganhar espaço, tempo e maturidade para o fazerem.

Todas estas normas conduziam a que a maioria dos alunos, naquela época, rondasse os 30-40 anos de idade.

O meu doutoramento é em Belas Artes, tendo sido provavelmente o primeiro em Portugal, e o tema da minha tese foi La ergonomía en el juguete como elemento escultórico (Brito, 1993).

Quando concluiu a licenciatura, optou pela carreira docente. As dificuldades sentidas por uma jovem artista no mundo da Arte em Portugal foram um fator decisivo para essa opção?

Sim e não!

Sim!, porque, em Portugal na época, estamos a falar dos anos 1990, era impensável alguém recém-formado (portanto, sem nome no mercado) ganhar a vida como artista. Na melhor das hipóteses, ia para o estrangeiro à custa dos papás. Sendo que, no meu caso, ser mulher e diplomada em Escultura, um curso essencialmente masculino, ainda se tornava mais difícil.

Não!, porque, como filha de professores que adoravam a sua profissão, eu não encarava o ensino como “uma fatalidade”, mas como algo que me preenchia e onde eu, até certo ponto, me realizava...

É interessante confessar que, apesar de ter sido mãe de dois filhos, de dar aulas, de ter sido orientadora de estágios, de ter trabalhado na Direção-Geral de Ensino, ser coautora de livros e de, mais tarde, ter sido professora coordenadora na Escola Superior de Educação de Setúbal (ESE), nunca abandonei por completo os trabalhos artísticos. Desse tempo, nasceram algumas esculturas públicas.

O que mais a marcou no seu trabalho como formadora de professores e coautora de manuais escolares?

Consciente de que não há receitas pedagógicas, nem métodos “prontos a servir”, tive sempre como ponto de partida o educando, com as suas possibilidades, as suas limitações e as suas aspirações, quer na formação de professores, quer na orientação dos manuais escolares.

Com esta premissa, procurámos incentivar os professores a criarem projetos que dessem sentido às tarefas do momento e que se pudessem prolongar em ações no futuro, contribuindo assim para o crescimento e autorrealização dos seus alunos.

Ainda no caso dos professores, tomámos em consideração a importância da relação pedagógica e da criação de um ambiente físico e humano, que levasse à aceitação e à realização pessoal de cada aluno.

Quanto aos manuais escolares, para lá dos conteúdos dos programas obrigatórios, salvaguardámos a independência necessária e favorável a um clima criativo.

A tónica subjacente, no manual do aluno, foi criar condições para que este pudesse desenvolver a originalidade e a criatividade, evitando uma atmosfera de ideias impostas e pretendendo ser, antes de tudo, um dicionário a ser consultado para aprofundar conhecimentos, antes de ser um modelo a seguir.

Como surgiu o convite para colaborar com o Banco Mundial e a Fundação Calouste Gulbenkian na coordenação de projetos educativos nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)?

Ao longo da minha vida têm sido muitos (e alguns bastante interessantes) os projetos educativos em que participei.

No que respeita aos do Banco Mundial e da Fundação Gulbenkian, nasceram de parcerias existentes entre estas entidades e o Instituto Politécnico de Setúbal (IPS), mais concretamente a Escola Superior de Educação de Setúbal.

Como ao longo da minha vida pessoal tive oportunidade de viver cinco anos em África, onde lecionei vários níveis de ensino, em conjunto com uma longa experiência anteriormente adquirida (nomeadamente cinco anos como orientadora de Estágios em várias Escolas distintas, quatro anos na Divisão de Orientação Educativa, da Direção-Geral de Ensino, e dois anos no Gabinete de Disciplina de Educação Visual), sem dificuldade colaborei na formação de professores em Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné- Bissau e Moçambique.

No projeto do Banco Mundial, eu não era formadora, mas sim consultora, uma vez que o objetivo era a reestruturação do sistema educativo a cargo da Direção-Geral de Ensino de Angola. A elaboração dos programas dos vários graus de ensino era feita por professores angolanos, e os professores da ESE de Setúbal surgiam apenas como consultores.

Num dos projetos da Fundação Gulbenkian em que estive envolvida, também não fui formadora, mas autora de programas de Educação Visual para os PALOP, bem como coautora do caderno de atividades.

Após a aposentação decidiu dedicar-se em exclusivo à produção artística. Que fatores condicionaram esta opção?

Sem dúvida que foi o meu gosto pelas Artes Plásticas! Como até aí não tinha muito tempo livre, dificilmente conseguia dedicar-me exclusivamente àquilo de que sempre gostei - a Escultura e a Pintura.

O fator determinante foi ter tempo para estar no atelier sem olhar para o relógio!

Se na pintura, lavar e arrumar os materiais leva o seu tempo… na Escultura, por seu lado, há uma série de procedimentos relacionados com o material com que se trabalha que não é compatível com a pressa. Por exemplo: quando se trabalha com barro, no final do dia, há que cobrir, com panos molhados e plásticos, o barro não usado e a peça que se está a fazer. Por outro lado, se se tratar de um trabalho em pedra, no final do dia, a sujidade em todo o espaço é evidente. Haverá pó em todo o lado, o que significa a necessidade de uma limpeza das instalações e um duche completo!

Esta era uma das razões pelas quais, enquanto dei aulas na Escola Superior de Educação, não me atrevia a começar nenhuma escultura!

Ainda hoje, se tiver menos de cinco horas disponíveis, prefiro não começar. Se bem que, com o estatuto de reformada, tudo parece ser mais fácil, pois a dedicação é quase total! Agora já consigo realizar obras de grandes dimensões, dedicando-me a elas inteiramente.

Mas, como o ensino me corre nas veias, mantenho (sob a minha orientação) umas aulas em dois ateliers onde ajudo as pessoas a crescer no Mundo da Arte.

