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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.42 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.34619/7cbr-7m69 

ESTUDOS

Discursos sobre emancipação das mulheres e feminismos na Modas & Bordados, no pré e pós-revolução dos Cravos

Discourses on women’s emancipation and feminisms in Modas & Bordados, before and after the Carnation Revolution

Isabel Freire*

* Investigadora do projeto Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/HAR-HIS/29376/2017). Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1600-189 Lisboa, Portugal, ana.freire@ics.ulisboa.pt


 

RESUMO

Em 1975, a chefe de redação da Modas & Bordados, Maria Antónia Fiadeiro, convida Maria Lamas (referência dos feminismos da primeira metade do século XX) a regressar como diretora honorária à publicação que geriu entre 1928 e 1947. Poucos dias após a Revolução dos Cravos, a revista comprometera-se a auscultar a situação das mulheres, a esclarecer e a incentivar a luta pelos seus direitos no contexto de um “novo país”. Que problemáticas se evidenciam nessa busca? Como são enquadradas e debatidas? Partindo deste “novo” propósito da revista, o artigo analisa qualitativamente o agendamento das temáticas da emancipação das mulheres e dos feminismos numa amostra de 165 peças rastreadas na Modas & Bordados durante o governo de Marcelo Caetano (nos anos de 1968 e de 1973) e após a Revolução dos Cravos (triénio 1974-1976).

Palavras-chave: História das mulheres, feminismos, imprensa, periódicos femininos, sexualidade.


 

ABSTRACT

In 1975, the editorin-chief of Modas & Bordados, Maria Antónia Fiadeiro, invites Maria Lamas (a reference for feminisms of the first half of the 20th century) to return as honorary director to the magazine she had managed between 1928 and 1947. A few days after the Carnation Revolution the magazine had committed itself to understand the situation of women in Portugal, to clarify and to encourage the fight for their rights in the context of a “new country”. Which problems became evident in this search? How were they framed and debated? Starting from this “new” purpose of the magazine, this article analyses qualitatively the scheduling of women’s emancipation and feminism in a sample of 165 articles published during the government of Marcelo Caetano (in the year 1968 and 1973) and after the Carnation Revolution (1974-1976).

Keywords: Women’s History, feminisms, media, women’s magazines, sexuality.


 

Introdução

Este artigo analisa qualitativamente o agendamento temático da emancipação das mulheres e dos feminismos no conteúdo do magazine feminino Modas & Bordados (M&B), suplemento semanal do jornal O Século, no período de transição da ditadura para a democracia. Parte de uma amostra de 165 peças (editoriais, notícias, artigos, entrevistas, reportagens e cartas de leitoras), identificadas em 250 edições[1] nos anos de 1968 e de 1973, e no triénio 1974-1976. A amostra foi extraída de uma análise de conteúdo desenvolvida (em 2016, no ICS-ULisboa) no contexto de uma investigação de doutoramento - tese intitulada A intimidade afetiva e sexual na imprensa em Portugal (1968-1978) - que analisa quantitativamente (de forma diacrónica e sincrónica) cerca de 1500 artigos sobre a intimidade, identificados no corpus de quatro publicações (Modas & Bordados, Crónica Feminina, Expresso e Diário de Lisboa) ao longo de uma década (nos anos de 1968,1973, 1974, 1975, 1976 e 1978). A temática da emancipação das mulheres e dos feminismos é uma das cerca de 60 categorias em análise. Foi rastreada num total de 265 artigos, correspondendo a 18% da amostra. A M&B regista o maior número de peças abordando o tema, justificando-se assim uma análise compreensiva e aprofundada dos referidos discursos nesta publicação. Que problemáticas prevalecem nas abordagens à emancipação das mulheres e aos feminismos? Como são enquadradas e debatidas? Quem as promove? Ana Benavente, Antónia de Sousa, Graça Mexia, Helena Neves, Hortense de Almeida, Laura Lopes, Manuela Meneses, Manuela Tereza, Maria Antónia Fiadeiro, Maria Antónia Palla, Maria José Paixão, Maria Ondina Braga, Maria Teresa Horta, Sousa Aguiar, Susana Ruth Vasques e Teresa Mendes assinam na M&B, no período estudado, peças em que se abordam direitos políticos, cívicos, sociais, laborais, reprodutivos e sexuais (Tavares, 2008; Freire, 2016). Algumas destas mulheres são à época declaradamente feministas, militando em organizações como o Movimento de Libertação da Mulher. Para além delas, contribuem de forma expressiva para o agendamento e debate da emancipação das mulheres e dos femininos, na M&B, centenas de leitoras anónimas.