De toda a sua extensa produção escultórica e pictórica, quais as obras que, para si, têm um especial significado?

Não me é fácil responder a esta pergunta, porque a minha ligação/interação com cada escultura que faço é quase como se de um filho se tratasse... ou seja, todas elas têm um significado especial!

No entanto e tentando corresponder à pergunta, realçaria o busto em bronze de D. MANUEL MARTINS (primeiro Bispo de Setúbal), que está no Jardim em frente do Seminário de Almada; o busto em bronze do Dr. ÁLVARO VALENTE, que se encontra no interior do Quartel dos Bombeiros Voluntários, no Montijo; outro busto em bronze que adorei fazer foi o do Dr. ANTÓNIO FORTUNA, que se encontra no Largo do Poço Novo, na povoação da Quinta do Anjo. Para já não falar no busto, em bronze, do PADRE AMÉRICO, presente no jardim da Casa do Gaiato de Setúbal, e que marcou o início da minha atividade artística (não que este seja o primeiro busto em bronze que eu tenha executado, pois o busto do dono das Caves Dom Teodósio, que se encontra em Rio Maior, é de longe muito mais antigo). Outro busto que adorei fazer foi o do PADRE ZÉ MARIA, que se encontra em Moçambique.

Adorei realizar, em folha de zinco, figuras alusivas ao povo português: o FADO, com a Cantora, o Guitarrista e o Viola) expostos em diferentes locais como o Museu de Arte Popular ou o Aeroporto de Lisboa. Estas peças foram posteriormente adquiridas por uma das Escolas do Instituto Politécnico de Setúbal. Ainda dentro desta temática, gostaria de assinalar o CANTO ALENTEJANO, igualmente adquirido por outra Escola do mesmo Politécnico.

Deste mesmo material e seguindo a mesma técnica, outra figura que me deu um especial prazer fazer foi a da PEIXEIRA, que se encontra na Escola Superior de Engenharia, no Barreiro. Gostei também muito de trabalhar, em ferro, a escultura alusiva ao movimento LIONS, que se encontra numa rotunda em Setúbal, junto da Baixa de Palmela.

Recordo com muito carinho a primeira escultura em pedra, de grandes dimensões, que fiz para o Instituto Politécnico da Guarda e que se encontra na entrada da sua Biblioteca, chamada APELO À LEITURA.

Com igual ternura recordo a primeira estátua, de grandes dimensões, em bronze, da figura de S. FRANCISCO XAVIER destinada à Igreja de S. Francisco Xavier em Lisboa.

São todavia, os últimos trabalhos que realizei (duas estátuas e um baixo-relevo) os que mais recordo com saudade e com especial carinho: a estátua, em bronze, do primeiro BISPO DE SETÚBAL - D. MANUEL MARTINS e que se pode ver, num pedestal, à frente da Sé de Setúbal; o baixo-relevo da RESSURREIÇÃO, em gesso pintado, que está na Casa Mortuária da Igreja da Anunciada, em Setúbal; com igual entusiasmo e carinho, recordo aqui a mais recente estátua da MADRE VIRGÍNIA DE BRITES PAIXÃO, em bronze, que se pode ver na rotunda com o seu nome no Funchal, Madeira.

Participou em diferentes eventos de Pintura e Escultura ao vivo. Como descreveria essas experiências e a reação do público?

Ao longo do meu percurso de artista plástica, muitos foram os momentos em que tive ocasião de apresentar as minhas obras, fossem elas pinturas ou esculturas, em exposições individuais ou coletivas.

É evidente que o feedback é distinto, consoante se trate de uma exposição em parceria ou de uma exposição individual.

Uma vez que já vivenciei todas estas situações, posso dizer que é bastante gratificante ouvir o público falar do nosso trabalho, pois nestes eventos há sempre pessoas presentes que captam muito bem a nossa mensagem como autoras...

Entre muitas honrosas e lisonjeiras palavras e presenças, recordo com grande afetividade a inauguração da escultura MÃO COM DIPLOMA, erguida no Campus da Escola Superior de Tecnologia do IPS, no Barreiro, inaugurada em 2010 na presença do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva. Também relembro a minha participação na homenagem ao primeiro Bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, com a inauguração da sua estátua, ou ainda os agradecimentos da família, quando sentem presente o ente querido no busto feito por mim.

Resta-me agradecer e desejar as maiores felicidades à vossa Revista.

Maria José Nunes de Brito

14 de novembro de 2022

Referências bibliográficas

Brito, M. J. (1993). La ergonomía del juguete como elemento escultórico (The ergonomics of the toy as a sculptural elemento) (Tese de doutoramento, Universidade de Barcelona). https://dialnet.unirioja.es/servlet/tesis?codigo=191376Links ]

Brito, M. J., & Miranda, H. (1998). Debaixo d’olho: Educação visual, 7º/ 8º/9º (Under the eye: Visual education, 7th/8th/9th). Texto Editora. [ Links ]

Godinho, J. C., Brito, M. J. N. (2010). As artes no jardim de infância: Textos de apoio para educadores de infância (The arts in kindergarten: Supporting texts for kindergarten teachers). Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular. [ Links ]

Neto, C., Morais, D., & Brito, M. J. (Coord.). (1999). Técnicas de expressão: Guia do professor (Techniques of expression: Teacher’s guide). Projecto consolidação dos sistemas educativos. Gráfica Europam. [ Links ]

Aceito: 21 de Novembro de 2022

Ana Mota. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Portugal.

Maria do Céu Borrêcho. Investigadora. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher & Centro de Humanidades (CHAM), Portugal. CIÊNCIA ID: https://www.cienciavitae.pt/portal/2913-3F73-32D5.

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