Quando focamos a abordagem do tema da emancipação das mulheres e dos feminismos na pesquisa sobre intimidade nas quatro publicações, o Expresso revela também um especial interesse pelo seu agendamento: 56 artigos (jornalísticos, de opinião e recensões críticas), preferencialmente assinados por mulheres (Ana Hatherly, Diana Andringa, Fernanda Leitão, Fina d’Armada, Helena Vaz da Silva, Judite Cortesão, Lia Viegas, Maria Antónia Palla, Maria Belo, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria João Seixas).

No Diário de Lisboa e na Crónica Feminina o agendamento do tema é menos expressivo, 8 e 36 peças, respetivamente. Na Crónica Feminina, mesmo após a Revolução dos Cravos, escreve-se mais sobre papéis sociais e conjugais de género (frequentemente numa perspetiva conservadora) do que sobre emancipação das mulheres e muito pouco sobre feminismos. A revista publica lado a lado abordagens contraditórias relativamente à forma de entender o corpo, afetos e sexualidades: tanto faz a apologia da castidade moral e física da jovem, contrariando informações sobre sexualidade antes do casamento, como defende que a educação sexual é necessária não apenas para se iniciar a vida sexual, mas também para a continuar (Freire, 2016).

M&B: Um trajeto de resistência cultural

Offen diz-nos que, para estudar a história dos feminismos, precisamos de examinar os momentos “em que se abrem fissuras na crosta dos sistemas patriarcais” (2008, p. 37) e de analisar o magma que emerge à superfície. A transição da ditadura para a democracia é um destes momentos. A imprensa feminina e a imprensa feminista são fontes muito importantes para a história das mulheres em Portugal (Emonts, 2001; Cova, 2003; Lopes, 2005), e a M&B uma publicação de referência na imprensa periódica feminina do século XX: pela longevidade (1912-1977), pelo valor informativo e cultural, mas também por ter resistido à “máquina da censura e a outras acções de intimidação política [durante o Estado Novo], tais como as demissões compulsivas das suas diretoras” (Guimarães, 2008, p. 7).

Entre 1928 e 1947([2]), a M&B teve na direção Maria Lamas, jornalista, escritora e última presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), organização feminista que ao longo de 33 anos (19141947) desenvolve uma campanha doutrinária que passa pela publicação de um boletim[3] (órgão de propaganda) e pela participação e organização de conferências, congressos, representações e petições (Silva, 1983; Costa, 2007; Cova, 2007; Correia, 2013). Em 1947, Maria Lamas vê-se forçada a sair da direção da M&B e o regime encerra o CNMP, a que a jornalista presidia desde 1945. Etelvina Lopes de Almeida, jornalista e sócia do entretanto extinto CNMP, sucede-lhe na direção da M&B (em 1947), vindo a ser igualmente afastada por motivos políticos, em 1964 (Guimarães, 2008).

Após a Revolução dos Cravos, em 1975, Maria Lamas regressará à M&B como diretora honorária, por iniciativa de Maria Antónia Fiadeiro, chefe de redação entre maio do mesmo ano e novembro de 1977. O convite representa uma “reparação moral e política” pelo afastamento da ex-diretora e recupera “uma continuidade de objectivos e ideais [da revista], interrompida pelo fascismo” (Fiadeiro, 1975, p. 1). Maria Antónia Fiadeiro, jornalista e escritora, tem igualmente um percurso feminista (é cofundadora da Liga dos Direitos das Mulheres). Durante a sua coordenação da M&B, a publicação passa por mudanças editoriais significativas, promovendo informação em torno de temáticas de cunho feminista (Freire, 2016; Xavier Filha, 2005).

Uma agenda pela emancipação ainda durante o Estado Novo

Os feminismos são “uma constante obsessiva da repressão política” para o regime salazarista (Gorjão, 2002, p. 72). São associados a conceitos como os de decadência, declínio moral e desmoronamento social (Tavares, 2008). As Instruções sobre o Exame Prévio (de 1972) indicam que são matérias proibidas as que causam inquietação e ultraje à moral pública (Franco, 1993). As reivindicações feministas facilmente se enquadrariam em ambos os critérios. A M&B posiciona-se como uma publicação de resistência durante a direção de Maria Lamas, contrariando certas dimensões de uma visão modelar desigual de género, veiculada em discursos políticos durante o Estado Novo (Fiadeiro, 2003). Na década de 1930 ganha fôlego na revista o tema do papel social da mulher (em 1936 publicam-se as primeiras abordagens à emancipação feminina) e em finais dos anos 1940 afirma-se “um novo tipo de mulher”, “lúcida”, que não se contenta com uma existência frívola e conformada, muito embora direitos matrimoniais, divórcio e liberdade sexual não constem ainda da agenda da publicação neste período (Rodrigues, 2016). Durante a ditadura, a M&B assume uma missão formativa e informativa no sentido da “elevação e dignificação da mulher”, defende o direito à educação, ao trabalho, a eleger/ser eleita, mas sem contestar o seu papel na família e na maternidade (Guimarães, 2008). O agendamento - direto e claro - dos feminismos escasseia entre as páginas da revista durante o Estado Novo. As referências existentes reportam-se sobretudo ao panorama internacional (Rodrigues, 2016).

Entre finais de 1960 e início de 1970 (concretamente em 1968 e 1973, os dois anos analisados no período da governação de Marcelo Caetano), a M&B publica artigos em que se fala de “emancipação feminina”, “igualdade de direitos sexuais”, “movimentos femininos” e feminismos. Nestes discursos prevalece uma visão essencialista do género - entendida como “diferença essencial, ou mesmo natural, entre as mulheres e os homens, definindo as suas respectivas especificidades” (Collin, 1991, p. 312). Nalguns artigos reconhece-se já a influência da cultura para a construção de género e anota-se o interesse crescente da sociologia, psicologia e antropologia pela sua compreensão (Feminilidade 68 - Um conceito que se modifica, 1968).

Durante o período marcelista, a M&B publica perfis de feministas portuguesas (nomeadamente Adelaide Cabete e Maria Lamas) e artigos sobre a história dos feminismos no mundo, memórias que, para Helena Neves (1973), careciam à época, no nosso país, de valorização e recuperação. É nítido já o interesse da revista pela problematização da temática da emancipação das mulheres. Em 1973, publica-se um artigo com a visão de homens (figuras anónimas e públicas) sobre o tema. Há entre os inquiridos quem defenda posições antifeministas: a mulher é um “instrumento de reprodução, de trabalho e de prazer, que está sendo explorada no sentido de se constituir em movimentos de libertação, que culminarão com o homem a viver a expensas suas!”; há quem proclame o fim do patriarcado, louvando a luta pela emancipação desenvolvida por todas as mulheres ao longo dos séculos; e ainda quem defenda uma visão não binária do género (o cineasta Ernesto de Sousa), afirmando que o masculino e o feminino não são valores exclusivos de um ou de outro sexo, que “a Mulher é Outro Homem” e/ou que “o Homem é Outra Mulher”, estando ambos “presos”, “a caminho, numa floresta de enganos” (“O que eles pensam delas”, 1973).

“Seja uma mulher do seu tempo”

Logo após a Revolução dos Cravos, na edição de 8 de maio de 1974, lê-se na capa da M&B: “Um novo país, um novo Modas”. Em editorial anuncia-se o compromisso de colaborar na construção do “Portugal novo”, discutindo assuntos emergentes: “naturalmente, todos nós gostamos de saber o que se usa, o que é a moda. […] mas, cada vez mais, as mulheres pensam em muitos outros problemas […]” (A mulher e a liberdade, 1974). A estratégia de colocar o foco nos problemas das mulheres chega à legendagem dos editoriais de moda, onde modelos (femininos e masculinos) se convertem em interlocutoras/es pela igualdade de género e pela autodeterminação das mulheres nas diversas esferas: política, social, laboral, familiar e conjugal:

O papel da mulher é, na vida de hoje, de capital importância. A comparticipação da mulher na vida económica do lar é, agora, equiparada à do homem […]. Na vida política dá a mão ao homem. Na educação, como mãe, tem as bases na sua mão. Ser mulher, hoje, é qualquer coisa. (Seja uma mulher do seu tempo, 1975, p. 23)

[…] cada vez mais se confundem os papéis atribuídos a homens e mulheres. Continua, todavia, a haver tarefas consideradas femininas. A lavagem da loiça, a mudança da fralda do bebé, limpar o pó […]. Apesar disso, há muitos casais, principalmente entre os jovens, que conseguiram a harmonia da divisão das tarefas da casa […]. Esta é uma concepção nova de vida em comum. (Viver em conjunto, 1975, p. 22)

No triénio 1974-1976, na M&B, o agendamento da emancipação das mulheres e dos feminismos ganha em frequência, diversidade, profundidade e exposição. Artigos de notável valor jornalístico fazem análises de fundo sobre problemáticas como: desigualdade salarial e falta de paridade no acesso a todas as profissões; desvalorização do trabalho doméstico não remunerado e sobrecarga das mulheres na sua concretização; dificuldades no acesso ao planeamento familiar e persistência de mitos relacionados com a pílula; gravidez indesejada, aborto e discriminação social das mães solteiras; interditos morais à sexualidade dos jovens e das mulheres (lesivos de uma vivência saudável do prazer); importância das novas visões terapêuticas da sexualidade para resolver problemáticas de ordem física ou psicológica; violência sexual tolerada e culpabilização das vítimas.

Após a Revolução dos Cravos, Maria Lamas defende na M&B a necessidade de organizar uma campanha de esclarecimentos no País inteiro para contar às mulheres a sua história, evidenciando as conquistas alcançadas “e os pontos em que ela ainda se conserva escravizada” (Maria Lamas, 1974, p. 4). O agendamento da história de movimentos feministas, sobretudo internacionais, cresce após o 25 de Abril de 1974 - destaca-se uma série de Gertrudes de Pablos: As grandes pioneiras; De Josephine Butler aos últimos anos do século XIX; À procura de um novo conceito; Emily Davidson: a primeira mártir da causa feminista; A grande guerra e a causa feminista; Consequências das guerras mundiais; A situação da mulher espanhola; Olympe de Gouges, Mulher com demasiadas ideias.

Após o 25 de Abril de 1974 aumenta também o agendamento dos perfis de feministas, nomeadamente portuguesas. Adelaide Cabete e Maria Lamas são revisitadas. Escreve-se sobre Teresa Margarida da Silva e Orta e sobre Maria Veleda, esta última em seis peças, certamente pelo ativismo na Liga Portuguesa das Mulheres Republicanas a que presidiu, mas também pela colaboração como jornalista n’O Século (entre 1919 e 1920), abordando feminismos, questões sociais, de educação e política (Monteiro, 2004).

A partir de finais de 1974 a temática da emancipação das mulheres e dos feminismos ganha uma secção noticiosa própria (Condição feminina) destinada à divulgação de informações, problemas e conquistas nacionais e internacionais. São abordadas nesta rubrica iniciativas de feministas nos EUA, em Moçambique, no Japão, entre outros países.

Feminismos em corrente

Analisando os artigos sobre feminismos publicados entre 1974 e 1976 na M&B, identificamos as correntes radical e socialista/marxista. Na perspetiva da primeira, a reprodução é um fator determinante da opressão das mulheres. Contraceção, legalização do aborto e violência sobre as mulheres constituem preocupações de luta fundamentais para as feministas radicais (Tavares, 2008). A sua visão é clara num artigo de Paixão, publicado em 1976: o “domínio do corpo, que inclui o controlo da sua fecundidade e o direito ao prazer”, é fundamental para a libertação das mulheres, claro está, para além da “independência económica” (p. 11).

A segunda corrente (socialista/marxista) está patente em narrativas que entendem a luta pelo direito ao trabalho como um fator emancipatório, denunciando o capitalismo como sistema discriminatório e opressor, e perspetivando a conquista da igualdade pelo socialismo (Tavares, 2008). O direito das mulheres (no trabalho, na família e na conjugalidade) é tratado regularmente na rubrica A Mulher e a Lei, de Laura Lopes, mesmo antes da Revolução dos Cravos. A jurista defende a necessidade de acordar as portuguesas “do longo passado de escravidão” (Lopes, 1974a, p. 50) em que foram “espezinhadas, coisificadas, relegadas a simples objecto doméstico e sexual” (Lopes, 1973, p. 43). Para esta autora os movimentos inter/nacionais de libertação das mulheres representam uma luta isolada ou uma luta da mulher contra o homem, quando ambos são oprimidos; por isso, não se justificam (Lopes, 1974b). Luísa Amorim e Fernanda Gonçalves, dirigentes do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), defendem na M&B a mesma perspetiva socialista/marxista: “a luta das mulheres não se deve fazer à parte da luta de todo o povo português” (Vasques, 1975a, p. 14). Com frequência, a luta pela igualdade - se isolada - é acusada de se converter em grosseria, desconsideração e desrespeito para as próprias mulheres. Este estigma negativo associado aos femininos (da corrente radical) surge em diversos artigos entre 1974 e 1976. Na peça “Frente comum contra a discriminação sexual

- Objectivo do Movimento de Libertação das Mulheres”, Sousa de Aguiar (1975) reporta o lançamento do disco de Teresa Paula Brito (integrado numa campanha do MLM). A falta de domínio das mulheres sobre si próprias, sobre o seu corpo e a sua sexualidade, sobre a sua capacidade reprodutiva, a sua possibilidade abortiva e a discriminação que sofrem quando são mães solteiras são temas abordados no encontro. Aguiar escreve, surpreendido, que esperava “assistir a mais uma manobra de folclore feminista”:

Destas reuniões tínhamos a ideia simplista e deformada dos actos simbólicos e ‘estrambólicos’ da queima pública de ‘soutiens’ [...]. A primeira constatação que tivemos de fazer foi a da extrema dignidade e oportunidade da reunião [...]. Pudemos verificar também, na altura, o relativo desinteresse de toda uma população urbana por uma manifestação que lhe dizia de perto respeito [...]! (Aguiar, 1975, p. 15).

Maria Teresa Horta, numa entrevista a Simone de Beauvoir, sublinha a discriminação e o estigma vivido pelas ativistas portuguesas. “É duro, em Portugal, ser-se feminista”, referindo que à época estas mulheres são “alcunhadas de taradas sexuais, de putas, de lésbicas” (Horta, 1975, p. 12). A escritora feminista francesa sublinha a urgência de as portuguesas saírem à rua, de tomarem a palavra e de fazerem uma revolução específica das mulheres. Meses antes desta entrevista, em janeiro de 1975, Maria Teresa Horta e as ativistas do MLM saem à rua, manifestam-se no Parque Eduardo VII, em Lisboa, contra a situação discriminatória da mulher portuguesa nas ruas, em casa, no trabalho. A reportagem de Vasques (1975b) na M&B descreve a violência de um contramovimento de milhares de pessoas (sobretudo homens, mas também mulheres) que desmobilizam o protesto. Uma leitora da M&B (Irene Dias) pronuncia-se contra as ativistas do MLM, ridicularizando os meios, apesar de compreender os fins. Vê na manifestação uma performance caprichosa e indigna, prejudicial para o sucesso da emancipação das mulheres. A sua carta é assim publicada:

[…] no referido movimento [do MLM] a maior parte das cabecinhas não tem miolos lá dentro e foram culpadas do enxovalho que a mulher portuguesa recebeu da parte dos homens. [..] vejo que as interessadas só fizeram figuras ridículas: a fogueira, o disfarce carnavalesco e acima de tudo vergonhoso. Para chegarem à meta de uma igualdade de direitos há que saber comportar-se como mulheres inteligentes e mulheres-mães que acima de caprichos fúteis põem a sua dignidade. (Correio das Leitoras, 1975, p. 40)

Aldemira Martins (outra leitora) responde com um texto publicado sob o título Carta aberta a uma antifeminista (1975) na secção A palavra às leitoras: “[As manifestantes] foram, sim, desrespeitadas e enxovalhadas pelos homens, o que é bem diferente” (Carta aberta a uma anti-feminista, 1975, p. 7). Mas o acontecimento não desperta aceso debate na publicação. As leitoras da M&B não se intrigam, não se indignam, não se mobilizam para debater este episódio de silenciamento das reivindicações feministas.

Cartas que discutem a emancipação das mulheres

Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, a M&B recebia já milhares de cartas, que eram organizadas em secções especializadas (por exemplo, Correspondência de Beleza e Correspondência de Pantagruel) (Guimarães, 2008). No pós-Revolução dos Cravos as leitoras continuam a escrever e a revista a valorizar (e publicar) as suas cartas. A partir de 1975 são criados Dossiers (debates públicos) para temas que geram polémica entre leitoras. Reúnem visões e vivências (mais e menos anónimas) que chegam por carta, algumas emancipatórias (muito poucas declaradamente feministas) e outras conservadoras (nalguns casos explicitamente antifeministas). As autoras destas cartas entram frequentemente em diálogo umas com as outras, e não raramente de forma ríspida. Os temas que geram maior (e mais inflamada) participação das leitoras no debate são os direitos laborais e os direitos reprodutivos e sexuais. O Dossier Gisela (1975-1976) é o primeiro de quatro fóruns com grande destaque no pós-revolução. É gerado pela publicação (a 14 de maio de 1975) da carta de Gisela (15 anos), que declara ter-se iniciado sexualmente na noite de 25 de Abril de 1974. Esta história pessoal sexual revela-se chocante para muitas leitoras. Corresponderia a uma nova liberdade política uma nova liberdade sexual? Gisela reivindica o direito das mulheres à autodeterminação sexual pré-conjugal, a terem um relacionamento íntimo e a terem filhos fora do casamento, mas também à emancipação pelo trabalho e pela educação. Ao longo de um ano e meio (em 33 edições) a revista publica (sobretudo na secção A Palavra às Leitoras) dezenas de comentários (elogiosos e críticos) inscritos no que chama de Dossier Gisela.

O segundo Dossier é criado na sequência da exibição na RTP de uma reportagem de Maria Antónia Palla sobre o aborto (programa Nome: Mulher), em 1976. A jornalista é acusada de indecência e incitamento ao crime e o programa é suspenso. A revista toma posição com uma capa em que mulheres grávidas amordaçadas e algemadas se alinham em posição de luta. Alguns meses depois, a M&B apela às leitoras para que subscrevam (e enviem para a redação) um abaixo-assinado que será entregue na Assembleia da República, requerendo a descriminalização do aborto. Assim surge (a 2 de junho de 1976)

o Dossier Aborto: o crime está na lei. A M&B prossegue com a publicação de artigos e reportagens que dão ‘vozes’ (a abortadas e abortadeiras). As leitoras pronunciam-se e posicionam-se, contra e a favor.

Também em 1976, na sequência de um artigo de Almeida (1976) sobre parto sem dor - método introduzido em Portugal por Cesina Bermudes - surge o Dossier Pornografia, o que é?. Fotografias explícitas de parto que ilustram o artigo causam choque e indignação. Leitoras enviam cartas à redação classificando as imagens de indecentes e pornográficas. Outras leitoras consideram a falta de informação e educação sexual - essa sim!

- indecente, atávica, culpabilizante, causa de infelicidade. Alegam em certas cartas que a sexualidade é das temáticas “que mais preocupam a sociedade a todo o nível de idades” (Pornografia, o que é?, 1976a, p. 9). “Nós jovens e crianças estamos saturados de mentiras, de ouvir dizer Não deves ver isto porque parece mal…. Estamos fartos” (Pornografia, o que é?, 1976b, p. 15).

O quarto Dossier (Mulheres Domésticas, Mulheres Empregadas) tem origem num artigo em que se analisam visões feministas sobre o trabalho

[Três mulheres não identificadas, em entrevista a uma rádio nacional] criavam um abismo entre elas e as mulheres que as escutavam. Nós, mulheres livres, [que trabalhamos fora de casa] para vocês, as escravas, as domésticas, as subjugadas pelo machismo, damos-vos a nossa opinião sobre a vossa condição e aceitem um conselho: “Façam como nós, tenham uma profissão […]. (Paixão, 1976, p. 11)

Na sequência do artigo, duas leitoras enviam as suas posições por carta, abrindo um longo e acesso debate: “Não creio que a senhora, tendo uma vida profissional fora de casa, seja um ser humano mais realizado que eu”. Neste comentário acusam-se as mulheres com trabalho remunerado de criar os filhos “à moda de aviário”, de os sacrificar em prol da vaidade (fatos, malas e viagens à “estranja”) (A palavra às leitoras, 1976a, p. 2). A discussão mantém-se até final de 1976, com presença em todas as edições. Analisa-se a emancipação da mulher pelo trabalho, o direito a remuneração justa e igualitária. Discute-se o valor da assistência aos filhos/as e cuidados com o lar. Problematiza-se a acumulação de ambos. Embora o discurso da domesticidade seja apresentado durante o Estado Novo com base numa categoria de género, e não de classe social (Tavares, 2008, p. 102), neste dossier as condições sociais e económicas ganham centralidade: “Mulheres como a senhora que […] podem dar-se ao luxo de não trabalharem são muito poucas. Possivelmente a senhora tem dinheiro para os ‘trapos’ e adornos que pretende, mas a maioria das mulheres que trabalham fazem-no para dar de comer aos filhos” (A palavra às leitoras, 1976b, p. 3). O diálogo faz-se entre mulheres com situações socioeconómicas distintas.

Violência sexual

A violência sexual (violação, abuso sexual intrafamiliar e assédio sexual)

- tema de relevo na discussão dos feminismos de segunda vaga - também consta da amostra de artigos analisados na M&B, entre 1974 e 1976. Fala-se de violação no artigo de Susana Ruth Vasques (1976a), que faz a cobertura de um encontro designado por Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, que reuniu entre 4 e 8 de março de 1976, em Bruxelas, 700 participantes de vários países. Noutro artigo da mesma jornalista (Vasques, 1976b), denunciam-se injúrias e discriminações morais por parte da justiça para com as mulheres vítimas de violação. O tema do abuso sexual intrafamiliar (embora não seja designado desta forma) é abordado em 1976, também por Susana Ruth Vasques:

[…] um número inacreditável de miúdas são vítimas de agressões sexuais no próprio seio familiar (um tio, um primo, um padrasto). De resto, toda a mulher, desde a infância, vítima potencial da violação, é culpabilizada e acusada de provocação. […] A violação é o único crime em que a mulher é tratada como acusada, pois é um crime que a sociedade prefere negar a punir. (“Violentados” diariamente, 1976c, p. 2)

O importuno, o assédio sexual às mulheres no espaço público, também é abordado no artigo da M&B, denunciando-se a forma como é socialmente tolerado:

Fui seguida a pé, de automóvel, fui abordada […]. […] Desatei a correr em direcção à esquadra que fica perto de minha casa. […] os polícias começaram a gozar comigo, dizendo gracinhas do género: ‘Deixa lá, eram só uns quinze minutos, ainda te divertias!’. […] Eu cá não importuno os homens, porque hão-de eles importunar-me a mim? (“Violentados” diariamente, 1976, p. 2)

Sublinhe-se que, nalguns casos, o agendamento do tema da violência sexual dá-se pela mão das leitoras:

[...] conheci na “explicação” um rapaz de quem me tornei amiga. Um dia, ele pediu-me para falar comigo à saída das aulas e eu convidei-o a vir a casa da minha tia que se encontrava ausente. Ao passarmos pela mata - uma mata que sempre me meteu medo - ele puxou-me, tapou-me a boca e violentou-me. Fiquei desesperada, mas ele também. Chorámos ambos durante muito tempo, depois dele me confessar o seu amor. (Correio do Coração, 1974, p. 39)

Camila (pseudónimo da jornalista Susana Ruth Vasques, que responde às leitoras nesta secção) descreve a situação vivida como “violentação”, revelando ambiguidade no enquadramento da violação no contexto da relação afetiva ou de compromisso. E comenta que o jovem fez à rapariga “uma grande maldade por amor, por ignorância, por falta de educação e preparação para a vida” (Correio do Coração, 1974, p. 47).

Conclusões

Após a Revolução dos Cravos, a M&B assume uma nova estratégia editorial, mais ajustada às novas preocupações das portuguesas, que querem “participar na construção do seu destino”, enfrentando “corajosamente” a sua “verdade” (A mulher e a liberdade, 1974, p. 1). A intenção é publicada no editorial de 8 de maio de 1974. Durante o Estado Novo, há já em narrativas da M&B sinais claros de resistência a uma visão modelar desigual do papel da mulher na sociedade portuguesa (Fiadeiro, 2003; Xavier Filha, 2005; Guimarães, 2008; Freire, 2016; Rodrigues, 2016). Mas, da Revolução dos Cravos em diante, particularmente após 1975, pela mão de Maria Antónia Fiadeiro, esta resistência amplifica-se. O agendamento das problemáticas da emancipação feminina e dos feminismos torna-se mais ciente, constante, consistente e transgressivo. Direitos políticos, cívicos, familiares, mas em especial direitos laborais, reprodutivos e sexuais, são abordados de forma ousada, revelando afinidades com a agenda temática preferencial de feministas radicais. O planeamento familiar e a contraceção, o aborto, a repressão sexual, a masturbação e problemas sexuais tornam-se manchete entre 1975 e 1976. Alguns destes assuntos são fervorosamente discutidos entre leitoras, levando a M&B a criar fóruns (Dossiers) para a publicação das centenas de cartas chegadas à redação. Este incentivo à palavra, à afirmação da mulher como sujeito da sua ação, a par de um esforço de sensibilização e esclarecimento sobre tópicos de igualdade de género (em artigos problematizantes e de fundo), confirma a M&B como uma publicação de resistência cultural, social e política, de inspiração e afinidades feministas, antecipando discussões que se instalam apenas mais tarde em esferas mediáticas e públicas. Para Magalhães (1998), a campanha feminista pelos direitos reprodutivos tem lugar sobretudo entre 1978 e 1984, mas entre 1974 e 1976 a M&B aposta já numa insistente estratégia informativa de visibilização de problemas na implementação do planeamento familiar, de esclarecimento de resistências e equívocos sobre a pílula e de denúncia de entraves médicos à sua prescrição.

Numa entrevista a Ventura (2007), Maria Teresa Horta diz que ser-se feminista nas redações portuguesas dos anos 1960-1970 era muito penalizante, corria-se o risco de não se ser levada a sério. Não encontrámos na M&B, no período estudado, qualquer tomada de posição editorial declaradamente feminista, mas, a avaliar pelo conteúdo da revista entre 1974 e 1976, esta redação parece contrariar o dito padrão. Fiadeiro segue a mesma estratégia que reconhece à ex-diretora da revista, Maria Lamas: promoção do “direito à opinião, expressa e impressa”, consolidada num “movimento de mulheres da Imprensa e de mulheres leitoras, quase um movimento feminista autónomo”, com uma estratégia de resistência que agrega várias tendências e credos (Fiadeiro, 2003, p. 160).

 

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Receção: 30/05/2019

Aceite para publicação: 31/10/2019

 

[1] Registam-se falhas de publicação, nomeadamente 11 edições consecutivas entre 29 de outubro de 1975 e 14 de janeiro de 1976.

[2] Maria Lamas só figura na ficha técnica a partir de 3 de agosto de 1938, mas exerce o cargo desde 1928 (Fiadeiro, 2003).

[3] Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1916); Alma Feminina (19171946); A Mulher (1946-1947).